I - As normas que regulam apenas o conteúdo das situações jurídicas já constituídas, abstraindo dos factos que as originaram, não são, verdadeiramente, retroactivas, porquanto não visam atingir os factos anteriores à sua entrada em vigor, tratando-se antes de uma aplicação imediata, no futuro, às relações constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor, também denominada de “retroconexão” ou de “referência pressuponente”.
II - A lei nova abstrai dos factos constitutivos de uma situação jurídica contratual antecedente quando for dirigida à tutela dos interesses de uma generalidade de pessoas que se acham ou possam vir a encontrar ligadas por certa relação jurídica, de modo que se possa dizer que a lei nova atinge as pessoas, não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual.
III - Quando uma lei nova passa a disciplinar para o futuro, de forma diversa, o conteúdo de certa relação jurídica, abstraindo do respectivo facto gerador, deve entender-se, em conformidade com o estipulado pelo art. 12.º, n.º 2, do CC, que “…abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
IV - A Lei n.º 23/2010, de 30-08, que alterou a redacção dada ao art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, de 11-05, ao fixar um dos dois sentidos possíveis que o texto antecedente do mesmo normativo podia comportar, não deve ser considerada como lei inovadora, mas antes como lei interpretativa, porquanto não adoptou, indiscutivelmente, uma regra diversa de natureza constante e pacífica da pretérita jurisprudência.
V - A satisfação da pretensão da parte, fora do âmbito da providência jurisdicional adoptada, traduz-se na consumação, por outra via diversa daquela que a acção persegue e não daquela que para a sua concretização exija ao autor uma actividade dispositiva diversa nesse sentido, como aconteceria se fosse obrigado a iniciar um procedimento administrativo que teria por finalidade algo que já é objecto da acção para reconhecimento da titularidade do direito a alimentos, relativamente à herança aberta por óbito do membro falecido da união de facto, e que nela continua a poder, utilmente, ser alcançado.
VI - A Lei n.º 23/2010, de 30-08, não tornou, supervenientemente, inútil a acção pendente em que o unido de facto pede o reconhecimento da qualidade de titular das prestações por morte do beneficiário da segurança social, com quem viveu, em condições análogas às dos cônjuges, devendo a solução mais acertada ser encontrada, em consonância com o princípio da adequação processual, através do aproveitamento útil da tramitação processual pertinente, aplicando-se a lei nova aos factos apurados no processo.
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
AA, residente na Rua .............., ...., ....., ......, Aveiro, propôs a presente acção declarativa, de simples apreciação, contra BB residente na Avª ............, .........., Gafanha da Nazaré, na qualidade de herdeiro da falecida CC, e o ISSS – Centro Nacional de Pensões, com sede na Avª .........., ......, Lisboa, pedindo que, na sua procedência, seja reconhecido como titular do direito a alimentos, relativamente à herança aberta por óbito de CC, falecida a 7 de Julho de 2009, no estado civil de divorciada.
Para atingir a finalidade pretendida e como fundamento do pedido, o autor alega que viveu com a referida CC, em situação análoga à dos cônjuges, desde 19 de Maio de 2006 até 7 de Julho de 2009, data do seu falecimento, sendo esta beneficiária do ISSS, mas como desconhece se a herança aberta pelo seu óbito tem bens, intentou a presente acção contra o réu ISSS – Centro Nacional de Pensões, como forma de obter o reconhecimento do seu reclamado direito.
Na contestação, o réu ISSS – Centro Nacional de Pensões alega que só responde, subsidiariamente, pelo que o autor deveria descrever factos de que resultasse não poder obter alimentos dos demais obrigados, legalmente, a prestar-lhos, com a consequente insuficiência da causa de pedir, impugnando a demais factualidade alegada pelo autor, por não ser do seu conhecimento pessoal, nem estar obrigado a dela conhecer, pugnando pelo julgamento da causa, de acordo com a prova que vier a ser produzida.
Na réplica, o autor alega a inexistência de obrigados que estejam em condições de lhe prestar os peticionados alimentos.
O Exº Juiz julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, com o fundamento de que, com a entrada em vigor da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, se alterou, de forma substancial, o regime jurídico das uniões de facto, consagrado pela Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, pelo DL nº 322/90, de 18 de Outubro, pelo DL nº 142/73, de 31 de Março, e pelo Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro.
Designadamente, considerou que, com tais alterações legislativas, terminou a obrigatoriedade de instaurar uma acção judicial destinada ao reconhecimento da existência da união de facto e bem assim como o ónus de demonstrar a carência de alimentos e a impossibilidade de o necessitado os obter das pessoas, legalmente, obrigadas a prestar-lhos.
No novo regime, a necessidade da propositura da acção foi substituída pela suficiência de meios de prova nele elencados e, no caso da existência de dúvidas sobre a alegada existência da união de facto, caber, agora, à entidade responsável pelo pagamento das prestações a promoção de uma acção judicial com vista à sua comprovação.
Mais se considerou, na aludida decisão, que o novo regime se aplica à situação em causa nos presentes autos, em face do disposto no artigo 12º, nº 2, 2ª parte, do Código Civil, porquanto a referida Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, não consagrou solução diversa.
Desta sentença, o réu ISS, IP/CNP interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação, confirmando, na íntegra, a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Coimbra, o réu ISS, IP/CNP interpôs agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, devendo os autos prosseguir com obediência à legislação com a redacção anterior à nova LUF, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na totalidade:
1ª – Dispõe o n° 1 do art° 8° do D.L. 322/90 que: "O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontram na situação prevista no n° 1 do art° 2020° do Código Civil".
2ª - Ora diz-se no n° 1 do art° 2020°, do C. Civil: "Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos da alínea a) a d) do art° 2009°".
3ª - Por sua vez, afirma-se no n° 1 do art° 2009° do C. Civil: "Estão vinculados à prestação de alimentos pela ordem indicada: a) o cônjuge ou o ex-cônjuge; b) os descendentes; c) os ascendentes; d) os irmãos..." (sublinhado nosso).
4ª - Da conjugação de tal regime jurídico resulta que o direito a alimentos da herança é reconhecido à pessoa que se encontrar na seguinte situação: vida em condições análogas às dos cônjuges; com pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens; há mais de dois anos à data da morte; que necessite de alimentos e não tenha possibilidades dela própria prover à sua subsistência (art° 2004° do C. Civil); e que os não possa obter daqueles familiares.
5ª - Ora o art° 8° do DL 322/90, ao remeter para a situação prevista no n° 1 do art° 2020° do C. Civil, está a equiparar a situação de quem tem direito à pensão de sobrevivência à situação de quem tem direito a alimentos da herança.
6ª - Ou seja, a situação que se exige no art° 8o (para lhe ser reconhecido o direito àquelas prestações da segurança social) é a mesma situação daquele que tem direito a exigir alimentos da herança, nos termos do n° 1 do art° 2020° do C Civil.
7ª - Porém na sequência do que se determinou no art° 8o n° 2 do DL 322/90 foi publicado o Dec. Regulamentar n° 1/94 de 18 de Janeiro, que nos seus art°s 3o e 5o estabeleceu as condições e processo de prova para atribuição da pensão de sobrevivência às pessoas que se encontrem na situação prevista no art° 8o n° 1 do DL 322/90 (o mesmo é dizer, situação prevista no art° 2020° n° 1 do C. Civil).
8ª - Daqui resultando que a atribuição das prestações por morte dependia (antes da entrada em vigor da Lei 135/99) de sentença judicial que reconhecesse o direito a alimentos da herança ao requerente (art° 3o n°1 Dec. Reg 1/94 de 18 de Janeiro); do reconhecimento judicial da qualidade de titular das prestações por morte, no caso de não ter sentença que lhe reconheça o direito a alimentos por falta ou insuficiência de bens da herança (art° 3 n° 2).
9ª - Isto é, obtida sentença judicial que reconheça o direito a alimentos da herança, preenchidos estão todos os requisitos para atribuição da pensão de sobrevivência pois os elementos constitutivos desta são os pressupostos daquele, provado por sentença judicial o direito a alimentos da herança, provado está o direito à pensão de sobrevivência.
10ª - Se não for reconhecido tal direito a alimentos da herança com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança (o que pressupõe a verificação dos restantes requisitos do direito a alimentos da herança) o requerente terá de obter sentença em acção declarativa instaurada contra a instituição da segurança social, em que se reconheça a sua qualidade de titular daquelas prestações.
11ª - Ou seja, também na situação prevista no n° 2 do art° 3, será necessário alegar e provar: a) que o "de cujus" era pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens (art° 2o do D. Reg. 1/94 e n° 1 do art° 2020° do C. Civil); b) factos demonstrativos ou integradores do conceito união de facto há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges (art° 2020° C. Civil); c) factos demonstrativos da inexistência ou insuficiência de bens da herança (art° 3o n° 2 do Dec. Regulamentar 1/94); d) factos demonstrativos de não poder obter alimentos nos termos das alíneas a) a d) do art° 2009°; e) factos demonstrativos da necessidade de alimentos e da impossibilidade de ela prover à sua subsistência (sublinhado nosso).
12ª - Do exposto se conclui que para a atribuição da pensão de sobrevivência é condição essencial e necessária a obtenção de sentença judicial onde se reconheçam e verifiquem todos aqueles pressupostos.
13ª - Ora no caso sub Júdice, o Mmº Juiz do Tribunal da 1a instância, diz na sua douta sentença: "No tocante à necessidade da acção judicial, substituiu-se o regime antecedente pela suficiência de qualquer meio de prova (...).
Segue-se portanto que “a presente acção, indispensável face à legislação que à data da sua instauração regia a obtenção das referidas prestações por morte, é agora desnecessária e inútil uma vez que a prova da união de facto terá de ser feita por outro meio e que não é mais necessário demonstrar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter de determinadas pessoas”.
14ª - E prossegue o Mmº Juiz "a quo": "Refira-se para finalizar que este novo regime jurídico se aplica imediatamente à situação da autora nos termos do disposto no art.° 12°, n.° 2, parte final do Código Civil uma vez que a Lei 23/2010, de 30 de Agosto, não consagra solução diversa - o artigo 6° da lei respeita somente aos preceitos com repercussão orçamental: alínea d) do n.° 1 do artigo 3.°.
Pelo exposto, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide."
15ª - Ora, face a tal conclusão obtida pelo Tribunal da 1a Instância e que acabámos de transcrever, salvo douto e melhor entendimento em contrário, não se compreende o doutamente decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.
16ª - Se existia divergência na jurisprudência em relação aos requisitos essenciais a provar nestas acções intentadas contra a Segurança Social, hoje, vai sendo pacífica a orientação jurisprudencial que se vem impondo, nomeadamente, aquela que resulta do Plenário do Tribunal Constitucional, que proferiu o Acórdão n° 614/2005, de 09/11/2005, no qual, maioritariamente, se entendeu ser de manter a orientação seguida no Acórdão n° 159/2005, de 29/05, bem como dos Acórdãos n° 195/2003, de 09/04 e n° 233/2005, de 05/04, ou seja, não considerar, discriminatório ou desproporcional exigir à companheira sobreviva, para além da convivência em condições análogas à dos cônjuges por mais de dois anos, o reconhecimento judicial do direito a receber alimentos, nos moldes previstos pelo art° 2020° do C. Civil, por remissão efectuada para os aludidos artigo 8o do DL n° 322/90, de 28/10 e artigo 3o do Dec. Regulamentar n° 1/94 de 18/01.
17ª - E como o que vale são os factos que constam dos autos, que a autora alega e prova em julgamento, no caso vertente, o Juiz "a quo" entendeu, a nosso ver erroneamente, aplicar de imediato a Lei 23/2010, julgando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, quando a acção devia ter prosseguido a sua normal tramitação, e a autora deveria ter logrado alegar e provar: a) que o "de cuius" era pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens (art° 2o do D. Reg. 1/94 e n° 1 do art° 2020° do C. Civil); b) factos demonstrativos ou integradores do conceito união de facto há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges (art° 2020° C. Civil); c) factos demonstrativos da inexistência ou insuficiência de bens da herança (art° 3o n° 2 do Dec. Regulamentar 1/94); d) factos demonstrativos de não poder obter alimentos nos termos das alíneas a) a d) do art° 2009°; e) factos demonstrativos da necessidade de alimentos e da impossibilidade de ela prover à sua subsistência. (Vd Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 19/03/2009, de 23/10/2007; Aresto do Tribunal da Relação de Évora, de 05/12/1996, CJ, 1996, 5.a secção, 271; Acórdão Tribunal Relação Porto, de 08/04/2008 e de 31/03/2009 - Processos n.° 0820710 e 4450/05.8TBPRD, Relação Coimbra de 6/10/2009, in www.dgsi.pt.).
18ª - Na verdade nada disto foi analisado nos presentes autos, nem dos factos assentes nem dos factos provados em 1a instância, uma vez que não se realizou julgamento, quando se devia ter realizado.
19ª - Pelo que, salvo o devido respeito, mal andou igualmente o douto Tribunal da Relação de Coimbra ao julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo ora recorrente e em confirmar a decisão recorrida de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, atenta a aplicação imediata da nova Lei.
20ª - Com efeito, não podemos concordar com o argumento da presente acção ser desnecessária e inútil. Na verdade, uma acção deixa de ter utilidade quando se tenha alcançado "a justa composição do litígio", o que não aconteceu no caso vertente. A este propósito, vide o plasmado no voto de vencido de António Beça Pereira, nos presentes autos, quando de forma proficiente diz: "aqui chegados, conclui-se que só estaríamos perante uma inutilidade superveniente da lide se, neste preciso momento, o direito que a autora diz assistir-lhe já se encontrasse reconhecido, o que, …não acontece".
21ª - Aliás, está o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra em contradição com o que também vem decidido num outro douto aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, 3.a Secção, Proc. 986/09 e Proc. 1147/10, disponíveis em www.dqsi.pt
22ª - E está igualmente em contradição, no tocante à aplicação imediata da nova Lei (23/2010), com os doutos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.a Secção, Proc. 141/06; Proc. 7116/06, 7.a Secção; Ac. da Relação de Lisboa de 14/12/2010, Proc. 5993/08; e Proc. 1404/08; Relação do Porto, Ac. 11087/08, da 2.a Secção; Ac da Relação de Lisboa, Proc. 2386/09; e Ac. Relação de Évora, Proc. n.° 53/10, 1.a Secção Cível, entre outros, todos disponíveis em www.dqsi.pt.
23ª - Por todo o exposto, discordamos totalmente da escolha interpretativa que o Tribunal "a quo" realizou na presente acção, visto que se está perante um evento morte ocorrido antes da entrada em vigor da nova Lei de União de Facto.
24ª - O ora recorrente considera que estamos em face de factos constitutivos do direito da autora, nos termos do art.° 342° do CC, pelo que no caso sub Júdice, houve necessariamente erro de julgamento pois o Mmo. Juiz aplicou imediatamente a nova legislação sem dar oportunidade às partes para se pronunciarem.
25ª - A morte de CCl ocorreu em 07/07/2009 pelo que a legislação a aplicar seria resultado da conjugação do art° 8o do D.L. 322/90 de 28/10, dos artigos 2o e 3o do Dec. Regulamentar n° 1/94, de 18/01, art°1° e 6o da Lei n° 7/2001, de 11/05 e art° s 2020° e 2009° do Código Civil.
26ª - Pelo que a sentença recorrida viola as disposições enunciadas por estar em causa um evento morte ocorrido antes da entrada em vigor da nova LUF (entrou em vigor em 04/09/2010), ou seja, à data da entrada em vigor deste diploma a relação jurídica já se havia extinguido com o óbito da eventual companheira do autor, portanto em momento anterior à entrada em vigor da Lei 23/2010, de 30/08 que assim é aplicável por força do que dispõe o art.° 12°, n.° 1 do Código Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Tribunal da Relação entendeu que, apenas, se deve considerar demonstrada a matéria de facto constante do antecedente relatório.
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 685º-A, nºs 1 e 2 e 726º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da determinação da lei competente para o reconhecimento da titularidade do direito às prestações de alimentos do membro sobrevivo da união de facto, em consequência do óbito do seu companheiro, beneficiário do regime da segurança social, falecido no estado civil de divorciado.
II – Qual a consequência da entrada em vigor da lei nova que dispensa a necessidade da propositura de uma acção judicial no sentido do reconhecimento da união de facto e dos pressupostos do direito a alimentos, relativamente às situações jurídicas, anteriormente, constituídas e ainda existentes.
I. DA DETERMINAÇÃO DA LEI COMPETENTE PARA A ATRIBUÇÃO DAS PRESTAÇÕES POR MORTE AO MEMBRO SOBREVIVO DA UNIÃO DE FACTO
I. 1. A questão essencial a resolver passa pela distinção precisa entre o âmbito de competência e o âmbito de aplicação de uma lei, porquanto, uma vez fixada a lei competente, cabe à mesma definir, livremente, o seu campo de aplicação.
Tendo em conta o teor da contestação do réu que impugnou, por desconhecimento, toda a matéria articulada pelo autor, nos termos do disposto pelo artigo 490º, nº 3, do CPC, apenas importa reter que se encontra demonstrado que CCl faleceu, no estado civil de divorciada, no dia 7 de Julho de 2009, sendo beneficiária do ISS, IP – Centro Nacional de Pensões, mas não já, consoante vem alegado, que esta vivia em comunhão de tecto, cama e mesa com o autor, desde 19 de Maio de 2006.
O princípio da protecção da união de facto que, alegadamente, constitui a causa de pedir da acção, está reconhecido pelo artigo 26º, nº 1, da Constituição da República (CRP), como decorrência do direito ao desenvolvimento da personalidade, por força do direito à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
Com vista a ter acesso ao regime das prestações por morte de pessoa não casada ou separada, judicialmente, de pessoas e bens, na qualidade de convivente em união de facto, há mais de dois anos, o autor pretende, com a presente acção, o reconhecimento da titularidade do direito de obter alimentos da herança aberta por óbito da aludida CC.
Dispõe o artigo 8°, nº 1, do DL nº 322/90, de 18 de Outubro, que "o direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontram na situação prevista no n° 1 do art° 2020° do Código Civil", assim equiparando, através desta norma de remissão, a situação de quem tem direito à pensão de sobrevivência, ou melhor, ao reconhecimento do direito às prestações da segurança social, com a situação de quem tem direito a alimentos da herança.
Estipula, por outro lado, o artigo 2020º, do Código Civil (CC), oriundo da Reforma de 1977, aprovada na sequência do início da vigência da CRP, que “aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º”.
Por sua vez, o artigo 2009°, nº 1, do CC, preceitua que "estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada: a) o cônjuge ou o ex-cônjuge; b) os descendentes; c) os ascendentes; d) os irmãos...".
E, na sequência do estabelecido pelo artigo 8o, n° 2, do DL nº 322/90, de 18 de Outubro, os artigos 3o e 5o, do Decreto Regulamentar n° 1/94, de 18 de Janeiro, consagraram as condições e o processo de prova para atribuição da pensão de sobrevivência às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1, do artigo 8o, do DL nº 322/90, isto é, na situação prevista pelo artigo 2020°, n° 1, do CC, donde resulta que a atribuição das prestações por morte, antes da entrada em vigor da Lei nº 135/99, de 28 de Agosto, dependia de sentença judicial que reconhecesse o direito a alimentos da herança ao requerente e a qualidade de titular das prestações por morte, no caso de não dispor de sentença que lhe reconheça o direito a alimentos, por falta ou insuficiência de bens da herança.
Assim sendo, demonstrando-se, por sentença judicial, o direito a alimentos da herança, provar-se-ia, simultaneamente, o direito à pensão de sobrevivência, porquanto os elementos constitutivos desta são os pressupostos integrantes daquele.
E, se não fosse reconhecido o direito a alimentos da herança, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens desta, o que pressupõe a verificação dos restantes requisitos daquele direito, o requerente teria de obter sentença, em acção declarativa instaurada contra a instituição da segurança social, em que se reconhecesse a sua qualidade de titular daquelas prestações, dependendo, tal como acontecia na hipótese paralela do direito a alimentos da herança, da existência da união de facto, ou seja, de vida em condições análogas às dos cônjuges [a], há mais de dois anos, à data da morte [b], de o "de cujus" ser pessoa não casada ou separada, judicialmente, de pessoas e bens [c], da necessidade de alimentos do requerente [d], da impossibilidade do próprio prover à sua subsistência [e] (artigo 2004°, do CC), e do mesmo não poder obter alimentos, através dos familiares, referidos no artigo 2009º, nº 1, do CC [f].
Por outro lado, a Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, adoptou medidas de protecção da união de facto, estatuindo no seu artigo 1º, nº 1, que “a presente lei regula a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos”, nomeadamente, concedendo-lhes, nas condições previstas na mesma, o direito à protecção, na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei, como resulta ainda do preceituado pelo artigo 3º, e), do aludido diploma legal.
Certo é que, na qualidade de membro sobrevivo de uma alegada união de facto, em virtude do falecimento da sua companheira, o autor beneficia dos direitos estipulados pela alínea e) [direito à protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei], do artigo 3º, porquanto reúne as condições constantes do artigo 2020º, do CC, a que acresce, igualmente, que “nenhuma norma da presente lei prejudica a aplicação de qualquer outra disposição legal ou regulamentar em vigor tendente à protecção jurídica de uniões de facto ou de situações de economia comum”, atento o estipulado pelos artigos 1º, nº 2 e 8º, nº 1, a), todos da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.
Com efeito, era este o regime legal em vigor, à data da publicação da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, que, no seu nº 1, e), alterando o artigo 3º, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, estabelece que as pessoas que vivem em união de facto, nas condições nela previstas, têm direito às protecções e benefícios enumerados nas suas alíneas, designadamente, no que agora interessa considerar, o direito a protecção social, na eventualidade de morte de beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei.
Por outro lado, o artigo 6º, nºs 1 e 2, estatui que o membro sobrevivo da união de facto beneficia de tal direito, independentemente da necessidade de alimentos e, em caso de fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, passa a ser à entidade responsável pelo pagamento das prestações requeridas que incumbe promover a competente acção judicial, com vista à sua comprovação, sendo certo, por força do artigo 2.º-A, da mesma Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, que a prova da união de facto passa a poder ser feita, por via de regra, através de qualquer meio, legalmente, admissível, incluindo o atestado da junta de freguesia, do qual conste que o interessado vivia, há mais de dois anos, com o falecido, à data do óbito, acompanhado de declaração do interessado, sob compromisso de honra, em como vivia em união de facto com aquele, há mais de dois anos, em relação à mesma data do óbito.
Finalmente, o artigo 4º, da Lei nº 23/2010, alterou a redacção do artigo 8º, da Lei nº 322/90, de 18 de Outubro, estatuindo que o direito às prestações naquela previstas e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que vivam em união de facto, sendo a prova desta a efectuar, nos termos definidos na Lei 7/2001, ou seja, os descritos no respectivo artigo 2.º-A.
Deste modo, tendo a CC falecido, em 7 de Julho de 2009, e a presente acção dado entrada em juízo, no dia 29 de Maio de 2010, a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, entrou em vigor, no dia 4 de Setembro de 2010[1], deixando de impor ao beneficiário da prestação a necessidade de instaurar uma acção judicial destinada ao reconhecimento dos pressupostos em que assentava a sua viabilidade, bem como da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter das pessoas, legalmente, obrigadas a prestar-lhos, cabendo antes ao réu, em caso de comprovada dúvida sobre a existência da união de facto, a propositura de uma acção judicial destinada ``a respectiva comprovação.
Aqui chegados, importa definir qual dos dois regimes legais sucessivos de direito positivo em apreço tem vocação para disciplinar o caso «sub judice».
I. 2. O princípio geral, em matéria de aplicação das leis no tempo, consta do artigo 12º, nº 1, do CC, ao estatuir que “a lei só dispõe para o futuro, e ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular”.
Na verdade, quando é publicada uma lei nova, esta dispõe, por via de regra, para o futuro, a menos que o legislador tenha atribuído efeitos retroactivos à nova regulamentação, sendo certo que o princípio da não retroactividade não tem força de preceito constitucional, com excepção do âmbito restrito das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, atento o preceituado pelo artigo 29º, nºs 1, 2, 3 e 4, da CRP.
Assim sendo, a lei não deve aplicar-se, em princípio, a factos passados, nem aos seus efeitos, sendo certo que a definição do que são ou não são os factos passados e os respectivos efeitos dos factos pretéritos, deve encontrar-se, no artigo 12º, nº 2, do CC, que desenvolve o princípio da não retroactividade, nos termos da teoria do facto passado, na formulação doutrinária defendida por Enneccerus[2].
Ora, este nº 2, do artigo 12º, citado, preceitua que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Estas últimas normas, que regulam apenas o conteúdo das situações jurídicas já constituídas, abstraindo dos factos que as originaram, não são, verdadeiramente, retroactivas, porquanto não visam atingir os factos anteriores à sua entrada em vigor, verificando-se uma «retroconexão» ou uma «referência pressuponente»[3], tratando-se antes de uma aplicação imediata, no futuro, às relações constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor.
Deste modo, se há normas que dispõem sobre a validade ou invalidade ou os efeitos de certos factos e que, simultaneamente, são normas relativas ao conteúdo de uma situação jurídica, como aquelas que respeitam à legitimidade ou ilegitimidade para a pratica de um certo acto, quando essa legitimidade ou ilegitimidade se filiem na existência de uma situação jurídica anterior, outras há que respeitam, directamente, ao conteúdo legal de uma situação jurídica, que se referem a factos ou às consequências dos mesmos sobre aquele conteúdo legal, abstraindo dos factos que lhes deram origem[4].
Assim sendo, das duas regras enunciadas neste nº 2, do artigo 12º, do CC, resulta que a aplicabilidade da lei nova aos requisitos, conteúdo e efeitos dos contratos e às relações jurídicas anteriores que subsistam à data da sua entrada em vigor, varia conforme ela abstrair, ou não, dos factos que dão origem às situações jurídicas em causa[5].
Ora, a lei nova abstrai dos factos constitutivos de uma situação jurídica contratual antecedente quando for dirigida à tutela dos interesses de uma generalidade de pessoas que se acham ou possam vir a encontrar ligadas por certa relação jurídica, de modo que se possa dizer que a lei nova atinge as pessoas, não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual[6].
E toda a lei nova que seja de qualificar como respeitando ao estatuto das pessoas ou dos bens e à defesa dos direitos das pessoas restringe o domínio da autonomia contratual e será, em regra, de aplicação imediata.
Por seu turno, quando uma lei nova passa a disciplinar para o futuro, de forma diversa, o conteúdo de certa relação jurídica, abstraindo do respectivo facto gerador, deve entender-se, em conformidade com o estipulado pelo artigo 12º, nº 2, que “…abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Efectivamente, o interesse público de política legislativa na unidade e homogeneidade do ordenamento, movido por factores de segurança e de igualdade jurídica, aponta, decisivamente, no sentido da aplicação imediata da lei nova[7], sob pena de, adoptando-se o princípio contrário, daí resultar, inevitavelmente, que, para situações jurídicas da mesma natureza, leis diferentes se tornariam, concorrentemente, competentes, no interior do mesmo país[8].
Aliás, uma lei pode ser inconstitucional, não por ser uma lei retroactiva, propriamente dita, mas antes por contrariar normas ou princípios constitucionais, designadamente, o princípio da protecção da confiança, “ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, especificamente acolhido no artigo 2º, da CRP”, o que sucederá quando a aplicação retroactiva de um preceito legal se revelar “ostensivamente irrazoável”, quando a norma retroactiva violar “de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que os cidadãos e a comunidade hão-de depositar na ordem jurídica que os rege, confiança materialmente justificada no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências”[9].
Assim sendo, sempre que a nova lei se prenda, directamente, com qualquer facto que tenha servido de fonte ou sirva de causa extintiva ou modificativa do direito [constituição], só podem servir de pressuposto à aplicação da nova lei os factos posteriores à sua entrada em vigor, enquanto que, pelo contrário, se a nova lei se refere, imediatamente, ao direito, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe serviu de fonte ou de termo [conteúdo], aplica-se, imediatamente, a todas as situações ou direitos existentes, constituídos ou a constituir, que se mantenham no futuro.
Deste modo, conjugando o exposto com o caso em análise, o novo texto normativo introduzido pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, que nada dispõe sobre o âmbito temporal de duração das situações consubstanciadoras da união de facto, tal como está consagrado pela Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, deve ser aplicado, imediatamente, porquanto o estado da união de facto, em si mesmo considerado, não apresenta qualquer ligação especial directa com qualquer outro facto anterior.
I. 3. Por seu turno, ainda que assim não fosse, como se demonstrou que é, importaria, então, questionar qual a natureza do novo diploma introduzido pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, relativamente ao regime antecedente já analisado, constante da redacção do DL nº 322/90, de 18 de Outubro, do Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, e da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.
Tratar-se-á, então, de uma lei inovadora, ou antes, de uma lei, verdadeiramente, interpretativa?
As leis desta última categoria podem ainda subdividir-se em leis interpretativas, por determinação do legislador, ou, aparentemente interpretativas, e leis interpretativas, por natureza, ou leis, propriamente interpretativas.
Por lei interpretativa deve entender-se aquela que, sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adoptado, assim se enfatizando, naquela lei, dois aspectos marcantes, ou seja, a sua intervenção para decidir uma questão de direito, cuja solução era controvertida ou incerta, no domínio de vigência da lei antiga, por um lado, e a obrigação de a lei interpretativa consagrar uma solução a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado, no domínio da legislação anterior, por outro lado.
Assim sendo, se a regra de direito era certa, na legislação anterior, ou se a pratica jurisprudencial lhe havia, de há muito, atribuído um determinado sentido, que se mantinha constante e pacífico, em virtude de, nesta hipótese, inexistir matéria para interpretar, a lei nova será uma lei inovadora e já não uma lei interpretativa, pela sua natureza.
Acresce ainda, no sentido de melhor precisar a diferença entre os dois tipos de leis em confronto, que, se a lei nova resolve um problema, cuja solução constituía, até então, matéria em debate, mas fora do âmbito da controvérsia, anteriormente estabelecida, deslocando-o para um terreno ou dando-lhe uma solução que o julgador ou o interprete não estavam autorizados a conferir-lhe, está-se perante uma lei inovadora, e não já de uma lei interpretativa[10].
Em face do exposto, dúvidas não subsistirão, razoavelmente, em como o normativo consagrada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, contem e fixa um dos dois sentidos possíveis que o respectivo texto antecedente podia comportar, razão pela qual o mesmo diploma deve ser considerado como lei interpretativa, porquanto aquela lei nova não adoptou, indiscutivelmente, uma regra diversa e de natureza constante e pacífica da pretérita jurisprudência.
Efectivamente, todo o interesse prático da distinção em análise reside na razão de ser justificativa da retroactividade das leis interpretativas.
Porém, a lei nova não pode ser qualificada como lei interpretativa, por determinação do legislador, porquanto este não a declarou, como tal, ao editá-la, mas, tão-só, como uma lei, autenticamente, interpretativa.
Estipula, então, o artigo 13º, nº 1, do CC, que “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada...”, reportando-se esta integração ao início da vigência da lei antiga, sendo, pois, a lei, autenticamente, interpretativa, de carácter retroactivo[11], razão pela qual, em relação a estas leis interpretativas, não há que aplicar o princípio da não retroactividade, estabelecido pelo artigo 12º, do CC, antes se procedendo como se a lei interpretada, na ocasião da ocorrência dos factos pretéritos, tivesse já a amplitude que lhe é fixada pela disposição interpretativa da lei nova.
Em suma, a retroactividade das leis interpretativas, propriamente ditas, justifica-se, essencialmente, por não implicar uma violação de quaisquer expectativas seguras e razoáveis dos interessados, que bem podiam contar com a solução fixada pela lei nova interpretativa, porquanto corresponde a um dos sentidos atribuídos pela doutrina e pela jurisprudência, relativamente à lei antiga.
Esta justificação procede, por inteiro, na situação vertente, uma vez que a lei nova interpretativa consagrou, admitindo agora, por comodidade de raciocínio, se não a corrente dominante, pelo menos, uma corrente forte de interpretação em relação ao direito anterior[12], no que respeita ao requisito da necessidade de alimentos, por parte do demandante, e a solução definida pela nova lei situa-se, precisamente, no âmbito da controvérsia, sendo uma solução a que o julgador ou o intérprete poderiam chegar e, aliás, chegavam, sem ultrapassar os limites, normalmente, impostos à interpretação e aplicação da lei.
Que assim é, afigura-se que decorre do confronto da redacção do artigo 6º, nº1, da Lei 7/2001, de 11 de Maio, antes e depois da alteração que lhe foi produzida pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, com a expressa exclusão da remissão para o artigo 2020º, do CC, e com a inclusão da expressão “independentemente da necessidade de alimentos”, afinal, os elementos normativos cuja interpretação, anteriormente, pontificava no sentido da defesa de uma ou outra das posições jurídicas conflituantes.
Deste modo, defendendo-se, no que respeita aos requisitos substantivos de reconhecimento do direito, que a Lei nº 23/2010 é interpretativa, integrando-se na lei interpretada - a Lei 7/2001 -, e ficando ressalvados os efeitos já produzidos, por sentença transitada em julgado, deve entender-se que, nas acções ainda pendentes, o reconhecimento do direito será efectuado de acordo com as novas exigências legais.
Contra a objecção de que a esta natureza de lei interpretativa se pode opor o argumento de que a interpretação realizada pela jurisprudência e pela doutrina, para defender a não exigência da necessidade de alimentos, se sustentava na inconstitucionalidade material, que o Tribunal Constitucional desconsiderou, por três vezes contra uma, considerando constitucional a interpretação inversa, sempre se dirá que o cerne da divergência residia na adopção de uma interpretação restritiva ao artigo 6º, da Lei nº 7/2001, e no pressuposto de que o direito às prestações da segurança social assumia uma natureza diversa do direito a alimentos, sendo autónomo e independente deste.
Como assim, a nova redacção introduzida pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, face à sua natureza de lei interpretativa autêntica, aplica-se, retroactivamente, a todas as situações que, à data da sua entrada em vigor, não tenham ainda sido julgadas, por decisão transitada.
I. 4. Por outro lado, não se mostra convincente o argumento retirado da dicotomia “entrada em vigor” / “produção dos efeitos da nova lei, que o réu deixou cair na transição das alegações da apelação para as alegações desta revista, com fundamento no facto de que, apesar da Lei nº 23/2010, ter sido publicada, em 30 de Agosto de 2010, os respectivos preceitos com repercussão orçamental, como é o caso do artigo 6º, da Lei nº 7/2001, alterada, produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, por força do artigo 6º, da Lei nº 23/2010, ou seja, a partir de 1 de Janeiro de 2011, data da entrada em vigor da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro[13].
Na verdade, a produção dos efeitos da lei não contende, por via de regra, ou não tem de coincidir, necessariamente, o que, por norma, não acontece, com o momento da sua entrada em vigor.
A data do início da produção dos efeitos da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, entretanto, entrada em vigor, apenas está condicionada pela cobertura orçamental que a nova realidade normativa iria exigir para suportar os encargos financeiros que o novo regime legal simplificado, necessariamente, comporta.
Deste modo, os direitos que venham a nascer, em consequência da aplicação da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, às situações jurídicas anteriores, só se mostrarão exequíveis, após o início da vigência da Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, ou seja, a partir de 1 de Janeiro de 2011, data a partir da qual aquela produz os seus efeitos.
Ora, por força da aplicação da lei nova, torna-se desnecessária a instauração de uma acção judicial no sentido do reconhecimento de que o autor vivia com a falecida AA, em união de facto, e bem assim como da demonstração de que carecia de alimentos e de que os não podia obter de um determinado conjunto de pessoas.
II. DAS CONSEQUÊNCIAS DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI NOVA RELATIVAMENTE ÀS SITUAÇÕES JURÍDICAS CONSTITUÍDAS ANTERIORMENTE E AINDA EXISTENTES
Tornando-se desnecessária a instauração de uma acção judicial no sentido do reconhecimento de que o autor vivia, em união de facto, com a falecida, e bem assim como da demonstração de que carecia de alimentos e de que os não podia obter do conjunto dos obrigados, como acabou de se decidir em I., resta saber se a presente acção deve ser julgada extinta, por inutilidade superveniente da lide, conforme foi decidido pelas instâncias, embora com um voto de vencido do Exº Desembargador–Adjunto, que constituiu a ressalva da regra geral da dupla conforme, consagrada pelo artigo 721º, nº 3, do CPC, que, de outro modo, teria inviabilizado a presente revista.
Dispõe o artigo 287º, e), do CPC, que “a instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.
Na verdade, a instância, que se inicia com a propositura da acção, pode extinguir-se por um facto anormal, distinto da sentença definitiva que conheça do mérito da causa, que não permite todo o desenvolvimento da relação jurídica processual, até que, por acto do juiz, se decida o litígio.
Para além dos casos em que a lide se tornou impossível pela extinção do sujeito [morte de um dos cônjuges em acção de divórcio], ou pela extinção do objecto [perecimento de coisa, objectivamente, infungível, salvo a hipótese de indemnização por perdas e danos], outros há em que a lide se torna impossível ainda pela extinção do objecto, em que desaparece, por confusão, um dos interesses em conflito[14].
Com efeito, a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da providência pretendida e, por isso, a solução do litígio deixa de interessar, neste último caso, por já ter sido atingido por outro meio [15].
Porém, esta satisfação da pretensão do autor traduz-se na consumação do fim visado, por uma outra via diversa daquela que a acção persegue, e que não é aquela que para ser concretizada exige ao autor uma actividade dispositiva nesse sentido, sendo certo que, sem embargo da diminuição das exigências legais agora vigentes, o autor ainda não viu reconhecida ou declarada a sua pretensão, motivo pelo qual a eventual extinção da instância o remeteria para o ponto de partida, obrigando-o a iniciar um procedimento administrativo que teria por finalidade algo que é já objecto desta acção e que nela continua a poder, utilmente, ser alcançado.
Na verdade, o direito accionado continua a ser reconhecido e a poder ser exercitado de uma forma processual diferente e mais simplificada, ou seja, em princípio, de natureza administrativa, acompanhando uma forte tendência desjurisdicionalizante que, nos tempos presentes, pretende ser a panaceia capaz de dirimir a conflitualidade e esbater a dialetica social.
Se, na pendência da acção, foi conferido, legalmente, um meio diverso de obter o reconhecimento do direito que se pretende fazer valer, tal circunstância não gera, automaticamente, uma impossibilidade da acção proposta poder prosseguir, mas antes coloca a questão de saber se com a entrada em vigor da lei que regula, de modo diferente, o exercício do direito, fica impedido o prosseguimento da acção proposta.
Porém, se o objectivo fundamental é o da obtenção e reconhecimento desse direito, tendo sido proposta uma acção judicial para o seu reconhecimento, num momento em que era esse o meio adequado à obtenção e tutela do direito, recusar o seu prosseguimento porque, entretanto, a lei foi alterada no sentido de dispensar a acção, não se traduz numa inutilidade superveniente da lide, uma vez que não ocorreu o desaparecimento dos sujeitos, nem a extinção do objecto do processo, nem o fim da controvérsia subjacente.
Deste modo, a solução acertada é a de, em consonância com o princípio da adequação processual, consagrado pelo artigo 265º-A, do CPC, com o aproveitamento da tramitação processual pertinente, e avançando-se para a fase do saneador, com a elaboração dos «factos assentes» e da base instrutória, dever ser aplicada a lei nova aos factos apurados no processo.
Como assim e, a finalizar, a Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, não tornou, supervenientemente, inútil a acção pendente em que o unido de facto pede o reconhecimento da qualidade de titular das prestações por morte do beneficiário da segurança social com quem viveu, em condições análogas às dos cônjuges.
Procedem, pois, apenas, em parte, as conclusões constantes das alegações da revista do réu.
CONCLUSÕES:
I – As normas que regulam apenas o conteúdo das situações jurídicas já constituídas, abstraindo dos factos que as originaram, não são, verdadeiramente, retroactivas, porquanto não visam atingir os factos anteriores à sua entrada em vigor, tratando-se antes de uma aplicação imediata, no futuro, às relações constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor, também denominada de «retroconexão» ou de «referência pressuponente».
II - A lei nova abstrai dos factos constitutivos de uma situação jurídica contratual antecedente quando for dirigida à tutela dos interesses de uma generalidade de pessoas que se acham ou possam vir a encontrar ligadas por certa relação jurídica, de modo que se possa dizer que a lei nova atinge as pessoas, não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual.
III - Quando uma lei nova passa a disciplinar para o futuro, de forma diversa, o conteúdo de certa relação jurídica, abstraindo do respectivo facto gerador, deve entender-se, em conformidade com o estipulado pelo artigo 12º, nº 2, do CC, que “…abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
IV – A Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, que alterou a redacção dada pelo artigo 6º, nº 1, pela Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, ao fixar um dos dois sentidos possíveis que o texto antecedente do mesmo normativo podia comportar, não deve ser considerada como lei inovadora, mas antes como lei interpretativa, porquanto não adoptou, indiscutivelmente, uma regra diversa e de natureza constante e pacífica da pretérita jurisprudência.
V - A satisfação da pretensão da parte, fora do âmbito da providência jurisdicional adoptada, traduz-se na consumação, por outra via diversa daquela que a acção persegue e não daquela que para a sua concretização exija ao autor uma actividade dispositiva diversa nesse sentido, como aconteceria se fosse obrigado a iniciar um procedimento administrativo que teria por finalidade algo que é já objecto da acção para reconhecimento da titularidade do direito a alimentos, relativamente à herança aberta por óbito do membro falecida da união de facto, e que nela continua a poder, utilmente, ser alcançado.
VI - A Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, não tornou, supervenientemente, inútil a acção pendente em que o unido de facto pede o reconhecimento da qualidade de titular das prestações por morte do beneficiário da segurança social, com quem viveu, em condições análogas às dos cônjuges, devendo a solução mais acertada ser encontrada, em consonância com o princípio da adequação processual, através do aproveitamento útil da tramitação processual pertinente, aplicando-se a lei nova aos factos apurados no processo.
DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder, parcialmente, a revista, e, em consequência, revogam o douto acórdão recorrido, apenas na parte em que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, ordenando-se o prosseguimento da acção, nos termos definidos, que confirmam em tudo o mais.
Custas, a cargo da parte vencida, a final.
Notifique.
Lisboa, 13 de Setembro de 2011
Helder Roque (Relator)
Gregório Silva Jesus
Martins de Sousa
________________________
[1] Por força do artigo 2º, nº 2, da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro.
[2] Enneccerus, Kipp e Wolf, Tratado de Derecho Civil, Tomo 1º, 236 e ss.
[3] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2002, 13 ª reimpressão, 234 a 236.
[4] Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, 353 a 355.
[5] Vaz Serra, RLJ, Ano 110º, 272.
[6] STJ, de 5-5-1994, BMJ nº 437, 477.
[7] Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, 1968, 96; STJ, de 8-6-1994, BMJ nº 438, 440.
[8] Roubier, Le Droit Trasitoire, 2ª edição, 1960, 345.
[9] TC, de 17-3-1992, BMJ nº 415, 190; TC, de 24-2-1992, BMJ nº 414, 130.
[10] Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, 1968, 285 e ss; Rodrigues Bastos, Das Leis, Sua Interpretação e Aplicação, 1967, 49.
[11] Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 438.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, 1965, I, 6ª edição, revista e ampliada, 214.
[13] Lei do Orçamento do Estado para 2011; STJ, de 24-2-2011, Pº nº 7166/06.8TBMAI.P1.S1, www.dgsi.pt
[14] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, 1946, 368 e 369; Rodrigues Bastos, Notas ao Código e Processo Civil, II, 3ª edição, revista e actualizada, 2000, 53 e 54.
[15] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, 555.