ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CULPA EXCLUSIVA
Sumário

1. Provando-se que o sinistrado, ao chegar a um cruzamento, não parou, apesar do sinal STOP existente no local e prosseguiu o seu trajecto, com total desprezo por elementares regras de segurança, arriscando de forma inteiramente gratuita uma manobra que envolvia o sério perigo de colisão com outros veículos, tal conduta constitui uma contra-ordenação muito grave, prevista na alínea n) do artigo 146.º do Código da Estrada, e não pode deixar de se considerar como temerária em alto e relevante grau, configurando negligência grosseira.

2. E tendo ficado demonstrado que o sinistrado cortou a linha de trânsito do veículo automóvel que circulava na via prioritária, surgindo a cerca de seis metros da frente daquele veículo, não dando qualquer hipótese ao respectivo condutor de evitar o embate, impõe-se concluir que o comportamento do sinistrado foi a causa exclusiva do acidente e das consequências dele resultantes.

3. Verifica-se, assim, a descaracterização do sinistro como acidente de trabalho, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, segundo a qual não dá direito a reparação o acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 24 de Outubro de 2008, no Tribunal do Trabalho de Leiria, 1.º Juízo, AA instaurou a presente acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra BB – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe: (i) € 5.280,80 a título de pensão anual e vitalícia, a partir de 14 de Dezembro de 2007; (ii) € 4.836, a título de subsídio por morte; (iii) € 3.224, a título de despesas de funeral; e  (iv) € 100, a título de despesas de transporte.

Alegou que o seu marido, CC, era trabalhador da empresa DD, Lda., onde exercia as funções de vendedor, e que, no dia 13 de Dezembro de 2007, quando conduzia o veículo automóvel, marca Renault, modelo Clio, matrícula ...ZT, pertencente à empregadora, cumprindo todas as regras de segurança, zelo e diligência, foi colhido por um outro veículo, o que lhe determinou a morte, devendo o acidente ser considerado de trabalho, sendo que a responsabilidade infortunística da empregadora se achava transferida para a ré.

A ré contestou, invocando que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do sinistrado, já que, circulando no IP 3 e pretendendo ingressar na Estrada Nacional n.º 228, chegado ao sinal STOP implantado antes do acesso àquela EN, não parou, cortando a linha de trânsito do outro veículo automóvel que circulava nessa via e provocando o embate, pelo que ocorria a descaracterização do acidente, «atento o disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da LAT», devendo a acção improceder.

Após o julgamento, foi exarada sentença que, entendendo que o acidente não dava direito a reparação, julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

2. Inconformada, a autora apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou procedente o recurso de apelação e condenou a ré «no pagamento à A., AA […], da pensão anual e vitalícia de € 5.280,80 (actualizável nos termos legais), em duodécimos de igual montante, com início de vencimento reportado a 14.12.2007, acrescida das prestações suplementares devidas em Maio e Novembro de cada ano, pensão essa desde já actualizada para o valor de € 5.407,54, com efeitos referidos a 1.1.2008», bem como «a pagar à A. as importâncias de € 4.836,00, € 3.224,00 e € 100,00, relativas, respectivamente, ao subsídio por morte, despesas de funeral, com transladação, e deslocações», sendo que «[s]obre todas as importâncias vencidas são devidos juros de mora, à taxa legal».

É contra esta decisão que a seguradora agora se insurge, mediante recurso de revista, ao abrigo das seguintes conclusões:

                  «1.ª    Tendo em conta a matéria de facto dada como assente e aceite como tal pelo douto Tribunal “a quo” considera a ora recorrente que fez incorrecta aplicação do direito;
                      2.ª  Tendo-se concluído, sem margem para dúvidas, de que a contra-ordenação do sinistrado foi qualificada de muito grave, causal e exclusiva para a produção do acidente, considera a ora recorrente encontrar-se preenchido o conceito de negligência grosseira; tanto mais que,
                      3.ª  No caso em apreço, todas as circunstâncias apuradas (cruzamento com boa visibilidade, etc.) permitem censurar em elevado grau a conduta do sinistrado, pelo que nada mais será exigível para a descaracterização;
                      4.ª  A recorrente, atenta a matéria assente, cumpriu o seu ónus probatório, pelo que;
                      5.ª  A exigência quanto à prova da motivação subjectiva do sinistrado para o cometimento da contra-ordenação grave, salvo melhor opinião, nem resulta da letra da lei, nem da respectiva ratio;
                      6.ª  Constituindo antes uma prova diabólica que se defende não ser exigível;
                      7.ª  A interpretação do conceito em causa aliado à ideia da prova da possível motivação, expendida no douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, aponta para critérios que geram desigualdade de tratamento, nomeadamente com outros sinistrados do trabalho, nomeadamente em acidentes de risco específico nos locais de trabalho;
                      8.ª  Com efeito, é legalmente possível a descaracterização por violação injustificada de normas de segurança e não é necessária a prova da motivação subjectiva para a mesma...ora,
                      9.ª  Caso assim se entenda para os acidentes “in itinere” estaremos perante um tratamento desigual e diferenciado dos sinistrados o que para além do mais será inconstitucional, por manifesta violação do direito à igualdade;
                    10.ª  Considera assim a ora recorrente que se encontram preenchidos todos os requisitos legais para se considerar o acidente de viação em causa nos autos descaracterizado, em virtude da negligência grosseira do recorrido sinistrado, nos termos legalmente estatuídos (art. 7.º, n.º 1, al. b), da LAT, aplicável à data dos factos).»

Termina afirmando que deve julgar-se procedente o recurso de revista e, em consequência, «ser revogado o acórdão proferido pelo douto Tribunal “a quo” com a consequente absolvição da recorrente do pedido e demais consequências legais […]».

A autora contra-alegou, sustentando a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto concluiu que, no caso, não ocorria a descaracterização do acidente, pelo que o recurso de revista devia improceder, parecer que, notificado às partes, não suscitou qualquer resposta.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar:

                Se está excluído o direito à reparação do acidente por este ter resultado, exclusivamente, de negligência grosseira do sinistrado (conclusões 1.ª a 6.ª e 10.ª da alegação do recurso de revista);
                Se as normas jurídicas aplicadas no acórdão recorrido, tal como foram interpretadas, violam o princípio da igualdade (conclusões 7.ª a 9.ª da alegação do recurso de revista).

Corridos os «vistos», cumpre decidir.
                                              II

1. O tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:
1) CC faleceu, em 13 de Dezembro de 2007, no estado de casado com a A. AA;
2) À data do óbito, CC era trabalhador da empresa DD, Lda., o que ocorria desde 1 de Abril de 2005;
3) CC desempenhava funções de vendedor, auferindo a retribuição mensal de € 753 x 14, acrescida de subsídio por isenção de horário de trabalho, no valor mensal de € 190;
4) CC foi interveniente num acidente de viação, do que lhe resultaram lesões traumáticas crâneo-encefálicas, vértebro-medulares e torácicas, que lhe determinaram a sua morte imediata;
5) O veículo onde circulava o CC foi colhido por um outro veículo, no centro da via de trânsito;
6) A via onde se deu a colisão configura um cruzamento;
7) Quem circula na via do veículo que colheu aquele onde CC circulava tem visibilidade, permitindo, a longa distância, visualizar totalmente a estrada e quem nela se atravessa;
8) No dia 13 de Dezembro de 2007, às 14h15, CC deslocava-se na viatura marca Renault, modelo Clio, matrícula ...ZT, pertença da empresa DD, Lda.,
9) […] dirigindo-se para as instalações da M..., seu cliente de Mortágua, pela Estrada Nacional 228, ao quilómetro 80,500,
10) […] no exercício da sua actividade profissional, que desempenhava para a empresa DD, Lda.,
11) Tendo, na ocasião, ocorrido o acidente de viação referido em 4);
12) No dia 13-12-2007, CC circulava no IP3, pretendendo ingressar na Estrada Nacional n.º 228;
13) Chegado ao STOP, que está implantado antes do acesso à EN 228, CC não parou e ingressou nessa via,
14) […] cortando a linha de trânsito do condutor do veículo ...CH..., que por ali circulava na faixa de rodagem, sentido Barragem da Aguieira-Mortágua,
15) […] pela metade direita da estrada, atento o respectivo sentido de marcha;
16) O veículo conduzido pelo CC surgiu a cerca de seis metros da frente do veículo CH,
17) […] não dando qualquer hipótese ao condutor do CH de evitar o embate, atenta a curta distância a que o veículo surgiu, bem como a inusitada presença do mesmo na sua faixa de rodagem;
18) O embate ocorreu com a frente do veículo CH, sobre a lateral esquerda do veículo conduzido por CC, sobre a zona da porta do condutor, para trás;
19) O cruzamento de Almaça, local onde ocorreu o embate, é perfeitamente visível para quem saia da IP3 e pretenda ingressar na EN 228;
20) Houve transladação do cadáver de CC, de Viseu para Avelar, tendo sido a Autora a suportar as despesas de funeral;
21) A empresa DD, Lda., transferiu para a Ré a responsabilidade civil relativa a CC, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... e pela retribuição referida em 4);
22) A A. nasceu a 4 de Julho de 1942;
23) No âmbito dos presentes autos, a A., por imposição do tribunal, deslocou-se uma vez ao Tribunal do Trabalho de Viseu.
                                               
Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, pelo que será com base nesses factos que hão-de ser resolvidas as questões suscitadas no recurso.

2. A recorrente defende a descaracterização do sinistro como acidente de trabalho, aduzindo que a contra-ordenação praticada pelo sinistrado deve ter-se como «muito grave, causal e exclusiva para a produção do acidente», logo está preenchido o conceito de negligência grosseira, tanto mais que «todas as circunstâncias apuradas (cruzamento com boa visibilidade, etc.) permitem censurar em elevado grau a conduta do sinistrado, pelo que nada mais será exigível para a descaracterização», termos em que, «atenta a matéria assente, cumpriu o seu ónus probatório».

E mais alega que «[a] exigência quanto à prova da motivação subjectiva do sinistrado para o cometimento da contra-ordenação grave, salvo melhor opinião, nem resulta da letra da lei, nem da respectiva ratio», constituindo uma prova diabólica.

O tribunal de primeira instância concluiu que o acidente devia «ter-se como descaracterizado e, como tal, insusceptível de reparação», porquanto «o condutor (trabalhador), tripulando uma viatura pelo IP3 e pretendendo ingressar na E.N. n.º 228, apresentava-se-lhe um sinal de Stop que lhe impunha paragem obrigatória na via, só podendo retomar a marcha quando reunidas as condições de segurança para tanto. Não obstante, de forma altamente censurável, quase suicidária, não parou e foi cortar a linha de trânsito a um veículo que circulava na EN 228, o qual não teve qualquer possibilidade de evitar o embate (surgiu-lhe a 6 metros da frente). Acresce que o cruzamento em causa era perfeitamente visível para o trabalhador e que está abundantemente demonstrado que ao outro condutor não pode ser assacada qualquer responsabilidade pela produção do acidente (cfr. Ac. do S.T.J. de 5 de Maio de 1999, disponível em http://www.dgsi.pt). Trata-se de um comportamento que justifica uma elevada censura e que atenta contra o mais elementar sentido de prudência.»

Por seu vez, o acórdão recorrido entendeu que, «no caso, sabe-se apenas que o cruzamento de Almaça, local onde ocorreu o embate, é perfeitamente visível para quem, como a vítima, saía do IP3 e pretendia entrar na EN 228, e que a vítima não parou no dito sinal, cortando a linha de trânsito do condutor do veículo CH que ali circulava pela metade da faixa de rodagem direita dessa via, atento o respectivo sentido de marcha. A causa dessa conduta não é conhecida, não podendo, por isso, e sem mais, qualificar-se de grosseiramente negligente, nos termos da dimensão explicitada», daí que «não deve considerar-se descaracterizado o acidente em causa».

2.1. O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito constitucional, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.

O acidente dos autos ocorreu em 13 de Dezembro de 2007, donde, no plano infraconstitucional, aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.

Note-se que, embora o acidente dos autos se tenha verificado após a entrada em vigor do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que ocorreu em 1 de Dezembro de 2003 (n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003), não se aplica o respectivo regime, cuja aplicação carecia de regulamentação (artigos 3.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 99/2003).

2.2. O n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar adiante, sem menção da origem, estabelece que os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos previstos naquela lei e demais legislação complementar.
E, segundo o n.º 1 do artigo 6.º, entende-se por acidente de trabalho «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».

Apesar de não ter ocorrido no local de trabalho, o acidente em causa poderá considerar-se também como acidente de trabalho, por se configurar uma execução de serviços previstos na alínea f) do n.º 2 do artigo 6.º, forma de prestação do trabalho que é típica dos vendedores, motoristas ou distribuidores de bens e serviços.

Porém, o n.º 1 do artigo 7.º, subordinado à epígrafe «Descaracterização do acidente», reza que «[n]ão dá direito a reparação o acidente: a) que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; b) que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, ou for independente da vontade do sinistrado, ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o seu estado, consentir na prestação; d) que provier de caso de força maior».

Por sua vez, o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, delimita o conceito de negligência grosseira, que define como «o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão» (n.º 2).

Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.

A mera culpa ou negligência traduz-se na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo comum distinguir os casos em que o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (representa um puro vício de vontade), daqueles que, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, o agente não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação (representa um vício de representação e de vontade).

No primeiro caso fala-se de negligência consciente, no segundo de negligência inconsciente.

A par das apontadas modalidades de negligência, é tradicional a distinção entre negligência grave, leve e levíssima, em função da intensidade ou grau da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais).

Neste plano de consideração, a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.

Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.

Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.

Saliente-se que a descaracterização do sinistro como acidente de trabalho constitui um facto impeditivo do direito de reparação invocado, pelo que compete à ré a prova da correspondente materialidade (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Aplicando estes princípios legais aos casos em que ocorre, simultaneamente, um acidente de viação e um acidente de trabalho, este Supremo Tribunal tem considerado que estando em causa o cometimento de uma infracção estradal, ainda que grave, por parte do trabalhador, tal pode não bastar para, em sede de direito infortunístico, dar como preenchido o requisito da negligência grosseira que está na base da descaracterização do acidente de trabalho, na medida em que, na legislação rodoviária, são particularmente prementes considerações de prevenção geral, que justificam a punição de meras situações de perigo e um maior recurso a presunções de culpa, mecanismos que não se justifica que sejam utilizados em desfavor dos trabalhadores sinistrados, no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho.

É, pois, neste quadro dogmático que tem de ser considerada a conduta do sinistrado e avaliada a gravidade da participação que teve na produção do acidente.

2.3. Resulta da matéria de facto provada que o sinistrado era trabalhador da empresa DD, Lda., em favor da qual exercia a actividade profissional de vendedor, e que, em 13 de Dezembro de 2007, quando se deslocava na viatura marca Renault, modelo Clio, matrícula ...ZT, pertencente àquela empresa, em direcção às «instalações da M..., seu cliente de Mortágua, pela Estrada Nacional 228, ao quilómetro 80,500», no exercício da actividade que exercia para a sobredita empresa, «foi interveniente num acidente de viação, do que lhe resultaram lesões traumáticas crâneo-encefálicas, vértebro-medulares e torácicas, que lhe determinaram a sua morte imediata» [factos provados 2) a 4 e 8) a 10)].

Mais se apurou que:

             «5) O veículo onde circulava o CC [o trabalhador sinistrado] foi colhido por um outro veículo, no centro da via de trânsito;
               6) A via onde se deu a colisão configura um cruzamento;
               7) Quem circula na via do veículo que colheu aquele onde CC circulava tem visibilidade, permitindo, a longa distância, visualizar totalmente a estrada e quem nela se atravessa;
             12) No dia 13-12-2007, CC circulava no IP3, pretendendo ingressar na Estrada Nacional n.º 228;
             13) Chegado ao STOP, que está implantado antes do acesso à EN 228, CC não parou e ingressou nessa via,
             14) […] cortando a linha de trânsito do condutor do veículo ...CH..., que por ali circulava na faixa de rodagem, sentido Barragem da Aguieira-‑Mortágua,
             15) […] pela metade direita da estrada, atento o respectivo sentido de marcha;
             16) O veículo conduzido pelo CC surgiu a cerca de seis metros da frente do veículo CH,
             17) […] não dando qualquer hipótese ao condutor do CH de evitar o embate, atenta a curta distância a que o veículo surgiu, bem como a inusitada presença do mesmo na sua faixa de rodagem;
             18) O embate ocorreu com a frente do veículo CH, sobre a lateral esquerda do veículo conduzido por CC, sobre a zona da porta do condutor, para trás;
             19) O cruzamento de Almaça, local onde ocorreu o embate, é perfeitamente visível para quem saia da IP3 e pretenda ingressar na EN 228.»

A factualidade provada evidencia que o sinistrado, ao chegar ao cruzamento, não parou, apesar do sinal STOP existente no local — que lhe impunha a paragem obrigatória na intersecção junto da qual se mostrava aposta aquela sinalética, só podendo retomar a marcha quando reunidas as condições de segurança para tanto —, e prosseguiu o seu trajecto, com total desprezo por elementares regras de segurança, arriscando de forma inteiramente gratuita uma manobra que envolvia sério perigo de colisão com outros veículos.

Acresce que o local onde ocorreu o embate, é perfeitamente visível para quem, como o sinistrado, saía do IP3 e pretendia entrar na EN n.º 228, sendo que, por virtude daquela manobra, o sinistrado cortou «a linha de trânsito do condutor do veículo ...CH..., que por ali circulava na faixa de rodagem, sentido Barragem da Aguieira-Mortágua», surgindo «a cerca de seis metros da frente do veículo CH», o qual não teve qualquer possibilidade de evitar o embate.

Ao assim proceder o sinistrado praticou uma contra-ordenação muito grave, que se acha prevista na alínea n) do artigo 146.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, revisto e republicado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, e não vindo provado qualquer circunstancialismo que permita entender a infracção perpetrada — ao menos no sentido de minimizar a gravidade objectiva de que se reveste —, a conduta do sinistrado assume-se como temerária em alto e relevante grau, configurando negligência grosseira.

Todavia, este juízo não é suficiente para integrar o quadro normativo em análise: a par dele torna-se cumulativamente necessária a prova de que o acidente foi provocado em exclusivo pelo descrito comportamento infraccional do sinistrado.

Ora, no caso vertente, provou-se que o sinistrado cortou a linha de trânsito do condutor do veículo automóvel, matrícula ...CH..., surgindo «a cerca de seis metros da frente do veículo CH», «[n]ão dando qualquer hipótese ao condutor do CH de evitar o embate, atenta a curta distância a que o veículo surgiu, bem como a inusitada presença do mesmo na sua faixa de rodagem».

Isto é, demonstrou-se a impossibilidade do condutor daqueloutro veículo ter actuado de forma a evitar o acidente, termos em que se deve concluir que a actuação do sinistrado foi a causa exclusiva do acidente e das consequências dele resultantes.

Verifica-se, pois, a descaracterização do sinistro como acidente de trabalho, conforme o estabelecido na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, pelo que procedem as conclusões 1.ª a 6.ª e 10.ª da alegação do recurso de revista.

3. A recorrente propugna, também, que «[a] interpretação do conceito em causa [descaracterização do acidente] aliado à ideia da prova da possível motivação, expendida no douto Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo”, aponta para critérios que geram desigualdade de tratamento, nomeadamente com outros sinistrados do trabalho, nomeadamente em acidentes de risco específico nos locais de trabalho», sendo «legalmente possível a descaracterização por violação injustificada de normas de segurança e não é necessária a prova da motivação subjectiva para a mesma», donde, «[c]aso assim se entenda para os acidentes “in itinere” estaremos perante um tratamento desigual e diferenciado dos sinistrados, o que, para além do mais, será inconstitucional, por manifesta violação do direito à igualdade».

Porém, tendo-se concluído pela descaracterização do sinistro como acidente de trabalho, fica prejudicada a apreciação da questão suscitada nas conclusões 7.ª a 9.ª da alegação do recurso de revista.

De facto, o n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos conjugados artigos 713.º, n.º 2, e 726.º do mesmo Código, estabelece que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

                                              III

Pelo exposto, decide-se conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e julgar a acção improcedente, absolvendo a ré dos pedidos formulados pela autora.

Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo da autora.

Lisboa, 22 de Setembro de 2011

 Pinto Hespanhol (Relator)
Gonçalves Rocha
Sampaio Gomes