CONTRATO PROMESSA
CESSÃO DE QUOTA
CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA PENAL COMPULSÓRIA
REDUÇÃO
EQUIDADE
LIBERDADE CONTRATUAL
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
SINAL
Sumário


I - A cláusula penal pode revestir três modalidades: cláusula com função moratória ou compensatória, dirigida à reparação de danos mediante a fixação antecipada da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor; cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, em que a sua estipulação substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhum deles; e cláusula penal de natureza compulsória, em que há uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento, sendo a finalidade das partes, nesta última hipótese, a de pressionar o devedor a cumprir, e já não a de substituir a indemnização.

II - É de natureza exclusivamente compulsória a pena, inserida em cláusula de contrato-promessa de cessão de quotas, nos termos da qual se determinou “Para além do legalmente previsto no caso de incumprimento do contrato, aquele que se negar ao cumprimento do mesmo ou alguma das suas cláusulas terá de pagar ao outro o triplo do valor total do contrato, o que estabelecem e aceitam como cláusula penal”. Em primeiro lugar, dado o seu elevado valor, correspondente ao triplo do valor do contrato, que mostra ter sido intenção dos interessados assegurar-se de que o contrato prometido seria de facto concluído; em segundo lugar, por resultar das demais cláusulas do contrato – nas quais ficou convencionado que a quantia de 10 000 000$00 entregue pelo autor aos réus o foi a título de “sinal e princípio de pagamento” e que a execução específica da promessa poderia ser sempre accionada – que foi intuito das partes, mediante a estipulação duma pena de tão avultado montante, retirar-lhe o carácter de antecipação da indemnização devida em caso de incumprimento, sublinhando com nitidez o seu carácter compulsório, isto é, de pressão ao cumprimento.

III - O regime dos arts. 810.º e 811.º do CC não se aplica às cláusulas penais compulsórias, mas apenas às de natureza indemnizatória, como logo se pode inferir da conjugação do texto do n.º 1 do art. 810.º com o n.º 3 do art. 811.º. Estando de todo ausente da pena exclusivamente compulsória qualquer intuito indemnizatório, em caso algum ela poderá constituir, segundo a vontade das partes, a liquidação de um dano, o que permite afirmar que ela extravasa do âmbito definido pelo art. 810.º, n.º 1, e balizado, depois, no art. 811.º.

IV - Todavia, tal não quer dizer que a norma do art. 812.º do CC não possa e até deva aplicar-se às cláusulas penais compulsórias, desde logo porque o preceito não faz qualquer distinção entre os diversos tipos de cláusulas, não se vendo nenhuma razão de ordem material, substantiva, para que o intérprete a faça, já que o excesso manifesto, a evidente desproporção, único fundamento que justifica a intervenção do tribunal em nome da equidade, é susceptível de ocorrer em todos os tipos de cláusulas penais, quiçá até com maior premência nas de natureza compulsória; depois, porque este artigo encerra um princípio de alcance geral, destinado a corrigir abusos no exercício da liberdade contratual, sempre possíveis em razão da ligeireza, da precipitação ou da menor reflexão com que as partes actuam, males estes não raro induzidos pela pressão que a escassez de tempo para bem decidir coloca sobre os contraentes.

V - Decretada judicialmente a redução equitativa da cláusula penal compulsória, não há lugar à dedução (subtracção) do sinal entregue pelo contraente faltoso nos termos da cláusula referida em II: a parte cumpridora, nesse caso, tem o direito de fazer seu o sinal prestado e, além disso, de exigir a entrega da cláusula penal já objecto da redução operada.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Autor: AA

Interveniente (activo): BB

Réus:CC e DD

Intervenientes (passivos):

EE; FF; GG e mulher HH; II e mulher JJ; KK e mulher LL; MM e mulher NN; OO e mulher PP.

I. Resumo dos termos essenciais da causa e dos recursos

O autor propôs contra os réus uma acção ordinária pedindo, a título principal, que o tri­bunal declarasse a nulidade do contrato-promessa de cessão de quotas que identifica na petição inicial, celebrado com os réus em 19/1/98, alegando como fundamento não ter sido celebrado por todos os titulares das quotas prometidas vender e ser indeterminado o objecto do contrato por não se especificar o património da sociedade cujas quotas iriam ser transmitidas.

Pediu ainda a condenação solidária dos dois réus a restituírem-lhe os 10 mil contos (49.879,79 €) que entregou a título de sinal, quantia esta devidamente actualizada e com juros a partir da citação.

Para o caso destas pretensões não procederem, pediu que se declarasse que os réus não cumpriram o contrato-promessa e, com base nisso, também a condenação solidária de ambos a restituírem-lhe a dita importância, acrescida de indemnização que, por não se encontrar ainda apurada, deveria ser determinada em liquidação de sentença.

E para a hipótese destes segundos pedidos também não procederem, pediu que o tribunal reconhecesse e declarasse a resolução do contrato-promessa, por alteração substancial da base negocial, caso em que os réus deveriam ser também condenados solidariamente a res­tituir-lhe a quantia que receberam, actualizada e com juros moratórios a partir da citação.

A alteração da base negocial assenta no facto do Fundo de Turismo ter exigido que o pro­jecto fosse concluído até ao dia 9/11/98, implicando um investimento global na ordem dos 300 mil contos, encontrando-se a obra a meio e não havendo tempo para a concluir, sucedendo que o autor só assinou o contrato porque lhe foi garantido pelos réus um subsídio vindo do Fundo de Turismo de 40%, o que não aconteceu.

Os réus contestaram e deduziram reconvenção, pedindo a condenação do autor no paga­mento da cláusula penal fixada, no valor de 300 mil contos, com fundamento no incumprimento definitivo do contrato promessa.

Requereram ainda a intervenção principal provocada, como associada do autor, de BB, sua mulher, para ser condenada solidariamente com ele no paga­mento da quantia de 300 mil contos (1.149.639,36 €) e a intervenção principal provocada dos restantes sócios da sociedade “QQ Ldª”.

Houve réplica e admissão dos chamados, que aderiram aos articulados do autor e réus, respectivamente.

O autor contestou o montante da cláusula penal, referindo que as partes pretenderam, sim, referir-se ao triplo do sinal e não ao triplo do preço, o que é revelado pelo facto de, nesta última hipótese, ser muito mais oneroso o incumprimento do que o próprio cumprimento.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e parcialmente procedente a reconvenção, declarando a resolução do contrato-promessa por culpa imputável ao autor e condenando os reconvindos AA e BB a pagar aos reconvintes (réus e intervenientes) a quantia de 130.120,21 €, montante a dividir na proporção das quotas dos reconvintes maridos na sociedade objecto do contrato promessa, quantia esta ainda acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação da reconvenção até integral pagamento.

Apelaram os autores, o réu CC e os intervenientes II e outros, mas a Relação negou provimento a todos os recursos, confirmando a sentença.

Continuando inconformados, todos os apelantes recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando, resumidamente, as seguintes conclusões úteis:

Revista dos intervenientes II e outros:

1ª) Perante a matéria de facto apurada e o teor da cláusula 7ª do contrato promessa, a cláusula penal em discussão nos autos é uma cláusula compulsória; daí que lhe seja inaplicável o regime do artº 812º do CC (redução equitativa da cláusula penal), devendo os autores/reconvindos, consequentemente, ser condenados a pagar aos reconvintes a importância de 1.500.000,00 €, correspondente à penalidade fixada naquela cláusula, a que acresce a de 49.879,00 € a título de perda do sinal, nos termos do artº 442º do CC, e os juros de mora legais desde a notificação da reconvenção;

2ª) A lei prevê que o contraente vendedor tem a faculdade de “fazer sua” a coisa entregue a título de sinal, pelo que os recorrentes não tinham que peticionar a “perda do sinal prestado”, como as instâncias entenderam;

3ª) Ainda que se considere aplicável o regime do artº 812º do CC, certo é que a factualidade apurada - designadamente a dada por assente sob os pontos 19, 23, 24, 25 a 41 e 42 a 59 - não legitima a inter­venção correctiva excepcional prevista no indicado preceito legal;

4ª) Ao recorrer à redução da cláusula penal o acórdão recorrido não poderia ignorar que o respectivo mon­tante foi expressamente exigido pelo autor/reconvindo.

Revista do réu CC:

1ª) O disposto no artº 812º do CC é aplicável somente às cláusulas penais com função indemnizatória e não também às compulsórias;

2ª) Devidamente esclarecidos, conscientes e assistidos desde o início por advogado, autores e réus quiseram vincular-se a uma cláusula penal indemnizatória ou compulsória de 300 mil contos em caso de incumprimento, e pré contratualmente não equacionaram poder vir a mesma a ser reduzida por excessiva;

3ª) O sinal não é acumulável com a cláusula penal como sanção para o incumprimento;

4ª) Reduzir a cláusula penal a 26% do estipulado no contrato constitui uma espécie de benefício ao infractor/incumpridor;

5ª) Em caso de eventual redução equitativa da cláusula penal não deverá esta ser inferior a 1.059.564,48 €, valor este provado documentalmente nos autos, e que os réus suportaram após o incumprimento contratual por parte dos autores;

Revista dos autores AA e sua mulher BB:

1ª) A cláusula 7ª do contrato promessa ajuizado padece de nulidade, pois o valor estipulado como pena constitui um claro abuso do direito e um desrespeito flagrante do princípio da boa fé na formação dos contratos;

2ª) A condenação dos recorrentes na pena de 180.000,00 € é manifestamente desproporcionada e exces­siva, existindo no processo elementos suficientes para, recorrendo à equidade, a reduzir para 50.000,00 € (corres­pondentes ao sinal entregue), ou outro que venha a ser entendido como adequado e inferior ao fixado na 1ª instância;

3ª) Não há nos autos elementos objectivos que permitam fixar o montante da pena em valor superior a 50.000,00 €, pois os réus não sofreram nenhum prejuízo que já não soubessem que teriam com o empreendimento, não encontraram, nem tinham possibilidades de encontrar qualquer interessado em negociar o objecto do contrato nas condições e prazos impostos pelo Fundo do Turismo, e não demonstraram que este tivesse exigido qualquer devolução, ou de que essa dívida existe.

Não houve contra alegações.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto:

1 - No dia 19/1/98 foi celebrado entre o autor e os réus CC e DD um contrato-promessa no qual consta que estes intervieram em seu nome e em representação da sociedade “GG, Ldª”, com o capital social de 40.000.000$00, matriculada na CRP local, sob o n.º000, da qual os citados réus são sócios e únicos gerentes, sendo necessária e suficiente as assinaturas de ambos para obrigar a sociedade, e do qual consta:

Os citados réus, “pela forma como intervêm e com autorização e ordem dos demais sócios, prometem ceder” ao Autor, “pelo valor total de 100.000.000$00 (cem milhões de escudos), todo o património da sociedade referida, incluindo o capital social (todas as quotas) nos termos e cláusulas seguintes que uns e outro aceitam e a que todos se obrigam:

1ª - Com a cessão de todas as quotas dos sócios e que os primeiros se obrigam a que sejam cedidas, tanto mais que assumem a representação dos demais sócios, fica incluído todo o património da sociedade, mesmo projectos e tudo o mais que se relacione com o empreendimento.

2.ª - A liquidação de todo o passivo da sociedade, para com os sócios ou estranhos, fica a cargo e sob a res­ponsabilidade dos primeiros.

3.ª - O segundo só será responsável por qualquer passivo da sociedade a partir do momento em que tome a sua administração ou lhe sejam efectuadas as cessões de quotas, através de escritura pública.

4.ª - O preço total de contrato (cessão de todas as quotas e o constante na cláusula 1.ª) é de cem milhões de escudos, tendo neste acto os primeiros recebido como sinal e princípio de pagamento a importância de 10.000.000$00 (dez milhões de escudos), sendo o restante do preço (noventa milhões de escudos) a pagar no acto da escritura a ser outorgada no Cartório Notarial de Celorico da Beira, no prazo máximo de um mês.

(...).

6.ª - Os primeiros responsabilizam-se pelo cumprimento do contrato, podendo sempre o segundo exigir o cum­primento específico do mesmo.

7.ª - Para além do legalmente previsto no caso de incumprimento do contrato, aquele que se negar ao cumprimento do mesmo ou alguma das suas cláusulas terá de pagar ao outro o triplo do valor total do contrato, o que estabelecem e aceitam como cláusula penal” .

2 - A sociedade “QQ, Ldª” foi constituída, à data do registo do contrato de sociedade, pelos seguintes sócios:

CC, casado na comunhão de adquiridos com EE, tendo uma quota de 18.000.000$00, sendo gerente GG, casado em comunhão geral com HH, tendo uma quota de 4.000.000$00; II, casado em comunhão de adquiridos com JJ, tendo uma quota de 4.000.000$00; KK, casado em comunhão de adquiridos com LL, tendo uma quota de 6.000.000$00; DD, casado em comunhão geral com FF, tendo uma quota de 2.600.000$00 e sendo gerente; MM, casado em comunhão de adquiridos com NN, tendo uma quota de 2.000.000$00; OO, casado em comunhão geral com PP, tendo uma quota de 3.400.000$00.

3 - A alusão a “empreendimento” constante da cláusula 1.ª respeita a um empreendimento turístico que a sociedade em causa estava a implementar no lugar da Ratoeira, na comarca de Celorico da Beira.

4 - A sociedade “QQ, Ldª” não tem por objecto a compra e venda de imóveis.

5 - Ao Autor foi mostrado que a sociedade “QQ, Ld.ª” é possuidora de um terreno situado no lugar da Ratoeira, a confrontar do nascente com o rio Mondego e do norte com caminho, no qual foi iniciada a construção, neste momento parada, de um conjunto de edifícios vocacionados para a actividade hoteleira e turística.

6 - O empreendimento turístico que está a ser levado a cabo pela sociedade “QQ, Ld.ª” foi objecto de um contrato de financiamento com o Fundo de Turismo.

7 - Ao autor foi entregue, pelo menos, fotocópia de três cartas, a saber:

I - A constante de folhas 25, dirigida ao Fundo de Turismo, da qual consta o pedido para que esta entidade autorize a cedência da sociedade a um industrial de lacticínios, devido às dificuldades da sociedade, conhecidas pelo Fundo de Turismo desde os vários pedidos de prorrogação dos prazos, devido ainda à não colaboração dos restantes sócios, a saída de um deles, a falta de capital e a não concessão de crédito pelas instituições bancárias. Mais consta que o dito industrial está interessado em concluir a obra, com capitais próprios. Consta ainda que os pagamentos feitos aos fornecedores têm sido a conta gotas e que os compromissos assumidos pelos sócios não foram assumidos. Diz-se ainda que «todas as portas se têm fechado – desde os subsídios que foram prometidos (...) inicialmente na ordem dos 40% e depois (...) atribuído 23%».

II - A carta constante de folhas 27, datada de 16/12/97, dirigida pelo Fundo de Turismo ao gerente da sociedade, da qual consta a autorização de prorrogação do prazo de execução material e financeira do projecto de investimento até 9/11/98, sob condição resolutiva de:

i a) comprovação, no prazo de 90 dias, de uma execução financeira correspondente, no mínimo, a 70% dos capitais próprios (Esc. 165 426 800$00) e,

ii b) comprovação, no mesmo prazo, da obtenção dos meios financeiros necessários à con­clusão do projecto, designadamente do empréstimo bancário de 60 mil contos já autorizado pelo Fundo de Turismo».

III - A carta constante de folhas 28, datada de 4/2/98, dirigida pelo Fundo de Turismo ao gerente da sociedade, da qual consta não ser necessária a autorização daquela entidade para uma cessão de quotas, uma vez que tal situação “não se encontra pela alínea f ) da cláusula 6.ª do contrato de concessão de incentivos, na medida em que esta só diz respeito à cessão de exploração, alienação e locação do empreendimento comparticipado e dos bens de equipamento adquiridos no âmbito da realização do projecto”. Na mesma missiva reiteram-se ainda as condições constantes da carta anterior, esclarecendo-se que o não cumprimento das mesmas até ao dia 11/3/98 implicará a resolução da deliberação da Comissão Administrativa de 11/12/97, podendo configurar-se uma causa de rescisão do contrato por incumprimento do prazo de execução material e financeiro do projecto de investimento, nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 12.º do Dec. Lei nº 215/92, de 13 de Outubro.

8 - Antes da data designada para realização da escritura – 28/1/98 – o autor solicitou a sua desmarcação, invocando a indisponibilidade do seu advogado em estar presente.

9 - Em 24/3/98 os réus dirigiram carta registada com a/r ao autor através da qual lhe comunicaram que a escritura pública de formalização do negócio prometido se encontrava designada para as 16 horas do dia 27/3/98, no Cartório Notarial de Celorico da Beira.

10 - No dia 27/3/98, às 16 horas, os réus comparecerem ou fizeram-se representar, a fim de outorgar a escritura pública de cessão de quotas, tendo disponibilizado previamente ao Notário todos os elementos necessários ao aludido fim.

11 - Compareceu o autor, não tendo a escritura sido levada a efeito, pelos motivos seguintes invocados por este:

a) Pelas razões constantes da acção nº 81/98 que corre termos pelo Tribunal Judicial deste concelho;

b) Falta do livro de actas para saber se existia deliberação para ceder o património da sociedade – (al. p).

12 - O autor é gerente e administrador de várias sociedades, nas quais detém uma parti­ci­pação social significativa.

13 - O autor faz face aos encargos do seu agregado familiar, designadamente do seu cônjuge, com os rendimentos obtidos com os seus negócios.

14 - O negócio formalizado pelo contrato-promessa junto aos autos foi outorgado com o Autor com vista a obter tais rendimentos.

15 - Os réus CC e DD ficaram de entregar ao autor o projecto e todos os documentos relativos ao empreendimento, incluindo o contrato e demais documentos relacionados com o Fundo de Turismo.

16 - As partes no contrato promessa celebrado aceitaram como essencial o apoio do Fundo de Turismo para a implementação do empreendimento turístico.

17 - O autor soube que o Fundo de Turismo exigia a conclusão do empreendimento até ao dia 9/11/98.

18 - A obra implicava um investimento global de 316.037.000$00.

19 - Apenas se encontravam feitos os toscos dos edifícios, em pedra e betão, exceptuando o da residência da direcção, faltando tudo o resto – (quesito 21º).

20 - Os sócios da sociedade “QQ, Ldª” e respectivos cônjuges reuniram-se e elaboraram a acta constante de folhas 106, onde consta, designadamente: “Dadas as circunstâncias expostas decidem os sócios e respectivos cônjuges por unani­midade negociar as respectivas quotas de imediato por forma a salvaguardar o apoio do Fundo de Turismo. (…) decidem…prometerem ceder ou ceder as suas quotas por um montante igual, digo global igual ou superior a cem mil contos, responsabilizando-se os sócios e cônjuges pelo pagamento do passivo da sociedade no caso de o negócio se realizar por tal preço. Para negociar o capital social da sociedade nos termos que entenderem convenientes em respeito pelos citados princípios e outorgar contrato-promessa de cessão de quotas em representação de todos os sócios, estes e suas mulheres mandatam os gerentes da sociedade DD e CC, mandato que se esgotará com a celebração do contrato promessa, obrigando-se os sócios e cônjuges a respeitá-lo e a outorgar a ou as respectivas escrituras públicas”.

21 - O que sucedeu por ocasião de uma assembleia-geral da sociedade ocorrida em 29/12/1997.

22 - Nessa altura, no empreendimento turístico da Ratoeira, já se encontrava realizado um investimento, em infra-estruturas e construção civil, de pelo menos 140.000.000$00.

23 - A obra exigia ainda um investimento superior a 80.000.000$00 para a conclusão dos trabalhos de construção.

24 - Decidiram então os sócios e respectivos cônjuges, por unanimidade, negociar as res­pec­tivas quotas, de imediato, de forma a salvaguardar o apoio do Fundo de Turismo.

25 - Decidindo prometer ceder ou ceder as quotas por um montante global igual ou superior a Esc. 100.000.000$00.

26 - E responsabilizando-se os sócios e cônjuges pelo pagamento do passivo da sociedade, no caso de o negócio se realizar por tal preço.

27 - Tendo deliberado mandatar a negociação do capital social da sociedade e a outorga de contrato-promessa de cessão de quotas, em representação de todos os sócios e suas mulheres, nos gerentes da sociedade.

28 - Na sequência da assembleia-geral, os réus gerentes encetaram negociações com o autor.

29 - Tendo-lhe explicado pormenorizadamente todo o projecto relativo ao empreendimento.

30 - Mostrando-lhe o mesmo, por várias vezes, e disponibilizando-lhe todos os elementos solicitados, quer os da sociedade, quer os do empreendimento.

31 - Esclareceram o autor que o empreendimento se encontrava projectado e implantado em terrenos que identificaram devidamente.

32 - Os referidos réus disponibilizaram ao autor os projectos de construção civil.

33 - Transmitiram ao autor qual o apoio do Fundo de Turismo concedido ao projecto e qual o estado do respectivo processo.

34 - Esclareceram o autor que o que levava os sócios a cederem as suas quotas eram as con­dições impostas em Dezembro de 1997 pelo Fundo de Turismo para manter o apoio concedido no âmbito do SIFIT (II), que implicava as condições constantes das cartas constantes de folhas 27 e 28.

35 - No decurso das negociações, e no acto da outorga da promessa, os réus gerentes lem­braram ao autor de que ele deveria iniciar as obras de conclusão do projecto tão rapida­mente quanto possível.

36 - Os sócios e respectivos cônjuges reuniram em assembleia-geral a 22/1/98.

37 - Tendo analisado o contrato-promessa e decidido conformar-se com o seu teor.

38 - Mostrando todos disponibilidade para outorgar a escritura pública de cessão de quotas no dia 28/1/98 e ainda tudo o necessário a tal fim.

39 - Foi dado conhecimento ao autor das actas lavradas das reuniões havidas entre os sócios e os seus cônjuges.

40 - No decurso das negociações, no acto da celebração do contrato-promessa e mesmo posteriormente, sempre foi claro para todos os outorgantes que o que se negociava era a cessão de quotas da sociedade “QQ, Ld.ª”.

41 - Aquando do referido em 8), o autor mostrou intenção de outorgar a referida escritura num dos 15 dias subsequentes.

42 - Nestas circunstâncias, a escritura foi novamente marcada para um dos 15 dias subse­quentes.

43 - O Autor solicitou, mais uma vez, o seu adiamento.

44 - Os réus gerentes, em conversa com o autor, aperceberam-se que os motivos invocados por este para obter sucessivos adiamentos da data para realização da escritura não eram verdadeiros.

45 - Os réus gerentes começaram a pressionar o autor, deslocando-se várias vezes à fábrica gerida por este.

46 - Tendo sido designadas novas datas para a escritura.

47 - Todas alteradas pelo autor ou a seu pedido.

48 - Verificando que a situação junto do Fundo de Turismo se complicava, os réus, pes­soalmente, alertaram o autor de que até ao dia 11/3/98 a sociedade havia de cumprir com os requisitos exigidos pelo Fundo de Turismo, sob pena de o projecto poder vir a perder o apoio concedido por este.

49 - O que fizeram ainda por carta datada de 6/3/98.

50 - Nela alertando ainda para a necessidade de realizar a escritura no mais curto espaço de tempo.

51 - E nela mostrando todos os sócios e cônjuges disponibilidade para outorgar a referida escritura em dia e hora que o Autor viesse a designar no prazo de 60 dias.

52 - Transmitindo ainda que a não realização da escritura em tal prazo determinaria a efectiva perda do interesse dos Réus na formalização do negócio prometido, face ao incumprimento reiterado por parte do Autor e por dois motivos essenciais: aumento significativo e progressivo do passivo da sociedade e perda do apoio do Fundo de Turismo e sua repercussão no passivo social.

53 - Transmitiram também que, caso o Autor não viesse a designar dia e hora para a realização da escritura, os Réus, dentro do aludido prazo, iriam, mais uma vez, proceder à sua marcação.

54 - Na altura do sucedido em 11), o Autor nem sequer esclareceu os Réus e restantes sócios e cônjuges das razões por si invocadas e remetidas para a acção judicial.

55 - Razões cuja existência os Réus desconheciam.

56 - Só através da citação nos presentes autos vieram os Réus a tomar conhecimento desses motivos.

57 - A escritura não mais pode ser realizada face à posição assumida pelo Autor.

58 - O autor recusou-se a celebrar a escritura consciente de que a sua não realização determinou a perda de interesse na realização do negócio pelos Réus.

59 - A sociedade perdeu o apoio do Fundo de Turismo concedido ao projecto.

60 - O montante do apoio concedido era do conhecimento público.

61 - O autor, aquando da elaboração do contrato-promessa, tinha a exacta consciência das obras necessárias para a conclusão do projecto.

62 - Havia vários empreiteiros e sociedades ligadas à construção civil interessadas em realizar a obra, no prazo de 7 a 10 meses.

63 - O que era do conhecimento do autor.

64 - Ocorreu uma reunião entre autor e réus gerentes em data anterior a 6/3/98.

b) Matéria de Direito

As questões colocadas nas conclusões dos três recursos interpostos dizem respeito, todas elas, à cláusula penal inserida no contrato promessa ajuizado; não se justifica, por isso, uma apreciação autónoma e separada de cada um deles, mas sim o seu julgamento conjunto, em ordem a evitar inúteis repetições e sobreposições.

Importa começar por dizer que o acórdão recorrido já julgou, no essencial, as questões que se enunciaram no antecedente resumo. Fê-lo com fundamentação adequada, com a qual se concorda e a que se adere, para ela se remetendo, nos termos do artº 713º, nº 5, do CPC, sem prejuízo do que adiante se dirá. A concordância que assim expressamos não é, no entanto, completa, conforme na altura apropriada se explicará, com a necessária extracção das consequências devidas.

O Código Civil regula a cláusula penal nos artigos 810º a 812º, que dispõem o seguinte:

Artigo 810.º (Cláusula Penal):

1. As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal.

2. A cláusula penal está sujeita às formalidades exigíveis para a obrigação principal, e é nula se for nula esta obrigação.

Artigo 811.º (Funcionamento da Cláusula Penal):

1. O credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento coercivo da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso na prestação; é nula qualquer estipulação em contrário.

2. O estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes.

3. O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal.

Artigo 812.º (Redução equitativa da cláusula penal):

1. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.

2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.

A cláusula penal, como é aceite pela doutrina e reconhecido pela jurisprudência, pode revestir três modalidades: cláusula com função moratória ou compensatória, - dirigida, portanto, à reparação de danos mediante a fixação antecipada da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor; cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, em que a sua estipulação, como refere Gravato Morais (1)., substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhuma delas; e cláusula penal de natureza compulsória, em que há uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento: a finalidade das partes, nesta última hipótese, é a de pressionar o devedor a cumprir, e já não a de substituir a indemnização. Na cláusula penal de tipo compulsório, afirma Almeida Costa, “as partes pretendem que a pena acresça à execução específica ou à indemnização calculada nos termos gerais” (2)..

No caso presente não temos qualquer dúvida que a pena inserida na cláusula 7ª do contrato promessa ajuizado é de natureza exclusivamente compulsória. Para assim se concluir basta ter presente o seguinte:

- Em primeiro lugar, e decisivamente, o seu elevado valor - correspondente ao triplo do valor do contrato - que mostra, além do mais, ter sido comum intenção dos interessados assegurar-se de que o contrato prometido seria de facto concluído, e concluído a curto prazo, dada a imperiosa necessidade de não se perder o apoio do Fundo de Turismo já concedido e a conceder ainda no futuro próximo. Dessa importância estavam os contraentes perfeitamente conscientes ao tempo da conclusão do contrato, pois todos sabiam que, per­dido aquele apoio, a continuação e acabamento do empreendimento turístico em curso ficaria irremediavelmente comprometida: é o que se retira da conjugação dos factos 5 a 7, 15 a 20, 28 a 35, 38 a 40 e 48 a 52.

- Em segundo lugar, o facto de, segundo a cláusula 4ª, os 10 mil contos entregues pelo autor aos réus o terem sido a título de “sinal e princípio de pagamento”, e de, além disso, ter ficado expressamente convencionado que a execução específica da promessa poderia ser sempre accionada (cláusula 6ª); isto evidencia que foi intuito das partes mediante a estipulação duma pena de tão avultado montante retirar-lhe o carácter de antecipação da indemnização devida em caso de incumprimento (ou, pelo menos, desvalorizar de modo acentuado essa vertente), sublinhando com nitidez o seu carácter compulsório, isto é, de pressão - e pressão muito forte - ao cumprimento, desencorajando qualquer “tentação” de faltar à “palavra dada” que pudesse sobrevir no curto espaço de tempo que, era esperado, decorreria até à realização do contrato prometido.

No seu conjunto, a matéria de facto evidencia ainda o acerto das instâncias ao decidirem que o autor incorreu em incumprimento definitivo do contrato, e incumprimento culposo, sendo certo nada indiciar minimamente que tenha logrado ilidir a presunção de culpa estabelecida pelo artº 799º, nº 1 do CC.

Necessário se torna ainda chamar a atenção, numa visão integrada dos factos, para a inteira lisura e completa boa fé da conduta negocial dos réus, eloquentemente expressa na rigorosa observância dos deveres de informação, de esclarecimento e de lealdade, designadamente, e em especial, os relacionados com a necessidade de inteirar o autor da situação atinente à comparticipação do Fundo de Turismo no prosseguimento e finalização do empreendimento turístico em curso e dos concretos valores nele envolvidos, para além da (in)capacidade económico-financeira da própria sociedade para, ao tempo, tudo levar a bom termo; basta atentar no significado dos factos 7), 17) a 20), 22) a 26), 28) a 35), 40) e 48) a 52), para assim se poder concluir.

Também todas as circunstâncias envolventes da negociação já postas em relevo mostram que não tem bom fundamento a alegação dos autores a respeito da nulidade da cláusula 7ª do contrato por constituir abuso do direito a estipulação duma cláusula penal de 300 mil contos. Desde logo, deve voltar a sublinhar-se que ela surgiu na sequência duma negociação que decorreu, tanto quanto a matéria de facto permite ajuizar, com inteira lisura e boa fé, particularmente no que aos réus diz respeito; e nada no comportamento destes revela que, contra aquele princípio vital de todo o ordenamento jurídico-civil (artºs 227º, nº 1 e 762º, nº 2), tenham ocultado ou dissimulado ao autor um facto, uma expectativa ou até um risco cujo assumido conhecimento ou simples consciencialização pudesse influenciar mais ou menos decisivamente a sua decisão de contratar, ou de contratar nos termos em que o fez. Aliás, ficou de igual modo demonstrado que o autor era gerente e administrador de várias sociedades, nas quais detém significativa participação social (facto 12); e isto torna pouco verosímil que se tenha vinculado negocialmente sem antes ponderar maduramente todas as implicações envolvidas, o que de resto está claramente patenteado na profusão de informações que obteve ao longo do tempo por intermédio dos réus e não só (factos 62) e 63). Por isso tem a Relação toda a razão quando afirma a dado passo do acórdão recorrido: “...a fixação, por mútuo acordo, da cláusula penal, embora com um valor equivalente ao triplo do valor do contrato, sendo este de 100.000.000$00, significa apenas que, na altura, foi entendido por ambas as partes ser absolutamente necessário honrar os compromissos assumidos. E para que não houvesse hipóteses de alguma das partes faltar à palavra dada, fixaram um valor elevado para dissuadir o incumprimento. Ora, não se vê que exista nisto abuso algum, sendo sim tal cláusula um reforço dos valores tutelados pelo direito que proclamam que os contratos devem ser cumpridos pontualmente. Esta forma de coacção mútua, livre, voluntariamente imposta sobre si mesmos, não ofende nem a boa fé, nem os bons costumes, nem o fim econó­mico e social do direito” .

Seguindo a ordem lógica das coisas, a questão seguinte a resolver consiste em saber se a cláusula penal fixada pode ser reduzida, por estar abrangida pelo regime do artº 812º do CC, e, caso a resposta seja afirmativa, se o deve ser, e até onde, à vista dos factos apurados.

Quanto à primeira pergunta, responde-se afirmativamente.

É certo que o regime dos artºs 810 e 811º não se aplica às cláusulas penais compulsórias, mas apenas às de natureza indemnizatória, como logo se pode inferir da conjugação do texto do nº 1 do artº 810º com o nº 3 do artº 811º. E a circunstância de ser predomi­nantemente literal o argumento que no sentido exposto de retira destas normas em nada diminui o seu valor intrínseco, pois sabe-se que a letra da lei (o chamado elemento gra­matical) é simulta­neamente ponto de partida e ponto de chegada na interpretação jurídica: o artº 9º do CC ordena que na fixação do sentido e alcance da lei o julgador reconstitua a partir dos textos o pensamento legislativo, proibindo-o, todavia, de considerar qualquer um que não tenha um mínimo de correspondência verbal na letra da norma. Assim, conforme ensina o Prof. António Pinto Monteiro, “...haverá toda a vantagem em considerar que o Código trata apenas da cláusula de fixação antecipada da indemnização: além de ser essa a atitude mais consen­tânea coma noção que dela dá o nº 1 do artº 810º, o regime prescrito actualmente no artº 811º só se com­preende em relação a esta figura, não a respeito da pena com escopo compulsório” (3).. Sem dúvida pois que, estando de todo ausente da pena exclusivamente compulsória qualquer intuito indem­nizatório, em caso algum ela poderá constituir, segundo a vontade das partes, a liquidação de um dano; e isto leva-nos a afirmar que ela extravasa do âmbito definido pelo artº 810º, nº 1 e balizado, depois, no artº 811º.

Todavia, tal não quer dizer que a norma do artº 812º não possa, e até deva, aplicar-se às cláusulas penais compulsórias, como é o caso da analisada no presente processo. Em primeiro lugar porque, desde logo, o preceito não faz qualquer distinção entre os diversos tipos de cláusulas a que acima fizemos referência, não se vendo nenhuma razão de ordem material, substantiva, para que o intérprete a faça; na realidade o excesso manifesto, a evidente desproporção, único fundamento que justifica a intervenção do tribunal em nome da equidade, é susceptível de ocorrer em todos os tipos de cláusulas penais, quiçá até com maior premência nas de natureza compulsória. Em segundo lugar porque este artigo encerra, como nos parece certo, um princípio de alcance geral, destinado a corrigir abusos no exercício da liberdade contratual, sempre possíveis em razão da ligeireza, da precipitação ou da menor reflexão com que as partes actuam, males estes não raro induzidos pela pres­são que a escassez de tempo para bem decidir coloca sobre os contraentes. Na obra já citada, o Prof. Pinto Monteiro afirma isto com toda a clareza (4), acrescentando um pouco mais à frente o seguinte, que se afigura inteiramente pertinente ao caso dos autos: “Em nosso entender, porém, sendo certo que o princípio da boa fé inspira várias destas soluções, designadamente a da proibição dos negócios usurários (artº 282º), a ratio do poder de redução, consagrado no artº 812º, funda-se, sim, na neces­sidade de controlar a autonomia privada, de prevenir abusos do credor, mas ao nível do exercí­cio do direito à pena. Pode não ter havido, ao ser estipulada a cláusula penal, qualquer aproveitamento de uma eventual situação de necessidade do devedor, ou exploração alguma de qualquer ligeireza, inexperiência ou dependência deste, e, todavia, a pena ser excessiva, em termos de se justificar a sua redução; assim como pode ter sido acordada num montante que se afigura razoável e, contudo, ao ser exigida, revelar-se mani­festamente exces­siva. É que o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve fazer-se, não relativamente ao momento em que ela for estipulada, antes ao ter de cumprir-se. E não é o dano previsível que conta, antes o prejuízo efectivo” (5).

Há, de igual modo, jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido acabado de expor - acórdãos de 12/10/99 (Revª 696/99) e de 5/7/01 (Revª 1763/01).

Assim respondida a primeira pergunta, cabe agora responder à segunda, sendo suficiente a este propósito reafirmar o nosso acordo à redução da cláusula operada pelas instâncias para o montante de 180.000,00 € e aos fundamentos que lhe presidiram. Na verdade, tendo em conta, antes de mais nada, que na pena de natureza compulsória o prejuízo real sofrido pelo credor não é o factor de maior relevo a considerar; que, aparentemente, não resultaram quaisquer vantagens para o autor do incumprimento contratual; que os réus assumiram abertamente a incapacidade da sociedade para concretizar na totalidade o investimento previsto; que esse facto, todavia, não era à partida impeditivo de que outros possíveis adquirentes dispusessem de tal capacidade e, portanto, reunissem condições para continuar a beneficiar até ao fim do financiamento concedido pelo Fundo de Turismo; que o autor não provou que os réus não tiveram que devolver a parte do subsídio estatal entretanto recebida; que já tinham sido gastos no empreendimento, em infra-estruturas e construção civil, 140 mil contos, exigindo a obra um investimento superior a 80 mil contos para serem concluídos os trabalhos de construção (factos 23 e 24); que a urgência na realização do contrato prometido - de resto, como já se viu, assumida por ambas as partes - decorria, no tocante aos réus, também da premente necessidade de evitar a acumulação de prejuízos para a sociedade; e que o grau de culpa do autor no incumprimento do negócio foi relativamente elevado, pois nenhum dado objectivo se provou que, sopesado à luz dos princípios da boa fé e do equilíbrio das prestações, possa atenuar o juízo de censura que a sua obstinada recusa em formalizar o contrato prometido merece, entende-se que a redução da cláusula penal até ao montante indicado - 180.000,00 € - se mostra conforme à equidade, isto é, ajustada ao con­junto de circunstâncias específicas do caso concreto a que se fez resumida e sintética alusão, por isso que proporcionado ao valor e importância relativa dos interesses envolvidos.

Mas - e é aqui que reside o único ponto de discordância com o acórdão recorrido - a redução da cláusula penal tem que deter-se na apontada quantia, sem a dedução que as instâncias operaram dos 10 mil contos (49.879,00 €) entregues pelo autor a título de sinal. Não cremos que haja fundamento jurídico bastante para semelhante decisão. Efectivamente, como já dissemos mais atrás, a finalidade que presidiu à estipulação da cláusula penal nada teve que ver com a que esteve presente no espírito das partes ao fixar o sinal; a prova mais evidente disso mesmo encontramo-la nós no próprio texto da cláusula em questão, na qual se diz, preto no branco, que os 300 mil contos da pena acrescem “ao legalmente previsto no caso de incumprimento do contrato”, combinado com a cláusula 6ª, a que de igual modo já nos referimos, e segundo a qual o autor ficou “sempre” com o direito de “exigir o cumprimento específico do mesmo”. Ora, à luz do disposto, na parte que interessa ao caso, no artº 442º, nº 4, segundo o qual na falta de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização no caso de perda do sinal”, e no nº 2 do artº 236º, que, nos casos em que a vontade real do declarante é conhecida do declaratário, manda a declaração negocial valer de acordo com tal vontade, não se vê como negar aos réus o direito de fazerem seu o sinal prestado, nos termos do nº 2 do referido artº 442º, e, além disso, de exigirem dos autores a entrega da cláusula penal, reduzida esta, consoante o exposto, ao montante de 180 mil euros.

Socorrendo-nos novamente do ensinamento do Prof. Pinto Monteiro, e atendendo a que a cláusula de índole exclusivamente compulsivo-sancionatória se traduz no facto de “...ser acordada como um plus, como algo que acresce à execução específica ou à indemnização pelo não cumprimento” (6), podemos afirmar que a dedução do sinal entregue ao montante da pena já reduzida pela intervenção correctiva do tribunal acaba por constituir uma ilegítima ingerência na autonomia privada dos contraentes, consagrada a nível negocial no artº 405º; ilegítima porque, além de tudo o mais que já se disse, nem o sinal nem a pena convencionada violaram qualquer norma ou princípio de carácter imperativo a que as partes estivessem necessariamente vinculadas (como, a título de exemplo, sucede com o artº 280º, nºs 1 e 2, que traça os requisitos do objecto negocial).

Deve ainda sublinhar-se, por último, que, tal como as instâncias a decretaram, a referida “subtracção” dos dez mil contos do sinal ao valor da cláusula penal, representa, em termos práticos, a sua redução (melhor se diria, talvez, eliminação ou negação) inteiramente à margem dos requisitos exigidos pelo artº 812º, de entre os quais avulta, como se viu, o seu carácter manifestamente excessivo, algo que ninguém em momento algum do processo alegou; ora, para quem admita, como nós admitimos, que o regime do 812º do CC se aplica nos mesmos termos e condições a ambos os institutos (sinal e cláusula penal), isso constitui um contra-senso inexplicável, além de conduzir a um resultado contrário à vontade negocial livre e conscientemente expressa por ambas as partes.


III. Decisão
Nos termos expostos acorda-se em negar provimento à revista dos autores e conceder par­cial provimento às revistas dos réus e intervenientes.

Assim, altera-se o acórdão recorrido, condenando-se os autores/reconvindos a pagar aos reconvintes a importância de 180.000,00 €, acrescida de juros de mora desde a notificação da contestação/reconvenção até ao efectivo pagamento, sem prejuízo do direito de faze­rem sua a quantia de 49.879,79 € entregue a título de sinal e princípio de pagamento.

Os autores suportarão as custas da revista que interpuseram; as custas das restantes revistas serão suportadas por autores, réus e intervenientes na proporção de vencido.

Lisboa, 27 de Setembro de 2011

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira
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(1) fr. Contrato Promessa em Geral - Contrato Promessa em Especial, pág. 154 (Almedina, 2009).
(2) Cfr. Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, pág. 794.

(3) Cfr. Cláusula Penal e Indemnização, pág. 486 (Colecção Teses, Almedina, Coimbra, 1990). Insistindo nesta mesma ideia, pode ver-se o que se escreve nas páginas 468 e 471.

(4) Pág. 730 da obra citada na nota anterior.

(5) Obra citada, pág. 732.

(6) Cfr. obra citada pa´g. 604.