CONTRATO DE CONSÓRCIO
REGIME APLICÁVEL
PERSONALIDADE JURÍDICA
PRESTAÇÃO DE CONTAS
INQUÉRITO JUDICIAL
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONCLUSÕES
RECURSO DE REVISTA
Sumário

I - O contrato de consórcio – regulado no DL n.º 231/81 de 28-07 – é aquele pelo qual duas ou mais pessoas, singulares ou colectivas, que exercem uma actividade económica se obrigam entre si, de forma concertada, a realizar: (i) certa actividade ou efectuar certa contribuição com o fim de prosseguir s realização de actos, materiais ou jurídicos, preparatórios quer de um determinado empreendimento quer de uma actividade contínua; (ii) a execução de determinado empreendimento; (iii) o fornecimento a terceiros de bens, iguais ou complementares entre si, produzidos por cada um dos membros do consórcio; (iv) pesquisa ou exploração de recursos naturais; (v) produção de bens que possam ser repartidos em espécie.
II - No quadro normativo criado não se concebe o consórcio como um ente societário dotado de personalidade jurídica: a personalidade jurídica é a dos contraentes e o contrato de consórcio não cria uma nova entidade societária, razão pela qual a prestação de contas não se concretize através de inquérito como prescreve o art. 67.º do CSC.
III - Do regime, constante do DL n.º 231/81, de 28-07, resulta a obrigatoriedade do associante prestar contas no período legal ou contratualmente fixado para a exigibilidade da participação do associado nos lucros e nas perdas e ainda relativamente a cada ano civil de duração da associação (art. 31.º, n.º 4), estabelecendo-se ainda que «na falta de apresentação de contas pelo associante, ou não se conformando o associado com as contas apresentadas, será utilizado o processo especial de prestação de contas regulado pelos arts. 1014.º e segs. do CPC».
IV - Ao STJ compete, fundamentalmente, apreciar da justeza da aplicação do direito, só podendo conhecer da matéria de facto desde que haja ofensa expressa de lei que exija a prova vinculada ou que estabeleça o valor de determinado meio probatório.
V - Para tanto, não basta que o recorrente nas alegações de recurso diga que se julgou com ou sem prova ou em desrespeito de prova tabelada ou em excesso de livre apreciação: é necessário que indique os elementos fácticos e legais em que tais vícios se consubstanciaram.

Texto Integral

         Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

         Relatório:

         Pela 5ªvara cível do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, corre processo especial de prestação de contas em que é A C... – Gestão de Trabalhos e Construção S.A., identificada nos autos, e R. A... – Actividades Metalomecânicas estruturais e tubagens Ldª, identificada nos autos, pedindo aquela que a R. seja citada para a prestação de contas no prazo de 30 dias ou contestar a acção.

         A R contestou dizendo que à A não assiste o direito de peticionar o que peticionou, pelo contrário, a ela assiste o dever de prestar contas.

         Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme dos autos consta, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente por provada e a R sido condenada no pagamento à A no saldo devedor de 82.069,53 €.

         Inconformada com esta decisão dela apelou a R, tendo, em conferência, o Tribunal da Relação de Lisboa decidido julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

         Deste acórdão recorre a R para o STJ alegando, em conclusão, o seguinte:

         A) 0 douto acórdão recorrido, por erro de interpretação e aplicação da lei, violou a lei substantiva;

B) 0 consórcio não é um instituto societário

C) Partindo desta premissa os créditos e os débitos não pertencem ao consórcio, mas, no que se reporta às relações entre as partes, ao consorte que figura naqueles, para além do que estiver determinado e acordado nas relações internas, contas que a serem prestadas só terão de o ser, conforme prescreve o Art. 25 N° 5 e Art. 31 N° 2 do Dec. Lei N° 231/81, quando o contrato do consórcio se encontrar extinto ou resolvido;

D) Se assim se não entender, o que só por mera hipótese e dever de patrocínio se admite, ou seja, a considerar-se que o consórcio é um instituto societário, o processo próprio para se obter a prestação de contas, ao encontro do que prescreve o Art. 67 da CSC é o processo de inquérito, tendo a recorrente em momento, local e forma certa, recorrido da douta decisão que assim o não entendeu;

         E) Se o Tribunal é inteiramente livre na valoração e apreciação das

provas que as partes trazem aos autos, respondendo segundo a sua livre convicção acerca de cada facto, este princípio é excepcionado nos casos de prova tabelada, não podendo julgar os factos sem prova ou contra a prova.

         Nestes termos e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, assim se fazendo

Justiça

Não foram apresentadas contra-alegações.

***

Tudo visto,

Cumpre decidir:

B) Os Factos:

Foram dados pelas instâncias como assentes os seguintes factos:

A Autora e a Ré subscreveram, a 05.01.2002, o “contrato de consórcio interno”, para execução dos trabalhos referentes à Empreitada denominada “Trabalhos de Montagem e Soldaduras de Estruturas na Zona 12102 do Bloco BDO 2” em Roterdão para a empresa A..., S.A.,

Nos termos do contrato – artigo 1.º, n.º 2, o consórcio durará pelo período de tempo necessário à execução total e aceitação definitiva dos trabalhos de Empreitada liquidação de todas as contas e encargos relativos à mesma e resolução de todos os conflitos, questões, divergências e litígios por referência à Empreitada;

A C... exercerá as funções de Chefe do Consórcio – artigo 3.º.

A C... obriga-se:

A coordenar a execução de Empreitada;

Fornecer todos os equipamentos e materiais necessários para os trabalhos;

Assegurar todas as despesas e encargos com o pessoal que tenha sido especificamente contratado pela A... para a execução da empreitadas;

Efectuar à A... pagamento da importância correspondente a 2% do valor da facturação por ela emitida, a título de despesas e encargos de administração – artigo 5.º

A participação das consorciadas nos direitos e obrigações decorrentes da execução e aplicação do presente contrato será a seguinte:

-C... 80%

-A... 20% - artigo 6.º

O Chefe do Consórcio será o único responsável pela execução dos trabalhos, multas e penalidades decorrentes do contrato de empreitada, ainda que o dono da obra as reclame da A..., sem prejuízo do direito de regresso que esta possa vir a exercer, no caso de lhe serem directamente exigidas – artigo 7.º

Toda a facturação ao dono da obra no âmbito da empreitada será efectuada pela A...;

Os pagamentos das facturas emitidas no âmbito do contrato de empreitada serão feitos pelo dono da obra à A..., sem prejuízo desta autorizar a cessão de créditos a outra entidade, designadamente para efeitos de factoring – artigo 8.º

A C... transferiu para a A... o valor de € 46 625, 00 – fls. 16 do parecer.

A A... recebeu do dono da obra e da empresa de factoring o valor total de € 283 338, 52

A obra teve como custos e despesas de execução da empreitada o valor de € 246 773, 12 – fls. 20 do parecer.

         C) O Direito:

         Em causa no presente recurso:

0 douto acórdão recorrido, por erro de interpretação e aplicação da lei, violou a lei substantiva.

0 consórcio não é um instituto societário.

Os créditos e os débitos não pertencem ao consórcio.

As contas a serem prestadas só terão de o ser, conforme prescreve o Art.25ºnº5, entre os membros do consórcio. Art.31ºnº2 do Decreto-Lei n°231/81, quando o contrato do consórcio se encontrar extinto ou resolvido.

A considerar-se que o consórcio é um instituto societário, o processo próprio para se obter a prestação de contas, ao encontro do que prescreve o Art.67º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) é o processo de inquérito.

Se o Tribunal é inteiramente livre na valoração e apreciação das provas que as partes trazem aos autos, respondendo segundo a sua livre convicção acerca de cada facto, este principio é excepcionado nos casos de prova tabelada, não podendo julgar os factos sem prova ou contra a prova.

A R, no recurso de revista, repete toda a argumentação que usara na apelação e que mereceu as considerações ínsitas no acórdão recorrido.

O Decreto-Lei nº nº231/81 de 28 de Julho, no seu art.32º revogou os arts.224º a 227º do Código Comercial (CCom) relativas à associação em conta em participação.

No espírito do legislador estava a intenção de fazer um “aggiornamento” do contrato de associação em participação e, no que ao consórcio tange, dar enquadramento legal a formas de cooperação entre empresas que estabeleciam, por vezes entre si, contratos inominados sujeitos a interpretações jurisprudenciais e doutrinárias nem sempre concordantes.

No art.1º do referido decreto-lei define-se que o consórcio é o contrato pelo qual duas ou mais pessoas, singulares ou colectivas, que exercem uma actividade económica se obrigam, entre si, a, de forma concertada, realizar certa actividade ou efectuar certa contribuição com o fim de prosseguir: (art.2º) a realização de actos, materiais ou jurídicos, preparatórios quer de um determinado empreendimento quer de uma actividade contínua; a execução de determinado empreendimento; o fornecimento a terceiros de bens, iguais ou complementares entre si, produzidos por cada um dos membros do consórcio; pesquisa ou exploração de recursos naturais; produção de bens que possam ser repartidos, em espécies.

O consórcio pode ser interno ou externo (art.5º) consoante as actividades ou os bens são fornecidos a um dos membros do consórcio e só este estabelece relações com terceiros; as actividades ou os bens são fornecidos directamente a terceiros por cada um dos membros do consórcio, sem expressa invocação dessa qualidade; ou, no segundo caso, quando as actividades ou os bens são fornecidos directamente a terceiros por cada um dos membros do consórcio, com expressa invocação dessa qualidade.

O Decreto-Lei nº nº231/81 de 28 de Julho, no seu art.32º revogou os arts.224º a 227º do Código Comercial (CCom) relativas à associação em conta em participação.

No espírito do legislador estava a intenção de fazer um “aggiornamento” do contrato de associação em participação e, no que ao consórcio tange, dar enquadramento legal a formas de cooperação entre empresas que estabeleciam, por vezes entre si, contratos inominados sujeitos a interpretações jurisprudenciais e doutrinárias nem sempre concordantes.

Foi intenção do legislador imprimir, nestas formas de cooperação entre empresas, maleabilidade e simplicidade, daí que, no contrato de consórcio, estabelecesse normas imperativas para criar as grandes linhas definidoras do instituto e normas supletivas que permitissem aos interessados afastar-se da regulamentação tipo sempre que entendessem necessário, introduzindo os aditamentos que considerassem aconselháveis.

No quadro normativo criado não se concebe o consórcio como um ente societário dotado de personalidade jurídica: a personalidade jurídica é a dos contraentes (pessoas singulares ou colectivas) e o contrato de consórcio não cria uma nova entidade societária: o contrato (como qualquer outro) cria direitos e obrigações para cada um dos contraentes e define o quadro de actuação comum e específica de cada um deles. Daí que a prestação de contas não se concretize através de inquérito como prescreve o art.67º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

Com o decreto-lei em apreço ficou resolvida a questão, então debatida na jurisprudência, da desadequação do processo especial de prestação de contas previsto no CPC, uma vez que não tendo o contrato de consórcio natureza societária não se lhe aplicava o CSC.

Consagrou-se a natureza contratual do contrato de consórcio e da associação em participação; a obrigatoriedade do associante prestar contas no período legal ou contratualmente fixado para exigibilidade da participação do associado nos lucros e nas perdas e ainda relativamente a cada ano civil de duração da associação (art.31ºnº4 do Decreto-Lei nº231/81). E estabeleceu-se no nº4 do citado artigo que “na falta de apresentação de contas pelo associante, ou não se conformando o associado com as contas apresentadas, será utilizado o processo especial de prestação de contas regulado pelos arts.1014º e segs. do CPC.”

Retirando-se do material fáctico que estamos na presença de um consórcio interno, por força do art.18º aplica-se a este tipo de contrato as normas do art.25º ambos do citado Decreto-Lei.

Na esteira do bem explanado pelo Tribunal da Relação, “assumindo a A (C...) a posição de chefe consorcial com as obrigações inerentes relativas ao fornecimento de equipamentos; de assegurar as despesas e encargos com pessoal contratado pela R (Actimel) e outras, à Actimel incumbe a obrigação de contratar o pessoal necessário à realização dos trabalhos que lhe sejam indicados pela R. À Actimel seria remetido toda a facturação e pagamento de facturas no âmbito da empreitada, especiais semelhanças existem entre este consórcio interno e a associação em participação em que o associante deve prestar contas nos termos do art.31º do Decreto-Lei nº231/81 e, nesta situação, sempre a A poderia exigir a prestação de contas.

Esta obrigação de prestar contas resulta do art.1014º do CPC.

A R não contestou a sua obrigação de prestar contas na parte que lhe competia nem impugnou a documentação apresentada pela A e tendo sido notificada para apresentar contas nada disse. Tendo sido decidido em primeira instância que a R tem a obrigação de prestar contas e não tendo esta apelado do despacho que tal determinou, nos termos do art.1014º-A nº4 do CPC, formou-se caso julgado formal sobre tal matéria, ou seja, sobre a obrigatoriedade de prestação de contas. E essa deve ser feita, como o foi, nos termos do art.1014º do CPC.

Quanto à segunda questão colocada pela recorrente está a mesma subtraída à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art.722ºnº2 do CPC.

“O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.  

Ao STJ compete fundamentalmente apreciar da justeza da aplicação do direito. O STJ só pode conhecer de matéria de facto desde que haja ofensa expressa de lei que exija prova vinculada ou que estabeleça o valor de determinado meio probatório.

A fixação da matéria de facto é da competência das instâncias, cabendo à Relação a sua fixação definitiva.

Não basta nas conclusões das alegações de recurso (e são estas que balizam o seu objecto) dizer-se que se julgou sem ou contra prova, em desrespeito de prova tabelada ou em excesso de livre apreciação. Necessário é indicar os elementos fácticos e legais em que tais vícios se consubstanciaram o que a recorrente não fez. E mesmo que o tivesse feito o Supremo Tribunal de Justiça conhece da matéria de facto apenas nas duas hipóteses contempladas na 2ª parte do nº2 do art.722º do CPC, ou seja, quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei é indispensável para mostrar a sua existência (o que não é manifestamente o caso dos autos) ou quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico (o que também se não verifica). A valoração que as instâncias fizeram da prova (com que a recorrente não concorda) é insindicável pelo STJ.

   Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça, em negar revista confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Outubro de 2011      

Orlando Afonso (Relator)
Távora Victor
Sérgio Poças