I - As partes comuns, definidas como tal no titulo constitutivo da propriedade horizontal, devem manter-se inalteradas ou, pelo menos, sem possibilidade de modificação por acção individual, própria e autónoma dos proprietários das fracções, até que por acordo de todos os condóminos (art. 1419.º. n.º 1, do CC).
II - A modificação do título apenas pode ser efectuada por acordo de todos os condóminos.
III - Pretendendo os condóminos autores que seja declarada extinta, por desnecessidade, uma servidão de passagem constituída por acto negocial, na própria escritura de constituição de propriedade horizontal, e que onera uma parte comum do condomínio, falta um pressuposto processual, a saber, a legitimidade activa, se estão na acção desacompanhados de outro condómino e não provam que sejam os administradores do condomínio, com poderes especiais para o efeito (art. 1437.º, n.º 3, do CC).
IV - A verificação dos pressupostos processuais, neste caso da excepção dilatória de ilegitimidade activa, é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida em qualquer momento do processo.
A propriedade horizontal “[pode] ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.” - cfr. n.º 1 do artigo 1417.º do Código Civil.
Definindo a sua posição na querela que se havia instalado para qualificação do direito real de propriedade horizontal, Oliveira Ascensão considera este direito como um direito complexo e dentre estes um direito real composto, pois conforme estabelece o n.º 2 do artigo 1420.º do Código Civil “o conjunto dos dois direitos é incindível e nenhum pode ser alienado separadamente. “A alteração ao regime geral da comunidade leva mesmo a uma exclusão do abandono liberatório: não é licito renunciar á parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias á sua conservação ou fruição”. [[1]]
Para Henriques Mesquita “[do] regime jurídico estabelecido pela nossa lei resulta claramente que na propriedade horizontal se congregam dois direitos reais distintos: um de propriedade singular, no que respeita às fracções autónomas do edifício (andares, apartamentos, etc.); e outro de compropriedade, cujo objecto é constituído pelas partes comuns referidas no artigo 1421.º.” “Deve entender-se, pois, que o núcleo da propriedade horizontal, é constituído por direitos privativos de domínio, direitos estes a que estão associados, com função instrumental (mas de modo incindível), direitos de compropriedade sobre as partes do prédio não abrangidas por uma relação exclusiva.” “O condomínio é, assim, uma figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial – daí a expressão condomínio – sobre fracções determinadas”. [[2]]
Na caracterização da figura jurídica em apreço, o Professor Oliveira Ascensão, refere como traços distintivos definidores e imprescindíveis, portanto infranqueáveis e inafastáveis: a) que as fracções se constituam como unidades independentes, onde vigore e esteja perfeitamente delimitada a sua compleição física e funcional; b) que essas fracções gozem e não tenham comunicação entre si, constituindo-se como corpos distintos e definidos; c) que essas fracções possuam saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública. Estes traços ou elementos definidores e identificadores de cada uma das unidades que devem compor um prédio em propriedade horizontal, tornam-se sinais exteriores significantes da figura e que permitem encontrar o eixo caracterizador que a projecta no conspecto da tipicidade dos direitos reais. [[3]]
No direito complexo e composto em que se desdobra a propriedade horizontal coexistem e coabitam dois direitos de dimensão e densidade jurídico-material diversa: um direito de propriedade singular ou individual incidente sobre uma parte definida, autónoma e independente; e um direito de compropriedade sobre as partes comuns que se insere na propriedade plena do prédio. Existe uma total incindibilidade da dominialidade especifica entre as partes comuns e a parte privada ou autónoma, de forma a que a alienação do direito real privado não pode ser desanexado ou separado da parte comum.
A interdependência e incindibilidade entre um direito de índole ou feição privada e um outro de natureza comum concita uma limitação de exercício de direitos – cfr. artigo 1422.º do Código Civil - que a lei resolve conferindo, para cada uma das situações, as limitações próprias aos proprietários e aos comproprietários de coisa imóveis. Assim é que a neste preceito impõe restrições de uso e disposição que resultem contrárias ao fim do direito e “[estas] restrições de origem negocial fazem parte integrante do estatuto do condomínio, o que equivale a dizer que têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes, prevalecendo sobre qualquer negócio obrigacional que com ele se não harmonize. Trata-se de um dos poucos casos em que os particulares, através de negócios de conteúdo normativo, podem modelar o regime dos direitos reais (cfr. artigo 1306.º, n. 1), o qual, nesta medida, deixa de ser um regime típico.” [[4]]
Sendo o direito de propriedade horizontal um direito composto e complexo e co-envolvendo na sua teia de relações jurídicas distintas e, por vezes, direitos contrapostos, não admira que o legislador tenha erigido e definido como elemento matricial, fundante e modelador da relação jurídica e o estatuto em que projectam os direitos enfrascados na propriedade horizontal, o respectivo título constitutivo. [[5]]
O artigo 1414º do C. Civil estabelece e parametriza o princípio geral da propriedade horizontal, consignando os factores constitutivos e agregadores da figura jurídica (real), nos seguintes termos “As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”, especificando o artigo 1420º, do mesmo diploma legal, os direitos individuais e exclusivos sobre cada fracção e de compropriedade sobre as partes comuns do edifício, pela forma seguinte: “1. Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. 2. O conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio do condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição.”.
A constituição da propriedade horizontal tanto pode ocorrer por negócio inter vivos como mortis causa, sendo que, no primeiro caso, poderá resultar de partilha extrajudicial. [[6]] Esta parece ser a situação que resulta dos autos – cfr. resposta aos enunciados fácticos indicados de 1) a 3). O bem foi adquirido, em partilha, pelos sujeitos indicados no enunciado fáctico sob o n.º 1) e posteriormente transformado em propriedade horizontal – cfr. enunciado fáctico sob o n.º 2). Os autores adquiriram o imóvel, por escritura pública,
O momento constitutivo do direito ocorre com a declaração negocial do proprietário individual ou em comunhão de propriedade de que pretendem que um determinado imóvel passe a estar constituído em regime de propriedade horizontal. A eficácia deste acto negocial só se despoleta a partir do momento em que o prédio passa a ser detido por uma pluralidade de condóminos, sem que, no entanto, o acto deixe de produzir os seus efeitos, dado que a partir do momento da constituição “[o] edifício fica juridicamente dividido, mesmo em relação ao proprietário, em várias fracções autónomas, com individualidade jurídica própria. O proprietário deixa de ter um direito único sobre todo o edifício e passa a ter tantos quantas as fracções autónomas. O título constitutivo é, assim, um acto de divisão de imóvel.” Desta situação derivam efeitos jurídicos específicos, para o proprietário, caso pretenda constituir garantias reais sobre o prédio - caso em que poderá onerar apenas uma ou alguma das fracções - ou á constituição de relações de usufruto ou de servidão, caso em que só poderá uma ou algumas das fracções. [[7]]
A eficácia imediata do titulo constitutivo “[é], fundamentalmente, um acto gerador de autonomização jurídica das fracções do edifício que preenchem os requisitos indicados no artigo 1415.º e poderá também - acrescente-se agora - um acto modelador do estatuto da projectada propriedade horizontal, sempre que nele se estabeleçam regras que completem o regime legal ou dele se afastem (na medida em que a lei o permita). Estas regras, embora resultantes de uma declaração negocial, adquirem força normativa ou reguladora, vinculando, desde que registadas, os futuros adquirentes das fracções, independentemente do seu assentimento.” [[8]]
Desta situação jurídica decorre, de forma irrefragável, que as partes comuns definidas no titulo constitutivo como tal, se devem manter inalteradas ou pelo menos sem possibilidade de modificação, por acção individual, própria e autónoma dos proprietários das unidades exclusivas ou fracções, até que, por acordo de todos os condóminos – cfr. n.º 1 do artigo 1419.º do Código Civil. [[9]]
O título constitutivo constitui-se, assim, como um acto negocial complexo ou composto em que, para além da definição dos termos específicos e próprios da constituição da propriedade horizontal, os declarantes pretenderam deixar constituído um ónus sobre a propriedade horizontal que acabavam de declarar deixar constituída, a saber uma servidão de passagem.
A modificação do título, por eventual desnecessidade ou não uso da servidão de passagem, nunca poderia ocorrer por decisão judicial, pela singela razão que, sem acordo de todos os condóminos ou não estando todos representados numa acção a propor para o efeito, não vingaria uma acção negatória de servidão de passagem, existente sobre uma parte comum, por ausência de um pressuposto processual da acção, a saber a legitimidade (activa). E, por reversão de raciocínio, ad absurdum, estando todos os condóminos de acordo, a acção seria redundante e desnecessária, pois bastaria operar a modificação por uma das formas indicadas no n.º 1 do artigo 1419.º do Código Civil – escritura pública. Daí que, como prescreve a lei, a modificação da escritura apenas possa ser efectuada por acordo de todos os condóminos.
Do que vem dito decorre, desde logo, uma consequência que deveria ter obstado ao conhecimento do pedido de extinção da servidão de passagem, desnecessidade, por parte dos 2.º e 3.º réus, qual fosse a falta de um pressuposto processual para a acção, a saber a legitimidade activa.
É que, os autores estão na acção desacompanhados do outro condómino e não provam que sejam os administradores do condomínio, com poderes especiais para exercer o direito destinado a discutir a posse ou um direito real relativo – neste caso a servidão de passagem – que onera uma parte comum do condomínio – cfr. 1437.º, n.º 3 do Código Civil. Preceitua este artigo que se exceptuam das situações em que a lei atribui legitimidade ao administrador “[as] questões de propriedade ou posse doas bens comuns, salvo se a assembleia atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador.”
Vale por dizer que nas questões em que se debatam questões de propriedade ou posse dos bens comuns, a legitimidade, tanto activa com passiva, deve ser assegurada por todos os condóminos, a menos que a assembleia atribua poderes especiais ao administrador.
No caso que vem a litigio, os autores pretendem que seja declarada extinta uma servidão de passagem constituída por acto negocial (na própria escritura de constituição de propriedade horizontal), por desnecessidade. Por um lado porque os primeiros réus, condóminos não utilizam a passagem e por outro porque “[Desde] logo, porque, inicialmente, os segundos e terceiros recorridos acediam à via pública, quer pelos seus próprios terrenos, quer por passagem pelo lote descampado (que haveria de pertencer aos recorrentes). Esta passagem era, assim, utilizada por mero comodismo daqueles. Depois, foi edificada a habitação (que pertence, actualmente, aos ora recorrentes) e os recorridos apenas a pretenderam manter abusivamente, porque sempre serena, objectiva e subjectivamente, desnecessária, inútil e ilegal.
Mais, o prédio dos ora recorrentes foi adquirido livre de quaisquer ónus ou encargos [conforme Escritura Pública (doc. 3, junto à p.i.)] e nunca constou na respectiva descrição Predial, qualquer averbamento de ónus ou encargo de passagem, relativamente ao prédio dos ora recorrentes – cfr. doc. 1, junto à p.i. e factos 1), 2), 4) e 6) da matéria assente.
Assim, ficou afastada a existência de alguma servidão (cfr. Acórdão do S.T.J., de 19 de Julho de 1979, no BMJ, 289.º, págs. 326 e segs.) consubstanciando, a passagem, um parcelamento – restrição ilegal e nula da propriedade dos ora recorrentes – art. 1306.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Nesta esteira, a previsão – no titulo constitutivo da propriedade horizontal – dos “dois corredores, um na parte lateral norte e outro no tardoz, lado poente, os quais dão também de servidão de passagem a pessoas para os anexos contíguos a poente” também não surtiu quaisquer efeitos, sequer em beneficio dos segundos e terceiros recorridos, alheios ao condomínio. Era manifestamente injustificada e ilegal.
In casu, os corredores não servem de passagem comum a dois ou mais condóminos e estão afectos ao uso exclusivo dos ora recorrentes. Aliás, a primeira recorrida carecia de interesse na passagem (designadamente, pelo facto constante no ponto 15. da matéria assente) e legitimidade na presente demanda, até porque desde 2006 deixou de ser condómina, conforme certidão permanente do registo predial online, com o código de acesso PP-0469-86820-1º 140 1-00 1519, que se junta como doc. 1.”
O exercício do direito (negatório ou de sentido negativo) que pretendem exercitar, porque atina com um direito real, só poderá ser exercitado por todos os condóminos ou pelo administrador munido de poderes especiais para o efeito. [[10]]
Concedendo que os autores possuíam legitimidade para o pedido de declaração de nulidade de uma cláusula contida no título constitutivo, desacompanhados do outro condómino, por este ter intervindo na escritura e, por isso, ter interesse em contradizer, já não se concede que para o pedido que formula neste recurso - com a restrição/limitação que faz do recurso - conserve essa legitimidade.
A verificação dos pressupostos processuais, neste caso da excepção dilatória de ilegitimidade activa, é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida em qualquer momento do processo.
Porque assim declaram-se os autores partes ilegítimas, para o pedido que formulam de extinção de servidão de passagem constituída no título constitutivo de propriedade horizontal.
II.B.2 – Violação dos direitos de personalidade (privacidade e reserva da vida familiar); Abuso de Direito.
Ainda que reputemos duvidoso que, falecendo legitimidade aos recorrentes para pedirem a extinção da servidão de passagem a possuam para pedirem indemnização por violação dos direitos absolutos de personalidade que reputam lesados, na raiz do direito que estão impedidos de exercitar, ou seja por não lhes ser reconhecido um pressuposto (ainda que formal) da providência jurisdicional pedida, não deixaremos, ad cautelam, de apreciar estes fundamentos do recurso.
Estimam os autores que os réus lesam e violam o seu direito de “propriedade” “[pelo] que, também os direitos de personalidade dos recorridos protegidos pelos arts. 70.º e 80.º do Código Civil e artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, foram desrespeitados.
Assim, o douto Acórdão, na parte sub judicie, não atendeu aos Princípios e normas, indicados, consequentemente, deve ser revogado e alterado por outro que declare a passagem extinta, bem como, condene os recorridos, presentes e/ou futuros inquilinos destes, de se absterem de praticar quaisquer actos que violem os direitos de personalidade e impeçam ou diminuam o pleno exercício do direito de propriedade, dos recorrentes, assim como, ordenado o encerramento e tapamento das portas dos anexos, situados nos respectivos prédios, com as demais consequências legais.
Sem prescindir e sempre com o devido respeito por melhor opinião, no Douto Acórdão também não se verificou a correcta aplicação do art. 483.º, do Código Civil, porquanto, a conduta ilícita e abusiva dos recorridos, causou directa e necessariamente danos aos recorrentes devidamente invocados, pelo que, deviam ser condenados a pagar uma indemnização, a fixar em liquidação de Sentença (art. 569.º do Cód. Civil)
Consideram as recorrentes que a sua intimidade e privacidade familiar são constantemente devassadas, dado que quem quiser passa pelo corredor invadindo a sua propriedade – cfr. fls. 548 - agindo em desvio de um direito, “[por] existir manifesta desproporcionalidade entre a vantagem ilegitimamente auferida pelos segundos e terceiros recorridos e o sacrifício imposto aos ora recorrentes.”
A dimensão jurídica em que os recorrentes colocam a questão – aliás de forma um pouco atribulada e desconectada – permitem a análise, como, aliás, parece decorrer do enquadramento conferido a esta problemática, seja equacionada conjuntamente com a aventada questão do abuso do direito. Parece decorrer, itera-se, das alegações – cfr. fls. 547 a 551 - que os recorrentes fazem decorrer do abuso do direito imputado aos recorridos, a obrigação de indemnizar, à raiz dos artigos 334.º e 483.º do Código Civil e 456.º, 457.º do Código Civil.
Incoando por balizar o principio da boa fé, dir-se-á, que nas relações estabelecidas entre os sujeitos jurídicos rege como vector invadeável aquele de que, tanto na formação, como na sua execução dos contratos ou nas demais relações jurídicas relevantes para a ordem jurídica, o lastro sedimentador de um agir e proceder ajustado ao direito se deve pautar pelos valores da correcção, da confiança e da transparência. No dizer da sentença do tribunal da cassação de 18 de setembro de 2009 “como critérios de reciprocidade, finalizados, substancialmente, em manter uma relação jurídica num binário do equilíbrio e da proporcionalidade”. “Na aplicação prática a cláusula geral de correcção e boa fé fornecem critérios de orientação teleológico de conduta nas relações de direito privado, consignando ao intérprete a ideia de obrigação e realizando nesta perspectiva, o que soe chamar-se “fecho”do sistema legislativo”. [[11]]
Ideia e critério fundante da teoria dos contratos e das relações jurídicas estabelecidas entre os sujeitos jurídicos duma comunidade, a cláusula geral de boa fé permanece ínsita em todas as áreas do direito em que os sujeitos jurídicos devam assumir obrigações e direitos de reciprocidade e de comutatividade. Os comportamentos assumidos nas relações que se estabelecem devem pautar-se por regras de ética e de empenho pessoal no cumprimento dos deveres assumidos de modo a que se torne previsível um são e salutar desenvolvimento do relacionamento contratual estabelecido.
A dessunção das regras de comportamento de correcção relacional só são passíveis de apreciação no que é designado “direito vivente”, no sentido de que é a neste que se verte e exprime a conduta dos agentes sociais e é deste que se induz o particular-concreto para aferição dos parâmetros gerais estabelecidos como regras orientadoras do direito. [[12]]
Daí que o Juiz, ainda que, “não invente direito novo, mas descobre ou revela direitos e deveres através de um proceder que se pode exemplificar tendo em conta algumas premissas de método”. “Entre estas premissas, os princípios gerais (sobretudo se dotados de cobertura constitucional) desenvolvem uma função fundamental de “directiva” para o Juiz na sua actividade de correcta “concretização” da indeterminação própria do dever geral de boa fé”. [[13]]
Corolário da cláusula geral ou princípio de boa fé é o exercício dos respectivos direitos ao eito de escopos éticos e sociais “pelo qual o próprio direito vem reconhecido e concedido pelo ordenamento jurídico positivo, o uso anormal do direito pode conduzir o comportamento do particular (no caso concreto) fora da esfera do direito subjectivo, tornando-o, por conseguinte, ilícito, segundo as normas gerais do direito material” [[14]]
“A esta nova luz, o abuso do direito é concebido - na teorização feita pela mais recente jurisprudência da Corte Suprema - como uma alteração juridicamente relevante do factor causal no exercício de um direito. O abuso do direito longe de pressupor uma violação no sentido formal delineia, pois, uma utilização alterada do esquema formal do direito, finalizada pelo conseguimento de objectivos ulteriores e diversos aos que estavam indicados pelo legislador”. [[15]]
Na estatuição do artigo 334.º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A ordem jurídica não protege de forma indelegável e absoluta um direito subjectivo e o interesse que lhe vai adstrito, no plano de um interesse positivo e funcionalmente tutelado. No desenvolvimento da equação ou tensão entre existência e alcance de interesse e reconhecimento e exercício do direito subjectivo “a ordem jurídica não aceita uma funcionalização geral do reconhecimento da titularidade (ou só do exercício) do direito subjectivo à existência de um interesse digno de protecção legal, objectivamente apreciado, e que tenha de justificar o exercício do direito nas circunstâncias em causa. Antes o direito subjectivo (distinto, pois, por esta nota, dos poderes-deveres ou poderes funcionais) comporta um poder não estritamente funcionalizado, ainda que não necessariamente arbitrário – o que é diverso da imposição de qualquer dever ou ónus de fundamentação teleológica, mesmo apenas em termos de “razoabilidade”. A regra, no direito privado (e correspondentemente com o sentido do modelo jurídico-privado de ordenação e afectação de recursos, terá, aliás, de ser sempre a de que, pelo menos no domínio do direito subjectivo, a definição e interpretação dos interesses para que se exerce o direito subjectivo apenas cabe ao seu titular, podendo, até, incluir, como via para sua satisfação, o próprio não exercício ou a destruição do respectivo objecto (salvo no caso de direitos indisponíveis). E em termos tais que o “substrato teleológico” do exercício da posição apenas relevará quando, além do prejuízo causado a terceiros, for radicalmente dissonante, ou contrário, em relação ao que pode justificar o reconhecimento do direito subjectivo e a colocação ao seu serviço do aparelho sancionatório estadual – em termos, portanto, de a movimentação deste aparelho se revelar inexigível in casu”. [[16]]
Na acepção de Orlando de Carvalho, versado pelo Autor citado, “O abuso de direito existe quando há um exercício do direito fora do âmbito do exercício do poder de autodeterminação que é próprio fundamento do reconhecimento de direitos subjectivos, propondo, como critério para o apurar a falta de interesse no exercício do direito a apreciar em abstracto ou concreto, e a transcendência do prejuízo em relação ao agente. Esta concepção implica, pois, uma distinção em relação à boa fé entendida enquanto norma de conduta: enquanto nesta está em causa uma regulamentação da conduta dos particulares, um problema de actuação contra legem, no abuso de direito o que é relevante não é a violação do direito objectivo, e sim a falta de interesse conjugada com a “transcendência do prejuízo”.” [[17]]
O abuso de direito enquanto forma desviada e jurídico-socialmente reprovável de um direito subjectivo constitui-se como paralisador do exercício do direito na medida em que o interesse (positivo) prosseguido pelo respectivo titular se coloca numa posição de defraudação da expectativa jurídica expressa na estabilização jurídico-material da normação adrede. Vale por dizer que a ordem jurídica ao estabelecer consagrar as regras de accionamento e exercício dos direitos conleva um feixe de interesses que na sua tensão e conflitualidade podem obnubilar o interesse positivo associado ao direito subjectivo desde que o prejuízo que desse exercício advenha sobreleve na sua extensão e alcance.
“Como consequência de um eventual abuso do direito, o ordenamento põe uma regra geral, no sentido de recusar a tutela aos poderes, direitos e interesses exercitados em violação das correctas regras do exercício, posto serem mediante comportamentos contrários à boa fé. Nesta forma de “mancanza di tutela” está a finalidade de impedir que possam ser conseguidos ou conservadas vantagens - e direitos conexos - através de actos em si estruturalmente idóneos, mas exercitados de modo a alterar-lhe a função, “violando la normativa di correttezza”. [[18]]
Os recorridos utilizam a servidão no uso de um direito que lhes está conferido, e reconhecido, em título constitutivo de um direito de propriedade horizontal a que eles são alheios. O direito exercitado flui, neste caso, de uma destinação exterior mas que se inere na sua esfera de direitos exercitáveis.
Não decorre da matéria de facto provada que os réus exerçam o direito de servidão de passagem consignado no título de constituição de propriedade horizontal em contravenção com o normal e corrente exercício do direito de que são titulares. Nem está alegado que fazem um uso excessivo, desproporcionado, insano ou desadequado da servidão a que têm direito. Não podem servir de fundamento a uma situação abusiva o facto de no uso e fruição de um direito legitimo e lícito poder causar incómodos ou desprazeres na esfera jurídica e pessoal de um outro sujeito – no caso o sujeito obrigado a suportar o exercício do direito – porquanto o exercício de direitos, quando concorrentes ou refractados, comporta, de um modo geral, uma compressão, fricção e/ou limitação dos direitos de cada um dos sujeitos envolvidos no amplexo de direitos criados, propiciando recíprocas cedências que possibilitem a compatibilização dos direitos e interesses em jogo. Esta mútua e recíproca convivência de direitos sobrepostos e sobreponíveis não se pode erigir em fundamento de abuso de direito na medida em que as relações sociais se constroem e mantêm numa permanente busca de pontos de equilíbrio e de harmonização de interesses contrapostos, havendo, outrossim, que na consecução de uma convivência socialmente aceitável procurar observar e respeitar os direitos que a cada um a ordem jurídica confere.
Não se verificam os pressupostos subsumíveis à figura do abuso de direito.
Não ocorrendo abuso de direito não se descortina uma situação de lesividade ou ofensividade de direitos absolutos de personalidade, consubstanciados neste caso, na reserva da intimidade da vida privada ou na proibição da devassa da intimidade pessoal.
Como se deixou dito supra a pretensa ofensa aos preditos direitos fundamentais radicava no uso de um direito – de servidão de passagem – por uma parte comum do prédio de que os autores são condóminos. A fruição de um direito não pode assoalhar uma obrigação e indemnizar com base na responsabilidade extracontratual pela singela razão que falece um dos pressupostos axiais em que assenta este instituto, a saber a ilicitude da conduta e a culpa do agente lesante. Sem que se mostrem preenchidos estes dois requisitos, ilicitude e culpa, e não se antolha como possa o exercício legítimo e licito de um direito, gerar uma situação de responsabilização geradora da obrigação de indemnizar.
Os recorrentes escoraram o seu pedido na violação ou lesão de um direito de outrem – cfr. artigo 483.º do Código Civil -, nomeadamente na violação do direito de propriedade e dos direitos de personalidade. Como pensamos ter demonstrado supra, os réus exercem um direito legitimo e reconhecido por um título de propriedade, pelo que não será possível imputar-lhe uma conduta lesiva dos direitos de outrem que sustente o pedido de indemnização com base na responsabilidade civil extracontratual.
Falece, também, este pedido dos recorrentes.
III. – DECISÃO.
Na defluência do que foi exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:
- Considerar os autores partes ilegítimas para a formulação do pedido de extinção de servidão, por desnecessidade, por desacompanhados do outro condómino, absolvendo os réus da instância;
- Negar a revista quanto ao demais peticionado;
- Condenar os recorrentes nas custas.
Lisboa, 15 de Novembro de 2011
Gabriel Catarino (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
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[1] Cfr. Oliveira Ascensão, José, in “Direitos Reais”, Almedina, Coimbra, 1978, pág. 498.
[2] Cfr. Henriques Mesquita, António, in op. loc. cit. pág. 142 e 146 e 147.
[3] Embora a lei tipifique este direito como propriedade horizontal nada impede que seccionamento possa verificar-se em linha vertical, mister é que existam partes comuns; “se esse seccionamento se faz mas cada uma das partes obtidas tem absoluta autonomia, sem existência de partes comuns, então não há propriedade horizontal”. Mota Pinto, “Direitos Reais”, págs. 272 e segs. Posição, algo diversa parece defender António Henriques Mesquita, no artigo “A Propriedade Horizontal no Código civil Português”, Revista de Direito e Estudos Sociaisi, XXIII, 1976, pág. 84, quando escreve, “[importa] observar, no entanto, que se um edifício for dividido verticalmente (por exemplo entre dois ou mais comproprietários), em várias fracções ou corpos autónomos, nem sempre deverá aplicar-se o regime dos artigos 1414.º e segs.. É que, conforme referimos já, o instituto da propriedade horizontal assenta no pressuposto de que cada uma das fracções resultantes da divisão não tem autonomia estrutural e só adquire autonomia funcional através da utilização de partes do edifício que necessariamente hão-de estar afectadas também ao serviço de outras fracções. Ora pela divisão através de planos verticais ou perpendiculares pode conferir às várias fracções plena autonomia sob qualquer dos pontos de vista. Quando assim aconteça, deixa de haver motivo para aplicar o regime da propriedade horizontal (maxime o preceito do art. 1428.º). Cada fracção deverá passar constituir objecto de um direito de propriedade normal.”
Cfr. ainda a este propósito o que foi escrito no recente acórdão, de 20-10-2011, tirado nesta secção de que foi relator o Conselheiro Martins de Sousa e que subscrevemos com adjunto. “Trata-se de uma figura jurídica nova, de um direito real novo que, embora moldado sobre os direitos reais à custa dos quais se formou, é mais do que a sua justaposição, reunindo uma teia de relações num complexo incindível de propriedade singular que recai sobre uma parte determinada de um prédio urbano e de compropriedade sobre outras partes dele, essenciais tanto à sua estrutura como à sua utilização funcional, quer dizer, ao exercício do domínio pleno sobre ele (cfr Oliveira Ascensão, A Tipicidade dos Direitos Reais, 1965, 195, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2009, 335, Manuel H. Mesquita, A Propriedade horizontal…., Separata da RDES, 53.
Como escreveu este último autor: “o que há de específico no direito de propriedade sobre as fracções autónomas é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal do domínio mas que a lei estabelece ou permite em virtude de o objecto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras fracções pertencentes a proprietários diversos” (idem, 71).
[4] Cfr. Henriques Mesquita, António, in op. loc. cit. pág. 121 a 123.
[5] “Se o estatuto da propriedade horizontal se traduzisse na justaposição ou cumulação pura e simples, sem alterações, do regime de outros direitos reais admitidos por lei, os particulares poderiam criar livremente figuras desta índole, sem violarem o principio do numerus clausus. Mas precisamente porque há um direito novo, embora moldado a partir de figuras preexistentes, situações como a da propriedade horizontal devem considerar-se subordinadas àquele principio limitativo da autonomia privada. Só podendo constituir-se nos precisos termos em que a lei as admita.
(…) o que há de específico no direito de propriedade sobre as fracções autónomas, em confronto com o regime geral do domínio, é apenas o facto de sobre tal direito impenderem restrições que não derivam do regime normal da propriedade, mas que a lei prevê em virtude de o objecto do direito de cada condómino se integrar num edifício de estrutura unitária, onde existem outras fracções pertencentes a proprietários diversos. Esta situação de facto cria entre os condóminos uma especial interdependência e origina conflitos de interesses para os quais se não encontraria solução adequada com o simples recurso às normas gerais do direito de propriedade” – Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 397
[6] Cfr. Henriques Mesquita, António, in op. loc. cit., pág. 91.
[7] Cfr. Henriques Mesquita, António, in op. loc. cit. pág. 97-98.
[8] Cfr. Henriques Mesquita, António, in op. loc. cit. pág. 100.
[9] Neste sentido o douto acórdão de 03-10-2006, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, “A modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efectuada de acordo com o preceituado no art. 1419.º, n.º 1, do CC, e nunca através de decisão judicial.” Cfr. ainda Cfr. Henriques Mesquita, António, in op. loc. cit. pág. 128 a 141 (quanto ao fim e utilização das partes comuns e ainda quanto à sua gestão e administração).
[10] Cfr. Ac. do STJ, de 05-05-2007 “I – A falta de deliberação da assembleia de condóminos que legitime o administrador para propor uma acção radica numa excepção dilatória (art. 494.º, al. d), do CPC), de conhecimento oficioso (art. 495.º do CPC). II – A declaração genérica feita no saneador sobre as excepções dilatórias não faz caso julgado formal (art. 510.º, n.º 3, do CPC).
[11] Extraída de “La Buona Fede e L’ Abuso del Diritto. Principii, fattispecie e cauistica”, de Gianluca Falco, Giuffrè Editore, Milano, 2010, pág. 4 e 6.
[12] Cfr. Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 20 (Cassação de 13 de abril de 1999, in Foro It., 1999, 12,I,3558)
[13] Vetorri, in “Il diritto dei contratti fra Constituzione, códice civile e códice di settore”, in Riv. Trim. Dir, proc. civ., 2008,3, 751, citado em Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 21 e 22. “Questa operazione vaIutativa compiuta daI giudice di merito nell’ applicare clausole generali non sfugge ad una verifica in sede di giudizio di legittimità, Sotto iI profilo della correttezza dei metodo seguito nell’ applicazione della clausola generale, proprio perché l’ operatività, in concreto di norme di tale tipo deve rispettare criteri e principii desumibili dall’ordinamento general (a cominciare dai principi costituzionali) e dalla disciplina particolare in cui la concreta fattispecie si colloca.
Lo stesso giudice di legittimità, (cui spetta, quindi, iI giudizio sulle opzioni di valori dei giudice dii merito), e, d’altra parte, anche giudice della logjcità delle decisioni” dello stesso (art. 360 n. 5 c.p.c.), in quanto anche ancorata a standards che possono definirsi sociali: per esser la stessa società iI punto di riferimento paramétrico dei processo lógico; ne consegue che iI controllo esercitato dalla Suprema corte, ai sensi dell’art. 360, n. 3, c.p.c., comprenderà non solo l’erronea interpretazione, e dunque iI fraintendimento, del significato del concetto indeterminato o elástico, ma anche l’ errónea applicazione dello stesso com riferimento ai caso di specie e, dunque, l’erronea. sussunzione della fatlispecie materiale concreta nella fattlspecie legale astratta delineata dal legislatore com l’utilizzazione di quel concetto.”
[14] Gianluca Falco, in op. loc. cit. pág. 23. “Qggi, l’abuso deI diritto viene, dunque, individuate nel comportamento di un soggetto che esercita i diritti che gli derivano dana legge o dal contratto per realizzare uno scopo diverso da qüello cui questi diritti sono preordinati: la figura concerne, cioè, le ipotesi nelle quali un comportamento, che formalente integra gli estremi dell’ esercizio del diritto soggettivo, deve ritenersi illecito sulla base di alcuni criteri di valutazione.”
[15] Cianluca Falco, in op. loc. cit. pág. 381. Na sentença (cassação) de 18 de setembro de 2009, definiram-se os elementos constitutivos do abuso de direito pela forma seguinte:”1) a titularidade de um direito atribuída a um sujeito;2) a possibilidade que o concreto exercício do referido direito possa ser efectuado segundo uma pluralidade de modalidade não rigidamente predeterminada; 3) a circunstância que tal exercício concreto, ainda que se formalmente respeitador da moldura atributiva do referido direito, seja desenvolvido segundo uma modalidade censurável com respeito a um critério de valoração jurídico ou extra jurídico; 4) a circunstância que, devido a uma tal modalidade de exercício, se verifique uma desproporção injustificada entre o beneficio do titular do direito e o sacrifício daquele que è constrito à contraparte”.
[16] Mota Pinto, Paulo, in “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, Vol., Coimbra Editora, 2008, pag. 485.
[17] Op. loc. cit. pag. 485 que cita Orlando de Carvalho in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1981, págs. 45.
[18]Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 387.