CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONTRAFACÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
OBJECTO IMPOSSÍVEL
VEÍCULO APREENDIDO
BOA FÉ
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
RESTITUIÇÃO DE BENS
Sumário

I - A compra e venda de veículo com quadro do motor e chassis viciados por contrafação dos elementos originais é uma compra e venda nula por impossibilidade legal do objeto (arts. 874.º e 280.º do CC).

II - O comprador de boa fé, a quem foi apreendido pelas autoridades policiais o veículo que lhe foi entregue na sequência do aludido contrato de compra e venda, não tem de restituir ao vendedor o valor correspondente, não obstante a impossibilidade da restituição em espécie (art. 289.º, n.ºs 1 e 3, e 1269.º do CC).

III - Ainda que o veículo volte à posse do comprador, ao abrigo de decisão judicial proferida no âmbito de sentença penal que permite a restituição do veículo na condição de legalização no prazo de um ano sob pena de perdimento a favor do Estado (arts. 110.º, n.º 3, do CP e 186.º, n.º 4, do CPP), no que toca ao alienante, a restituição do veículo pelo adquirente, a ocorrer a referida legalização, não decorrerá já do dever de restituição a que se refere o art. 289.º, n.º 1, do CC.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e BB demandaram no dia 3-4-2000 DD e mulher e EE e mulher pedindo a sua condenação no pagamento de 4.180.428$00 com juros sobre 2.489.760$00 em dívida à FF e calculados pela taxa aplicada por esta desde junho de 1999 até efetivo pagamento.

2. Os réus venderam ao autor um veículo que se encontrava viciado nos seus elementos identificadores de chassis e motor.

3. Consideram os autores que, por tal razão, a venda é nula - por se tratar de venda de bens alheios carecendo o vendedor de legitimidade para a realizar (artigo 892.º do Código Civil) - impondo-se a restituição integral do preço e a indemnização correspondente aos danos emergentes (artigo 899.º do Código Civil).

4. O valor reclamado corresponde ao somatório da quantia suportada pelos autores para pagamento do preço do veículo (3.680.428$00, valor financiado pela FF) e o montante dos prejuízos sofridos (500.000$00).

5. Foi requerida a intervenção principal provocada de GG, que vendeu o referido veículo aos réus e que alegou, tal como estes, que desconhecia que o veículo fosse furtado ou tivesse quaisquer outros problemas.

6. Este GG tinha adquirido por sua vez o veículo a HH que, embora citado para intervir, não deduziu oposição.

7. A ação foi julgada parcialmente procedente, condenando-se os réus nos termos a seguir indicados e absolvendo-se os chamados, considerando a decisão proferida que o contrato de compra e venda celebrado entre autor e réus é efetivamente um contrato nulo, não por falta de legitimidade do vendedor (artigo 892.º do Código Civil), mas por impossibilidade legal do objeto (artigo 280.º do Código Civil) pois a lei não pode consentir que um veículo viciado seja, enquanto tal, objeto de contratos de direito privado.

8. Daqui decorre que os autores têm direito à restituição do preço pago (2950.000$00 a ser deduzido de 532.532$00, quantia esta que os autores pagaram à financiadora que, no âmbito de um acordo entre autor e réu este pagou à mutuante), ou seja, 2.489.760$00/12.418,87€ acrescido de juros de mora desde a citação (à taxa de 7% ao ano desde 24-5-2000 até 30-4-2003 e de 4% a partir de 1-5-2003 até integral e efetivo pagamento), não havendo lugar ao pagamento de indemnização porque a declaração de nulidade apenas obriga à restituição do que foi prestado; considerou ainda a sentença que os AA não estão constituídos na obrigação de restituição do veículo visto que houve apreensão judicial deste por constituir produto do crime.

9. Desta decisão foi interposto recurso pelos réus, negando o Tribunal da Relação provimento à apelação.

10. Recorrem os réus, de revista, para o Supremo Tribunal, sustentando que o acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que acolha a tese dos recorrentes com a consequente condenação dos chamados GG e HH e a devolução do veículo no estado em que se encontrava quando foi entregue aos AA.

11. Entendem os réus que nenhuma responsabilidade tiveram na falsificação do veículo, devendo considerar-se a nulidade das vendas precedentes e daí impor-se a condenação dos chamados no pagamento das quantias pagas pelos recorrentes ao GG pela aquisição da viatura.

12. Por outro lado, o Tribunal deveria ter determinado que a viatura fosse restituída aos recorrentes pois ela foi mandada restituir aos AA no âmbito de processo -crime (artigo 289.º do Código Civil).

13. Finalmente consideram que devia ter sido tomada em consideração a ilegitimidade superveniente dos autores face ao depoimento de testemunha em julgamento que declarou ter adquirido o veículo aos AA logo após a venda efetuada pelos réus, incorrendo, assim, o acórdão em nulidade por omissão de pronúncia ( artigo 668.º/1, alínea d) do C.P.C.)

14. Factos provados:

1. Em 24 de fevereiro de 1994, GG acordou com HH comprar-lhe o veículo de marca V... G..., matrícula ...-...-ES, mediante o pagamento de 3.900.000$00 (alínea A dos factos assentes).

2. Por força do referido acordo, HH entregou o veículo a GG (alínea B).

3. Em 17 de maio de 1995, foi registada em nome de GG a titularidade do direito de propriedade do veículo (al. C).

4. Os 1º e 2º RR acordaram com o GG comprar-lhe o veículo supra referido mediante o pagamento de 2.000.000$00 (al. D).

5. Por força do referido acordo, GG entregou o veículo aos RR (al. E).

6. Os AA acordaram com o 1ª Réu comprar-lhe pelo preço de 2.950.000$00 o veículo supra referido (al. F).

7. Os AA receberam o documento intitulado “Declaração de venda” (doc. nº3 junto com a petição inicial), (al. G).

8. Os AA não se opuseram ao facto de o documento supra referido vir assinado pelo 2º R (al. H).

9. Para pagamento do montante referido em 6, em 24-07-98 os AA contrataram um empréstimo na FF no valor de 1.850.000$00 (al. I).

10. Os AA gastaram 41.250$00 por causa da celebração do acordo referido em 9 (al. J).

11. Nos termos do acordo referido em 9), os AA obrigaram-se ao pagamento de 48 prestações mensais de 65.520$00 num total de 3.144.960$00 (al. K).

12. O veículo supra referido foi objeto de medida cautelar de apreensão em 01-06-99 (al. L).

13. Após o facto referido no número anterior, os 1º e 2º RR disseram aos AA que passariam eles a pagar as prestações que se vencessem futuramente (al. M).

14. Os 1º e 2º RR entregaram à FF, para pagamento dos montantes referidos em 11), a quantia de 532.532$00 (al. N).

15. O veículo de marca VW, modelo G... GTD, com a matrícula ...-...-ES, foi vendido aos AA com os elementos identificadores do quadro do motor, bem como o número do chassis inscrito na carroçaria, viciados, por contrafação dos elementos originais (art. 2º da base instrutória).

16. Por carta de 19-01-2000, a FF interpelou o A. AA para pagar a uma prestação em atraso, no valor de 46.338$00, acrescida da quantia de 1.059$000 a título de juros vencidos e despesas (art. 4º da b.i.).

17. Em consequência da apreensão do veículo referida em 12), os AA tiveram de recorrer aos serviços de advogado com o que suportaram despesas em montante não apurado (arts. 6º e 7º da b.i.).

18. Os AA, em consequência da viciação do veículo ...-...-ES, foram incomodados pela Polícia e após a apreensão do veículo deixaram de pagar as prestações à FF a qual, por via disso, moveu contra aqueles uma execução para pagamento das quantias em dívida, que correu termos no 3º Juízo Cível do Porto, que se extinguiu após pagamento da quantia exequenda pelos AA (art. 8º da b.i).

19. Entre a entrega do veículo decorrente do facto referido em 6) e o facto referido em 12), decorreram 10 meses (art. 9º da b.i.).

20. Os AA utilizaram o veículo ...-...-ES nos seis meses posteriores à data da compra do mesmo, efetuada em 27-07-1998 (art. 10º da b.i.).

21. Em consequência dessa utilização, o veículo ...-...-ES sofreu uma desvalorização em montante não apurado (art. 11º da b.i.).

Apreciando:

15. Não se suscita qualquer dúvida quanto à nulidade, por impossibilidade legal do objeto, do contrato de compra e venda de veículo automóvel em que os elementos identificadores do quadro do motor, bem como o número do chassis inscrito na carroçaria, foram viciados, por contrafação dos elementos originais (artigos 280.º e 874.º do Código Civil; ver 15 supra).

16. Dessa nulidade, que tem efeito retroativo referenciado in casu à data da venda, resulta a restituição de tudo o que tiver sido prestado (artigo 289.º/1 do Código Civil).

17. O Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a resposta ao quesito 10º ( ver 20 supra) que os réus pretendiam alterada no sentido de nela se incluir que, decorridos os 10 meses a que se alude em 19 supra, o veículo foi vendido pelos autores a II.

18. Não está nos poderes de cognição do Supremo Tribunal o juízo sobre se determinada matéria de facto deve ou não deve considerar-se provada muito embora já esteja dentro dos seus poderes de cognição pronunciar-se sobre a questão do excesso ou exorbitância da resposta a um quesito no julgamento da matéria de facto por se entender aplicável a essa situação, por analogia, o que resulta do disposto no artigo 646.º/4 do C.P.C. considerando-se não escritas as respostas: ver Ac. do S.T.J. de 15-5-2007- Nuno Cameira - P. 568/2007 e C.J.,2, pág. 71, Ac. do S.T.J. de 27-3-2008 - Pereira da Silva - revista n.º 4149/07 - 2ª secção, Ac. do S.T.J. de 23-9-2008 - Moreira Alves - revista n.º 1913/08 - 1ª secção, Ac. do S.T.J. de 23-10-2008 - Santos Bernardino - revista n.º 2244/08 - 2ª secção).

19. Não incorreu, no entanto, o Tribunal em excesso na resposta, o que sucederia se efetivamente tivesse dado acolhimento à pretensão dos recorrentes.

20. Trata-se, aliás, de matéria não alegada - a da eventual alienação do veículo do A. a um terceiro antes de instaurada a presente ação - e, por isso, tal resposta não poderia ser considerada escrita sob pena de violação do princípio dispositivo (artigo 264.º do C.P.C.) que não pode deixar de ser conjugado, para este efeito, com o disposto no mencionado artigo 646.º/4 do C.P.C.

21. Os RR podiam ter introduzido tal matéria por via de articulados supervenientes (artigo 506.º/1 do C.P.C.) e aí se veria se efetivamente tal realidade implicava, como agora pretendem, extinção superveniente do direito dos AA obterem dos réus vendedores as quantias respeitantes à compra e venda.

22. É que os recorrentes estão a considerar a nulidade da venda por falta de legitimidade do vendedor de bens alheios quando aqui se trata de coisa diversa, como já salientaram as instâncias, a saber, a da nulidade da compra e venda de objeto viciado ou falsificado a declarar com base no artigo 280.º e não com base no artigo 892.º do Código Civil, não relevando, assim, para o caso, a eventual questão de os autores, quando propuseram a ação, não serem já os proprietários do veículo pois o que está em causa é a nulidade, e respetivas consequências, decorrente do contrato de compra e venda que celebraram com os réus.

23. O Tribunal apenas considerou, atentos os factos provados, que a compra e venda celebrada entre A. e réu era nula porque o veículo, quando transacionado, se encontrava viciado no motor e chassis.

24. É desta compra e venda que aqui se trata e não também da nulidade das compras e vendas que a precederam por eventual viciação do motor e chassis do veículo. Tenha-se em atenção que os réus com o chamamento dos dois anteriores vendedores do veículo - o primeiro dos quais foi absolvido de processo-crime - tinham em vista, como expressamente declararam no requerimento para intervenção de terceiros ( fls. 44 dos autos, artigos 19.º e 20.º), a responsabilização civil dos chamados. Ora essa responsabilização traduzir-se-ia no pedido de indemnização correspondente aos prejuízos que advieram para o réu da venda de um veículo cujos elementos de identificação se encontravam viciados suposta a má fé desses vendedores.

25. Quer isto dizer que na presente ação não seria possível a condenação dos chamados contra os quais o réu teria direito de regresso pois a condenação dos chamados apenas se imporia face aos pedidos de condenação deduzidos pelo autor, pedidos que são obviamente alheios à condenação dos prejuízos que advieram para o réu pela compra do veículo contrafaccionado ao primeiro chamado. A admissibilidade do incidente de intervenção principal provocada, quando afinal o que está em causa é a eventual existência de direito de regresso do réu contra o terceiro que lhe vendeu o veículo, não impõe, como é bom de ver, que o Tribunal fosse condenar o chamado no pedido deduzido se do ponto de vista processual a ele efetivamente não havia lugar (artigos 332.º/1 e 341.º do C.P.C.).

26. O Tribunal não ordenou a restituição do veículo aos réus visto que o veículo foi apreendido pelas autoridades policiais. Neste sentido, veja-se o Ac. do S.T.J. de 5-3-1996 (Cardona Ferreira) C.J.,1, pág. 132 e o Ac. da Relação de Évora de 22-1-2004,C.J.,1, pág. 238 (Bernardo Domingos), referindo-se no primeiro o seguinte:

Por princípio, negócio nulo implica a restituição do que foi entregue: artigo 289.º,n.º1 do Código Civil.

E vem de caminho dizer que, no concernente ao veículo, isso não só não foi pedido, como nem seria razoável que se pedisse, apreendido que foi pelas autoridades policiais, a pedido de quem, dele, era dono.

27. No caso vertente, posto que o aqui chamado HH ( os RR compraram o veículo a GG que por sua vez o havia comprado a HH) haja sido absolvido dos crimes de recetação qualificada, burla qualificada e falsificação de documento autêntico (artigos 231.º/1 e 4, 217.º e 218.º/1 e 2 e 256.º/1 e 3 do Código Penal), a sentença penal, transitada em julgado, pronunciou-se, a propósito dos veículos apreendidos no âmbito de processo crime, no sentido de que

os referidos veículos são objeto do crime. Os ofendidos são, porém, de dois tipos:

- os donos dos automóveis que deles se viram desapossados - os seus proprietários

- Os seus compradores - os ‘burlados’

As falsificações (dos veículos e/ou documentos) obstariam à restituição dos mesmos, porquanto se traduziriam na prática de novos ilícitos - artigo 109.º/1 do Código Penal.

Porém, os seus donos são terceiros de ‘boa fé’ pelo que os veículos lhes devem ser restituídos, sob condição da sua legalização (artigo 110.º/3 do C.P.) - no mesmo sentido os Acs do S.T.J. de 06/12/15 e 06/12/21, nos procs 4306/05 e 4047/06.

Duas situações ocorrem:

- A daqueles em que são conhecidos os seus proprietários, devendo naturalmente ser estes os notificados, para procederem ao seu levantamento;

- A doutros em que não sendo os mesmos conhecidos, se deve lançar mão da presunção de propriedade conferida pela posse (artigo 1268.º/1 do Código Civil), devendo pois o possuidor -por regra, o burlado - ser notificado, nos mesmos termos.

Fica pois desta forma e para efeitos de registo, reconhecida a titularidade destes veículos, pelos notificandos ( ver fls. 535 dos autos).

28. Mais se decidiu que “o prazo máximo de regularização e levantamento dos veículos é de 1(um) ano, sob pena de perdimento a favor do Estado (artigo 186.º/4 do C.P.P. fls. 537)”.

29. Ora, diga-se, não está aqui demonstrado que essa legalização já se tenha verificado, continuando assim o veículo em poder do autor e desde logo por tal razão a restituição não poderia agora ser determinada.

30. A restituição do veículo enquanto veículo objeto de falsificação que foi objeto de apreensão judicial não pode ser imposta ao autor, adquirente de boa fé, visto que a restituição em valor, quando a restituição em espécie não é possível, enquanto efeito da declaração de nulidade do negócio jurídico, pressupõe que o desapossamento advenha de atuação culposa, o que não sucedeu com o autor que adquiriu o veículo de boa fé (ver artigo 289.º/1 e 3 em conjugação com o artigo 1269.º do Código Civil).

31. A não ser assim, e aceitando-se que à perda ou deterioração da coisa equivale a apreensão do veículo com eventual perda do veículo contrafaccionado a favor do Estado - então o risco de tal situação iria recair sobre o possuidor de boa fé. Quer isto dizer que não podendo o comprador, possuidor de boa fé, restituir o veículo apreendido, teria de pagar ao vendedor o valor correspondente ao veículo que equivaleria ao preço da compra e venda, o que seria manifestamente injusto.

32. Este entendimento, no sentido da inadmissibilidade nestas circunstâncias da restituição em valor, afigura-se em sintonia com o que é referido, respetivamente, por autores como Menezes Cordeiro ou Heinrich Ewald Horster:

Tanto no caso de anulação como no da declaração de nulidade do negócio, a restituição é integral. Todavia, quanto à perda ou deterioração da coisa a restituir, aos frutos colhidos, aos encargos assumidos e às benfeitorias feitas no tempo entre a conclusão do negócio e a sua invalidação aplicam-se os artigos 1269.º ss (artigo 293.º/3). Estas disposições regulam os efeitos da posse nas relações entre o possuidor e o titular do direito sobre a coisa e atenuam as consequências do princípio da restituição integral para a parte que, ao concluir o negócio, tenha estado de boa fé (Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 2003, pág. 591).

O dever de restituição predisposto no artigo 289.º/1 tem natureza legal. Ele prevalece sobre a obrigação de restituir o enriquecimento, meramente subsidiário. No entanto, já haverá que recorrer às regras do enriquecimento se a mera obrigação de restituir não assegurar que todas as deslocações ou intervenções patrimoniais injustamente processadas, ao abrigo do negócio declarado nulo ou anulado, foram devolvidas.

Não será assim quando, mau grado a invalidação, ocorra uma outra causa de atribuição patrimonial. O próprio artigo 289.º/3 manda aplicar, diretamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes e, portanto: o regime da posse, incluindo as regras sobre a perda ou deterioração da coisa, sobre os frutos, sobre os encargos e sobre as benfeitorias. Caso a caso será necessário indagar a boa ou má fé do obrigado à restituição (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 1999, pág. 582).

33. No caso da nulidade fala-se de retroatividade em sentido impróprio visto que o negócio não chega a produzir efeitos jurídicos ( ver Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2010, 6ª edição, pág. 746) pois o que está em causa é a retroatividade das consequências de facto (v.g. entrega da coisa) derivadas do negócio (ainda Pais de Vasconcelos, loc. cit, pág. 746).

34. Ora no momento em que o comprador recebeu a coisa vendida (artigo 879.º, alínea b) do Código Civil) ele estava de boa fé - ou seja, ignorava que o veículo cuja propriedade lhe fora transmitida se encontrava viciado - e, por conseguinte, referenciadamente a esse momento ( o da entrega) não se impõe a restituição do veículo que foi subsequentemente apreendido.

35. Se o veículo voltou à posse do comprador na sequência de decisão judicial que lhe conferiu a faculdade de o legalizar, desconhecendo-se se tal veio a suceder, afigura-se que a restituição do veículo ao alienante que lhe seja imposta não decorre já do dever de restituição fundado no artigo 289.º/1 do Código Civil, pois não nos parece que tal restituição se possa já efetuar ao abrigo deste preceito.

36. Admite-se que tal restituição possa efetivamente ocorrer face à reivindicação por parte do proprietário do veículo (artigo 1311.º do Código Civil) mas esta é uma questão sobre a qual este Supremo Tribunal não tem de se pronunciar nem sequer de ponderar.

Concluindo:

I- A compra e venda de veículo com quadro do motor e chassis viciados por contrafação dos elementos originais é uma compra e venda nula por impossibilidade legal do objeto ( artigos 874.º e 280.º do Código Civil).

II- O comprador de boa fé a quem foi apreendido pelas autoridades policiais o veículo que lhe foi entregue na sequência do aludido contrato de compra e venda não tem de restituir ao vendedor o valor correspondente não obstante a impossibilidade da restituição em espécie (artigo 289.º/1 e 3 e 1269.º do Código Civil).

III- Ainda que o veículo volte à posse do comprador, ao abrigo de decisão judicial proferida no âmbito de sentença penal que permite a restituição do veículo na condição de legalização no prazo de um ano sob pena de perdimento a favor do Estado ( artigos 110.º/3 do Código Penal e 186.º/4 do Código de Processo Penal), no que toca ao alienante a restituição do veículo pelo adquirente, a ocorrer a referida legalização, não decorrerá já do dever de restituição a que se refere o artigo 289.º/1 do Código Civil.

Decisão: nega-se a revista.

Custas pelo recorrente

Lisboa, 17 de Janeiro de 2012.

Salazar Casanova (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira