HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
MOTIVO FÚTIL
CRIME PASSIONAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ILICITUDE
DOLO
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
Sumário

I - O crime de homicídio qualificado, p. e p. no art. 132.° do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131.° do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determina a realização do tipo, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no n.º 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no n.º 2.
II -Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no n.º 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a qualificação.
III - Assim, como meros indícios, as circunstâncias do n.º 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1. Da interação entre os n.ºs 1 e 2 do art. 132.° pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131.°. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão. Esta interação entre os dois números. do art. 132.°, permitindo uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e reflexamente na administração da justiça do caso, assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.
IV - O arguido foi condenado nos termos da al. e) do n.º 2, por referência ao motivo fútil. Como tal deve ser entendido o motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano, avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Ele assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça. Não será, porém, motivo fútil a ausência (ou o desconhecimento) de motivação do agente. A imputação de motivo fútil ao agente implica o apuramento prévio do motivo, ou seja, sem se conhecer o motivo, não se pode qualificar o mesmo como “fútil”.
V -Revertendo ao caso dos autos, ressalta desde logo a escassez de informação sobre as circunstâncias que antecederam e que rodearam a prática do crime. Sabemos apenas que o arguido se dirigiu a casa de A, sua antiga companheira, e que, enquanto ela estava ocupada a fazer o almoço, retirou uma faca da cozinha, e de seguida entrou no quarto de dormir onde se encontrava a vítima, novo companheiro de A, e que o golpeou com a mesma faca, provocando-lhe a morte. Ignora-se o que aconteceu imediatamente antes do crime, nomeadamente se houve discussão ou luta entre o arguido e a vítima. Ignora-se se o arguido já tinha formulado o projeto de matar a vítima quando entrou no quarto, ou mesmo já quando se dirigiu à casa referida. Ignora-se, sobretudo, qual o motivo concreto do ato do arguido.
VI - Não se sabendo qual o motivo concreto e imediato que desencadeou o facto, não se poderá concluir pela existência de “motivo fútil”. Embora a conduta do arguido revele determinação e alguma frieza na prática do homicídio, tal não é suficiente, desacompanhado de outras circunstâncias, para concluir que ele agiu com “especial” censurabilidade ou perversidade, de modo a integrar o facto no homicídio qualificado.
VII - É certo que há circunstâncias que indiciam a motivação passional do crime. Aliás, essa será a explicação plausível da conduta do arguido. Contudo, daí não se poderá concluir automaticamente pela qualificação do crime. É que a motivação passional não constitui de forma nenhuma um motivo fútil. O estado de paixão (e concretamente o ciúme) envolve necessariamente as energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento, de forma que a “futilidade” do motivo não resulta, submetido à cláusula do n.º 1 do art. 132.°, especialmente censurável ou perverso.
VIII - É óbvio que o motivo passional não poderá nunca ser valorado positivamente, em termos atenuativos, gerais ou especiais, como por vezes se pretende. Mas o mesmo se dirá em termos de qualificação do crime. Para que o homicídio possa ser qualificado como de especial censurabilidade ou perversidade é necessário que haja outras circunstâncias que a revelam, que não a mera intenção de eliminar o “rival”. Conclui-se, pois, que, ainda que entendido o crime praticado pelo arguido como motivado passionalmente, não existem circunstâncias que permitam, no caso, qualificar a motivação como especialmente censurável ou perversa, não podendo assim o arguido ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, antes devendo sê-lo pelo de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131.° do CP.
IX - Há, assim, que fixar a pena dentro da moldura penal desse artigo, que prevê uma pena de prisão entre 8 e 16 anos, ponderando que:
- a ilicitude é muito forte, pois o arguido agiu com impostura, levando a sua ex-companheira, com o pretexto de falar sobre o filho de ambos, a abrir-lhe a porta de casa; foi também dissimuladamente que se apoderou da faca com que iria praticar o crime e se dirigiu ao quarto onde estava a vítima, que seguramente foi apanhada de surpresa;
- o dolo é também muito intenso, dado que o arguido executou o propósito criminoso de forma determinada e com alguma frieza, que não é incompatível com a motivação passional; não respeitou, como se lhe impunha, a decisão tomada por A de acabar com a relação que com ele mantivera e de iniciar um relacionamento sentimental com a vítima, pondo termo brutalmente ao mesmo;
- a favor do arguido nenhuma circunstância de relevo se constata.
X - Sendo evidentes, no caso, as exigências preventivas, sobretudo de prevenção geral, entende-se que a pena de 14 anos de prisão satisfaz as exigências preventivas e não excede a medida da culpa, nem prejudica decisivamente a reinserção do arguido na sociedade.

Texto Integral

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. RELATÓRIO

            AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão do tribunal coletivo do 2º Juízo Criminal do Barreiro de 17.10.2011, como autor de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), do Código Penal (CP), na pena de 17 anos e 6 meses de prisão.

            Dessa decisão recorreram o Ministério Público e o arguido.

            Conclui assim a sua motivação a sra. Procuradora da República:

1. O douto acórdão proferido enferma, em nosso entender, da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, por referência ao seu artigo 372º, nº 2, porquanto o mesmo não se mostra suficientemente fundamentado, designadamente no que concerne à análise crítica das provas, não tendo sido mencionadas as razões pelas quais se considerou como especialmente relevante e crível o depoimento de BB, quando referiu que o arguido tinha conhecimento da relação que aquela mantinha com CC, quando o mesmo alegou desconhecer tal relação.

2. Por outro lado, se quanto aos factos dados como provados, nenhum reparo nos merece o douto acórdão ora em crise, outro é o nosso entendimento no que concerne à sua subsunção aos dispositivos legais aplicados já que, a nosso ver, a factualidade apurada apenas consente a punição do arguido pela prática do crime de homicídio previsto no artigo 131º do Código Penal, afastando o preenchimento da circunstância qualificativa invocada. 

3. Com efeito, o artigo 132º do Código Penal prevê a qualificação do homicídio com base em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, não sendo as enunciadas no seu nº 2 de funcionamento automático, sendo certo que, por outro lado, outras circunstâncias não descritas podem revelar especial censurabilidade ou perversidade.

4. De acordo com Figueiredo Dias, “a qualificação deriva de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva com recurso a conceitos indeterminados”, o qual “resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa”.

5. Ora, da factualidade apurada nada consta sobre o motivo da atuação levada a cabo pelo arguido; e em sede de fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica, são equacionadas como prováveis e presumíveis motivos do homicídio por aquele levado a cabo, a raiva/ciúme – sem que se opte sequer por um dos dois sentimentos.

6. De acordo com a nossa jurisprudência, motivo fútil é sobretudo “o notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos de um homem médio, denotando o agente, com isso, egoísmo, intolerância, prepotência, mesquinhez”, “o motivo que não é motivo”, não se reconduzindo deste modo à ausência de motivo.

7. Não se tendo apurado, com segurança, qual o motivo que verdadeiramente fez desencadear o ato de matar por parte do arguido, temos por não verificada a situação que integra o motivo fútil.

8. E ainda que se admita que o arguido agiu movido por raiva e/ou ciúme, por não aceitar tranquilamente a relação de namoro existente entre BB e CC cremos que tais motivos, embora não sejam nobres nem socialmente aceites como desculpabilizadores do ato de matar, não configuram o “motivo sem motivo”, o motivo fútil.

9. Termos em que se mostra violado, por erro de interpretação, o artigo 132º, nº 2, alínea e), do Código Penal, devendo o arguido ser condenado pela prática do crime de homicídio previsto no artigo 131º do Código Penal, com naturais reflexos na medida da pena.

Respondeu o arguido, dizendo em conclusão:

1. Assiste razão ao Ministério Publico, quando entende existir erro na subsunção dos factos considerados provados pelo Tribunal às normas jurídicas aplicadas no caso sub judice! O próprio Arguido também interpôs o respetivo Recurso Penal, com fundamentos semelhantes, por entender que a matéria de facto assente, não consente a punição do Arguido pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo Art. 132º nº 2 e) do C.P., como foi decisão do Tribunal Recorrido.

2. Resulta da matéria considerada assente, factos que apenas permitem condenar o Arguido pelo crime de homicídio simples p. e p. pelo Art. 131º do C.P., afastando, por inexistir qualquer circunstância reveladora de qualificação.

3. É entendimento do Arguido não existe na factualidade dada como assente pelo Tribunal Recorrido qualquer facto sobre o motivo da atuação do Arguido, ou sequer factos reveladores de especial censurabilidade ou perversidade, para que se considere em sede de fundamentação fáctico jurídica que existem “presumivelmente e provavelmente” motivos baseados no ciúme/raiva para qualificar o crime de homicídio.

4. Da análise da factualidade assente pelo Tribunal Recorrido, estamos perante a inexistência de motivo, ou de razão ou de qualquer justificação plausível para a prática do crime, mas o facto de não existir motivo não significa que estamos perante um motivo fútil até porque a prática de um crime de homicídio, em que se priva alguém da sua vida, seria sempre um motivo fútil, desde que inexistisse um motivo para a prática do crime.

5 Neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: “A inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo.” Acórdão do STJ de 10.12.2008 – Processo nº 08P3703.

6. E tal como é o parecer da Digna Magistrada do Ministério Público, também entendemos que no caso sub judice não existe o preenchimento da qualificação jurídica, nomeadamente a existência de motivo fútil (Alínea e) do Art. 132º nº l e 2 do C.P.), nem sequer que existam circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade e perversidade.

7. Entende o arguido que o douto Acórdão interpretou e aplicou erradamente o disposto no Art. 132º nº l e 2 Alínea e) do Código Penal, fazendo apelo a circunstâncias agravantes que não se verificam, violando desta forma, o disposto no Art. 131º e 132º n° l e 2 alínea e) todos do Código Penal.

8. No entendimento do Arguido e perante os factos provados, deve ser aplicado o Art. 131º pela prática do crime de homicídio simples.

Por sua vez, o arguido concluiu assim a motivação do seu recurso:

1. Salvo o devido respeito, o Tribunal Recorrido, atenta a factualidade provada, subsumiu incorretamente os factos provados à respetiva previsão penal, existindo assim erro na determinação da norma aplicável, uma vez que está em causa a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio simples p. e p. pelo Art. 131º do C.P. e não um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo Art. 132º nº 2 e) do C.P.

2. A fundamentação fáctico-conclusiva constante do Acórdão Recorrido que qualifica o crime de homicídio (Art. 132 nº 2 e) do C.P.) não encontra qualquer suporte na factualidade dada como provada e não provada.

3. Não se encontram provados factos dos quais resultem que o arguido agiu movido por um “motivo fútil” ou sequer que possa sustentar a especial censurabilidade ou perversidade do agente do crime.

4. Da factualidade provada, apenas resultou que o Arguido se dirigiu à residência da BB, e que entrou na cozinha e dirigiu-se ao quarto de dormir, onde estava CC, que aí munido de uma faca com 20 centímetros de lâmina golpeou CC da zona torácica, tendo resultado dessa ação uma ferida inciso perfurante na zona intercostal e que o Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente ciente da punibilidade e reprovabilidade da sua conduta.

5. Atendendo a esta factualidade, estamos perante a inexistência de motivo, ou de razão ou de qualquer justificação plausível para a prática do crime.

6. O facto de não existir motivo não significa que estamos perante um motivo fútil até porque a prática de um crime de homicídio, em que se priva alguém da sua vida, seria sempre um motivo fútil, desproporcional e inadequado, ilegítimo e injustificável.

7. Por outro lado, não basta a verificação do exemplo padrão constante da alínea e) do nº 2 do Art. 132º do C.P. (não é de aplicação automática) para que se possa qualificar a conduta do Arguido, é necessário também que existam circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade e perversidade,  o que no caso em apreço, também não se verifica!

8. A justificação do Tribunal Recorrido ao considerar que existe especial censurabilidade por o Arguido munido com uma faca golpeou CC, no quarto onde este permanecia, faca essa que retirou da cozinha da residência não indicia só por si que a atuação do Arguido foi movida por motivo fútil e reveladora de especial censurabilidade e perversidade.

9. Bem pelo contrário, a atuação do Arguido, ponderando todas as circunstâncias da sua atuação, fazendo uma avaliação global do ato, pode ser reveladora de algum embotamento de sensibilidade, MAS NÃO É DE MODO NENHUM REVELADORA DA ESPECIAL CENSURABILIDADE E PERVERSIDADE a que alude o Art. 132º nº 2 e) do C.P., não preenchendo assim o grupo valorativo de homicídios especialmente perversos ou censuráveis.

10. O Tribunal Recorrido interpretou e aplicou erradamente o disposto no Art. 132° Alínea e) do Código Penal, fazendo apelo a circunstâncias agravantes que não se verificam, quando devia ter aplicado o Art. 131° do mesmo diploma legal e condenado o arguido pela prática do crime de homicídio simples. 

11. O Tribunal a quo, ao condenar o Arguido pelo Crime de Homicídio qualificado violou o disposto no Art. 131º nº 1 e 132º nº 1 e 2 alínea e) todos do código Penal.

12. Os factos praticados pelo Arguido integram a qualificação jurídica do crime de homicídio simples p. e p. pelo Art. 131º do C.P. e não do crime de homicídio qualificação p. e p. pelo Art. 132º do C.P., requerendo-se desde já sua alteração.

13. No caso de assim não se entender, sempre se dirá que a pena a que foi condenado (17 anos e 6 meses de prisão) deveria ter sido mais harmoniosa e proporcional ao caso em apreço.

14. O Tribunal A quo não teve em consideração e em consequência violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no Art. 71º e Art. 40º ambos do C.P.

15. Não teve em consideração o relatório social para determinação da sanção constante de fls. 408 a 413 dos presentes autos, nomeadamente onde refere as condições pessoais e económicas do arguido em cumprimento do disposto no Art. 71º nº 1 d) do C.P., devidamente elencadas nas motivações.

 16. Não teve em consideração o facto do Recorrente ter 43 anos de idade, não apresentar antecedentes criminais, sempre teve um percurso de vida normativo, tratando de uma situação ocasional e isolada, uma vez que o arguido sempre se pautou pelas regras da sociedade. (Art. 71º nº 1 e) do C.P.).

17. Não foi tomado em conta o exame pericial realizado no Hospital Nossa Senhora do Rosário e constante das fls. 539 a 547 dos autos e o Relatório emitido pelo estabelecimento prisional do Montijo a fls. 531 a 533 dos Autos, no que concerne à sua conduta posterior aos factos (Art. 71º nº 1 e) do C.P.), nomeadamente que clinicamente existe sentimento de culpabilidade, que por si também indicia fortemente a consciência que tem da ilicitude do seu comportamento.

18. O quantum da pena a que o Arguido foi condenado (17 anos e 6 meses de prisão) irá coartar certamente a possibilidade de ressocialização e recuperação deste, uma vez que a mesma ultrapassa em larga medida a culpa deste pelos factos praticados e viola o disposto no Art. 40º nº 1 e 2 e o Art. 71º ambos do C.P.

19. Deverá o Tribunal condenar o Arguido numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima explanadas, que se deve situar perto dos limites mínimos da pena aplicável ao caso sub judice, realizando de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a proteção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração do agente na sociedade, de acordo com o disposto nos Art. 70º, 71º e 40º do C. Penal.

A este recurso respondeu assim a sra. Procuradora da República:

1. Não se tendo apurado, com segurança, qual o motivo que verdadeiramente fez desencadear o ato de matar por parte do arguido, temos por não verificada a situação que integra o motivo fútil.

2. Sendo que a factualidade apurada apenas consente a punição do arguido pela prática do crime de homicídio previsto no artigo 131º do Código Penal, já que se não vislumbram quais as circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade que transmitindo “uma imagem global do facto agravada” no dizer de Figueiredo Dias, fundamentem a subsunção daquela ao artigo 132º do Código Penal.

3. Termos em que se mostra violado, por erro de interpretação, o artigo 132º, nº 2, alínea e), do Código Penal.

4. Caso assim se não entenda, temos por excessivamente severa a dosimetria penal encontrada para a punição do arguido, considerando também a ausência de antecedentes criminais por parte do mesmo e a factualidade inserta no ponto 15. da matéria dada como assente.

A assistente DD respondeu conjuntamente a ambos os recursos, concluindo:

1ª Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, resultou provado que o recorrente praticou o crime de homicídio qualificado na pessoa do falecido CC.

2ª O Recorrente sem qualquer razão, aproveitando-se da distração da BB a confecionar os alimentos para o almoço, munindo-se de uma faca de 20 que retirou da cozinha da BB, deslocou-se para o quarto onde estava deitado CC, golpeou-se em zona vital, retirando-lhe a vida.

3ª O recorrente conhecia as características do objeto cortante por si utilizado e bem sabia que ao utilizar o mesmo da forma como o fez, na região do mamilo esquerdo da vítima, provocaria a sua morte e apesar disso não se coibiu de o fazer.

4ª O recorrente agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era vedada por lei.

5ª O recorrente tirou a vida a um jovem indefeso de 25 anos, apenas porque morava com a mulher que aquele pretendia reatar o relacionamento.

6ª Bem andaram os julgadores do Tribunal “a quo” na aplicação do direito, condenando o recorrente em pena de prisão de 17 anos e 6 meses de prisão, decisão que se nos afigura judiciosa e conforme com a prova produzida.

7ª Não colherá argumentação dos recorrentes ao pretenderem que o douto acórdão seja revogado e substituído por outro que contemple a desqualificação do crime.

8ª Também não se nos afigura que o tribunal a “quo” tenha violado qualquer normativo legal.

9ª O acórdão, aliás douto, do Tribunal “a quo”, pela forma criteriosa e objetiva na aplicação dos factos ao direito, objeto dos presentes recursos, merece da parte da recorrida claro aplauso.

10ª Poder-se-ia aqui escrever muito acerca do “motivo fútil”, plasmado no art° 132°, n° 2, al. e), porém, como se concorda plenamente com a justificação dada pelos fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos elencados no douto acórdão, dispenso-me de fazer qualquer considerando sobre o vertido a esse respeito nas alegações dos recursos do Ministério Público e arguido.

Neste Supremo Tribunal, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

1. Por acórdão do Tribunal Coletivo do Círculo Judicial do Barreiro, o arguido foi condenado — na parte que ora nos importa — na pena de dezassete anos e seis meses de prisão, como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.° e 132.°, n.°s 1 e 2, al. e), do Código Penal.

2. Inconformado, o Magistrado do Ministério Publico em exercício de funções junto do Tribunal recorrido interpôs recurso, considerando padecer o mesmo de falta de fundamentação, entendendo ainda que os factos provados são apenas integradores do crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.° do Código Penal,

Igualmente inconformado, arguido interpõe recurso, pugnando também no sentido de os factos provados serem apenas integradores do crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.° do Código Penal, considerando ainda, de qualquer modo, excessiva a medida da pena imposta.

II

Contrariamente ao defendido pelo Magistrado do Ministério Público em exercício de funções junto do Tribunal recorrido, consideramos que decorre naturalmente do contexto da fundamentação que o Tribunal deu credibilidade ao depoimento de BB, considerando a versão do arguido sem qualquer consistência, também no que respeita ao conhecimento que o arguido tinha da relação afetiva desta com o CC, atendendo, como o Tribunal afirma, «à experiência comum e ao conjunto da prova produzida».

Entendemos assim não verificada a invocada nulidade.

III

1. Pelo facto de não se provar o motivo que terá determinado a conduta do homicida não se pode retirar a conclusão de que o agente revela especial censurabilidade ou perversidade, justificadoras de uma exasperação da sua culpa.

Como a jurisprudência há muito o afirma, quando o legislador, no art. 132.°, n.° 2, al. e) prevê, como índice de especial censurabilidade e perversidade, ser o homicídio determinado por qualquer motivo torpe ou fútil, a ausência de motivo não preenche o aludido conceito motivo fácil.

2. Acontece, porém, que o Tribunal, tendo feito constar da fundamentação, nomeadamente, os seguintes factos provados:

- O arguido e BB têm um filho em comum, com 8 anos de idade,

- Por várias vezes, o arguido procurou reaproximar-se de BB, sem êxito,

da mesma fundamentação igualmente fez constar os motivos de facto que o levaram a considerar ter sido só a raiva/ciúme a única motivação do homicida, concluindo, depois, nos seguintes termos:

«Assim sendo, é de concluir com segurança e manifesta razoabilidade que a conduta do arguido foi determinada pela mera circunstância de o CC ser o namorado da BB e estar a dormir no quarto dela. Sem que tivesse ocorrido troca de palavras ou discussão entre eles.»

3. Ainda que formalmente não conste da enumeração dos factos provados, substancialmente não pode deixar de se entender que o Tribunal considerou também provado que conduta do arguido foi determinada pela mera circunstância de o CC ser o namorado da BB e estar a dormir no quarto dela.

Tal, aliado ainda:

- às circunstâncias de o arguido procurar, sem êxito, reatar o relacionamento com a BB, de quem tinha um filho de oito anos de idade, e de aquela ter aberto a porta de casa em virtude de o arguido ter referido pretender falar sobre o filho;

- à situação de o arguido ter pegado na faca, de 20 cm de lâmina, que retirara da cozinha, onde entrou, estando a BB a preparar o almoço;

- ao facto de, munido da referida faca, enquanto distraía a BB, pedindo-lhe um copo de água, ter entrado no quarto de dormir daquela, onde o CC, namorada desta, se encontrava, golpeando-o na zona torácica, permitiu ao Tribunal dar por preenchido o índice de especial censurabilidade motivo fútil e considerar verificada a exasperação da culpa.

4. Face ao acima exposto, consideramos também preenchido o referido índice de especial censurabilidade.

Na verdade, no caso dos autos, atentos os valores presentes na nossa sociedade atual, acentuadamente marcada pelos direitos humanos, não pode deixar de ser considerada integradora de motivo fútil a determinação do arguido, radicada em motivos subjetivos de egoísmo inadmissível, por fundado no total desrespeito por legítima opção afetiva.

5. Assim, por um lado, tendo presente as circunstâncias em que ocorreu o homicídio — com o relevo que assume a natural desproteção do CC, que se encontrava em casa de sua namorada e dentro do quarto onde dormia quando pernoitava naquela —, que só confirmam a especial censurabilidade que o aludido motivo fútil indicia, e, por outro, face à ausência de circunstâncias extraordinárias, seja no facto ou no arguido, que impusessem a revogação do aludido efeito do indício, concluímos que os factos são integradores do crime de homicídio qualificado pelo qual o arguido se mostra condenado.

6. Por último, concordamos com a medida da pena imposta, aderindo assim à fundamentação que o Tribunal fez quando da determinação da pena.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido respondeu assim:

1. Salvo o devido respeito por melhor opinião, não concorda o Arguido com o parecer emitido pelo Digna Procuradora da Republica e do qual se apresenta a presente resposta. Senão vejamos;

2. O facto de se considerar como provado que;

1. "O Arguido e a BB têm um filho em comum, com 8 anos de idade;"

2. "Por várias vezes, o arguido procurou reaproximar-se da BB, sem êxito”.

Não pode levar de forma nenhuma a considerar, ou a concluir que só a raiva/ciúme a única motivação do arguido para o cometimento do homicídio.

Aliás, nada na factualidade dada como provada em sede de julgamento aponta nesse sentido.

Bem pelo contrário!

Por outro lado, a condenação do Arguido na prática de um crime de homicídio qualificado, não se compadece com considerações ou conclusões, sobre o seu modo de atuação, quando tal não resulta inequivocamente da prova produzida em audiência.

Pelo que, no entender do Recorrente, não se pode concluir por "exclusão de partes", que o Arguido só pode ter agido por raiva ou ciúme.

3. A factualidade dada como provada no Acórdão recorrido, relata o modo como foi praticado o crime, nomeadamente o modo como entrou na casa, a arma que detinha e o modo como golpeou a vítima.

Não se encontram provados factos dos quais resultem que o arguido agiu movido por um “motivo fútil" ou sequer que possa sustentar a especial censurabilidade ou perversidade do agente do crime,

Ora, perante a factualidade assente, estamos sem sombra, de dúvidas perante, a inexistência de motivo, ou de razão ou de qualquer justificação para a prática do crime de homicídio.

Até porque, causar a morte a uma pessoa será sempre uma atuação desproporcional e inadequada à ação, será sempre ilegítima e injustificável, e não é por isso que se deve qualificar como motivo fútil.

4. Também não se encontra preenchido o índice de especial censurabilidade ou perversidade do Arguido no cometimento do crime.

Salvo o devido respeito, não concorda o Recorrente, por um lado que exista motivo fútil, conforme já se defendeu anteriormente, e por outro que do Acórdão recorrido tenha também resultado que a determinação do Arguido se tenha radicado em motivos subjetivos de egoísmo inadmissíveis.

Uma vez que como já se referiu não resulta como provados factos do Acórdão Recorrido que possam comprovar o motivo pelo qual o Arguido cometeu o crime de homicídio e que existam circunstâncias reveladoras de especial... censurabilidade ou perversidade.

Bem pelo contrário!

No entender do Recorrente, a agressão do Arguido a CC, com a faca de cozinha, que este espetou na zona torácica, pode ser reveladora de algum embotamento de sensibilidade, mas não é de modo nenhum reveladora da especial censurabilidade e perversidade para aplicação da qualificação jurídica a que alude o Art.º 132º nº 2 do CP.

Pelo exposto,

Entende o Recorrente não existir na factualidade assente factos que possam suportar, a prática pelo arguido de um crime de homicídio motivado por um motivo fútil e revelador de especial censurabilidade e perversidade, capaz de preencher a alínea e) do Art. 132º nº 1 e 2 do C.Penal, mas apenas a prática pelo Arguido de um crime de homicídio simples p. e p. pelo Art 131º do C.Penal.

Por sua vez, a assistente veio resumidamente manifestar a sua concordância com a posição assumida pela sra. Procuradora-Geral Adjunta.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Os recursos interpostos, pelo Ministério Público e pelo arguido, são convergentes: ambos entendem que os factos apurados integram a prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º, e não o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132º, nºs 1 e 2, e), ambos do CP, pelo qual ele foi condenado.

É a seguinte a matéria de facto apurada:

A) FACTOS PROVADOS

1. O arguido e BB têm um filho em comum, com 8 anos de idade.

2. Por várias vezes, o arguido procurou reaproximar-se de BB, sem êxito.

3. CC, nascido em 15 de julho de 1984, era, à data dos factos, namorado de BB e pernoitava frequentemente na residência desta.

4. No dia 27 de agosto de 2009, cerca das 12h50m, o arguido dirigiu-se à residência de BB, na Rua ............, ..., ......., Alto do Seixalinho, Barreiro, e, porque disse que pretendia falar sobre o filho de ambos, ela abriu-lhe a porta.

5. No interior da residência, o arguido entrou na cozinha, onde BB preparava o almoço e pediu-lhe um copo de água e, mantendo-se ela ocupada, dirigiu-se ao quarto de dormir, onde estava CC.

6. Aí, munido de uma faca com 20 centímetros de lâmina que retirou da cozinha, com ela golpeou CC na zona torácica.

7. Da ação do arguido resultou ferida inciso-perfurante na zona intercostal esquerda, linha média clavicular com cerca de 4 cm externamente ao mamilo, vertical, com bordo regular e 6 cm de extensão, lesões que foram causa e direta da morte de CC.

8. O arguido quis tirar a vida a CC e utilizou uma faca de cozinha, sabendo que era apta a produzir tal resultado.

9. Agiu livre, voluntária e conscientemente, ciente da punibilidade e reprovabilidade da sua conduta.

10. Do certificado de registo criminal do arguido não constam condenações.

11. É arguido no processo 6650/04.9TDLSB, da 7ª e 8ª Varas criminais de Lisboa.

12. À data dos factos, o arguido fazia trabalhos esporádicos na construção civil, no que auferia cerca de 700,00 € mensais.

13. Tem mais um filho, com 21 anos de idade, residente no Congo.

14. Tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.

15. No estabelecimento prisional, o arguido cumpre as regras e normal e não lhe foram aplicadas medidas disciplinares; frequenta desde janeiro de 2011 o curso de inglês e manifesta motivação para frequentar ações formativas e para atividade laboral.

16. Não recebeu até à data visitas de familiares.

17. Foi proferida decisão de expulsão do arguido do território nacional com interdição de regresso durante 8 anos, em processo administrativo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

B) NÃO PROVADOS:

1. O arguido tocou à campainha da residência de BB com o pretexto de lhe levar o filho de ambos.

2. No interior da residência o arguido pediu permissão para usar a casa de banho.

3. O arguido estava na posse de uma faca de cozinha de forma não apurada.

4. O CC gritou por auxílio “BB, olha o S......!”

5. CC estava deitado quando o arguido o golpeou.

No acórdão justificou-se da seguinte forma o enquadramento jurídico dos factos no art. 132º, nºs 1 e 2, e), do CP:

A norma penal incriminadora do artigo 132º do Código Penal prevê uma forma agravada do crime de homicídio previsto no artigo 131º (vide neste sentido, Figueiredo Dias in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo I), qualificando-o, sempre que a morte de outrem for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade.

Motivo fútil” é, segundo Figueiredo Dias, in op. cit., o motivo que, “avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.

                Também a jurisprudência se tem pronunciado neste sentido, considerando que “motivo fútil” é o motivo sem valor, insignificante, ridículo, que não tem relevo, que não pode razoavelmente explicar a conduta do agente, que é notavelmente desproporcionado ou inadequado, na perspetiva do homem médio e em relação ao crime de que se trata, tendo em vista a situação concreta (vide neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de julho de 1989, in BMJ n.º 389).

No caso “sub judice”, está assente que o arguido e BB têm um filho em comum, com 8 anos de idade e que CC era, à data, o namorado dela, o que o arguido não aceitava tranquilamente, pelo que a raiva/ciúme parece ser a única motivação atendível, sendo que não resultou da prova produzida que mantivessem algum tipo de desentendimentos ou que alguma vez tivessem discutido.

                Assim sendo, é de concluir com segurança e manifesta razoabilidade que a conduta do arguido foi determinada pela mera circunstância de o CC ser o namorado da BB e estar a dormir no quarto dela. Sem que tivesse ocorrido troca de palavras ou discussão entre ambos.

Deste modo, considera-se que o arguido agiu movido por um “motivo fútil”, por ser notavelmente desproporcionado e inadequado à ação, que é ilegítima, injustificada e objetivamente censurável.

Como se mencionou, não basta que, no caso concreto, se verifique alguma das circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, para que se possa qualificar a conduta do agente. Necessário é que sejam reveladoras de uma especial censurabilidade ou perversidade.

Na verdade, a especial censurabilidade é revelada, sobretudo, pelo modo de atuação do arguido, que atacou CC e atentou contra a vida deste no quarto onde ele dormia, utilizando uma faca – instrumento cortante e perfurante -  que retirou da cozinha da residência, onde aliás se encontrava a BB.

Não está em causa uma exaltação de ânimos, emoções à flor da pele e reações instintivas e primárias, em que na sequência de uma contenda verbal ou já mesma física, um dos intervenientes no meio dessa luta apanha um objeto para se defender. O caso vertente assume contornos bem mais gravosos.

Resultou assente que o arguido, utilizando uma faca de cozinha, desferiu golpes no corpo de CC, atingindo-o na região torácica, causando-lhe as lesões descritas em 7 dos Factos Provados, que foram causa da sua morte           

                Encontra-se, pois, preenchido o tipo objetivo de ilícito.

               Resulta da leitura desta motivação que o tribunal recorrido concluiu que a motivação do crime seria a “raiva/ciúme” sentida pelo arguido relativamente à vítima, devido ao relacionamento marital entre esta última e a testemunha BB, anteriormente companheira do arguido.

Permitirão, porém, esses factos integrar o crime na al. e) do nº 2 do art. 132º do CP?

2. O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determina a realização do tipo, como acontece no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no nº 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no nº 2.

Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a qualificação.

Assim, como meros indícios, as circunstâncias do nº 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do nº 1. Da interação entre os nºs 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.

Esta interação entre os dois números do art. 132º, permitindo uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e reflexamente na administração da justiça do caso, assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.

Esta é, em traços muito sintéticos, a posição da doutrina maioritária, seguida correntemente pela jurisprudência, nomeadamente deste Supremo Tribunal.[1]

O arguido foi condenado nos termos da al. e) do nº 2, por referência ao motivo fútil. Como tal deve ser entendido o motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano, avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Ele assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça.

Não será, porém, motivo fútil a ausência (ou o desconhecimento) de motivação do agente. A imputação de motivo fútil ao agente implica o apuramento prévio do motivo, ou seja, sem se conhecer o motivo, não se pode qualificar o mesmo como “fútil”.[2]

3. Revertendo ao caso dos autos, analisando os factos ressalta desde logo a escassez de informação sobre as circunstâncias que antecederam e que rodearam a prática do crime. Sabemos apenas que o arguido se dirigiu a casa de BB, sua antiga companheira, e que, enquanto ela estava ocupada a fazer o almoço, retirou uma faca da cozinha, e de seguida entrou no quarto de dormir onde se encontrava a vítima, novo companheiro de BB, e que o golpeou com a mesma faca, provocando-lhe a morte.

Ignora-se o que aconteceu imediatamente antes do crime, nomeadamente se houve discussão ou luta entre o arguido e a vítima. Ignora-se se o arguido já tinha formulado o projeto de matar a vítima quando entrou no quarto, ou mesmo já quando se dirigiu à casa referida. Ignora-se, sobretudo, qual o motivo concreto do ato do arguido.

Não se sabendo qual o motivo concreto e imediato que desencadeou o facto, não se poderá concluir pela existência de “motivo fútil”. Embora a conduta do arguido revele determinação e alguma frieza na prática do homicídio, tal não é suficiente, desacompanhado de outras circunstâncias, para concluir que ele agiu com “especial” censurabilidade ou perversidade, de modo a integrar o facto no homicídio qualificado.

É certo que há circunstâncias que indiciam a motivação passional do crime, na qual a 1ª instância fundou a subsunção à al. e) do nº 2 do art. 132º do CP. Nesse sentido apontam diversos factos, como as tentativas de reatamento da relação marital com BB e a situação de “obstáculo”, enquanto “rival”, da vítima para esse reatamento. Aliás, essa será a explicação plausível da conduta do arguido.

Contudo, daí não se poderá concluir automaticamente pela qualificação do crime. É que a motivação passional não constitui de forma nenhuma um motivo fútil. O estado de paixão (e concretamente o ciúme) envolve necessariamente as energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento, de forma que a “futilidade” do motivo não resulta, submetido à cláusula do nº 1 do art. 132º, especialmente censurável ou perverso.[3]  

É óbvio que o motivo passional não poderá nunca ser valorado positivamente, em termos atenuativos, gerais ou especiais, como por vezes se pretende. Mas o mesmo se dirá em termos de qualificação do crime. Para que o homicídio possa ser qualificado como de especial censurabilidade ou perversidade é necessário que haja outras circunstâncias que a revelam, que não a mera intenção de eliminar o “rival”.

Conclui-se, pois, que, ainda que entendido o crime praticado pelo arguido como motivado passionalmente, não existem circunstâncias que permitam, no caso, qualificar a motivação como especialmente censurável ou perversa, não podendo assim o arguido ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, antes devendo sê-lo pelo de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do CP.

4. Há, assim, que fixar a pena dentro da moldura penal desse artigo, que prevê uma pena de prisão entre 8 e 16 anos.

Nos termos do art. 71º do CP, a medida concreta da pena é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados na prática do crime e à sua motivação, e ainda às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta lícita.

É incontestável que a ilicitude é muito forte. Na verdade, o arguido agiu com impostura, levando a sua ex-companheira, com o pretexto de falar sobre o filho de ambos, a abrir-lhe a porta de casa. Foi também dissimuladamente que se apoderou da faca com que iria praticar o crime e se dirigiu ao quarto onde estava a vítima, que seguramente foi apanhada de surpresa.

O dolo é também muito intenso. Executou o propósito criminoso de forma determinada e com alguma frieza, que não é incompatível com a motivação passional.

Não respeitou, como se lhe impunha, a decisão tomada por BB de acabar com a relação que com ele mantivera e de iniciar um relacionamento sentimental com a vítima, pondo termo brutalmente ao mesmo.

A favor do arguido nenhuma circunstância de relevo se constata.

Nos termos do art. 40º do CP, as penas visam a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.

São evidentes, no caso, as exigências preventivas, sobretudo de prevenção geral.

Neste quadro, entende-se que a pena de 14 anos de prisão satisfaz as exigências preventivas e não excede a medida da culpa, nem prejudica decisivamente a reinserção do arguido na sociedade.

III DECISÃO

Com base no exposto, concedendo provimento aos recursos do Ministério Público e do arguido, decide-se:

a) Absolver o arguido do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132º, nº 1 e 2, e), do CP;

b) Condenar o arguido, como autor material de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º do CP, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;

c) Manter, no mais, a decisão recorrida.

Sem custas.

                      

                                       Lisboa, 31 de janeiro de 2012


Maia Costa (Relator)
Pires da Graça
(Acórdão e sumário redigidos de acordo com o novo Acordo Ortográfico)
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[1] Assim, desde logo Eduardo Correia, “Atas da Comissão Revisora do Código Penal”, p. 22; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 25-28, e sobretudo Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pp. 125-127 (em síntese). No sentido de se tratar de um tipo de ilícito, Fernanda Palma, “O homicídio qualificado no novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, nº 15, pp. 59-74; Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, pp. 39-67; Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 11-20, e, por último, João Curado Neves, “Indícios de culpa ou tipos de ilícito?”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 721-757. Na jurisprudência, ver, a título exemplificativo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 8.2.1984 (BMJ 334, p. 258), um dos primeiros a perfilhar esta orientação, e, por último, o acórdão de 27.5.2010, proc. nº 11/04.7GCABT.C1.S1, 3ª Secção.
[2] A este propósito, ver o acórdão deste Supremo Tribunal de 10.12.2008, proc. nº 3703/08.
[3] Ver Figueiredo Dias, loc. cit., p. 33.