I - A cláusula penal, na sua função de liquidação convencional prévia do dano, é um instrumento de previsão e fixação antecipada, em princípio, invariável, da indemnização a prestar pelo devedor, que ressarcirá o credor do dano resultante de um eventual não cumprimento ou do seu cumprimento inexato.
II - Que dispensa o credor de fazer prova, através da acção judicial competente, da extensão dos prejuízos sofridos, sendo o montante da indemnização aquele que as partes tiverem, previamente, acordado, prevenindo e evitando as dificuldades do cálculo da indemnização e a intervenção do juiz, para esse efeito, dispensando ao credor a alegação e a prova do dano concreto.
III - O devedor não se encontra obrigado ao ressarcimento do dano que, efectivamente, cause ao credor com o incumprimento, mas antes à compensação do prejuízo, negocial e antecipadamente, fixado, através da cláusula penal, sempre que não tenha sido pactuada a indemnização pelo dano excedente.
IV - Destinando-se a cláusula penal a substituir a indemnização que seria arbitrada pelo juiz, é exigível, nos mesmos casos em que essa indemnização poderia ser reclamada, supondo, portanto, em termos gerais, a inexecução da obrigação e a culpa do devedor, isto é, só podendo ser efectivada se este, culposamente, não tiver cumprido o contrato.
V - A cláusula penal stricto sensu ou, propriamente dita, visa compelir o devedor ao cumprimento e, simultaneamente, conduzir à satisfação do interesse do credor, mesmo que se demonstre que do seu incumprimento ou mora não adveio qualquer dano, aproximando-se da pena compulsória, mas distinguindo-se da pena como liquidação do dano, embora, ao contrário da pena compulsória, substitua a indemnização, não acrescendo a esta, nem à execução específica, o que a aproxima da cláusula penal como indemnização predeterminada.
VI - Porém, a cláusula penal não pode valer como um simples pacto de simplificação probatória favorável ao credor, como uma simples regra de inversão do ónus da prova, porquanto o montante predeterminado entre as partes obsta a que o devedor venha a pretender a sua redução, até ao montante do dano efectivo, e bem assim como, em princípio, a que o credor obtenha uma indemnização superior àquela que foi, previamente, ajustada.
VII - Destinando-se a cláusula penal a reforçar o direito do credor ao cumprimento da obrigação, a indemnização devida será aquela que tiver sido prevista na pena convencionada, em alternativa à prestação inicial, desde que esta não seja satisfeita, mais gravosa para o inadimplente do que, normalmente, seria, e que, em princípio, deve ser respeitada, dado o seu caráter a forfait e por corresponder à vontade conjectural original das partes, sendo certo que só, em casos excepcionais, deve ser reduzida, com vista a evitar abusos evidentes, situações de clamorosa iniquidade a que conduzem penas, manifestamente excessivas, francamente exageradas, face aos danos efectivos verificados.
VIII - No exercício do seu equitativo e excepcional poder moderador, o juiz só goza da faculdade de reduzir, de modo oficioso, a cláusula penal que se revele extraordinária ou, manifestamente, excessiva, a solicitação do devedor interessado, por via de acção ou de reconvenção, ou de defesa por excepção, a deduzir na contestação, mas não apenas na fase de alegações.
IX - A qualificação de uma cláusula penal como, manifestamente, excessiva não se identifica com a cláusula, meramente, excessiva, em que a pena seja superior ao dano, colidindo a sua eventual redução com a necessária preservação do seu valor cominatório e dissuasor.
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:
“AA – Compra, Venda e Construção de Bens Imobiliários, Lda”, com sede na Urbanização P... R..., lote ..., Av. da R..., V... C... da L..., F..., propôs a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB, residente na Alameda de G..., lote ..., Entrada ..., ...º andar/direito, Vila Real, pedindo que, na sua procedência, se declare ter sido, validamente, celebrado entre si e a ré o contrato que identifica, cujo objecto consiste na permuta dos bens nele identificados [a], que se declare que a ré não cumpriu, voluntariamente, com as obrigações que havia assumido e se recusa a assinar a respectiva escritura de transferência da propriedade dos identificados prédios [b], que, para os fins do disposto no artigo 830º, n.º1, do Código Civil, seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial exigível à ré e que, por via disso, se decrete a outorga da permuta convencionada e se considere transferida a propriedade dos prédios permutados, com observância de todas as cláusulas e condições constantes do aludido contrato [c], ou, se por qualquer razão não for consumada a permuta, que a ré seja condenada a pagar-lhe, a título de cláusula penal, uma indemnização, no valor de €250 000,00 [d].
A autora alega, para tanto, e, em síntese, que celebrou com a ré o contrato-promessa de permuta, titulado pelo documento n.º1, junto com a petição inicial, mediante o qual prometeram permutar um terreno e a habitação nele a implantar por dois prédios pertencentes à ré.
De acordo com o mesmo contrato, a habitação seria entregue à ré, até final de Dezembro de 2003, podendo tal prazo ser prorrogado, verificando-se caso fortuito, de força maior ou motivo atendível.
Ficou ainda convencionado que a escritura pública de permuta seria realizada, após conclusão das obras do edifício destinado a habitação e a emissão, pela Câmara Municipal de Vila Real, da correspondente licença de habitação.
Em 30 de Agosto de 2004, em cumprimento do acordado, a autora procedeu à entrega do edifício à ré, que o recebeu e dele tomou posse, enquanto que a autora, na mesma ocasião, entrou na posse dos prédios prometidos permutar pela ré, nele instalando equipamento e materiais.
Decorrido mais de um ano, enviou à ré uma carta em que lhe concedia o prazo de quinze dias para a apresentação dos documentos necessários à celebração da escritura de permuta, que deveria ter lugar, até ao dia 20 de Outubro de 2005.
No entanto, a ré não entregou os documentos em causa e enviou à autora uma carta de resposta, afirmando que o contrato promessa ficava nulo e de nenhum efeito, pretendendo, ainda, devolver a chave da moradia que, livremente, recebeu, o que aquela não aceitou.
Deste modo, conclui a autora que não lhe resta outra alternativa que não seja o recurso à presente acção, para que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial contratada, ao abrigo do preceituado pelo artigo 830º, n.º1, do Código Civil, de forma a que a permuta seja concretizada e transferida a propriedade sobre os imóveis.
Mais defende que, perante uma situação de incumprimento do contrato, caso a execução específica não mereça provimento, sempre terá direito a receber da ré a quantia de €250.000,00, a título de cláusula penal, convencionada no contrato promessa.
Na contestação, a ré impugna a factualidade alegada pela autora, defendendo a improcedência da acção, invocando, para o efeito, e, em síntese, que o contrato não respeita a forma legal, prevista no artigo 410º, n.º3, do Código Civil, posto que dele não consta a certificação notarial da licença de utilização do edifício prometido permutar, com a consequente nulidade, nos termos do disposto pelo artigo 286º, do mesmo diploma legal.
Mais afirma que foi convencida por CC, pessoa das suas relações, em quem depositava confiança, que o prédio rústico que lhe pertence tinha 3 200 m2 e que a sua capacidade construtiva era diminuta.
Nessa convicção, comunicou aquele CC que venderia o referido prédio e um urbano, junto ao mesmo, por um preço justo.
No contrato invocado não foi estipulado prazo para a celebração da escritura pública de permuta, mas a mesma foi condicionada à prévia conclusão do edifício a entregar pela autora e à emissão da respectiva licença municipal de utilização, desconhecendo se esta foi ou não emitida e, portanto, não sabe se a condição aludida está ou não verificada, muito embora a sua obtenção dependesse, tão-só, da autora, que a deveria comunicar aquela.
Sendo assim, não assiste à autora o direito de aproveitar a invocação do seu incumprimento, o que conduz à absolvição do pedido.
Por via da confiança que depositava no dito CC, assinou todos os documentos que lhe foram colocados à sua frente, convencida de que estava a contratar com o mesmo e não com a autora.
Diz que, apenas, mais tarde, é que verificou que os documentos que assinaram incluíam o que titula o contrato referido pela autora e que o prédio rústico aí referido tinha, não 3 200 m2, como fora referido pelo CC, mas 32000 m2.
Defende que apenas acedeu em celebrar a permuta no pressuposto, sabido pelo CC e por DD, que assistiram à assinatura dos documentos, de que seria aquele o contratante, que seria o mesmo a executar a moradia a receber por troca com os prédios que lhe pertenciam e o loteamento onde se situaria o lote a receber.
Alega ainda que o CC e o DD omitiram, dolosamente, que o prédio rústico referido tinha 32 000 m2, pelo que, caso soubesse da realidade, nunca teria celebrado o contrato invocado pela autora.
Que actuou com erro sobre a pessoa com quem contratou e sobre as qualidades essenciais do objecto negocial, o que foi causado por dolo da ora autora, sendo certo que existia o dever de ser informada pelos representantes da desta, ao abrigo do estipulado pelos artigos 227º, n.º1, e 762º, do Código Civil.
Conclui que o negócio é, por isso, anulável, atento o disposto pelos artigos 251º, 247º, 287º e 289º, do Código Civil.
Sem prescindir, considera que os prédios que lhe pertencem valem, pelo menos, €527860,00, tendo-lhes sido atribuído o valor de €249398,94 pelo contrato celebrado.
A autora, por intermédio do CC e do DD, abusou da sua inexperiência e da sua ignorância, quanto à área efectiva de um dos prédios, para obtenção de benefícios injustificados, excessivos e contrários aos bons costumes, verificando-se, por isso, um grave desequilíbrio nas respectivas prestações, terminando com a alegação de que o contrato deve ser anulado, por usura, nos termos do preceituado pelos artigos 282º, 287º e 289º, do Código Civil.
Na réplica, a autora sustenta a inexistência dos vícios do contrato invocados pela ré, alegando que esta litiga de má-fé, posto que invoca um vício formal de um contrato que diz não ter celebrado, o que é incompatível entre si.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente e, em consequência, declarou válido o contrato-promessa celebrado entre a autora e a ré, referido nos pontos 1 a 11 da matéria provada [1], declarou que a ré incorreu em incumprimento definitivo do contrato-promessa, mencionado em a) [2], absolvendo a ré do demais peticionado pela autora [3].
Desta sentença, a autora apresentou recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado, parcialmente, procedente a apelação e, em conformidade, alterando a sentença recorrida, condenou a ré a pagar à autora, a título de cláusula penal entre ambas acordada, a quantia de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), mantendo, quanto ao mais, o, anteriormente, decidido.
Deste acórdão da Relação do Porto, a autora e a ré interpuseram agora recurso de revista, terminando as respectivas alegações com a formulação das seguintes conclusões que, integralmente, se transcrevem:
A AUTORA:
1ª - No recurso interposto pela autora, único a ser apreciado, não pediu esta a análise do eventual excesso da cláusula penal, mas somente que fosse revogada a sentença na parte em que entendia caber á autora a prova dos prejuízos causados com o incumprimento.
Esta matéria também não foi objecto de pedido (nem expresso nem implícito) nem, consequentemente, de decisão concreta em 1ª instância, que, consequentemente, considerou inexistir excesso.
A decisão que reduz a clausula penal nestas condições, sem que tal lhe tenha sido solicitado ou requerido, e depois de a primeira instancia ter entendido não existir excesso, viola o disposto nos artigos 684º, n° 4, e 661º do C. P. Civil e é nula, ex vi do disposto no art° 668, n° 1 ala d) 2ª parte do mesmo código.
2a - A decisão da primeira instancia não considerou existir excesso da cláusula penal, não tendo abordado esta matéria por entender que tal não lhe foi pedido.
Esta decisão (ou não decisão) transitou em julgado por a ré não ter apresentado recurso sobre a mesma.
Ao apreciar tal questão, que a primeira instancia não apreciou sem que, sobre tal matéria tenha sido interposto recurso, a decisão proferida viola o caso julgado entretanto formado.
3a - A eventual redução da cláusula penal na sentença deve, não só resultar de pedido, expressa ou implicitamente apresentado nesse sentido pelo devedor nisso interessado, mas também ser fundamentada em factos com esta matéria relacionados e que permitam uma decisão fundamentada quanto à existência de exagero manifesto e desproporcionalidade da cláusula, e consequente exigência ética de tal redução.
Inexistindo nos autos qualquer facto que permita fundamentar esta decisão o acórdão proferido ultrapassa o pedido (mesmo implícito) e viola os artigos 659º e 660º, n° 2° do C. P. Civil.
4a - Os factos que eventualmente fundamentem o exagero da cláusula devem ser expressamente alegados e comprovados para que possam fundamentar, além da redução, a determinação do quantum dessa redução.
Não existindo qualquer facto alegado ou provado através dos quais possa ser fixado o quantum da redução, a redução oficiosamente decidida foi-o sem qualquer base ou fundamento sendo o cálculo efectuado infundado e arbitrário.
5a - Os factos que eventualmente fundamentem o exagero da cláusula devem, devem ser expressamente alegados, igualmente, para que possam ser discutidos pelas partes, em contraditório, na instancia.
Nenhuns factos foram alegados ou analisados quanto a esta matéria, sendo tal redução fixada oficiosamente apenas no recurso de apelação, aliás intentado, somente pela autora beneficiária de tal cláusula.
A autora foi confrontada com tal decisão, sem que pudesse contrapor eventuais razões ou alegar factos que obstariam eventualmente a essa redução, pelo que foi violado o princípio do contraditório.
6a - O acórdão analisado, não indica quais os factos provados por força dos quais conclui pelo excesso (muito menos manifesto) da cláusula penal, indicação aliás impossível por não existirem factos alegados ou analisados sobre essa matéria.
Assim, sempre o acórdão será nulo quer por falta de fundamentação art° 659º, n°2 - art° 668º, n° 1, b), quer por força do disposto no art° 668º, d), todos do C. P. Civil.
Pelo exposto, deve ser anulado ou revogado o acórdão proferido e condenar-se a ré a pagar à autora o montante fixado na cláusula penal convencionada, na totalidade e sem qualquer redução, sob pena de ser violado o princípio da liberdade contratual, e os artigos 405º e 406º do C. Civil.
A RÉ:
1ª - Verificando o Tribunal recorrido que a aqui recorrida não alegou ou sequer juntou aos autos qualquer documento que permita aquilatar a existência de prejuízo efectivo pelo facto de não ser concretizado o acordado, constante do contrato promessa de permuta a que se referem ao autos, não poderia deixar de considerar inexistir fundamento para condenação no pagamento de cláusula penal.
2ª - Sendo de realçar, neste particular, que o estabelecimento de cláusula penal, embora possa destinar-se principalmente a evitar dúvidas futuras quanto à determinação da indemnização, terá sempre de ser balizada, em termos de limite máximo, com o dano efectivamente verificado em face do incumprimento correlativo da obrigação.
3ª - Face ao disposto no nº 3 do art. 811º do CC, o "credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal”, o que perante a decisão recorrida está a suceder.
4ª - Tal determinação, além de reforçar a inexigibilidade da cláusula penal por não se verificar dano e prejuízo consequente, justifica que seja o Tribunal a sufragar a existência de negócio usurário, o que se verifica neste caso.
5ª - O douto aresto ora em recurso não aplicou devidamente o disposto no artigo 342º n° 1 e art. 811º, n° 3 do CC, porquanto desconsiderou que inexiste alegação e prova da verificação de danos e que cabia à recorrida - autora faze-lo.
6ª - Dos autos resultam ainda factos provados que levam a concluir que, de facto, existe um excesso manifesto e evidente desproporção na fixação da cláusula penal.
7ª - Alem disso, a decisão do Tribunal da Relação do Porto, com o devido respeito, olvidou que a cláusula do contrato promessa ajuizado padece de nulidade, pois que o valor estipulado como pena, atento os interesses em presença evidenciados nos autos, o valor das prestações que cabiam a cada uma das partes e o resultado real do não cumprimento, consubstancia um claro e evidente abuso de direito e um desrespeito pelo principio da boa fé na formação dos contratos.
8ª - A condenação da recorrente na pena de cento e vinte cinco mil euros, é manifestamente desproporcionada e excessiva, existindo no processo elementos suficientes para, recorrendo à equidade, a reduzir para um valor muito inferior.
9ª - A recorrida não demonstrou nos autos qualquer prejuízo efectivo e, por outro lado, não podia deixar de conhecer a impossibilidade objectiva de execução coerciva do contrato e mesmo assim não se coibiu de tentar fazê-lo, crê-se agora, sempre com o devido respeito, com o único fito de receber choruda indemnização.
10ª - O dispositivo do art. 812º do CC, preceitua que: " a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário ".
11ª - Resulta também dos factos provados que, de facto, existe um excesso manifesto e evidente desproporção no valor fixado a título de cláusula penal.
12ª - Exigindo-se, por via do comando expresso no art. 812º do CC, a intervenção do Tribunal no sentido de ser corrigido o abuso verificado no exercício da liberdade contratual.
13ª - A "pena" fixada no acordo trazido a juízo foi manifestamente excessiva no momento em que foi convencionada face ao próprio valor das prestações.
14ª - E, actualmente, a que se encontra fixada pelo Tribunal recorrido, perante a inexistência de prejuízo efectivo para a recorrida, uma vez que nada perdeu, mantendo aquilo que seria a prestação a que estava obrigada, é igualmente excessiva.
15ª - A que acresce o facto de inexistir qualquer vantagem para a recorrente pelo incumprimento.
16ª - Os interesses envolvidos, a ausência de prejuízo efectivo para a recorrida e de qualquer vantagem para a recorrente será sempre causa bastante para ser operada redução, ajustada ao conjunto de circunstâncias do caso em apreciação, do valor fixado pelo Tribunal recorrido, o que, subsidiariamente, se pede.
Com efeito,
17ª - O Tribunal recorrido ao condenar no pagamento de €125.000,00 (cento e vinte cinco mil euros), sem que fosse alegado e demonstrado nos autos qualquer prejuízo por parte da recorrida operou uma decisão, com base em erro de interpretação do prescrito nos artigos 342º e 811º do CC, por referencia ao artigo 9º do mesmo código.
18ª - E tendo assim decidido acaba por alterar ilegalmente a matéria de facto provada no Tribunal de 1a instância, sem ter ocorrido o condicionalismo do artigo 712º do CPC.
19ª - Assim sendo, o acórdão recorrido deve ser revisto e substituído por decisão que considere que cabia à recorrida-autora alegar e demonstrar a ocorrência de danos, na sua esfera patrimonial, e que, na sua falta, inexiste fundamento para a condenação no pagamento de cláusula penal ou, se tal não for entendido, o que só por mera hipótese será de admitir, cominar a redução da mesma para valor ajustado ao prejuízo efectivo, sob pena de se estar a inverter, ilegalmente, o ónus de prova e beneficiar quem, legalmente, dele não beneficia.
20ª - O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 9º, 342º, 810º, 811º e 812º, do CC, e 712º, do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. Em 12 de Março de 2003, foi celebrado contrato-promessa de permuta, no qual constam como primeiro outorgante “AA – Compra, Venda e Construção de Bens Imobiliários”, e como segundo outorgante BB (Alínea A).
2. Através desse contrato, a primeira e a segunda outorgantes prometeram permutar os imóveis melhor descritos nas cláusulas 1ª e 2ª do contrato junto como documento n.º 1 (Alínea B).
3. Nesse contrato, a primeira outorgante prometeu entregar à segunda outorgante um terreno, com a área de 582 m2, que constitui o lote 11 do loteamento urbano, licenciado pela Câmara Municipal de Vila Real, através do alvará de loteamento n.º1/99, destinando a construção de uma habitação unifamiliar, bem como a construção ali implantada, constituída por cave, rés-do-chão e andar, com a área de implantação e construção de 156 m2 e 282 m2, respectivamente, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real, sob o n.º .../..., da freguesia de Torgueda, e inscrito na respectiva matriz, sob o art. ...º (clausula 1ª e 3ª do documento referido em 1) (Alínea C).
4. Em troca, a segunda outorgante prometeu entregar à primeira outorgante os seguintes prédios:
1.º -prédio rústico, sito no Lugar de G... – R..., composto de terra de cultivo e monte, com a área de 32 000 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de Vila M..., sob o art. ...º;
2.º -prédio urbano, sito no Lugar de R... C..., composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, com a superfície coberta de 90 m2, espigueiro com 16 m2 e logradouro com 794 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de Vila Marim, sob o art. ...º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real, sob o art. ..., da freguesia de Vila Marim (clausula 2ª e 3ª do documento referido em 1) (Alínea D).
5. Aos imóveis objecto de permuta, foi atribuído o valor de €249 938,94 (clausula 4ª do documento referido em 1) (Alínea E).
6. O imóvel prometido permutar pela primeira outorgante abrangia o edifício destinando a habitação, a construir pela própria, no respectivo lote, de acordo com o projecto e memória descritiva que faz parte integrante do contrato-promessa e que se encontra junto como documento n.º 2 (ponto 1 da cláusula 5ª do documento referido em 1) (Alínea F).
7. Ficou salvaguardado o direito de a primeira outorgante efectuar eventuais alterações nas características da construção assim como nos materiais utilizados (cláusula 6ª do documento referido em 1) (Alínea G).
8. A construção da habitação em causa sofreu alterações ao projecto inicial, de acordo com as modificações ordenadas pela ré, que incluíram a utilização de materiais diversos dos previstos naquele projecto, tendo o projecto sido alterado em conformidade e, devidamente, aceite por ambas as partes (Alínea H).
9. De acordo com o mesmo contrato, o edifício em questão seria entregue, pela primeira outorgante, até final do mês de Dezembro de 2003, podendo, no entanto, tal prazo ser prorrogado, verificando-se caso fortuito, de força maior ou motivo atendível (ponto 2 da cláusula 5ª do documento referido em 1) (Alínea I).
10. Ficou, ainda, convencionado que a escritura pública de permuta seria realizada, após a conclusão das obras do edifício destinando a habitação no prédio, a entregar pela primeira outorgante, e a emissão, pela Câmara Municipal de Vila Real, da correspondente licença de utilização (cláusula 8ª do documento referido em 1) (Alínea J).
11. Para o caso de algum dos contraentes faltar ao cumprimento do contrato promessa, as outorgantes convencionaram, a título de cláusula penal, a indemnização de €250.000,00, a pagar pela parte incumpridora (cláusula 11ª do documento referido em 1) (Alínea K).
12. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, foi entregue à ré, por CC, o documento intitulado “declaração”, no qual aquele declara que se, na sequência de posterior aquisição dos prédios supra melhor identificados, viesse a promover uma operação de loteamento, em seu nome e em nome da sociedade gerida, cederia, gratuitamente e à sua escolha, um lote resultante daquela operação, à aqui ré (documento de fls. 65) (Alínea L).
13. Em 30 de Agosto de 2004, a primeira e segunda outorgantes assinaram um documento, no qual declararam que, em cumprimento do contrato-promessa celebrado entre as partes, a autora procedeu à entrega do edifício implantado no lote 11, que, por sua vez, foi recebido pela ré (documento n.º 4) (Alínea M).
14. Em contrapartida, a autora tomou posse dos prédios prometidos permutar pela ré, instalando naqueles terrenos uma grua e diversos materiais destinados a construção civil, e aí procedendo ao depósito de inertes (Alínea N).
15. Decorreu mais de um ano sobre a recepção do referido prédio urbano, por parte da ré, sem que esta manifestasse o intuito de concretizar o contrato-promessa que havia celebrado, através da respectiva e necessária escritura pública (Alínea O).
16. A autora enviou àquela uma carta na qual estipulava um prazo de 15 dias para que apresentasse os documentos necessários para a realização da escritura de permuta, a qual deveria ser celebrada, até dia 20 de Outubro de 2005 (doc. n.º 4) (Alínea P).
17. A ré não entregou à autora os documentos supra referidos (Alínea Q).
18. Tendo enviado, em resposta, uma carta à autora onde apenas informava que “o contrato-promessa de permuta referido na vossa carta ficou nulo e de nenhum efeito, por motivos alheios à nossa vontade” (Alínea R).
19. Os imóveis da ré haviam sido adquiridos por sucessão hereditária, deferida em partilha judicial, por óbito do primeiro marido da ré, que era quem cuidava de todos os bens do casal (Alínea S).
20. Só no final da construção foi obtida a licença de construção, cujo alvará, com o n.º 49/04, foi emitido em 16 de Fevereiro de 2004 (Alínea T).
21. A ré negociou, pelo menos inicialmente, com CC, a permuta dos imóveis referidos no acordo, mencionado em 1 (resposta ao quesito 1º).
22. A ré recusa-se a celebrar a escritura pública de permuta dos imóveis referidos no acordo, mencionado em 1 (2º).
23. A autora mantém interesse na celebração da escritura pública de permuta dos imóveis referidos no acordo, mencionado em 1 (3º).
24. Em data não apurada, anterior a 12 de Março de 2003, CC disse à ré que estava interessado em comprar-lhe os prédios, mencionados em 4 (4º).
25. CC era amigo do primeiro marido da ré, falecido (5º).
26. A ré disse a CC para apresentar uma proposta de compra para os prédios, referidos em 4 (5º).
27. CC comunicou à ré que os terrenos, referidos em 4, eram terrenos agrícolas e que tinham pouca aptidão construtiva (8º).
28. Após o referido em 27, a ré decidiu vender os imóveis, referidos em 4 (9º).
29. A ré comunicou a CC que iria fazer negócio com o mesmo, desde que o preço dos imóveis fosse justo (10º).
30. Aí, o CC prontificou-se a chegar a um acordo, uma vez que conhecia bens os prédios e não queria o prejuízo da ré, que a sua oferta seria feita de acordo com os preços correntes de mercado e equilibrada para ambas as partes e que ele próprio trataria de fazer o levantamento de toda a documentação (11º).
31. Após, CC propôs à ré a troca dos imóveis, referidos em 4, por uma habitação nova, situada no Loteamento do Paço da S..., e um lote de terreno, situado naqueles imóveis, caso fosse permitida a construção de um loteamento nos mesmos (13º/15º/25º).
32. A ré comunicou a CC que aceitava a permuta, nos termos referidos em 31 (14º/15º/25º).
33. Por indicação de CC, a ré deslocou-se a um escritório, situado em Vila Real, junto às instalações da R..., para formalizar, por escrito, o acordo, referido em 31 e 32, assinando a respectiva documentação (16º).
34. Nesse local, encontrava-se já o dito CC, acompanhado de outro indivíduo, de nome DD, e aí, pelo CC, foram-lhe apresentados, para assinar, vários documentos (17º).
35. Na altura, referida em 34, CC e DD mostraram à ré o documento de fls. 7 a 10 dos autos, que a mesma foi lendo, de modo rápido (18º).
36. Após a leitura rápida do documento de fls. 7 a 10, a ré rubricou-o e assinou-o (19º).
37. Os prédios, referidos em 4 (por lapso de escrita, que agora se corrige, na resposta à matéria da base instrutória referiu-se a al. A) e não a D) da matéria assente como o local onde os prédios se encontravam referidos) têm o valor venal de €214.802,77 (27º).
38. Na altura em que a ré decidiu negociar os prédios, referidos em 4, tinha dúvidas se havia de actuar dessa forma ou mantê-los no seu património, por terem sido herdados do seu falecido marido (31º).
39. A construção da habitação, mencionada em 3, não estava concluída em Dezembro de 2003 (33º).
40. A ré procedeu à assinatura do documento, referido em 13, por lhe ter sido comunicado que o mesmo se destinava a pressionar o construtor a concluir as obras da habitação, referida em 3 (35º).
41. A ré, numa reunião realizada em Vila Real, no escritório de advocacia do Senhor Advogado EE, comunicou a CC e DD que não aceitava o negócio a que respeita 1 a 14 (37º).
Encontram-se, ainda, demonstrados nos autos, pelos documentos de folhas 291 e seguintes, os seguintes factos:
a) O prédio rústico, inscrito na matriz predial da freguesia de Vila M..., sob o art...º, referido no ponto 4, encontra-se descrito, na Conservatória do Registo Predial de Vila Real, sob o n.º .../... – fls. 289.
b) A titularidade do direito de propriedade sobre o prédio, referido em a), encontra-se inscrita, a favor da ré, BB, mediante a ap. 21 de 16-03-2004, por partilha judicial – cfr. fls. 289.
c) Sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º ..., referido no ponto 4, mostram-se efectuadas as seguintes inscrições:
1. Ap. 6 de 30-05-1975: aquisição, Causa: compra, Quota adquirida: 1/2, Sujeitos activos: FF, EE, GG, HH, II, JJ, (…);
2. Ap. 6 de 14-05-1987: aquisição, Causa: partilha da herança, Quota adquirida: 4/12, Sujeitos activos: EE, HH, FF, GG, Sujeito Passivo: LL.
3. Ap. 29 de 14-05-1987: aquisição, Causa: herança, Quota adquirida: 2/12, Sujeitos activos: II, JJ, Sujeito Passivo: LL;
4. Ap. 19 de 01-07-1975: aquisição, Quota adquirida: 1/6, Sujeitos activos: BB, Sujeito Passivo: FF; Causa: sucessão hereditária deferida em partilha judicial – cfr. fls. 308 e ss.;
d) A titularidade do direito de propriedade sobre o lote n.º 11 do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real, sob o n.º.../..., referido em 3, encontra-se inscrita, a favor da autora, mediante a ap. 30 de 23-07-1996 – cfr. fls. 300 e ss.;
e) Sobre o lote n.º 11, referido em d), encontra-se inscrito direito de hipoteca, a favor de Caixa Geral de Depósitos, SA., mediante a ap. 13 de 12-01-2000 – cfr. fls. 300 e ss.;
f) Caixa Geral de Depósitos, SA., por intermédio de representante, outorgou o documento a que respeita fls. 312-313, mediante o qual declarou que autoriza o cancelamento do direito de hipoteca, mencionado em e).
*
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da eficácia da cláusula penal.
II – Eventualmente, a questão da redução equitativa da cláusula penal e da fixação do seu devido montante.
I. DA EFICÁCIA DA CLÁUSULA PENAL
I. 1. Defende a ré, num primeiro momento, que não é devida qualquer quantia à autora, a título de cláusula penal, por não se ter demonstrado o dano, efectivamente, verificado, em face do incumprimento correlativo da obrigação.
Entre as vias de coerção privada que visam compelir o devedor ao cumprimento, fazendo pressão sobre a sua vontade para atingir esse efeito, com a possibilidade de ser efectivada a sanção prevista, na hipótese da ineficácia cominatória do meio de coação, destaca-se a cláusula penal.
A cláusula penal, enquanto cláusula acessória típica geral, consiste, na definição constante do artigo 810º, nº 1, do Código Civil (CC), na faculdade que as partes gozam de “fixar, por acordo, o montante da indemnização exigível”, ou, na estipulação, através da qual as partes fixam, antecipadamente, uma determinada prestação, o montante da indemnização, que o devedor terá de satisfazer ao credor, em caso de não cumprimento, ou de não cumprimento perfeito da obrigação contratual[2].
Quer pela sua localização sistemática, e, muito particularmente, pela sua articulação lógica com o nº 1, do artigo 811º, o artigo 810º, nº 1, ambos do CC, ao referir-se à «indemnização exigível», cujo montante pode ser, previamente definido, através de cláusula penal, tem em vista as situações de inadimplemento, cumprimento a destempo ou cumprimento defeituoso da obrigação.
Trata-se de uma cláusula sobre o montante da responsabilidade[3], que não visa apenas estabelecer uma sanção para o incumprimento das obrigações contratuais, mas, também, fixar, previamente, a forma de cálculo da indemnização devida, em caso de incumprimento[4], não tendo, então, o credor da indemnização que provar, com vista à sua validade e eficácia, a existência de danos, nem o seu montante[5].
Com efeito, esta função de liquidação prévia do dano, que o artigo 810º, nº 1, do CC, comina para a cláusula penal, dispensa o credor de fazer prova, através da acção judicial competente, dos prejuízos sofridos, sendo o montante da indemnização aquele que as partes tiverem, antecipadamente acordado[6], prevenindo e evitando as dificuldades de cálculo da indemnização e a intervenção do juiz, para esse efeito, dispensando ao credor a alegação e prova do dano concreto[7].
A cláusula penal resulta de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização, compensatória ou moratória, pelo incumprimento ou retardamento no cumprimento da obrigação, com intuito de se evitarem futuras dúvidas e litígios entre as partes, quanto à determinação do montante da indemnização[8].
Reveste uma função, fundamentalmente, ressarcitiva e tarifada[9], de natureza compulsória, agindo como meio de pressão sobre o devedor, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, com vista ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu, mas cujos danos advenientes do seu incumprimento ou mora, em consequência da inexecução da obrigação ou da violação do contrato, não importa averiguar, nem determinar o seu montante, na hipótese da sua verificação, e bem assim como, igualmente, o respectivo nexo causal.
Destinando-se a substituir a indemnização que seria arbitrada pelo juiz, é exigível nos mesmos casos em que essa indemnização poderia ser reclamada, pressupondo, portanto, em termos gerais, a inexecução da obrigação e a culpa do devedor, isto é, só pode ser efectivada se este, culposamente, não tiver cumprido o contrato[10].
I. 2. Revertendo à situação factual em apreço, importa reter que a autora e a ré celebraram, em 12 de Março de 2003, um contrato-promessa de permuta, através do qual, reciprocamente, prometeram permutar os imóveis identificados, aos quais foi atribuído o valor de €249 938,94, com o respectivo valor venal de €214.802,77, sendo certo que, para o caso de algum dos contraentes faltar ao cumprimento do aludido contrato-promessa, os outorgantes convencionaram, a título de cláusula penal, a indemnização de €250.000,00, a pagar pela parte incumpridora.
Assim, em 30 de Agosto de 2004, em cumprimento do contrato-promessa celebrado, a autora procedeu à entrega do edifício implantado, no lote 11, que a ré recebeu, muito embora, decorrido que foi mais de um ano sobre a tomada do referido prédio urbano, por parte da ré, e tendo a autora enviado àquela uma carta na qual estipulava um prazo de 15 dias para que apresentasse os documentos necessários para a realização da escritura de permuta, que deveria ser celebrada, até dia 20 de Outubro de 2005, a ré não só não entregou à autora os aludidos documentos, como, em resposta, lhe comunicou que “o contrato-promessa de permuta referido na vossa carta ficou nulo e de nenhum efeito, por motivos alheios à nossa vontade”, recusando-se a celebrar a escritura pública de permuta dos imóveis, sendo certo que a autora mantém interesse na sua efectivação.
Deste modo, há que reconhecer que a estipulação acordada entre as partes consubstancia uma cláusula penal, pois que contém uma sanção contra o incumprimento ilícito da obrigação de celebrar o contrato prometido de permuta.
Como assim, o acórdão recorrido, independentemente da demonstração dos danos sofridos pela autora com o incumprimento contratual, com base na cláusula penal acordada pelas partes, dada a sua função indemnizatória, compensatória ou de liquidação prévia do dano, fixou, com total propriedade, em conformidade com o preceituado pelos artigos 810º e 811º, do CC, um determinado montante indemnizatório.
II. DA REDUÇÃO EQUITATVA DA CLÁSULA PENAL E SEU MONMTANTE
II. 1. Afastada que está a falta de fundamento para a condenação da ré no pagamento de um determinado quantitativo, a título de cláusula penal, como esta sustentou, resta analisar a segunda questão decidenda, ou seja, se o montante estabelecido deve ser reduzido, em função da equidade, para um valor ajustado ao prejuízo, efectivamente, sofrido, como a ré defende, portanto, inferior ao fixado pelo acórdão recorrido, ou se, ao invés, esta deve ser condenada a pagar à autora o montante estipulado na cláusula penal convencionada, na totalidade e sem qualquer redução, sob pena de violação do princípio da liberdade contratual, como a última propugna.
A cláusula penal, na sua função de liquidação prévia do dano, é um instrumento de previsão e fixação antecipada, em princípio, invariável, da indemnização a prestar pelo devedor, que o ressarcirá do dano resultante de um eventual não cumprimento ou do seu cumprimento inexato.
Daí que o devedor, vinculado à cláusula penal, não se encontre obrigado ao ressarcimento do dano que, efectivamente, cause ao credor com o incumprimento, mas antes à compensação do prejuízo, negocial e antecipadamente, fixado, através da cláusula penal, sempre que não tenha sido pactuada a indemnização pelo dano excedente, nos termos do disposto pelo artigo 811º, nº 2, do CC[11].
O carácter da liquidação convencional forfetária dos danos impede qualquer pretensão posterior no sentido de ajustar ou de fazer coincidir o montante indemnizatório predeterminado com o prejuízo real verificado, no que se refere à cláusula penal de fixação antecipada da indemnização e à cláusula penal enquanto sanção compulsória, porquanto não se sabe ainda qual o valor efectivo dos danos, nem sequer se eles se virão a produzir, o que significa, tão-só, que, mediante a estipulação das referenciadas cláusulas penais, fica afastada a controvérsia futura sobre a extensão, mas não, também, nestes casos, quanto à existência do dano real.
Com efeito, como não se trata de uma cláusula de garantia, mas antes de uma cláusula penal, o devedor só não será obrigado a pagar a soma preestabelecida se provar a sua falta de culpa, sendo certo que a sua responsabilidade ficará, igualmente, arredada, nestas situações, desde que demonstre a inexistência de qualquer dano que, consequentemente, retira toda e qualquer base à sua liquidação anterior[12].
II. 2. Porém, sendo irrelevante a extensão dos danos, a sua eventual inexistência já não obsta à exigibilidade da pena convencional, na cláusula penal, propriamente dita, que aqui interessa considerar, porquanto não configurando esta uma indemnização, substitui a indemnização, não acrescendo à indemnização, nem à execução específica da prestação, ocupando o lugar do cumprimento, não estando, assim, dependente da prova da verificação do dano.
Deste modo, a cláusula penal «stricto sensu» ou, propriamente dita, visa compelir o devedor ao cumprimento e, simultaneamente, conduzir à satisfação do interesse do credor, aproximando-se da pena compulsória, mas distinguindo-se da pena como liquidação do dano, como indemnização predeterminada, embora, ao contrário da pena compulsória, substitua a indemnização, não acrescendo a esta, nem à execução específica, o que a aproxima da clausula penal como indemnização predeterminada.
Assim sendo, ao celebrar-se o acordo, a fim de pressionar o devedor a cumprir, o credor estipula uma sanção que aquele aceita, ficando legitimado a exigir uma prestação mais gravosa, em alternativa à prestação inicial, desde que esta não seja satisfeita, prestação essa que não passa pela via indemnizatória, que não se reconduz a uma obrigação alternativa, mas antes a uma obrigação com faculdade alternativa do credor[13].
II. 3. Porém, a cláusula penal não pode valer como um simples pacto de simplificação probatória favorável ao credor, como uma simples regra de inversão do ónus da prova, porquanto o montante predeterminado entre as partes obsta a que o devedor venha a pretender a sua redução, até ao montante do dano efectivo, e bem assim como, em princípio, a que o credor obtenha uma indemnização superior aquela que foi, previamente, ajustada.
Preceitua o artigo 812º, nº 1, do CC, que “a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva,…”.
A legislação nacional, para além da situação da cláusula penal usurária, a que alude o artigo 1146º, admite ainda a intervenção do poder judicial equitativo de redução quando a cláusula penal for, manifestamente, excessiva, ainda que por causa superveniente, e quando a obrigação tiver sido, parcialmente, cumprida, nos termos do preceituado pelo artigo 812º, nºs 1 e 2, exigindo, igualmente, a convenção das partes para o ressarcimento do dano excedente, de acordo com o estipulado pelo artigo 811º, nº 2, todos do CC[14].
Destinando-se a cláusula penal a reforçar o direito do credor ao cumprimento da obrigação, a indemnização devida será aquela que tiver sido prevista na pena convencionada, mais gravosa para o inadimplente do que, normalmente, seria[15], que, em princípio, deve ser respeitada, dado o seu caráter «a forfait», e por corresponder à vontade conjetural original das partes, sendo certo que só, em casos excepcionais, deve ser reduzida, com vista a evitar abusos evidentes, situações de clamorosa iniquidade, a que conduzem penas, «manifestamente excessivas», francamente, exageradas, face aos danos efectivos.
A fim de não serem anuladas as vantagens da cláusula penal, respeitando-se a sua intangibilidade, o tribunal não só não deve fixar a pena abaixo do dano do credor, como nem sequer deverá fazê-la coincidir com os prejuízos efectivos verificados, porquanto a redução da pena destina-se, tão-só, a afastar o seu exagero e não a anulá-la[16].
Efectivamente, o devedor não pode, em princípio, pretender pagar uma indemnização inferior ao valor da pena convencional fixada, com exceção, caso em que esta pode ser reduzida, de acordo com a equidade, da situação em que a mesma seja, manifestamente, excessiva[17], ou, extraordinariamente, excessiva, mas não em função do dano efectivo ocorrido que, aliás, o credor não tem de demonstrar, não podendo ter lugar uma intervenção judicial sistemática, sob pena de se arruinar o legítimo e salutar valor correctivo da cláusula penal e de se subestimar o seu caráter «a forfait»[18].
Na verdade, considerando que a cláusula penal não é independente da indemnização, antes fixa a indemnização exigível, mesmo a cláusula penal, manifestamente, excessiva, não pode ser reduzida, oficiosamente, pelo Tribunal, consoante decorre do preceituado pelo artigo 812º, nº 1, do CC, sob pena de violação do princípio da proibição do julgamento «ultra petitum»[19], devendo antes a sua redução ser solicitada pelo devedor interessado, por via de acção ou de reconvenção, ou de defesa por exceção, a deduzir na contestação, mas não, apenas, na fase de alegações, uma vez que para os negócios usurários, em geral, se prescreve o regime da anulabilidade e não o da nulidade, atento o disposto pelo artigo 282º[20], não se justificando, assim, a redução oficiosa, em face do regime legal da anulabilidade, que apenas é invocável pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, com base no preceituado pelo artigo 287º, ambos do CC.
No exercício do seu equitativo e excecional poder moderador, o juiz só goza da faculdade de reduzir a cláusula penal que se revele extraordinária ou, manifestamente, excessiva, tendo sempre presente o seu valor cominatório e dissuasor, e não uma cláusula penal, meramente, excessiva, cuja pena seja superior ao dano.
II. 4. Revertendo ao caso em análise, importa considerar que as partes celebraram um contrato-promessa de permuta de imóveis, a que atribuíram, reciprocamente, o valor de €249 938,94, com o valor venal de €214.802,77, estipulando, a título de cláusula penal, para o respectivo incumprimento de qualquer das partes, a indemnização de €250.000,00.
Assim sendo, uma cláusula penal, no montante de €250.000,00, para a hipótese de incumprimento contratual, em que o valor da prestação de cada uma das partes foi ajustado em €249938,94, ou seja, em quantitativo, praticamente, equivalente, sem embargo de o respectivo valor venal dos bens ser de €214.802,77, não pode ser considerada extraordinária ou, manifestamente, excessiva.
Com efeito, a qualificação de uma cláusula como, manifestamente, excessiva não se identifica com a cláusula, meramente, excessiva, em que a pena seja superior ao dano[21].
E a situação do abuso direito invocada pela ré, a que alude o artigo 334º, do CC, apenas se verifica quando exista o propósito exclusivo de criar à outra parte uma situação lesiva, através do funcionamento da lei, mas já não de uma cláusula contratual, livremente, aceite.
Não sendo a cláusula penal convencionada, manifestamente, excessiva, a sua redução colidiria com a necessária preservação do seu valor cominatório e dissuasor.
Improcedem, portanto, as conclusões constantes das alegações da revista ré, mas procedem as correspondentes alegações da revista da autora.
CONCLUSÕES:
I – A cláusula penal, na sua função de liquidação convencional prévia do dano, é um instrumento de previsão e fixação antecipada, em princípio, invariável, da indemnização a prestar pelo devedor, que ressarcirá o credor do dano resultante de um eventual não cumprimento ou do seu cumprimento inexato.
II - Que dispensa o credor de fazer prova, através da acção judicial competente, da extensão dos prejuízos sofridos, sendo o montante da indemnização aquele que as partes tiverem, previamente, acordado, prevenindo e evitando as dificuldades do cálculo da indemnização e a intervenção do juiz, para esse efeito, dispensando ao credor a alegação e a prova do dano concreto.
III - O devedor não se encontra obrigado ao ressarcimento do dano que, efectivamente, cause ao credor com o incumprimento, mas antes à compensação do prejuízo, negocial e antecipadamente, fixado, através da cláusula penal, sempre que não tenha sido pactuada a indemnização pelo dano excedente.
IV - Destinando-se a cláusula penal a substituir a indemnização que seria arbitrada pelo juiz, é exigível, nos mesmos casos em que essa indemnização poderia ser reclamada, supondo, portanto, em termos gerais, a inexecução da obrigação e a culpa do devedor, isto é, só podendo ser efectivada se este, culposamente, não tiver cumprido o contrato.
V – A cláusula penal «stricto sensu» ou, propriamente dita, visa compelir o devedor ao cumprimento e, simultaneamente, conduzir à satisfação do interesse do credor, mesmo que se demonstre que do seu incumprimento ou mora não adveio qualquer dano, aproximando-se da pena compulsória, mas distinguindo-se da pena como liquidação do dano, embora, ao contrário da pena compulsória, substitua a indemnização, não acrescendo a esta, nem à execução específica, o que a aproxima da clausula penal como indemnização predeterminada.
VI - Porém, a cláusula penal não pode valer como um simples pacto de simplificação probatória favorável ao credor, como uma simples regra de inversão do ónus da prova, porquanto o montante predeterminado entre as partes obsta a que o devedor venha a pretender a sua redução, até ao montante do dano efectivo, e bem assim como, em princípio, a que o credor obtenha uma indemnização superior aquela que foi, previamente, ajustada.
VII - Destinando-se a cláusula penal a reforçar o direito do credor ao cumprimento da obrigação, a indemnização devida será aquela que tiver sido prevista na pena convencionada, em alternativa à prestação inicial, desde que esta não seja satisfeita, mais gravosa para o inadimplente do que, normalmente, seria, e que, em princípio, deve ser respeitada, dado o seu caráter «a forfait» e por corresponder à vontade conjectural original das partes, sendo certo que só, em casos excepcionais, deve ser reduzida, com vista a evitar abusos evidentes, situações de clamorosa iniquidade a que conduzem penas, manifestamente excessivas, francamente exageradas, face aos danos efectivos verificados.
VIII - No exercício do seu equitativo e excecional poder moderador, o juiz só goza da faculdade de reduzir, de modo oficioso, a cláusula penal que se revele extraordinária ou, manifestamente, excessiva, a solicitação do devedor interessado, por via de acção ou de reconvenção, ou de defesa por exceção, a deduzir na contestação, mas não apenas na fase de alegações.
IX – A qualificação de uma cláusula penal como, manifestamente, excessiva não se identifica com a cláusula, meramente, excessiva, em que a pena seja superior ao dano, colidindo a sua eventual redução com a necessária preservação do seu valor cominatório e dissuasor.
DECISÃO[22]:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista da ré, mas em conceder a revista da autora e, na revogação parcial do acórdão recorrido, condenam a ré a pagar à autora, a título de cláusula penal entre ambas acordada, a quantia de €250000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), que confirmam quanto ao demais decidido.
*
Custas da revista, a cargo da ré.
*
Notifique.
Lisboa, 24 de Abril de 2012.
Helder Roque (Relator)
Gregório Silva Jesus
Martins de Sousa
__________________________________
[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.
[2] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 589; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 437.
[3] Castro Mendes, Teoria Geral, 1968, 3º, 345.
[4] STJ, de 20-10-98, CJ (STJ), Ano VI, T3, 73.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 73; STJ, de 9-2-99, CJ (STJ), Ano VII, T1, 97.
[6] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 590 e 591.
[7] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, 2007, 249.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4ª edição, revista e actualizada, 1997, 75.
[9] STJ, de 12-1-94, BMJ nº 433, 559.
[10] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 439 e 440.
[11] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, 2007, 248 e 249.
[12] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 592 e notas (802) e (803).
[13] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 594 e nota (807).
[14] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, 2007, 249 e nota (458).
[15] Antunes Varela, RLJ, Ano 121º, 221.
[16] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 596.
[17] Carvalho Fernandes, Teoria Geral, 1983, 2º, 459.
[18] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, 2007, 273 e 276; Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, 2003, 140 a 142; STJ, de 17-2-1998, BMJ nº 474, 457; STJ, de 7-11-1989, BMJ nº 391, 565.
[19] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, 2007, 275 e nota (502).
[20] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 81 e 82.
[21] Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, 2007, 274; Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Respponsabilidade Civil, 2003, 142 e nota (306).
[22] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.