CONTRATO DE ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
USUFRUTO
CADUCIDADE
USUFRUTUÁRIO
MORTE
NUA-PROPRIEDADE
DIREITO A NOVO ARRENDAMENTO
COMUNICAÇÃO
Sumário



I - Aos arrendamentos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10, não são aplicáveis as normas do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, por não funcionar, quanto a eles, a previsão do art. 26.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27-02.
II - A morte do usufrutuário extingue o usufruto, fazendo reverter para o proprietário de raiz a plenitude da propriedade.
III - Do teor do art. 1051.º, n.º 1, al. c), do CC, não resulta que a morte do arrendatário faça caducar, automática e necessariamente, o contrato de arrendamento, o que só sucede se o direito ou os poderes legais de administração, com base nos quais este contrato foi celebrado, cessarem com tal morte.
IV - Ocorrendo, nos termos do preceito legal referido em II, a caducidade do contrato de arrendamento, e verificando-se os pressupostos a que alude o art. 94.º do RAU, nasce para o arrendatário o direito a um novo arrendamento, direito este que deve ser exercido nos 30 dias subsequentes à caducidade, mediante declaração escrita enviada ao senhorio.

Texto Integral

         Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

         A) Relatório:

         Pelo 2º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Albufeira corre acção de despejo com processo sumário em que são AA AA e mulher, BB, CC e marido, DD, EE, FF e mulher, GG e HH e marido, II, todos identificados nos autos, e RR. JJ e mulher, KK, também identificados nos autos, alegando aqueles, em síntese, que são donos dum prédio urbano para habitação, de que os Réus se tinham tomado arrendatários, por via de contrato de arrendamento celebrado com usufrutuários entretanto falecidos. Perante o decesso dos ditos usufrutuários, os AA comunicaram aos RR a caducidade do contrato, exigindo, mas sem sucesso, a restituição do locado.

Concluem os AA pedindo que os RR sejam condenados a despejar de imediato a fracção, livre e desocupada de pessoas e bens.

Os RR contestaram alegando que os AA não são donos da coisa arrendada, pelo que lhes falta legitimidade para os demandarem; além disso, a R. não é mulher do R., mas sim sua filha; não interveio em qualquer contrato de arrendamento e falta-lhe, por isso, legitimidade para ser demandada; ademais, o Réu celebrou o contrato na ignorância de que o usufrutuário tivesse esta qualidade; aduzem argumentação jurídica contrária à pretensão dos Autores, parte dela assente no facto de que não houve do lado dos AA, durante mais de quatro anos, oposição à permanência dos RR no locado.

Em reconvenção, os RR alegam culpa do locador na ignorância, pelo locatário, da sua qualidade de usufrutuário, bem como realização de benfeitorias pelo locatário.

 O R. conclui pedindo que: a) sejam os AA julgados parte ilegítima, com absolvição dos RR da instância; b) seja a R. KK julgada parte ilegítima, com a sua absolvição da instância; c) não seja a carta junta pelos AA considerada como comunicação de caducidade; d) seja considerado renovado o contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1056.º do Código Civil, ou e) seja conferido ao R o direito a novo arrendamento nos termos do artigo 90.º do RAU, ou então f) sejam os AA. na qualidade de herdeiros do falecido senhorio, condenados no pagamento de indemnização por incumprimento do contrato de arrendamento, a qual se liquidará em execução de sentença, g) sejam os AA condenados no pagamento das benfeitorias introduzidas pelo R no prédio, cujo valor se liquidará em execução de sentença, determinando-se ainda o direito de retenção em virtude daquelas benfeitorias.

Responderam os AA alegando: a) são parte legitima como herdeiros habilitados; b) é culpa do R a R KK estar dada como cônjuge, por ter sido isso que o R transmitiu ao senhorio, devendo a esposa do R ser chamada à acção como R; c) o R sempre teve conhecimento de que o locador era mero usufrutuário; d) a carta enviada ao R constitui suficiente comunicação da caducidade; e) os AA sempre deixaram bem clara a sua oposição à permanência do R no locado; f) está excedido o prazo para que seja concedido novo arrendamento e g) inexiste qualquer direito a indemnização e qualquer direito de retenção – terminando os Autores por dizer que devem improceder todas as excepções invocadas, e deve o R ser condenado como litigante de má fé em multa e em indemnização aos AA não inferior a 500 contos.

Formulam os AA alteração do pedido, baseada em conhecimento superveniente do apetrechamento do locado com móveis e equipamentos, na sequência do que  pedem a condenação do R no pagamento de 500 contos pela desvalorização daquelas coisas, ou de 1000 contos pelo seu desaparecimento.

Os AA pediram ainda a intervenção provocada de LLcomo cônjuge do R, a fim de juntamente com ele intervir na acção.

Proferido despacho saneador, decidiu-se não admitir a alteração do pedido formulada pelos autores e foram julgadas improcedentes as excepções deduzidas.

Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo sido proferida sentença que decidiu:

Absolver os RR do pedido formulado pelos AA quanto a desvalorização ou extravio de mobiliário e equipamento;

Absolver os AA do pedido reconvencional quanto à renovação do contrato de arrendamento; quanto à condenação dos AA por abuso de direito; quanto ao reconhecimento do direito a novo arrendamento e quanto à condenação dos AA no pagamento de indemnização por incumprimento do contrato;

Ordenar o despejo imediato da mencionada fracção;

Condenar os AA a pagarem aos RR o valor das benfeitorias realizadas no locado: arranjos e reparações no sistema eléctrico, na canalização, no pavimento, na cozinha, com substituição duma bancada, e nas casas de banho.

Declarar que gozam os RR do direito de retenção sobre o locado enquanto não se mostre pago o valor das benfeitorias, sem prejuízo do regime legal do direito que ora se reconhece.

         Declarar que não mostram os autos vestígios de litigância de má fé.

         Desta decisão recorreram os RR para o Tribunal da Relação de Évora o qual julgou improcedente a apelação confirmando na íntegra a sentença recorrida.

         Inconformados com o acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação, dele recorrem para o STJ alegando, em conclusão, o seguinte:

         1. Apesar da entrada em vigor da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, se estiverem em causa normas de direito substantivo, como por exemplo as atinentes aos fundamentos da resolução do contrato, o julgador não as poderá aplicar aos casos em apreço em acções pendentes, antes devendo considerar o regime em vigor à data da propositura da acção, pois trata-se de saber se, nessa data, assistia ao Autor o direito que se arroga.

2. A data de propositura da acção é o momento relevante para determinar se os factos invocados têm eficácia constitutiva do direito alegado, ou, no caso das excepções peremptórias, eficácia modificativa, impeditiva ou extintiva do efeito jurídico daqueles. Aos factos em discussão nas acções pendentes à data do início da vigência do NRAU, invocados como causa de pedir ou excepção peremptória, é de continuar a aplicar o RAU.

3.A sentença (confirmada pelo Acórdão recorrido) que considera não ser de aplicar o artigo 90.º e 66.º/2 da RAU, em vigor em 1998, a uma acção proposta em tal data, porquanto tais dispositivos foram eliminados pela Lei 6/2006, referindo ainda que a data de propositura da acção não tem qualquer relevância, viola o disposto no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, artigo 12º do Código Civil e artigo 59º e 65º da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro.

4.Encontrando-se provado nos autos que "por carta registada com Aviso de Recepção, datada de 10 de Julho de 2000, enviada pelos Réus JJ e LL aos Autores, aqueles comunicaram-lhes que pretendiam exercer o direito a um novo arrendamento", e tendo os Autores alegado que tal direito havia caducado por não ter sido exercido no prazo de trinta dias a comunicar da declaração de caducidade do contrato de arrendamento, há que analisar a forma como foi efectuada tal comunicação.

5.Tendo a comunicação sido efectuada por via de carta, não endereçada à interveniente mulher, omissa no tocante à qualidade de usufrutuários dos senhorios, fazendo referência à qualidade de herdeiros dos proprietários, e ainda a um artigo (1.051º) do Código Civil - o qual comporta várias alíneas, e não tendo sido, ao longo dos anos que se seguiram, prestado qualquer esclarecimento quanto ao motivo da alegada caducidade, a comunicação terá de ser analisada em face do disposto no artigo 236º do CC

6. Cabia aos Autores notificar os inquilinos -Réu marido e mulher interveniente -de que o Senhorio havia falecido que este e sua mulher eram usufrutuários, que a sua mulher havia falecido em momento anterior, que o imóvel voltava, assim, ao poder de administração de seus proprietários que não pretendiam manter o arrendamento em vigor, e não apenas enviar uma comunicação, subscrita por advogada na qualidade de legal representem “herdeiros”, na qual refere que o contrato "caducou ao abrigo do disposto no artigo 1051º CC".

7. Não pode valer como comunicação da caducidade do contrato de arrendamento decorrente da morte do usufrutuário, para efeitos de contagem de prazo, a carta remetida por uma advogada em representação de «herdeiros» do falecido, quando não são estes os proprietários do imóvel, ao Réu (omitindo a sua esposa, também ela inquilina), onde se limitam os AA., através da sua representante a dizer que o contrato caducou por morte do senhorio, sem explicarem por que motivo, ao abrigo de um dispositivo legal que contém várias alíneas, sem identificarem, sequer, a que alínea se referem.

8. Tendo o Réu marido e mulher interveniente exercido o direito ao novo arrendamento (Alínea T) da especificação) no prazo de trinta dias a conter da sua citação - data em que alegaram ter tomado conhecimento da caducidade do contrato - cfr. resposta ao quesito 5º, sendo a caducidade do direito ao novo arrendamento um facto extintivo de tal direito - cuja alegação e prova cabia aos Autores, e não tendo os autores provado que o Réu marido e Interveniente mulher tiveram conhecimento da caducidade do contrato de arrendamento em momento anterior - resposta negativa ao quesito 15º -teria necessariamente de ser reconhecido ao Réu marido e mulher interveniente, o direito ao novo arrendamento, nos termos do disposto no artigo 66.º/2 e 90º da RAU.

9. A sentença (confirmada pelo Acórdão recorrido) que determinou não ser de aplicar o RAU, e ainda não existir o direito ao novo arrendamento por parte dos Réus e Mulher Interveniente, viola o disposto artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, artigo 12º do Código Civil, artigo 59º e 65º da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, artigo 66º/2 e90º da RAU, artigo 236º do Código Civil e artigo 324º do Código Civil.

10.Tendo a comunicação de caducidade do direito de arrendamento sido endereçada somente ao Réu Marido, não se poderá considerar, como considerou a sentença proferida (confirmada pelo Acórdão recorrido), que foi endereçada aos "locatários", porquanto, conforme a alínea E) da especificação são locatários "JJ e LL" que tomaram de arrendamento o imóvel para "sua habitação", pois tal manifestação de vontade ou declaração negocial, qualquer que seja a forma que revista, terá de ter como destinatário o locatário que se encontra no gozo da coisa e, sendo uma declaração de natureza receptícia ou recipienda, só produz efeitos logo que se torne conhecida do respectivo destinatário - arts. 224º -1 e 295.º C Civil.

11.Tendo a comunicação sido subscrita por uma Advogada, na qualidade de legal representante dos herdeiros do Sr. MM, quando não são os "herdeiros do Sr. MM" os proprietários do imóvel, esta deverá ser tida por ineficaz, pois tratando-se da prática de um acto obstativo da renovação do contrato caducado ope legis, terá de ser efectuado por quem tem legitimidade activa para o efeito, e em quem detém a legitimidade passiva.

12. Tendo os AA., através da comunicação que se encontra especificada na alínea P), comunicado ao Réu marido, três anos após alegada oposição, e decorridos esses 3 anos sem que tivessem proposto a acção judicial de despejo, ou efectuado, sequer, qualquer contacto com os Réus e mulher interveniente que "o edifício em questão ficou para o Senhor AA, Rua......... - Estação, 4605 Vila Meã. Portanto, a correspondência respeitante à casa, assim como a importância do aluguer deve ser endereçada à morada acima", tal declaração consubstancia uma revogação da oposição ao arrendamento, pois se fosse intenção dos AA. que os Réus restituíssem o locado não informariam, decorridos 3 anos sobre uma eventual caducidade do arrendamento, a quem tinha sido adjudicado o bem e a quem deviam ser pagas as rendas, bem como o respectivo local.

Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto suprimento de V.Exa. deverá a Douta Decisão proferida ser substituída por decisão que, julgando procedente o presente recurso, por provado:

a) reconheça o direito dos Réus e interveniente mulher a um novo arrendamento, nos precisos termos do disposto no artigo 90º e 66º/2 do RAU;

b) determine a caducidade do direito dos AA., por aplicação do disposto no artigo 1.056º do CC.

         Não foram apresentadas contra-alegações.

         Tudo visto,

         Cumpre decidir:

         B) Os Factos:

         São os seguintes os factos dados como provados pelas instâncias:

         Em 11 de Março de 1974, compareceram no 22 Cartório Notarial do Porto: como primeiro outorgante, NN; como segundos outorgantes, EE, BB e marido,AA, CC e marido, DD; como terceiros outorgantes, MM e mulher, OO, tendo o primeiro outorgante declarado que a sociedade ...................., SARL, sua representada, é dona e legitima possuidora de um prédio urbano, que se compõe de rés-do-chão, casa de banho e cozinha, e primeiro andar com três quartos de dormir, casa de banho e terraços, com garagem e arrecadação, com a área coberta de 117 m2. e logradouro com a área de 64 m2, denominado ‘Moradia n.º ....., a confrontar do Nascente, Poente e Sul com PP, e do Norte com Rua ....., no sitio de Montechoro, Freguesia e concelho de Albufeira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º 0000 a folhas 118 do livro 8-20, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Albufeira sob o artigo 4206.

Declarou também vender aos segundos outorgantes, que por sua vez declararam aceitar, em comum e partes iguais, e pejo preço de 250 contos, a raiz ou nua propriedade do prédio provado em A).

Declarou igualmente vender aos terceiros outorgantes, que por sua vez declararam aceitar, pelo preço de 150 contos, o usufruto sobre o prédio provado em A).

Encontra-se inscrito na matriz predial urbana, Freguesia e concelho de Albufeira, um prédio urbano com o artigo 4206, no sitio de Montechoro, com a área coberta de 87 rn2 e logradouro com a área de 64 m2, denominado ‘Moradia n.º ....., composto por primeiro andar com três quartos de dormir, casa de banho e terraços, com garagem e arrecadação, a confrontar do Nascente, Poente e Sul com PP, e do Norte com Rua ....., constando como titular do direito ao rendimento MM.

Por acordo meramente verbal, JJ e LL tomaram de arrendamento a MM, e mulher, o prédio provado em A).

Do assento de óbito n.º 369 de 30 de Outubro de 1989, consta declarado o falecimento de OO ocorrido a 29 de Outubro de 1989.

Pela apresentação n.º 25/900605, foi registada na Conservatória do Registo Predial de Albufeira a aquisição em comum, por compra a ...................., SARL, do prédio provado em A), a favor de EE e marido, FF, BB e marido, AA, e CC e marido, DD, todos casados em comunhão geral.

No dia 2 de Março de 1994, compareceram duas testemunhas no Cartório Notarial de Penafiel, as quais declararam em escritura de habilitação que no dia 28 de Maio de 1993 tinha falecido FF no estado de casado com EE.

Declararam também que o falecido não fez testamento ou qualquer outra disposição de ultima vontade e deixou como seus únicos herdeiros, além do cônjuge, os filhos FF, casado com GG, e HH , casada com II.

Do assento de óbito n.º 335 de 29 de Setembro de 1995, consta declarado o falecimento de MM ocorrido a 28 de Setembro de 1995.

Em 25 de Outubro de 1995, por carta registada com aviso de recepção dirigida ao Réu JJ pelos herdeiros de MM, através da sua mandatária, estes davam-lhe conhecimento do seguinte: “Na qualidade de legal representante dos herdeiros do senhor MM, falecido na data de 28 de Setembro corrente, venho por este meio comunicar a V. Ex. que o arrendamento relacionado com o prédio urbano, denominado “Moradia n.º 0000” no sitio de Montechoro, freguesia e concelho de Albufeira, descrito na matriz urbana sob o artigo 4206, caducou por força do artigo 1051.º, CC. Comunicando pela mesma via desde já a V. Ex. que os herdeiros não pretendem renovar o arrendamento, uma vez que o referido prédio se destina a casa de ferias que os mesmos para si pretendem reivindicar.

A carta provada em K) foi recebida pela Ré KK.

O Réu remeteu aos herdeiros e familiares de MM a carta datada de 30 de Outubro de 1995, onde lamentava profundamente a morte daquele e dizia que seguia cheque no valor de 12.428 escudos sobre o BPSM para pagamento da renda da moradia 0000 em Montechoro, correspondente ao mês de Novembro de 1995, informando ainda, sobre a carta da advogada dos herdeiros, que a mesma seria respondida em breve por ele e pelo seu advogado, sr dr QQ.

Por carta de 31 de Outubro de 1995, o Réu JJ, através do seu mandatário remeteu uma carta à advogada dos Autores, da qual consta, além do mais: “O meu constituinte é locatário do prédio urbano referido, há mais de vinte anos; desde o arrendamento que instalou no referido prédio a residência permanente da fami1ia, residência que ainda lá mantém. Face ao referido, não vislumbro qual a razão e fundamento legal que a Exma. Colega invoca. Contudo, fico ao inteiro dispor da Exma. Colega para análise do assunto, bem como, e caso os herdeiros pretendam, transmitir ao meu constituinte eventuais hipóteses de alienação do bem em causa”.

DD enviou ao Réu JJ carta de 21 de Dezembro de 1995, na qual comunicava o seguinte: “…O assunto em causa está entregue à Exma. Advogada da família, que se encontra mandatada para a resolução dos nossos assuntos. Oportunamente, a mesma comunicará com V.Ex., a fim de solucionar o problema. Mais se informa que os cheques que têm sido enviados se encontram em poder da mesma Exma. Advogada, assim como os recibos”.

No dia 20 de Outubro de 1998, o Autor DD endereçou ao Réu a carta de folhas 58, dando-lhe conhecimento do seguinte: “Serve a presente para cumprir o que lhe prometi na nossa ultima conversa. Quando soubesse para quem ficou o edifício de que V.Ex é inquilino, de o informar. Assim, nestas condições, dou conhecimento de que o edifício em questão ficou para o sr.AA, rua 5 de Outubro-Estação, 4605 Vila Meã. Portanto, a correspondência respeitante à casa, assim como a importância do aluguer, deve ser endereçada à morada em cima citada”.

O Réu enviou em 3 de Março de 1999 aos herdeiros de MM, e ao cuidado de DD, a carta de folhas 59/60, na qual dava conhecimento de que havia depositado na Caixa Geral de Depósitos de Albufeira a quantia de 12.428 escudos, ao abrigo do disposto no artigo 22.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 3218/90, de 15 de Outubro.

Nessa carta, referindo-se ao depósito, dizia ainda o Réu o seguinte: .. …Tal situação deveu-se ao facto de o meu constituinte desconhecer, em virtude do falecimento do senhor MM, quem é o actual proprietário do prédio que traz arrendado. Assim, segundo informações recebidas do mesmo, já por várias vezes havia sido requerida a V. Ex. cópia da escritura de partilhas, de modo a permitir ao meu constituinte a identificação do actual proprietário do prédio arrendado, sendo que nunca a mesma lhe foi remetida. Solicitava, assim, a V. Exs que remetessem ao meu constituinte cópia de certidão predial do prédio, de onde se possa aferir quem é o titular inscrito, de modo a que as rendas lhe passem a ser pagas directamente. Caso V. Exs. não dêem cumprimento ao solicitado, ver-se-á o meu constituinte na contingência de efectuar, mensalmente, os depósitos respeitantes à renda na referida instituição bancária”.

No mês de Março e Junho de 1999 a Junho de 2000, o Réu JJ depositou o valor da renda na Caixa Geral de Depósitos, alegando como motivo “Desconhecimento do actual Proprietário”.

Por carta registada com aviso de recepção, datada de 10 de Julho de 2000, enviada pelos Réus JJ e LL aos Autores, aqueles comunicaram-lhes que pretendiam exercer o direito a um novo arrendamento.

O Réu e a interveniente, pelo menos desde a citação para a presente acção, conhecem a qualidade de usufrutuários do prédio provado em A) de MM e OO.

Houve a troca de correspondência constante das alíneas K), L), M), N), O), P), Q), R) e T).

Os Réus procederam a arranjos e reparações no sistema eléctrico, na canalização, no pavimento, na cozinha, com substituição duma bancada, e nas casas de banho.

Foi escrito o que consta fotocopiado a folhas 104.

C) O Direito:

No presente recurso entendem os RR terem direito a um novo arrendamento, por serem aplicáveis ao caso em apreço as normas contidas nos arts.90º e 66ºnº2 do RAU; entendem ainda os recorrentes ter caducado o direito dos AA face ao disposto no art.1056º do Código Civil (CC).

O arrendamento foi celebrado no domínio da vigência do Código Civil: na verdade embora se tratasse de um contrato verbal ele já existia há data da morte do locador, pelo menos há mais de vinte anos. Assim, no entender dos recorrentes, são aplicáveis as normas do Código Civil bem como as do R.A.U. ínsitas no Decreto-Lei nº321-B/90 de 15 de Outubro.

As instâncias entenderam que com a entrada em vigor do novo regime do contrato de locação operada pela Lei nº6/2006 de 27 de Fevereiro, por força do art.12ºnº2 do CC, deixou o ius vetus de ser aplicável ao caso vertente.

Salvo o devido respeito tal não merece acolhimento.

Quando confrontados com várias fontes de direito, colocadas no mesmo nível hierárquico, mas reportadas a tempos diversos, aplica-se o princípio fundamental de que a lei nova revoga a lei antiga (ou a fonte jurídica nova revoga a antiga). Só que este princípio, simples na sua concepção, não contém, em si, a resolução de todas as dificuldades surgidas com a sucessão de leis no tempo.

O direito fazendo parte da vida não é toda a vida e a lei sendo, apenas, uma parte do direito não constitui todo o direito. A lei nova é sempre o resultado da evolução de um dado momento que se entronca num contínuo processo de modificação social. Por isso os “antes” e “depois”, separados pelo momento do nascimento da nova lei, representam, no dizer do Prof. Oliveira Ascensão, uma violência sobre a continuidade da vida social. “Há sempre, continua o mesmo professor, situações juridicamente relevantes que, tendo origem no passado, tendem a prolongar-se para futuro: nem tudo terminou já e nem tudo vai começar de novo”. São, pois, estas situações que o art.12º do CC tende a resolver.

O art.12ºnº1 do CC proclama que a lei só dispõe para o futuro. A ideia geral a retirar deste normativo é que o imediatismo da lei nova não actua sobre o passado, ou seja, que a regra é que o ius novum só dispondo para o futuro não pode ser retroactivo.

Duas são as razões, aceites pela generalidade da doutrina: a necessidade de segurança: se o passado pudesse sempre voltar a ser posto em causa ninguém estaria seguro do destino dos actos hoje praticados; a previsibilidade das consequências das condutas, que a existência de regras  torna em geral possível e que permite ao direito orientar as acções humanas, seria excluída se a lei fosse retroactiva. E então o direito desligar-se-ía da vida.

O critério distintivo da lei portuguesa, com o qual se procura concretizar o princípio muito geral de que a lei só dispõe para o futuro está contido no art.12ºnº2 do CC. Dele resulta que só se aplica: a) aos factos novos, a lei que dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos; b) às próprias situações já constituídas, a lei que dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem.

Da análise do dispositivo ínsito no nº2 do art.12º do CC vemos que o mesmo não tem aplicabilidade no caso vertente. Não está em causa qualquer disposição sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos e mesmo que o estivesse a primeira parte do nº2 do citado artigo só funcionaria em caso de dúvida ( o que significa se a situação tiver uma solução categórica aplica-se tal solução se a não tiver, se a ambiguidade se mantiver, então é que se aplica a regra subsidiária legal).

Também não tem aplicação ao caso em apreço a 2ª parte do nº2 do art.12º uma vez que não estamos em presença de disposições directas sobre o conteúdo de certas relações jurídicas abstraindo-se dos factos que lhe deram origem. Esta abstracção dos factos que deram origem às relações jurídicas existentes constitui a pedra de toque da construção normativa em análise. As relações jurídicas existentes, in casu, não podem ser abstraídas do contrato de arrendamento (facto que está na génese de tais relações).

A ser assim todas as relações jurídicas decorrentes dos contratos de arrendamento celebrados em momento anterior ao ius novum estariam em situação de ruptura por não aplicação do ius vetus.

Afastada que está a aplicação do art.12ºnº2 do CC há que ter em conta o disposto no art.12ºnº1 do citado código, ou seja, o do princípio da não retroactividade da lei e, como tal, ao caso que aqui interessa, a vigência do velho R.A.U.

Na verdade as normas transitórias da Lei nº6/2006, de 27 de Fevereiro, não prevêem a aplicação deste diploma legal ao caso vertente. Diz o art.26ºnº1 do novo R.A.U. que “os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Decreto-Lei nº321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificações dos números seguintes”. Acontece, porém, que o contrato em apreço foi celebrado em data anterior (cerca de 1974) à vigência do velho R.A.U. pelo que, como dissemos lhe são inaplicáveis as disposições do regime de arrendamento vigente.

Assim, na vigência do velho R.A.U. (Decreto-Lei nº321-B/90 de 15 de Outubro) dispunha o art.66ºnº1 daquele diploma legal: “Sem prejuízo do disposto quanto aos regimes especiais, o arrendamento caduca nos casos fixados pelo art.1051º do Código Civil). Por seu turno o art.1051ºnº1 c) do CC rezava que “o contrato de locação caduca quando cesse o direito ou findem os poderes legais, de administração com base nos quais o contrato foi celebrado”.

A jurisprudência tem vindo a entender (por todos Ac. STJ proc.nº107/05.STBAMD.L1.S1 in base de dados do ITIJ) que existindo um usufruto (simultâneo, sucessivo e vitalício), com a morte do (último) usufrutuário caduca o contrato de arrendamento celebrado, atento o disposto no art.66ºnº1 do R.A.U. e no art.1051ºnº1 c) do CC.

A jurisprudência do STJ tem-se fundado numa análise quase literal do conteúdo da alínea c) do nº1 do art.1051ºdo CC.

A lei não diz que a morte do usufrutuário faz caducar automaticamente o contrato de arrendamento.

A morte do usufrutuário extingue o usufruto dando-se a reunião na mesma (ou nas mesmas) pessoas do usufruto e da propriedade (art.1476ºnº1 a e b) do CC).

O usufruto é o direito de gozar – de usar e de fruir – uma coisa ou um direito de outrem, sem todavia afectar a substância do objecto usufruído. O jurista romano Paulus dizia que “usufructus est jus alienis rebus utendi, fruendi salva rerum substantia”. Toda a situação de usufruto supõe, implica um concurso de direitos reais. Onde existe um usufruto, coexiste uma propriedade esvaziada do “usus” e do “fructus”, ou seja, uma nua propriedade ou propriedade de raiz.

O usufrutuário tem integralmente o poder de uso e de fruição (jus utendi ac fruendi) mas no concurso com a nua propriedade ninguém possui plenamente o “jus abutendi”. Na verdade os direitos inerentes ao usufrutuário e ao nu-proprietário ainda que exercidos separadamente não estão totalmente desvinculados e podem inclusive ser exercidos pelos dois (proprietário de raiz e usufrutuário) desde que se encontrem de acordo.

Do que ficou dito resulta que o usufruto é um “jus in re aliena”, um direito real sobre coisa alheia, um direito real integrado pelas faculdades de uso e fruição sobre uma coisa que, em propriedade, pertence a outrem.

Isto significa que não existe uma compartimentação estanque entre os direitos e poderes do usufrutuário e os do proprietário de raiz. Aliás o regime legal do usufruto não é em geral de carácter injuntivo (cfr. art.1445º do CC) havendo mesmo ampla liberdade das partes na estipulação do conteúdo do usufruto.

 A ampla liberdade de actuação do usufrutuário tem a sua contrapartida na existência de vinculações. Uma resulta do próprio art.1439º do CC que dá a definição de usufruto – respeitar a forma ou substância da coisa – e duas outras que decorrem do art.1446º do CC: respeitar o seu destino económico e administrá-la como faria um bom pai de família.

Na verdade, não é totalmente alheia ao proprietário de raiz a administração que o usufrutuário possa fazer da coisa fruída. Se aquela não for feita com a diligência prevista no art.1446º, o usufruto não se extingue, assim o estabelece o art.1482º, mas o proprietário pode, se o abuso se lhe tornar consideravelmente prejudicial, exigir que a coisa lhe seja entregue, ou que se tomem as previdências previstas no art.1470º do CC.

Dizer-se que a morte do usufrutuário faz caducar automaticamente o contrato de arrendamento não nos parece poder retirar-se do conteúdo do art.1051ºnº1 c) do CC. Na verdade o contrato de locação caduca quando cesse o direito ou findem os poderes legais com base nos quais o contrato foi celebrado. Esses direitos e poderes legais findaram para o de cujus (usufrutuário) mas não se extinguiram, passaram (com a união do usufruto e da nua propriedade) para o acervo de direitos e poderes do pleno proprietário, o qual na vigência do usufruto poderia inclusive ter acordado com o usufrutuário em exercê-los conjuntamente.

A morte do usufrutuário faz reverter para o proprietário de raiz a plenitude da propriedade, ou seja, une na mesma esfera jurídica o “ius utendi, fruendi ac abutendi” e nesse sentido, em nosso entender, transfere mas não extingue automaticamente o contrato de locação. Uma tal extinção só acontecerá se o direito ou os poderes legais de administração, com base nos quais o contrato foi celebrado, cessarem efectivamente, independentemente do facto morte do usufrutuário.

Este entendimento merecerá adiantamentos posteriores não absolutamente necessários à solução do caso vertente, razão pela qual nos limitamos a formular uma nova aproximação interpretativa que certamente nos conduzirá a desenvolvimentos futuros.

De qualquer forma e independentemente da evolução jurisprudencial que esta matéria venha a ter, no caso subjudice, os arrendatários, de acordo com o disposto no art.66ºnº2 do R.A.U., têm direito a um novo arrendamento nos termos do art.90º do mesmo diploma legal.

Com a verificação da caducidade do contrato de locação (interpretativamente concedendo), nos termos do art.1051ºnº1 c) do CC, nasce para o arrendatário o direito a um novo arrendamento, direito esse que deve ser exercido, como o foi pelos ora recorrentes, mediante declaração escrita enviada ao senhorio nos trinta dias subsequentes à caducidade do contrato anterior (art.94ºnº1 do R.A.U.), contando-se tal prazo a partir do conhecimento pelo arrendatário da caducidade do direito de arrendamento.

Compulsada a matéria de facto provada não só se verifica a comunicação, em 25 de Outubro de 1995, aos arrendatários da morte do usufrutuário, para os efeitos do art.1051ºnº1 c) do CC, e a sua intenção de pôr termo ao contrato de arrendamento, como se verifica também que os arrendatários por cartas datadas de 30 e de 31 de Outubro de 1995 manifestaram a intenção de permanecer no locado onde habitam há mais de vinte anos, chegando mesmo a colocar a hipótese de uma eventual compra do prédio arrendado.

Daí que, admitindo a hipótese da caducidade do arrendamento por morte do usufrutuário, nos termos em que tal caducidade tem merecido aceitação jurisprudencial, sempre se dirá que no caso vertente têm os RR, ora recorrentes, direito a um novo arrendamento nos termos do arts.66ºnº2 e 90º do R.A.U. (Decreto-Lei nº321-B/90 de 15 de Outubro), por se encontrarem preenchidos os requisitos impostos pelo art.94ºnº1 do mesmo diploma legal e por ser este o diploma aplicável ao caso em apreço.

Assim, não podemos concordar com o acórdão do Tribunal da Relação que confirmando a sentença da 1ª instância, entendeu não ser aplicável aos autos o regime do antigo R.A.U. em face do disposto no art.12ºnº2 do CC.

Em nosso entender o art.12ºnº2 do CC é inaplicável ao caso vertente e consequentemente o regime a considerar é o decorrente do R.A.U. (Decreto-Lei nº321-B/90 de 15 de Outubro) uma vez que sendo o contrato de arrendamento anterior ao velho R.A.U. não funciona quanto a ele a previsão do art.26ºnº1 da Lei nº6/2006 de 27 de Fevereiro.

Com a caducidade do arrendamento (por morte do usufrutuário) adquiriram os RR direito a um novo arrendamento (arts.66ºnº2 e 90º) uma vez que se encontram cumpridas as exigências do art.94ºnº1, todos do R.A.U.

Em face do exposto encontra-se prejudicada a apreciação da segunda questão colocada pelos recorrentes.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em conceder revista, revogando o douto acórdão recorrido e, consequentemente, absolvendo os RR do pedido formulado pelos AA. Mantém-se, contudo, o acórdão da Relação, no mais que não foi objecto do presente recurso e não colida com a decisão ora proferida.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 03 de Maio de 2012

Orlando Afonso (Relator)

Távora Victor

Sérgio Poças