I – Nas acções de filiação, sendo a causa de pedir a filiação biológica, os exames de sangue admitidos como meio de prova à luz do art. 1801.º do CC, designadamente os “testes de ADN”, são os que com maior fiabilidade próxima da certeza tornam possível estabelecer que determinado indivíduo procede biologicamente de outro.
II – Sendo o pretenso pai já cadáver a realização de tais exames faz-se com recurso à respectiva exumação.
III – Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular (art. 71.º, n.º 1 do CC), designadamente os interesses próprios afirmados ou potenciados em vida do defunto. Visando-se a protecção das pessoas falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respectiva personalidade, física ou moral, que exista em vida e permaneça após a morte.
IV - Os direitos referidos em III respeitam aos interesses dessas pessoas em vida e não ao cadáver ou às pessoas a quem a lei atribui legitimidade para os exercer.
V – O direito à identidade pessoal, constitucionalmente consagrado no art. 26.º, n.º 1, da CRP, inclui, além do mais, os vínculos de filiação, consagrando-se um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento deste.
VI – Na colisão de direitos constitucionalmente protegidos, como os referidos em III e V deve privilegiar-se o direito à identidade pessoal.
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
AA intentou acção declarativa condenatória, sob a forma de processo comum ordinário, contra BB, CC e DD, esta na qualidade de representante da menor EE pedindo que, na procedência da acção, seja reconhecido e decretado que a autora é filha de BB, ordenado o averbamento de tal paternidade e da avoenga daí resultante ao assento de nascimento da autora e condenados os réus a reconhecer a autora como filha de BB.
Alegou, para tanto, e em suma, que a sua mãe, FF, manteve relações de cópula completa com BB nos cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, resultando desse relacionamento o seu nascimento.
A partir de 1985 BB passou a tratá-la como filha, assim a identificando junto dos seus familiares, mantendo esse tratamento até à data da morte que ocorreu em 27.11.2008.
Contestaram os réus – filhos de BB –, além do mais, por excepção, invocando a caducidade da acção, ao abrigo do disposto no art. 1817. ° CC.
Na réplica, a autora manteve estar em tempo para deduzir a sua pretensão.
O senhor Juiz de 1.ª instância, no despacho saneador, julgou improcedente a excepção, entendendo, face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do disposto no art. 1817.º, n.º 1 do CC[1], proferida pelo Ac. (TC) n.º 23/06, de 10-01, não haver actualmente prazo para a acção de investigação de paternidade.
Mais procedeu à selecção da matéria de facto assente e controvertida (base instrutória).
A autora apresentou o seu requerimento de prova, no qual requereu a realização de prova pericial, com realização de exames hematológicos e exumação do cadáver de BB, pretenso pai.
Os réus vieram opor-se à realização de exames hematológicos nas suas pessoas e ainda à exumação do cadáver de BB, invocando “convicções pessoais, religiosas e espirituais”.
O tribunal de primeira instância proferiu despacho de admissão da prova pericial requerida, do qual os réus vieram interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, onde, por acórdão de fls. 139 e ss., se decidiu julgar parcialmente procedente a apelação e conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e, nessa conformidade, se indeferindo a exumação do cadáver de BB para efeitos de recolha de material biológico para realização de testes genéticos de ADN.
Irresignada, veio a autora interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - Nos termos do art. 68, n.° 1 do Código Civil, a personalidade cessa com a morte, pelo que o cadáver não pode, pois, ser titular de quaisquer direitos ou obrigações, justamente por não ter personalidade jurídica;
2ª - No quadro jurídico contemporâneo o cadáver não é titular de direitos, já que a titularidade de direitos e obrigações pressupõe a personalidade jurídica que, como é sabido, é a susceptibilidade de tal titularidade, no sentido técnico-jurídico e não no domínio filosófico ou jusnaturalista (posição defendida por este Supremo Tribunal de Justiça no seu Douto Acórdão de 15.12.2011, consultável na página da DGSI, referente ao processo n.º 912-B/2002.C1.S1, em que foi Relator o Juiz Conselheiro Álvaro Rodrigues);
3ª - Mas o facto de o cadáver não ser titular de direitos não significa que o ordenamento jurídico deixe sem tutela as agressões materiais ou imateriais perpetradas contra a memória ou os restos mortais da pessoa falecida. Esta tutela revela-se no domínio jurídico-criminal, uma vez que o Código Penal criou os tipos legais de crime de impedimento ou perturbação de cerimónia fúnebre e de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previstos e puníveis pelos arts 253.º e 254.º, cujo bem jurídico tutelado é, precisamente, o sentimento de piedade para com os mortos (note-se que o conceito de piedade, como refere o Ilustre Penalista, Prof. Damião da Cunha, está referido não ao sentido comum de compaixão, mas mais ao sentido original e latino do mesmo, de respeito face a entidades que transcendem a existência singular. Trata-se de um bem jurídico imaterial - in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 651 a 653) e a possibilidade da sua livre expressão (art. 253.º) e o mesmo sentimento, como expressão da colectividade (art. 254.º); e revela-se ainda na área jurídico-civil, concretamente no art.º 71.º do Código Civil que é a matriz normativa, por excelência, da tutela dos defuntos, mas daqui não se extraindo, porém, que seja tutelado qualquer direito de personalidade do falecido qua tale, exactamente porque o cadáver não é titular dos direitos de personalidade que gozava em vida;
4ª - Portanto, o cadáver não é titular de direitos, mas apenas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do art. 71.º do Código Civil;
5ª - Na presente acção de investigação de paternidade a causa de pedir assenta, por um lado, no circunstancialismo alusivo à paternidade biológica, e, por outro lado, em factos integradores da presunção a que alude a al. a) do n.º 1, do art. 1871.º do Código Civil;
6ª - Quanto à filiação biológica, o Tribunal tem que conhecer directamente do facto biológico da procriação, uma vez que a autora, por não estar impedida de o invocar, tem o ónus de o provar. E esta filiação biológica pode ser provada mediante a realização de exames biológicos a efectuar ao cadáver do BB; aliás, deve mesmo sê-lo, pois que nada o impede, antes, pelo contrário, a prudência e o bom senso assim o recomendam, uma vez que sobre esta matéria factual, não restam dúvidas de que a prova pericial ao ADN representa o meio directo mais fiável para a descoberta da verdade;
7ª - Importa, porém, ter em conta que a Douta Relação do Porto nada objectou, antes pelo contrário, aceitou como acertados os critérios de conveniência e de oportunidade deste concreto meio de prova;
8ª - Assente, portanto, que o cadáver do investigado BB não é titular de direitos, mas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do art.º 71º do Código Civil, importa dizer que na realização da colheita do material cadavérico para a realização dos testes do ADN, a levar a cabo por entidade competente e dentro dos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, não há objectivamente qualquer violação de direitos, tendo em atenção o direito da autora à sua identidade pessoal.
9ª - A exumação do cadáver do investigado BB, nunca poderá, pois, conduzir à profanação do cadáver e não contende com qualquer direito de personalidade do cadáver, já que a sua morte marcou o termo da sua personalidade jurídica e o fim da sua pessoa, enquanto sujeito de direitos, pelo que a predita diligência não carece nunca do consentimento dos réus, enquanto herdeiros daquele BB;
10ª- Atento o sentido da prevalência do direito à investigação da paternidade hodiernamente dominante e na compatibilização de tal direito com o direito à reputação e intimidade do falecido e aos sentimentos dos réus, o acto de exumação do cadáver do investigado BB com vista à extracção do material necessário à realização do adequado exame de ADN, não é, por si só, causador de qualquer alarido social e não constitui profanação de cadáver porque será realizada por técnicos especializados, os quais, colhido o material necessário, restituirão à sepultura a forma e a estrutura em que se encontra presentemente e sem a danificarem minimamente;
11ª- O acto de exumação do cadáver do investigado BB com vista à extracção do material necessário à realização do adequado exame de ADN não afecta, pois, a dignidade humana, o bom nome, a reputação ou a intimidade da vida privada dele e os sentimentos de piedade dos réus para com o cadáver do seu familiar, como vem defendido no Acórdão em mérito.
12ª- O Tribunal Constitucional no seu Acórdão de 08.06.1988, publicado no BMJ, 378 -141, entendeu que "a afirmação do artigo 68.º do Código Civil, segundo a qual a personalidade cessa com a morte, vale igualmente no campo do direito constitucional, em conformidade com o carácter eminentemente subjectivo dos direitos fundamentais, pelo que, cessando a personalidade, não poderão reconhecer-se direitos fundamentais ao cadáver, nem admitir-se a transmissibilidade daqueles direitos pessoais para outrem"
13ª- Assim, e salvo melhor entendimento, não assiste razão à Douta Relação do Porto quando refere que "sem o consentimento dos herdeiros do falecido, cremos não haver fundamento para o direito da autora à sua identidade pessoal se sobrepor ao direito dos réus à defesa dos seus sentimentos para com a memória do seu pai"
14ª- É, pois, irrelevante a oposição manifestada pelos réus à exumação do cadáver do investigado, quer porque essa oposição não tem sequer apoio na lei, quer porque a exumação não está sequer dependente do consentimento deles;
15ª- E, assim sendo, não pode a oposição dos réus comprimir, ou melhor sobrepor-se ao direito da autora à identidade pessoal, este que é, sem dúvida, um direito consagrado constitucionalmente – art. 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
16ª- Verificou-se, pois, assim uma incorrecta interpretação e aplicação da lei;
17ª- O douto acórdão em mérito violou portanto o disposto nos art. 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, nos arts. 68.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 do Código Civil e nos arts. 577.º e 578.º do Código de Processo Civil, entre outros.
Conclui pedindo a revogação do acórdão na parte em que considerou ser legítima a oposição à exumação do cadáver do investigado BB por parte dos seus filhos, os réus, e que por via disso indeferiu a realização da diligência, devendo antes confirmar-se o douto despacho da primeira instância.
Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais cumpre agora apreciar e decidir.
Vem dado como PROVADO da Relação[2]:
1. Em 16.06.2009 foi instaurada acção de investigação de paternidade que corre os seus termos como Proc. 69/09.2 TBMUR, em que figuram como:
- AUTORA: AA, casada, emigrante na Suíça onde reside em .................. Zurich e quando em Portugal na Estrada Nacional, Cimo de Vila, freguesia de Jou, Murça; e
-RÉUS: BB, casado, emigrante na Alemanha onde reside em .........,....., 00000 Stuttegart e quando em Portugal na Urbanização............, Lote n.º .., Valpaços;
CC, casado, emigrante na França onde reside em ...............,, ...........Ausonne, Toulouse e quando em Portugal na Rua Dr. ............., n° ......., Alvor, Portimão;
DD emigrante na Alemanha onde reside em ...................Stuttgart, na qualidade de representante da menor EE, consigo residente, na qual a Autora quer que seja reconhecido e decretado que é filha de BB, que seja ordenado o averbamento de tal paternidade e da avoenga daí resultante ao seu assento de nascimento e que os réus sejam condenados a reconhecer a autora como filha de BB.
2. A Autora alega, para o efeito, que a mãe da autora, FF, manteve relações de cópula completa com BB nos cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, resultando desse relacionamento o seu nascimento (art. 1.° a 23° da petição) e ainda que, a partir de 1985 BB passou a tratar a Autora como filha, assim a identificando junto dos seus familiares, mantendo esse tratamento até à data da morte que ocorreu em 27.11.2008 (art. 24° a 53°).
3. Em sede de saneador foi proferida decisão que julgou improcedente a excepção de caducidade, suscitada pelos Réus na contestação, com os fundamentos que se transcrevem:
"Cumpre apreciar, decidindo:
Dispõe o artigo 510.°, do Código de Processo Civil, no seu n.° 1, que "[findos os articulados (...) o juiz profere(…) despacho saneador destinado a: h) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória", acrescentando-se no n.° 3 do referido preceito legal que "(…) na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença" (sempre que seja, evidentemente, julgada procedente a excepção peremptória). Do preceito legal supra mencionado decorre, pois, que o despacho saneador pode ter por fim conhecer directamente do pedido, no caso de existir uma excepção peremptória (cfr. artigo 493.°, n.° 3, do Código de Processo Civil), desde que o estado dos autos o permita, sem necessidade de produção de quaisquer outras provas, quando a questão em apreço for exclusivamente de direito ou, sendo de facto, o processo contiver todos os elementos segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Pois bem.
Conforme resulta evidente da factualidade invocada pela autora, a presente acção configura-se como uma acção de investigação da paternidade, assente, por um lado, na paternidade biologicamente demonstrada e, por outro lado, na paternidade decorrente da prova da posse de estado como filha.
Neste conspecto, e para resolvermos a questão suscitada pelos réus a título de excepção, importa atender ao disposto no artigo 1817.°, do Código Civil (previsto para a investigação da maternidade, mas aplicável ipsis verbis à acção de investigação da paternidade, por força do disposto no artigo 1873.°, do Código Civil).
Preceitua este artigo, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.° 14/2009, de 01 de Abril, que "1. A acção de investigação de maternidade [paternidade] só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. 2. Se não for possível estabelecer a maternidade [paternidade] em consequência do disposto no artigo 1815.º, a acção pode ser proposta no ano seguinte à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório, contanto que a remoção do obstáculo tenha sido requerida até ao termo do prazo estabelecido no número anterior, se para tal o investigante tiver legitimidade. 3. Se a acção se fundar em escrito no qual a pretensa mãe [pai] declare inequivocamente a maternidade [paternidade], pode ser intentada nos seis meses posteriores à data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito. 4- Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe [pai], sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado. 5- Se o investigante, sem que tenha cessado voluntariamente o tratamento como filho, falecer antes da pretensa mãe [pai], a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho antes da morte deste, é aplicável o disposto na segunda parte do número anterior. 6- Nos casos a que se referem os n.os 4 e 5 incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento no ano anterior à propositura da acção.".
É igualmente incontornável atendermos, como bem refere a autora na réplica apresentada, à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo previsto no artigo 1817.°, n.° 1, do Código Civil, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 23/2006, de 10 de Janeiro.
Com efeito, o Tribunal Constitucional decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.° 1 do citado artigo 1817.º na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.°, n.° 1, 36.°, n.° 1, e 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.
A problemática objecto da decisão constitucional há muito que vinha sendo debatida na doutrina e na jurisprudência constitucional, sendo que solução legal do Código Civil Português, de certo modo, era minoritária em relação à solução acolhida noutros Códigos.
No citado Acórdão do Tribunal Constitucional pode ler-se: "[a]ssim, por exemplo, o artigo 270.º do Código Civil italiano dispõe que a acção para obter a declaração judicial da paternidade ou da maternidade "é imprescritível para o filho". Segundo o artigo 1606.º do Código Civil brasileiro, a "acção de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz" (a Lei n.° 8.560, de 29 de Dezembro de 1992 veio regular a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento). Nos termos do artigo 133.º do Código Civil espanhol, por sua vez, a "acção de reclamação de filiação não matrimonial, quando falte a respectiva posse de estado, cabe ao filho durante toda a sua vida". E também o legislador alemão optou pela regra da imprescritibilidade: o artigo 1600, n.º 1 do Código Civil alemão, prevendo a legitimidade do filho para a acção de investigação (consagrada no artigo 1600 d), não prevê qualquer prazo.".
Também como se salientava na doutrina: "[n]ão existe em princípio qualquer prazo para a acção de investigação de paternidade. Se o filho não tiver pai estabelecido, seja devido ao casamento, seja por perfilhação, o seu progenitor pode ser judicialmente investigado a todo o tempo, e, se for o caso, mesmo que o filho já seja há muito adulto."
Ora, antes da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a questão da sujeição de acções como a dos autos a prazo de caducidade envolvia, pois, a ponderação de direitos conflituantes. Por um lado, o direito do investigante a conhecer as suas raízes, a sua filiação biológica, a sua identidade pessoal, o que tem a ver com a dignidade da pessoa humana — artigos 1.°, n.° 1, e 26.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa. Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível.
Por outro lado, o direito do investigado à sua reserva da intimidade da vida privada — artigo 26.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa — entendendo-se que, para além de certo prazo considerado razoável, a estabilidade das suas relações pessoais e familiares e o seu passado não devem ser objecto de devassa, para além do facto de, a ser possível a investigação a todo o tempo, tal poderia dar azo a actuações oportunistas — "a caça à fortuna" — sabendo-se serem de êxito fácil tais acções de investigação, sobretudo, quando baseadas na falível prova testemunhal.
Esta protecção que o prazo de caducidade conferia passou, no entanto, a ser contestada quando, confrontados tais interesses e direitos antagónicos, se passou a considerar prevalecente o direito de investigação, tanto mais que a possibilidade da paternidade ser determinada através de exame de ADN frustra, cerce, a tentativa de "caça à fortuna" do ponto em que permite apurar com elevadíssimo grau de probabilidade, senão de certeza, se o investigado foi ou não o progenitor do investigante.
Deste modo, em nome da verdade, da justiça e de valores que merecem diferente tutela, deve prevalecer o direito à identidade pessoal sobre a "paz social" daquele a quem o mero decurso do tempo poderia assegurar impunidade, em detrimento de interesses dignos da maior protecção, como seja o de um filho poder a todo o tempo investigar a sua paternidade, sobretudo, se visa, genuinamente, uma actuação que o Direito não censura, pelo modo como é exercida — artigo 334.°, do Código Civil.
Assim, o direito ao conhecimento da ascendência biológica, deve ser considerado um direito de personalidade e, como tal, possível de ser exercido em vida do pretenso progenitor e continuado se durante a acção morrer, correndo a acção contra os seus herdeiros, por se tratar de um direito personalíssimo, imprescritível, do filho investigante.
A imprescritibilidade das acções de investigação da paternidade justifica-se, pois, pela defesa do interesse legítimo de "procura do vínculo omisso do ascendente biológico [sendo este] um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor".
É afinal a prevalência do ser sobre o ter.
Guilherme de Oliveira escreveu, reponderando a sua anterior perspectiva sobre a questão da caducidade destas acções de investigação da maternidade/paternidade: "[v]oltando hoje ao assunto, penso que alguns dados mudaram. Nesta balança em que se reúnem os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso. Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero, e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica [Se não fosse esta tendência não se teria notado o movimento no sentido de acabar com o segredo acerca da identidade dos progenitores biológicos na adopção e na inseminação com dador"
Nestas condições, o "direito à identidade pessoal" e o "direito à integridade pessoal" ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada. Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o "direito ao desenvolvimento da personalidade", introduzido pela revisão constitucional de 1997 — um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais.
É certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar este preceito constitucional, mas não será forçado dizer que ele pesa mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família, numa palavra, a sua localização no sistema de parentesco e, refere o citado autor ao findar, "[j]ulgo, em suma, que se tomou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.º e 1873° CC1v (...). Os casos-limite — em que pareça chocante o exercício do direito de investigar deveriam ser tratados como casos excepcionais, aplicando o instrumento do abuso do direito ou outro remédio expressamente previsto, inspirado nas mesmas ideias (...)".
Desta forma, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 10 de Janeiro de 2006, ao declarar a inconstitucionalidade da norma contida no n.° 1 do artigo 1817.° foi o culminar da ponderação entre os interesses em conflito, conforme supra exposto, com a clara e evidente prevalência do direito de conhecimento da ascendência biológica em detrimento dos princípios da certeza e segurança jurídica sempre inerentes a qualquer prazo de caducidade.
Ocorre que este Acórdão apenas decidiu sobre a inconstitucionalidade do prazo de caducidade do n.º 1, do artigo 1817.0, do Código Civil e a questão que se coloca aqui, com muita acuidade, na medida em que os réus invocam, para fundamentar a excepção de caducidade, o prazo previsto não no n.° 1, mas sim no n.º 4, do citado artigo 1817.°, é precisamente, dizíamos, saber se também esse prazo está ou não abrangido pelos princípios que conduziram à declaração de inconstitucionalidade do prazo previsto no referido n.° 1.
A questão não é de todo pacífica, embora a jurisprudência emanada pelo Supremo Tribunal de Justiça tem-se inclinado para a conclusão de que a declaração de inconstitucionalidade do n.° 1 do artigo 1817.° arrasta necessariamente a inconstitucionalidade das normas que, como a do n.° 4, se limitam a alargar prazos em razão do concurso de pressupostos que a norma geral dispensa, sendo certo que, não concorrendo o pressuposto especial, o prazo da norma geral está exaurido, ou seja, o direito caduca porque a acção não foi instaurada no prazo-regra. Tal entendimento tem desde logo por base o facto de o Acórdão do Tribunal Constitucional supra referido acentuar claramente a ideia da imprescritibilidade das acções de reconhecimento de um estado pessoal, por um indeclinável respeito pelo direito fundamental à identidade pessoal consagrado no n.° 1, do artigo 26.°, da Constituição da República.
Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03 de Julho de 2008 se defendeu, pelo contrário, que o juízo de inconstitucionalidade versando sobre o citado n.º 4, do artigo 1817.° deveria efectuar-se em concreto, na medida em que nem sempre o prazo do n.º 1, do artigo 1817.° será um prazo-regra ou prazo geral em relação aos prazos do n.º 4 ou do n.º 3 do mesmo artigo. Aí escreveu-se o seguinte: "[b]asta trazer à colação as alíneas a) e b), do n.º 1 do artigo 1871.º, do Código Civil e ver como se pode chegar à paternidade não pela ligação biológica efectivamente provada mas apenas através da presunção do filho haver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público ou de existir carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a paternidade. Ao menos nestes casos os prazos dos nºs 4 e 3, do artigo 1817.º não são (ou podem não ser o alargamento do prazo do n.º 1, do artigo 1817.º, mas sim prazos com natureza diferente, aos quais, pois, a falência do prazo do n.º 1 não afectará e cuja (in)constitucionalidade haverá de ser apreciada autónoma e concretamente e não como consequência directa da declaração de inconstitucionalidade do daquele n.º 1 nos termos em que está feita — na medida em que prevê um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante. Então é possível e necessário olhar para o disposto do n.° 4, do artigo 1817.º - se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele — e, em sede de fiscalização concreta, naquela situação concreta, um tal dispositivo legal viola o direito fundamental do investigante à sua identidade pessoal ou se representa apenas um condicionamento ou uma restrição, constitucionalmente toleráveis, do seu direito, em nome de outros interesses ou direitos igualmente constitucionalmente assumidos. Isto posto, e no caso em concreto, não havendo dúvidas da inconstitucionalidade com força obrigatória geral do normativo contido no n.º 1, do artigo 1817.°, o certo é que, independentemente da posição que se perfilhe relativamente à aplicabilidade, ou não, daquele juízo aos demais prazos de caducidade previstos nesse normativo e designadamente ao seu n.° 4, sempre teremos de concluir que nem por isso poderá considerar-se caducado o direito de accionar judicialmente por parte da autora com vista a investigar a sua paternidade.
Na verdade, o simples facto de a presente acção ter duas causas de pedir (como dissemos supra, paternidade biológica e posse de estado como filha) e a matéria de facto alegada comportar os elementos que integram essas duas causas, faz com que não se possa colocar a questão da caducidade face ao n.º 1 do artigo 1817.° (pela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral) e a do n.° 4, pelo simples facto de não ter decorrido um ano entre o momento em que faleceu o pretenso pai (27 e 28 de Novembro de 2008) e a data em que a acção foi proposta (16 de Junho de 2009).
Ademais, recentemente a Lei n.° 14/2009, de 01 de Abril, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, sendo aplicável aos processos pendentes nessa data (artigos 2.° e 3.°, desse diploma) [e dúvidas não há de que a presente acção apenas foi instaurada em 16 de Junho de 2009], veio alterar o citado artigo 1817.°, ainda que curiosamente continue a prever prazos de caducidade, não obstante a jurisprudência constitucional acima referida, nos seguintes termos: "1- A acção de investigação de maternidade [paternidade] só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. 2- Se não for possível estabelecer a maternidade [paternidade] em consequência do disposto no artigo 1815.0, a acção pode ser proposta nos três anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório. 3- A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade [paternidade] do investigante, b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe [pai]; c)Em caso de inexistência de maternidade [paternidade] determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação. 4- No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da acção.".
Consequentemente e em face do alargamento dos referidos prazos de caducidade, e independentemente do juízo de (in)constitucionalidade supra exposto, sempre a autora teria o prazo de três anos após a cessação do alegado tratamento como filha do pretenso pai, prazo esse que, à data da propositura da presente acção e tendo em conta a data do falecimento do pretenso pai, ainda não se mostrava transcorrido, não estando assim caducado o direito de accionar nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1817.° e 1873.°, ambos do Código Civil.
Pelo exposto, e sem mais considerações, é de julgar improcedente a excepção de caducidade invocada pelos réus."
4. Na selecção da matéria de facto, em sede de base instrutória, incluíram-se os seguintes factos:
- Ponto 5.º: " Em consequência das relações referidas em 4, veio a nascer a autora. ";
-Ponto 20.°: "O réu BB e a autora passaram a relacionar-se como irmãos, sendo a segunda conhecida em Curros como a "irmã do BB e o primeiro em Jou como o "irmão da AA"; e
-Ponto 28.°:"Seguidamente,BB e DD deram o seu consentimento para que a autora efectuasse os testes necessários para provar que o referido BB era o seu pai biológico".
5. Notificadas as partes vieram apresentar os seus requerimentos de prova, ao abrigo do art. 512.° CPC.
6. No requerimento de provas, a Autora requereu a realização de prova pericial, nos termos que se passam a transcrever:
"Nos termos dos arts. 568.° e seguintes do Código de Processo Civil requer-se ainda a Vª Ex.ª se digne mandar efectuar testes genéticos de ADN, a requisitar ao Instituto de Medicina Legal, Delegação do Porto, às pessoas a seguir indicadas:
a) À própria autora, AA, emigrante na Suíça onde reside em ................ Zurich, e quando em Portugal na Estrada Nacional, Cimo de Vila, na localidade e freguesia de Jou, nesta comarca;
b) Ao réu BB, emigrante na Alemanha onde reside em ................. Stuttegart, e quando em Portugal na Urbanização ........., Lote n 00, em Valpaços
c) Ao réu CC, emigrante em Espanha, onde reside em .............., n ° .., .....Espartinas, Sevilha, e quando em Portugal na Rua D........., n.° ...., Alvor, Portimão;
d) E à ré EE, residente na Alemanha, em .................Stuttegart.
Com efeito, as pessoas referidas têm, ao que se presume e conforme se alega na acção instaurada, parentesco genético na linha colateral com a autora, revelando-se as referidas perícias essenciais à descoberta da verdade material, ou seja que o pai biológico da autora é o falecido BB, e desta forma se provando a matéria dos quesitos 5.°, 20.° e 28.° da base instrutória.
Mais se requer que se oficie a Entidade supra referida para proceder à marcação de data para a realização das perícias ora requeridas e que após sejam os acima identificados notificados, para as moradas indicadas, para comparecerem.
Por último, requer-se ainda a V.a Ex." que, no caso de permanecer alguma dúvida, ainda que ínfima, se proceda à exumação do cadáver do falecido BB, sepultado no cemitério da freguesia de Jou, na área desta comarca, na qualidade de presumido pai da autora, a fim de se proceder à colheita de produtos biológicos com idênticas finalidades".
7. Proferiu-se despacho que deferiu a realização da prova pericial, mediante a realização de exames hematológicos à autora e réus.
8. Os réus vieram manifestar a sua oposição, formulando o requerimento que se transcreve:
“ (…) Os réus informam, ainda, V. Ex.ª que, pelo facto de residirem no estrangeiro e atentas as suas convicções pessoais, religiosas e espirituais, não pretendem realizar qualquer perícia hematológica";
9. A autora veio pronunciar-se sobre a oposição, nos seguintes termos:
"AA, devidamente identificada nos autos à margem referenciados, nos quais é autora, notificada do douto despacho de Vª Exa com a referência n.º 000000, vem exercer o respectivo CONTRADITÓRIO quanto à oposição manifestada pelos réus no que respeita à realização da perícia, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
Considera a autora, com o respeito que lhe é devido por opinião contrária, que o facto de os réus residirem no estrangeiro e as convicções pessoais, religiosas e espirituais (não concretizadas minimamente) dos mesmos, não consubstanciam causas justificativas para a recusa de efectuarem as perícias hematológicas.
Aliás, estamos perante uma perícia científica relativa ao ADN dos réus através da simples recolha de cabelos, unhas ou saliva, que em nada contenderá com a vida privada ou com a protecção dos direitos de personalidade dos mesmos.
Decorre dos arts. 266.° e 519.°, ambos do Código de Processo Civil que todas as pessoas, quer sejam partes (como no caso dos autos os réus), quer sejam terceiros, estão obrigados a prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade — trata-se, portanto, do princípio da cooperação.
Ora, a posição assumida pelos réus consubstancia claramente uma declaração de recusa de colaboração, ou seja, uma recusa ilegítima de sujeição à perícia ordenada.
Assim, admitida que foi a perícia e definido que se encontra o seu objecto e tendo os réus se recusado injustificadamente a submeter-se à mesma, tal recusa terá certamente nos termos do art. 519.°, n.° 2 do Código de Processo Civil reflexos notórios a nível da valoração da prova e porque tal comportamento dificultou, senão mesmo impossibilitou, a prova à autora (pois trata-se da parte onerada com tal ónus), não deixará também de operar a inversão do ónus probatório.
Sendo porém outro o entendimento deste Tribunal, deverá então ser ordenada comparência coerciva dos réus no local onde se efectuarão os testes de ADN, nos termos da ia parte, do n.º 2 do art. 519° do Código de Processo Civil, ou então ser ordenada, como já requerido pela autora, a exumação do cadáver do falecido BB a fim de se proceder à colheita de produtos biológicos.
Termos em que se considerada exercido o direito ao contraditório quanto à oposição manifestada pelos réus no que respeita à realização da perícia".
10. Proferiu-se o despacho que se transcreve:
"Fls. 141 e ss:
Por despacho de fls. 133 este tribunal ordenou a realização de uma perícia, tendo para o efeito requisitado ao "Instituto Nacional de Medicina Legal, IP." a designação de data para a realização de exames hematológicos à autora, bem como aos réus BB, CC e EE.
Ora, de acordo com a informação prestada pelo sobredito instituto, a autora já se submeteu ao referido exame hematológico. Acontece que, os réus no compareceram na data designada para a realização do mencionado exame pericial, justificando a sua recusa (por requerimento enviado a estes autos -fls. 141) com a circunstância de residirem no estrangeiro, bem como pelas convicções pessoais, religiosas e espirituais pelas quais se regem.
Perante a recusa dos réus, pronunciou-se a autora a fls. 153 e ss., requerendo que o tribunal ordene que os réus sejam coercivamente obrigados à realização do exame, à luz da 1.a parte do n.° 2 do art. 519.° do Código Processo Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
O princípio da cooperação entre os intervenientes num processo (cf. art. 266.° do CPC) tem, no âmbito da instrução da causa, o corolário do "dever de cooperação para a descoberta da verdade", ínsito no art. 519.° do mesmo diploma legal).
Ora, a mera aplicação desta regra à produção de prova científica, como a ordenada nos autos, implica que as partes tenham a obrigação de se sujeitarem aos exames laboratoriais pertinentes, ou seja, devem prestar-se aos procedimentos que visem a recolha de sangue ou de outros produtos biológicos, ou a simples recolha de saliva, por meio de uma zaragatoa bocal.
Assim, a falta de comparência dos sujeitos processuais aos exames, sobretudo em acções de investigação de paternidade, impõe que se defina as consequências jurídicas da recusa de cooperação.
A questão dos autos prende-se com a possibilidade de ser ordenada a compulso dos réus ao exame hematológico, pela força física.
Com efeito, em favor da execução forçada aos exames poderia invocar-se, em primeiro lugar, a natureza dos direitos fundamentais implicados no caso. Na verdade, o direito que está em questão é o direito à determinação da localização do indivíduo no sistema de parentesco, através do reconhecimento dos vínculos biológicos de descendência. Ou seja, é o direito à integridade moral (cf. art. 26 da CRP), enquanto direito do indivíduo a conhecer a sua história pessoal. Encontra-se ainda em causa o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, que impõe uma liberdade de agir, no sentido de conformar a vida. Afinal, está em xeque, também, o direito da autora a constituir uma família, no sentido de ver reconhecidos juridicamente os seus laços biológicos de parentesco, (cf. art. 36, n°1 da CRP).
Em prol do posição inversa, poder-se-á alegar, com toda a propriedade, que os recusantes podem invocar o seu direito à integridade física, que impede agressões ao seu corpo, bem assim um direito à sua integridade moral, que impede agressões à sua livre vontade (art. 25.° CRP) e também ao livre desenvolvimento das respectivas personalidades, enquanto direito geral de agirem livremente.
Com efeito, do confronto entre os direitos conflituantes, no sentido de obter uma concordância prática entre eles, somos de entender pela não admissibilidade da opção de permitir a coerção física ao cumprimento do dever de cooperação. Fazê-lo seria caminhar ao arrepio do sistema jurídico português que, a nosso ver, não dá abertura à compulsão pela força.
A este propósito, não podemos deixar de atentar no disposto na alínea a) do n.° 3 do art. 519.º do Código Processo Civil, de onde resulta claramente que a recusa é legítima se a obediência importar violação da integridade física ou moral das pessoas". Na verdade, os direitos fundamentais em questão revelam-se como um limite inultrapassável à coerção ao cumprimento.
Aliás, a jurisprudência dominante entende que não pode haver lugar à coerção física ao cumprimento do dever de cooperação - vide a propósito Acórdão do STJ, de 11.1.2001, em Revista do Ministério Público, n°85, pág.159 e o Acórdão do Tribunal Constitucional n°616/98, de 21 de Outubro, em http: www.tribunalconstitucional.pt. ou no DR. II Série, de 17.03.2009.
Do exposto, entende o tribunal que a recusa dos réus é legítima, (cf. art. 519, n°3, alínea a) do CPC).
Sem prejuízo, mesmo que se considerasse a falta dos réus ao exame científico como ilegítima, sob o argumento do sacrifício a que se têm de sujeitar ser proporcional à vantagem para a descoberta do verdade biológica, além do que o valor de provas desta índole revela-se, muita das vezes, decisivo, estamos em crer que o recusa de cooperação não pode ser acompanhada da defesa de uma "execução específica" do dever de cooperação, porquanto o cooperar nestes situações importa o fornecimento de produtos biológicos, o que impede a realização coactiva, em espécie, da prestação devida.
Pelos fundamentos aduzidos, indefere-se a pretensão da autora de realização coercivo do exame pericial por parte dos réus relapsos.
Concomitantemente, em face da recusa dos réus, fica sem efeito a perícia ordenada nos autos, no que a estes concerne.
Dê conhecimento da no realizasse da perícia ordenada nestes autos, em relação aos réus, ao Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P.
No que concerne às implicações probatórias da recusa dos réus na realização do exame pericial, as mesmas serão livremente apreciadas pelo Meritíssimo Juiz de Julgamento, no momento oportuno.
No mais, com cópia de fls. 153 notifique os réus para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem quanto ao pedido formulado pela autora, de exumação do cadáver do falecido BB.
Por fim, cumpra a secção, de imediato, o ordenado pelo despacho de fls. 139, tendo em atenção a 1 parte do despacho de fls. 143.".
11. Os réus vieram pronunciar-se sobre a diligência de exumação de cadáver do falecido BB, nos termos que se transcrevem:
"BB e outros, nos autos em referência, notificados do douto despacho constante de fls., vêm informar V. Exa. que, pelas razões constantes do requerimento de fls. 141 (que, também, têm aplicação em relação ao seu falecido pai) e, ainda, porque pretendem preservar a memória e o (eterno) descanso do pai, opõem-se à pretensão da A. e não autorizam a exumação do cadáver do falecido BB. "
12. Em 22.10.2010 proferiu-se o despacho que se transcreve:
"A autora veio requerer que se determine a exumação do cadáver do falecido BB para recolha de produtos biológicos.
Pronunciaram-se os réus, manifestando a sua oposição à realização da diligência requerida pois que a mesma ofenderá a memória e o descanso eterno do falecido.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão que se suscita é a seguinte: em face da oposição dos réus, familiares do pretenso pai BB, à realização de exame ao ADN, será admissível o recurso à exumação do cadáver do falecido para recolha de tecidos?
Vejamos.
De harmonia com o disposto no art. 1.º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de Dezembro “a exumação consiste na abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver”. Por sua vez, do art. 21.º, n.º 1 do citado diploma legal resulta que "após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária”.
Nos termos do art. 1801.º do Código Civil “nas acções relativas à filiação são admitidas como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados”.
Do preceito legal citado resulta como evidente que a realização de exames ao sangue, ou seja de exames hematológicos ou cientificamente comprovados, como seja a realização de exames de ADN com a necessária exumação do cadáver do pretenso pai para recolha de tecidos, podem ser realizados para se determinar a filiação biológica. Contudo, a admissibilidade da realização do exame pericial está dependente do modo como o autor estrutura a acção de investigação da paternidade, que constituirá factor determinante na selecção da matéria de facto controvertida para a decisão da causa.
Como afirma Lopes do Rego, "a causa de pedir nas acções de investigação ou reconhecimento da paternidade é o facto naturalístico da procriação biológica do filho pelo réu a quem a paternidade é imputada, perspectivado como facto natural dotado de relevância jurídica. Tal facto - a referida procriação biológica - pode, naquelas acções, ser alternativamente demonstrado por uma das três vias distintas: I - em primeiro lugar, pode sê-lo directamente, através dos "exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados", a que alude o artigo 1801.º do Código Civil, e que implica, no processo, a produção de prova pericial (art. 388.º do Código Civil). II - Em segundo lugar, pode sê-lo indirectamente, através do recurso pelo autor a alguma das presunções legais de paternidade previstas no artigo 1871.º do Código Civil, desde que não ilididas pelo réu, através da criação, no espírito do julgador, de "dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado". III - Finalmente, poderá sê-lo, também por forma indirecta, através do recurso a presunções naturais ou judiciais, alicerçadas em regras ou máximas de experiência, nos termos consentidos pelo art. 351.º do Código Civil, é o que sucede na generalidade das causas, em que não haja lugar à realização de exames de sangue e em que não ocorra alguma das situações de facto que servem de substrato às aludidas presunções legais de paternidade, incumbindo então naturalmente ao autor demonstrar que houve relações de sexo entre a mãe e o pretenso pai no período legal de concepção do filho e que tais relações foram exclusivas. - vide RMP, 58-1 66.
Dito doutro modo, a acção de investigação da paternidade tem como causa de pedir o facto naturalístico da procriação biológica do filho pelo réu ou pelo pretenso pai falecido a quem a paternidade é imputada, facto que é susceptível de ser demonstrado por diversas vias.
Para determinar a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade há que distinguir as acções chamadas de "bica aberta" daquelas que se baseiam directamente numa das situações previstas nas alíneas do n.º1 do art. 1871 do Código Civil.
Nas primeiras, a causa de pedir, fundamento da pretensão da filiação, são os laços de filiação, a procriação, o facto biológico da fecundação do óvulo - é este o fundamento real, empírico, ou factual que é preciso alegar e provar, temporalmente localizado no período legal de concepção, ou seja, nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do pretenso filho, prova esta a fazer, nomeadamente, através de exames de sangue ou de quaisquer outros métodos cientificamente comprovados, (cf. art. 1801/2 do Código Civil.).
Nas outras acções que não sejam de "céu aberto", mas baseadas em algumas das presunções previstas no n°1 do art. 1871. do Código Civil, a causa de pedir é uma ou várias das situações de facto aí descritas, que têm a virtualidade da auto-suficiência para que seja dado provimento à pretensão de filiação (jurídica) do investigante, pois presume-se a filiação ou realidade biológica da filiação, de cuja prova, está o autor dispensado.
Assim, caso o autor instaure a acção de investigação da paternidade com base nas presunções do n.º1 do art. 1871.º do Código Civil, ou seja no tratamento e reconhecimento como filho do falecido, não tem o tribunal que conhecer directamente do facto biológico da procriação, mas apenas dele conhecer indirectamente através de presunções. Nesse caso, a filiação biológica deve ser provada por presunções ("se o autor da acção de paternidade baseia a investigação em presunções fica o mesmo dispensado de provar o vínculo biológico e os réus terão de iludir a presunção." - vide Acórdão do STJ de 72.1995, CJ./STJ, 1995.1, 66, no mesmo sentido o Acórdão do S.T.J. de 6.5 1997, BMJ, 467, 588), pelo que o exame pericial de exumação, directamente destinado à prova da filiação biológica, não pode ter lugar, dado que o seu possível objecto (facto biológico) não se encontra vertido na base instrutória, como facto controvertido, por não alegado.
Ao invés, se estivermos perante uma acção denominada de "bica aberta", que sucede quanto o autor funda a sua pretensão na procriação, ou seja, na fecundação do óvulo, a prova do facto, sendo ele controvertido e encontrando-se vertido na base instrutória, será realizada através de exames ao sangue ou de quaisquer outros métodos científicos, como sendo a exumação do cadáver do falecido pretenso pai.
No caso vertente, a autora baseia a presente acção de investigação da paternidade, desde logo, no tratamento como filho por parte do pretenso pai, ou seja tem por fundamento a posse de estado, bem como a exclusividade de relações sexuais por parte da mãe da autora com o pretenso pai (falecido) durante o período legal de concepção, (causa de pedir mista).
Assim, a autora funda a presente acção de investigação da paternidade em presunções legais de filiação, mais concretamente na estabelecida no art. 1871.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil, bem como na procriação, razão pela qual se encontram quesitados na base instrutória pontos de facto respeitantes ao tratamento de filha pelo pretenso falecido pai (posse de estado) - matéria factual em relação à qual é inviável a realização do exame pericial requerido pelos fundamentos aduzidos -, bem como factos atinentes à exclusividade das relações sexuais no período de concepção entre a mãe da autora e o pretenso pai - pontos 4 e 5). Ora, o facto biológico da procriação, que se mostra controvertido, e que se encontra quesitado em 5 da base instrutória, só poderá ser provado por métodos científicos. Nessa conformidade, tendo os réus recusado a submissão à realização de testes de ADN, é de deferir a realização do exame pericial de exumação para recolha de vestígios de ADN no cadáver do falecido pretenso pai. Independentemente da autora se servir de uma presunção (posse de estado), o certo é que funda o seu pedido, igualmente, na filiação biológica, isto é, no facto biológico da fecundação, razão pela qual é de admitir a realização do exame requerido que se destina, precisa e directamente, à prova de tal factualidade, que se encontra vertida no ponto 5 da base instrutória (A exumação, como prova pericial que é, deverá ter sempre um objecto e deve reportar-se a factos alegados nos autos, seja pelo requerente, seja pela parte contrária).
Ademais, cumpre referir que, no entendimento deste tribunal, no confronto entre os direitos em conflito, deve ser sacrificado o direito ao respeito que é devido ao cadáver da pessoa humana, em benefício do direito prevalecente à identidade pessoal do investigante. Por último, importa salientar que a oposição dos réus à realização de tal exame pericial não constitui óbice a que tribunal o determine, pois que a necessidade de atender a interesse superior justifica a sua realização.
Pelo exposto, por entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, admite-se a sua realização. Em consequência, notifique as partes para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre a nomeação de perito (estabelecimento, laboratório ou serviço oficial).
(Note-se que é manifestamente desnecessário conceder aos réus a possibilidade de se pronunciarem sobre o objecto da perícia, pois que o exame científico (exumação de cadáver para recolha de vestígios biológicos) ora admitido apenas poderá servir para prova do facto biológico da fecundação, facto esse que se mostra controvertido e se encontra plasmado no ponto 5 da base instrutória.).
Notifique.
Fls. 156:
Informe o "Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P." no sentido de que o tribunal mantém interesse na conservação do material biológico recolhido, pois que a presente acção declarativa ainda se encontra em fase de instrução."
São as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso – arts. 684.º, n.º 3 e 690.º, n.os 1 e 4, do Código de Processo Civil, bem como jurisprudência firme deste tribunal.
E, como é bem sabido este Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado – art. 729.º, n.º 1, do ora referido diploma legal – não podendo a decisão quanto à matéria de facto ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no art. 722.º, n.º 2, ou seja a não ser que exista disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Fora destes casos – em que, em bom rigor, o que o Supremo faz é sindicar a observância de regras de direito probatório material – a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada (art. 729º, n.º 2), podendo apenas o Supremo ordenar a baixa do processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, de forma a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do litígio (art. 729.º, n.º 3).
Não cabe, por conseguinte a este Tribunal, de revista, pronunciar-se sobre a necessidade ou conveniência de determinada diligência instrutória, podendo, tão só, dizer se essa realização é legal ou ilegal, se estiver directamente em causa a ofensa de determinado preceito legal[3].
No caso dos autos quer a primeira instância quer a Relação concluíram que a realização de exame hematológico “constituía uma diligência de prova que se justificava de pleno para prova da relação biológica”. Sustentando, no entanto, a Relação, com discordância da autora, ser legítima a oposição à exumação do cadáver por banda dos filhos do falecido.
Pelo que, levando em linha de conta estas limitações e as questões atrás enunciadas, e que pela recorrente nos são colocadas, cumpre apreciar e decidir, no fundo, sobre a legitimidade/ilegitimidade da referida recusa de exumação do cadáver.
Pretende a autora nos presentes autos obter o reconhecimento da sua paternidade e pelo presente recurso que se confirme o despacho que determinou a exumação de cadáver, revogando-se o acórdão que considerou ser legítima a oposição àquela exumação.
Na acção de investigação de paternidade a causa de pedir é, como já vimos, o facto da filiação biológica – ou facto naturalístico da procriação do filho pelo réu a quem a paternidade é imputada, perspectivado como facto natural dotado de relevância jurídica –, podendo a mesma ser demonstrada por três vias distintas: através dos exames de sangue, a que alude o art. 1801.º (as designada acções
laboratoriais), através das presunções legais de paternidade previstas no art. 1871.º, (acções presuntivas) ou, através do recurso a alguma das presunções naturais ou judiciais legais, alicerçadas em regras de experiência – consentidas pelo art. 351.º –, incumbindo ao autor demonstrar que houve relações de sexo entre a mãe e o pretenso pai durante o período legal da concepção e que tais relações foram exclusivas (acções de exclusividade social, por aplicação restrita do assento de 21 de Junho de 1983)[4].
Nos termos do art. 1801.º “nas acções relativas à filiação são admitidas como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos científicos comprovados”.
No que respeita aos exames de sangue os avanços científicos têm permitido o emprego generalizado de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza e que torna possível estabelecer com grande segurança o vínculo de maternidade ou de paternidade.
Os comummente designados “testes de DNA” consubstanciam a aplicação forense de uma “tecnologia que se baseia na variabilidade dos ácidos nucleicos das células, polimorfismos do DNA, cuja importância fundamental reside no facto de se estudar a individualidade biológica directamente do código genético, ao contrário das proteínas, cuja caracterização depende da sua expressão em tecidos e fluidos biológicos.
Por conseguinte constituem hoje uma tecnologia que é “admitida internacionalmente como prova pericial em tribunal, permitindo a resolução de casos de filiação complexos, como, por exemplo, casos de investigação de paternidade em que a mãe ou o pretenso pai faleceram, quando existe a possibilidade do estudo de familiares próximos; o estudo de restos cadavéricos e a comparação das suas características genéticas com as do sangue, também, de familiares próximos; e ainda casos de filiação, em que se dispõe de restos fetais resultantes de aborto ou infanticídio, em que se pretende identificar o autor do crime”[5].
O teste de ADN permite determinar, num sistema de percentagens, qual a probabilidade de determinado indivíduo proceder biologicamente de outro[6].
Como se escreve no acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/06[7], a propósito da fiabilidade destes exames, “ (…) os avanços científicos permitiram o emprego de teste de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza - probabilidades bioestatísticas superiores a 99,5% -, e, por esse meio, mesmo depois da morte, é hoje muitas vezes possível estabelecer com grande segurança a maternidade ou a paternidade. Assim, a justificação relativa à prova perdeu quase todo o valor com a eficácia e a generalização das provas científicas, podendo as acções ser julgadas com base em testes de ADN, que não envelhecem nunca. Como salienta Guilherme de Oliveira, [8]«os exames podem fazer-se muitos anos depois da morte do suposto pai, ou na ausência do pai! Morrem as testemunhas, mudam os lugares, é certo, mas nada disso altera, verdadeiramente, o caminho que as acções seguem, e hão-de seguir cada vez mais, no futuro»”.
Assente a relevância do exame como meio de prova na acção de investigação de paternidade, vieram opor-se os réus, quer à realização da perícia nas suas próprias pessoas, quer à recolha de tecido do cadáver do pretenso pai e à necessidade da sua exumação para esse efeito.
Vejamos, então, o que dizer:
O regime jurídico do «direito mortuário português» encontra-se disperso por vários diplomas legais: (i) a utilização de cadáveres para dissecação ou extracção de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e investigação científica encontra-se regulado pelo DL. 274/99, de 22/07, (ii) para a colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana vigora o regime da Lei 12/93, alterada e republicada pela Lei 22/2007, de 29/06 – que transpôs parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2004/23/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março – impondo-se, quanto à colheita em cadáveres, que na sua execução devem evitar-se mutilações ou dissecações não estritamente indispensáveis à recolha e utilização de tecidos ou órgãos e que possam prejudicar a autópsia, quando a ela houver lugar e (iii) a cremação, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres encontra a sua disciplina nos DL 411/98, de 30/11, com as alterações dos DL 5/2000, de 29/01 e DL 138/2000, de 13-07.
Nos termos definidos por este último bloco de normas o cadáver define-se como o corpo humano após a morte e até estarem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica (art. 2.º, al i).
A doutrina, com vista a contemplar os restos mortais de um nado morto vem balizando a noção de cadáver como “os despojos inanimados de um ser humano, ainda que ele não haja sido pessoa em sentido jurídico (…), ainda que não completos, desde que não se trate, apenas, de partes isoladas do corpo humano”, dela excluindo “os restos mortais que, pela sua antiguidade ou significado religioso, ganharam a natureza de objectos arqueológicos, de documentos históricos ou de objectos de culto (múmias, relíquias, etc.) ”[9].
A sua exumação consubstancia-se na abertura de sepultura, local de consumpção aeróbica ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver, definido como o corpo humano após a morte e até estarem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica (art. 2.º, al. f).
A gestão do cadáver e respectivas exéquias cumpre, pela ordem que vem indicada, às pessoas indicadas no art. 3.º, designadamente, em 4.ª linha, a qualquer herdeiro.
Quanto à exumação de cadáver para a realização de exames de sangue, ou à recusa da sua realização pelos herdeiros, importa considerar que, com a morte de uma pessoa física cessa, pelo menos neste mundo, a sua actividade característica e extingue-se, nos termos do n.º 1 do art. 68.º do Código Civil, a sua personalidade jurídica, ou seja, a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas[10].
A morte[11], segundo o art. 2.º da Lei 141/99, de 28 de Agosto, «corresponde à cessação irreversível das funções do tronco cerebral».
Ainda que extinta pela morte a personalidade jurídica, “nada impede, desde logo, que hajam bens da personalidade física e moral do defunto que continuam a influir no curso social e que, por isso mesmo, perduram no mundo das relações jurídicas e como tais são autonomamente protegidos. É particularmente o caso do seu cadáver, das partes destacadas do seu corpo, da sua vontade objectivada, da sua identidade e imagem, da sua honra, do seu bom nome e da sua vida privada, das suas obras e das demais objectivações, criadas pelo defunto e nas quais ele tenha, de um modo muito pessoal, imprimido a sua marca”[12].
Quanto ao cadáver, a doutrina vem defendendo o entendimento no sentido de que o mesmo reveste a natureza de uma coisa fora do comércio, que pode ser objecto de relações jurídicas (art. 202.º, n.º 1) e por sua natureza é insusceptível de apropriação individual (art. 202.º, n.º 2)[13].
Castro Mendes[14] e Rabindranath Capelo de Sousa[15] defendem que, do confronto dos art. 202.º e 203.º, o cadáver, é um bem da personalidade que também é objecto imediato de relações jurídicas e que reveste uma natureza extra-comercial, abrangido pelo art. 71.º e, como tal, autonomamente objecto imediato de relações jurídicas, entendendo-se como tal aquilo sobre que incidem os poderes do titular activo da relação, sem que se interponha qualquer elemento mediador, impondo erga omnes, deveres de abstenção.
Mota Pinto defende que “No momento da morte, a pessoa perde, assim, os direitos e deveres da sua esfera jurídica, extinguindo-se os de natureza pessoal (v. g. os direitos e deveres conjugais) e transmitindo-se para os sucessores "mortis causa" os de natureza patrimonial (…) a tutela do artigo 71.°, n.° 1, é uma protecção de interesses e direitos de pessoas vivas (as indicadas no n° 2 do mesmo artigo) que seriam afectadas por actos ofensivos da memoria (da integridade moral) do falecido"[16].
Idêntica orientação é a de Mário de Brito que sustenta, a propósito do n.° 1 do artigo 68.°, que "a morte é mesmo o único facto que actualmente faz cessar a personalidade jurídica" e em comentário ao artigo 71° escreve que esta disposição "é aplicável tanto quando a ofensa é dirigida contra pessoa viva, que vem a falecer, como quando a ofensa se refere a uma pessoa já falecida"[17].
Em oposição a este entendimento dir-se-á que, mais do que a tutela dos bens jurídicos, como o seja o do cadáver, a lei estabelece uma permanência genérica dos direitos de personalidade do defunto após a sua morte, ao preceituar que “os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular” (art. 71.º, n.º 1 do CC), designadamente interesses próprios afirmados ou potenciados em vida do defunto visando-se a protecção das pessoas falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respectiva personalidade, física ou moral, que exista em vida e permaneça após a morte. A personalidade física e moral do falecido, enquanto bem jurídico, é objecto dos direitos de personalidade em causa.
Importa no entanto sublinhar, como refere Rabindranath Capelo de Sousa[18], que “os direitos de personalidade das pessoas já falecidas respeitam a interesses próprios dessas mesmas pessoas em vida, a instintos, impulsos e aspirações concretas suas de sobrevivência, de continuação de si mesmo e de ultrapassagem da morte, se não mesmo de perpetuação, e a contributos objectivados seus para o desenvolvimento da espécie humana e que autonomamente continuem a actuar enquanto legados para a posterioridade. Não se confundem, pois, tais direitos com os interesses das pessoas a quem a lei atribui capacidade para os exercer, por deterem uma relação especial com o morto e os seus valores”.
Ainda em abono desta tese defende este Professor que “não está aqui em causa a inexistente personalidade jurídica do defunto nem a ressarcibilidade de danos impossivelmente sofridos pelo defunto, mas a personalidade física e moral do falecido como bem jurídico; ela é objecto de direitos de personalidade em causa e pode haver dano nesse bem jurídico. Inclusivamente todas ou parte das pessoas do n.º 2 do art. 71.º podem não ser lesadas pessoalmente com certas ofensas à personalidade do defunto e, apesar disso ou por isso mesmo, o legislador estabeleceu a regra da solidariedade activa em matéria de legitimidade de defesa de tais direitos”[19].
Neste sentido se situam ainda Heinrich Höster[20], Pires de Lima e Antunes Varela[21] e ss e Heinrich Hubmann[22].
Quanto às razões invocadas pelos réus, atinentes “ao seu falecido pai (convicções pessoais, religiosas e espirituais) e, ainda, porque pretendem preservar a memória e o (eterno) descanso do mesmo”, as mesmas encontram-se em oposição à pretensão da autora na prova da sua filiação.
Ora, sob a epígrafe “colisão de direitos” dispõe o art. 335.º que “havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes” (n.º 1) e “se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior” (n.º 2).
Há colisão de direitos, nas palavras do Professor Menezes Cordeiro, “quando um direito subjectivo, na sua configuração ou no seu exercício, deva ser harmonizado com outro ou com outros direitos. Num sentido estrito a colisão ocorre sempre que dois ou mais direitos subjectivos assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si”[23].
Como se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 28-10-2008[24], em transcrição do Ac. deste mesmo Supremo Tribunal, de 9-05-2006[25], “Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos.
Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade.
Isto é assim porque as limitações ao exercício do direito - referimo-nos, claro está, às limitações extrínsecas, de entre as quais avulta precisamente a colisão de direitos, e não às intrínsecas, atinentes ao seu conteúdo e objecto - determinando, no fundo, como ele deve ser actuado, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em concreto. Não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento.
Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se”.
No que respeita aos direitos fundamentais, haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma ou princípio constitucional.
Adoptado este entendimento, em face das considerações supra expostas, resulta que não existe qualquer colisão de direitos quanto aos fundamentos da oposição deduzida pelos réus/recorridos à exumação de cadáver do seu pai pelos motivos atinentes a si próprios (constantes do requerimento de fls. 141, designadamente por residirem no estrangeiro e atentas as suas convicções pessoais, religiosas e espirituais), uma vez que a tutela jurídica a que alude o art. 71.º não se estende aos interesses próprios dos ora réus.
Já relativamente ao seu falecido pai alegam “convicções pessoais, religiosas e espirituais”.
Invocando – de forma genérica/conclusiva, adianta-se – o direito de piedade em contraposição à pretensão do estabelecimento de filiação visado pela autora.
No que concerne ao direito da autora, a “descobrir e reconhecer as origens biológicas” já dispunha a Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950 que “qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência” tendo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconhecido nessa tutela da vida privada dimensões que podem alicerçar um direito fundamental ao conhecimento das origens biológicas[26].
No contexto europeu coube à doutrina e Jurisprudência alemãs o papel impulsionador da sua construção teórica, com o nascimento, na década de 40, do “Recht auf Kenntnis der eignen Abstammung” (direito ao conhecimento das próprias origens).
Dir-se-á que a jurisprudência e doutrinas actuais consolidaram um verdadeiro direito fundamental ao conhecimento, e reconhecimento, da paternidade, seja por via do direito à integridade pessoal, ou especificamente à integridade moral, seja por via do direito à identidade pessoal e desenvolvimento da personalidade (arts. 16.º; 18.º; 25.º, n.º 1 e 26.º, todos da CRP), definido pelo direito ao conhecimento da identidade dos progenitores[27], que inclui o direito à identidade genética própria e, em consequência, ao conhecimento dos vínculos de filiação “no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético”[28].
Como já se aludiu no acórdão deste STJ de 08/06/2010([29]) «nota-se um movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens, com desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, que têm acentuado a importância dos vínculos biológicos (mesmo se, porventura, com exagero no seu determinismo). O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo para os casos de reprodução assistida (cuja consideração está, evidentemente, fora do âmbito do presente recurso), tendo até, entre nós, sido já aprovada uma proposta de lei (a Proposta n.º 135/VII, in Diário da Assembleia da República, I série, n.º 95 de 18 de Junho de 1999, págs. 3439-3440 e 3459-3460) que previa a possibilidade de as pessoas nascidas em resultado da utilização de técnicas de procriação medicamente assistida obterem, após a maioridade, informações sobre a identidade dos seus progenitores genéticos (só não tendo entrado em vigor por ter sido objecto de veto político pelo Presidente da República).
(…) Constituindo a paternidade um elemento individualizador e referenciador de cada pessoa, não só no plano pessoal como no social, razão pela qual o reconhecimento da paternidade integra indubitavelmente uma das manifestações do direito à identidade pessoal.
Não custando reconhecer, como ainda se pode ler na fundamentação do acórdão do TC nº 23/06, que, «saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficos e culturais, e também genéticas (cfr., aliás, também a referência a uma identidade genética, que o artigo 26.º, nº 3 da Constituição considera constitucionalmente relevante). Tal aspecto da personalidade - a historicidade pessoal[30] - implica, pois, a existência de meios legais para a demonstração dos vínculos biológicos em causa (…) bem como o reconhecimento jurídico desse vínculos.
Com efeito, a identidade pessoal é aquilo que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal.
Incluindo a mesma os vínculos de filiação, existindo um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento, desde logo, da paternidade».
Crendo-se estar adquirido a consagração na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, previsto no citado art. 26.º, n.º 1, o direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade (bem como da maternidade, que ora não está em causa), incluindo o direito à identidade pessoal, além do mais, o direito ao conhecimento das próprias raízes, a paternidade constitui um elemento individualizador e referenciador de cada pessoa, não só no plano pessoal como no social, razão pela qual o reconhecimento da paternidade integra indubitavelmente uma das manifestações do direito à identidade pessoal[31].
Já no que concerne aos fundamentos da oposição, no âmbito do direito mortuário, designadamente na recolha de órgãos, «dir-se-á que o ensinamento de Kant, de harmonia com o qual o Estado tem de respeitar a liberdade ética do homem individual, tem, ainda aqui, plena actualidade. É nessa liberdade ética que, no fundo, radicará o dever admitir-se que cada homem, enquanto vivo, possa objectar a colheita de órgãos do seu cadáver para efeitos de transplantes. Por outro lado, o acatamento de uma tal vontade é algo que decorre para a consciência colectiva a partir de raízes ancestrais: aquelas em que o respeito e a veneração devidos aos mortos, e a vontade que em vida manifestaram, encontram o seu fundamento.
Nesta perspectiva, o direito da pessoa a opor-se à utilização do seu próprio cadáver para efeitos de recolha de tecidos ou órgãos, ao menos quando fundado em razões éticas, filosóficas ou de carácter religioso, terá consistência bastante para que deva ser-lhe reconhecida dignidade constitucional. Isto, como quer que, nomeadamente nesse plano, deva qualificar-se um tal direito.
De facto, não importará agora esclarecer em definitivo se o mesmo direito deve considerar-se como entendem alguns, como expressão ou projecção ainda do próprio direito à integridade "pessoal" (à integridade "moral") do artigo 25.°, n.° 1, ou, então, da liberdade de consciência e de religião, consignada no artigo 41.°, n.° 1, ou ainda do direito a objecção de consciência reconhecido no n.° 6 do mesmo artigo, da Lei Fundamental (uma projecção post mortem, pois, de direitos de pessoas vivas). Certo é que a esse direito não poderá deixar de reconhecer-se um fundamento constitucional, considerados os princípios humanísticos em que a Constituição assenta - princípios esses que, de todo o modo, se manifestam de modo privilegiado nos preceitos constitucionais antes referidos. Ou seja: trata-se de um direito que, seja como for, sempre encontrará fundamento, em último termo, na própria ideia ou princípio do Estado de Direito, iluminado pelo relevo que nele tem a dignidade da pessoa humana (artigo 1.° e 2.° da Constituição)»[32].
Tal direito, não obstante, assistirá à pessoa antes da morte e não à família.
À família, ainda segundo o mesmo aresto, “em geral, não repugnará apenas reconhecer «os poderes necessários para a manifestação dos seus afectos. Após a participação do óbito, esses poderes traduzem-se, sinteticamente, em: conservar e proteger o cadáver, decidir supletivamente sobre o lugar e modo do enterro e honras fúnebres». Na verdade, a origem desses direitos e a tutela de valores de ordem espiritual e ética relacionados com os sentimentos de piedade para com os defuntos, a que não são alheias considerações que muito têm a ver também com as convicções religiosas de cada um»[33].
Em face destes dois direitos, como adverte Vieira de Andrade, “a solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias ou entre direitos e valores comunitários não pode, porém, ser resolvida através de uma preferência abstracta, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais, (…) não devendo erigir-se o principio da harmonização ou da concordância prática enquanto critério ou solução dos conflitos ou pelo menos (…) ser aceite ou entendido como um regulador automático (mas) atender-se desde logo, ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito. Trata-se de uma avaliação fundamentalmente jurídica, para saber se estão em causa aspectos nucleares de ambos os direitos ou, de um ou de ambos, aspectos de maior ou menor intensidade valorativa em função da respectiva protecção constitucional”[34].
Expostos que ficam estes princípios, no âmbito de protecção dos limites imanentes e intrínsecos do direito ao conhecimento das origens genéticas, deve o mesmo permitir o conhecimento a todo o indivíduo do direito de investigar (judicialmente) a maternidade e a paternidade, assim obtendo a coincidência entre os vínculos jurídicos e biológicos, faculdade que constitui o ponto máximo da tutela conferida ao direito e para cujo reconhecimento contribui um outro direito fundamental, a saber, o direito a constituir família. A dimensão de protecção de tal direito determina o afastamento de soluções que permitam aos progenitores dispor do respectivo estatuto jurídico, escolhendo não assumir a condição legal de pai ou mãe e pode ainda ser convocado com o sentido de também garantir o direito de todo o indivíduo à obtenção junto dos respectivos progenitores, da informação genética indispensável para efeitos de cuidados de saúde. Por último, o conteúdo desse direito deve incluir um princípio geral de admissibilidade de recurso à via judicial com a finalidade de obtenção de informação necessária à identificação dos progenitores biológicos, reconhecendo-se a legitimidade de utilização de “acção de informação pessoal que permita a sua efectivação”[35].
Nada tendo sido alegado quanto a qualquer disposição de vontade do pretenso pai quanto ao seu cadáver, a tutela da projecção post mortem do direito e uma integridade pessoal e de consciência ou religião (com fundamento da dignidade da pessoa humana) está numa intensidade valorativa inferior à do direito (pessoalíssimo) da identidade pessoal, considerando, não só as supra expostas dimensões de protecção daquele direito mas também porque, sem aquela alegação, julgamos boa a interpretação das disposições legais que regem a matéria em apreço, designadamente de que “A partir de 1997, consagrou-se, aliás, expressamente um "direito ao desenvolvimento da personalidade" no artigo 26.° da Constituição[36], comportando dimensões como a liberdade geral de acção e uma cláusula de tutela geral da personalidade. E, se tanto o pretenso filho como o suposto progenitor podem invocar este preceito constitucional, não é excessivo dizer-se que ele «pesa» mais do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens”[37].
Concluir assim, devemos, ao invés do acórdão recorrido, aliás na esteira da doutrina e jurisprudência dominantes, pela ilegitimidade da recusa de exumação de cadáver suscitada pelos réus.
Com a procedência do recurso.
Face a todo o exposto acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em, na concessão da revista, se revogar o acórdão recorrido e, em consequência, admitir-se a realização da prova pericial de exumação de cadáver.
Custas pelos recorridos.
Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Fernando Bento
[1] Sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa.
[2] É assim que a Relação dá como assente a matéria de facto com interesse para a decisão.
[3] Neste sentido, cf. Ac. STJ de 15-12-2011 (Cons. Álvaro Rodrigues), Proc. N.º 912-B/2002, in www.dgsi.pt
[4] Lopes do Rego, RMP, n.º 58, 166 e in O Ónus Da Prova Nas Acções De Investigação de Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo da Filiação, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. I, pág. 781 a 790.
[5] Mª de FÁTIMA PINHEIRO, Genética, Biologia Forense e Criminalística publicado em Noções Gerais Sobre Outras Ciências Forenses, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Medicina Legal - 2003/2004, pg. 8.
[6]Paula Costa e Silva, A realização Coerciva de Testes de ADN em Acções de Estabelecimento da Filiação, in Estudos de Direito de Bioética, Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Almedina, p. 166.
[7] Diário da República, I,, de 08-02-1986.
[8] Caducidade das Acções de Investigação, p. 11,
[9] Luís Carvalho Fernandes, Estudos de Direito da Bioética, Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Almedina, pág. 70.
[10] Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, pág. 189.
[11] CF. L. Carvalho Fernandes, Estudos de Direito da Bioética, Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Almedina, pág. 63.
[12] Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, pág. 191-192, com sublinhado nosso.
[13] Orlando de Carvalho, Teoria Geral da Relação Jurídica, António de Carvalho Martins, A Colheita de Órgãos e Tecidos no Cadáver, p. 42 e ss e Luís Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, I, p. 243 e II, p. 176 e ss e 255 e ss.
[14] Teoria Geral De Direito Civil, I, pág. 243 e II, pág. 170 e ss. e 255 e ss.
[15] Ob. cit., pág. 189, nota 339.
[16]Teoria Geral da Relação Jurídica, 2.ª edição actualizada, págs.200 e 201.
[17] Código Civil Anotado, Vol. I, págs . 82 e 86.
[18] Ob. cit, pág. 193.
[19] Ob. cit., fls. 193-194.
[20] A Parte Geral do Direito Civil Português, Coimbra, Almedina, 1992, página 261 e ss.
[21] Código Civil Anotado, I, pág. 105.
[22] Das Pesönlichkeitsrecht, Colónia, Bohlau, 1967, pág. 342.
[23] A Colisão de Direitos, in “O Direito”, 137, 2005, pág. 38.
[24] Pº 08A3005 (Sebastião Póvoas), www,dgsi.pt.
[25] Pº 006A636 (Nuno Cameira), www.dgsi.pt.
[26] Ac. TEDH de 13.02.2003, “Affaire Odiévre c. França”, in www.echr.coe.int/echr.
[27] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 4.ª edição, vol. I, pág. 462.
[28] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2005, I, 204-205.
[29] P. 1847/08.5 TVLSB-A.L1.S1, com o presente relator (Serra Baptista) e o Conselheiro aqui também 1.º adjunto (Álvaro Rodrigues), in www.dgsi.pt.
[30] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 3ª ed. Coimbra, 1993, p. 179, falam justamente de um «direito à historicidade pessoal».
[31] Ac. STJ de 08/10/2009 (A. Sobrinho), P.º 450/09.7YFLSB, 7.ª secção, citado também no referido Ac. de 08/06/2010, in www.dgsi.pt.
[32] Acórdão (TC) n.º 130/88, de 08-06-1988 (Processo nº. 110/86).
[33] Neste sentido cf. Acs. STJ de 10-02-2000 (Sousa Inês), Proc. 1133/99; STJ de 11-12-2003 (Pires da Rosa), Proc. 2523/03.
[34] Vieira de Andrade, José Carlos, in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, págs. 316 e ss.
[35] Rafael Vale e Reis, Direito ao Conhecimento das Origens Genéticas, In Estudos de Direito da Bioética, Associação Portuguesa de Direito Intelectual, Almedina, pág. 166.
[36] Paulo Mota Pinto, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, in Portugal-Brasil, ano 2000, Coimbra, 2000),
[37] Quanto à prevalência e relevância deste direito, cf. os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 02-07-1996 (Lopes Pinto), Proc.º 359/96, de 11-03-1996, Proc.º 901/9, de 15-12-2011 (já citado), de 08-06-2010 (já citado), de 21/09/2010 (Sebastião Póvoas), Proc.º 495/04.3TBOBR.C1.S1 e de 06/09/2011 (Gabriel Catarino), Proc. 1167/10.5TBPTL.S1.