RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO COMUNITÁRIO
CULPA
CULPA EXCLUSIVA
CULPA DO LESADO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA IN VIGILANDO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
MOTOCICLO
MENOR
MORTE
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Sumário


I - As novas concepções comunitárias têm vindo a pôr em causa a jurisprudência e doutrina tradicionais em matéria de acidentes de viação, para as quais a imputação causal do acidente ao lesado exclui, por si só, a responsabilidade objectiva.

II - Com efeito, o direito comunitário, apresentando-se como garante de uma maior protecção dos lesados (alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco), veio – em várias directivas – consagrar a protecção dos interesses dos sinistrados, vítimas de acidentes de viação, numa sociedade como a nossa em que, o excesso de veículos (estacionados ou em circulação) criou desequilíbrios ambientais, limitou o espaço pietonal e aumentou potencialmente a sinistralidade.

III - Embora a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos seja, em princípio, da competência dos Estados-membros, impõe-se uma interpretação actualista das regras relativas à responsabilidade pelo risco, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas.

IV - As disposições das directivas comunitárias em matéria de responsabilidade civil e seguro automóvel obrigatório – nomeadamente da Directiva n.º 2005/14/CE de 11-05 devem estar presentes em sede de interpretação do direito nacional e nas soluções a dar na aplicação desse direito, razão pela qual não é compatível – com o direito comunitário – uma interpretação do art. 505.º do CC da qual resulte que a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco, prevista no art. 503.º do CC.

V - Não resultando provada a violação, por parte do condutor do veículo automóvel, de qualquer norma específica do CEst ou que o mesmo tenha agido com inconsideração, negligência ou falta de destreza, resulta inviável concluir pela culpa deste.

VI - No que diz respeito ao menor de seis anos, condutor do velocípede sem motor, que descia a rua com uma inclinação acentuada, com os pés fora dos pedais, sem luz sinalizadora, não se pode igualmente falar em culpa, posto que – para uma criança desta idade, em que na normalidade da vida esta se confunde com a brincadeira despreocupada – andar de bicicleta não representa mais do que o preenchimento da sua vida lúdica, pelo que a imprevidência não faz parte do seu quadro mental, não lhe sendo exigível que possa, ou deva, prever as consequências de um dado acto.

VII - Muito embora a culpa in vigilando se presuma, a mesma não dispensa a sua alegação, o que nos presentes autos não foi feito.

VIII - De acordo com o art. 488.º, n.º 1, do CC, “não responde pelas consequências do facto danoso que, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse estado, sendo este transitório”.

IX - Sabendo-se que ninguém se coloca culposamente em determinado estádio etário, sempre se terá de concluir pela não responsabilidade do menor pelas consequências do acidente para o qual contribuiu.

X - Na ausência de culpas atribuíveis aos intervenientes no acidente, resta a responsabilidade objectiva de cada uma das partes em presença, nos termos dos arts. 503.º, 489.º, 505.º e 506.º, todos do CC.

XI - Ainda que não se possa falar em culpa do menor, não deixou a sua conduta de contribuir seriamente para a eclosão do evento lesivo, pelo que – se em abstracto, as potencialidades do risco causado por uma bicicleta não sejam comparáveis às que decorrem da utilização de um veículo automóvel – a condução destemida do menor (sem pés nos pedais e a grande velocidade) por uma via pública, aberta ao trânsito, criou um grave risco, extremamente próximo do risco criado pelo veículo automóvel, razão pela qual se fixa este em 60% e aquele em 40%.

XII - É perfeitamente aceitável a quantia peticionada pelos autores de € 50 000 pela perda do direito à vida do seu filho, uma criança de seis anos, bem como se afigura adequada a indemnização de € 20 000 atribuída a título de danos não patrimoniais decorrentes do sofrimento da vítima durante o período que antecedeu a sua morte, que se provou terem sido 6 dias em estado de permanente agonia e sofrimento.

XIII - Afigura-se adequada a indemnização de € 40 000, a cada um dos progenitores, a título de danos não patrimoniais sofridos com a perda do filho, uma vez que resultou provado o sofrimento dos mesmos, o amor que os unia à criança e o desgosto incomensurável por eles padecido.

Texto Integral


ACÓRDÃO

         Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça:

         A) Relatório:

         Pelo Tribunal Judicial da comarca do Sabugal corre processo declarativo comum, na forma ordinária, em que são AA. AA e BB, identificados nos autos, e R. Companhia de Seguros CC, SA, identificada nos autos, pedindo aqueles a condenação desta no pagamento da quantia de 207.080,78 €, acrescida de juros desde a citação e na quantia a liquidar correspondente ao valor que se vier a apurar ser devido e relativo aos tratamentos e assistência em cuidados de saúde e até vir a ser dado como clinicamente curado, nomeadamente, despesas de deslocação, assistência médica e hospitalar, tratamentos e outros, bem todo e qualquer dano material que o A venha a ter no final do seu percurso de cura e, bem assim, qualquer outro prejuízo material. 

         Alegaram, em síntese, que no dia 12 de Julho de 2002 ocorreu um acidente de viação na rua de ... em que foram intervenientes o veículo VU- e um velocípede conduzido pelo menor DD, filho dos AA, embatendo aquele veículo no velocípede, embate de que resultou a morte do menor.

         A R contestou dizendo que a culpa do sinistro foi do menor DD, que descia a grande velocidade e desgovernadamente da rua do ... e sem travar invadiu a rua de ... vindo a embater no lado direito do capôt e no farol direito do veículo VU-.

         Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, conforme da acta consta, tendo a acção sido julgada improcedente por não provada e a R absolvida do pedido.

         Inconformados os AA recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra que em conferência julgou improcedente a apelação.

         Deste acórdão recorreram os AA para este Supremo Tribunal de Justiça alegando, em conclusão, o seguinte:

         1ª - O Tribunal a quo olvidou uma interpretação progressista e ou actualista dos Artigos 505° e 570° do Código Civil, as directivas comunitárias e a mais recente doutrina (Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-10-2007, Processo n° 07B 171 0n° convencional JSTOOO, Relator, Senhor Juiz-Conselheiro, Santos Bernardino, n° documento SJ200710040017102, inwww.dgsi.pt)

2ª - Das sobreditas directivas ressalta, entre o mais, para o caso sub judice, o Artº 1º da 3ª Directiva, cujo efeito útil impõe sempre a indemnização das vítimas causadas por veículos automóveis, excepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado.

3ª - O modo tradicional de ver as coisas no que respeita aos acidentes de viação com veículos sofreu profunda alteração de origem comunitária (Neste sentido, Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro, João Bernardo; declaração de voto no Acórdão supradito).

4ª - Diz ainda o Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro, João Bernardo que "Se encararmos a problemática na perspectiva da vítima, vêm ao de cima muitas realidades que a visão do nosso Código Civil deixara obnubiladas. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que o acidente é originado pela vítima mas sem que se lhe possa assacar culpa (porque é inimputável em razão de anomalia psíquica ou da idade [como é o caso em apreço], sendo a " culpa in vigilando", de todo desadequada para ser aqui adaptada)".

5ª - O acidente em causa não foi ocasionado exclusivamente pelo menor de seis anos, sendo certo que nada ficou provado de que resultasse poder dizer-se que os seus pais, Autores e ora recorrentes podiam e ou deviam ter evitado o acidente (nomeadamente, resposta ao quesito 33° da matéria de facto).

6ª - Resulta incompatível com o direito comunitário a interpretação do Art° 505° do Código Civil, segundo a qual, verificando-se culpa do lesado e sendo a respectiva conduta causa do acidente é excluída a responsabilidade pelo risco consagrada no Art° 503°, n° 1, bem como no Art° 570° do mesmo Código que permite em tal caso a exclusão da indemnização. (Neste sentido e a propósito desta temática já se pronunciou, em importante estudo o Excelentíssimo Senhor Juiz-Conselheiro, José Carlos Moitinho de Almeida, in "Seguro Obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias", acessível em www.dgsi.pt Estudos Jurídicos).

7ª - O Tribunal a quo não foi sensível "... Ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário - e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados - do âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas..." (Acórdão do. Supremo Tribunal de Justiça, já acima citado).

8ª - É de salientar que a doutrina hoje dominante admite a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570° do C.C.) e o risco da utilização do veículo (Art° 503° do C.C.), resultando tal asserção do disposto no Art0. 505° do Código Civil.

9ª - A infeliz criança, menor de seis anos, não lhe pode ser atribuída «culpa indesculpável» como a define o Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro, José Carlos Moitinho de Almeida.

10ª - O local do embate é bem conhecido do condutor do veículo VU-, pelo que teria ele de ter em conta a notória normal imprevisibilidade de comportamento de crianças que andam sempre no local onde ocorreu o acidente

11ª - Na concreta situação ajuizada, sem prejuízo do supradito na 4 conclusão, mas a admitir-se a culpa da infeliz criança na eclosão do sinistro, crê-se indubitável que para tal eclosão contribuiu de forma decisiva o risco próprio do veículo VU-.

12ª - Dizer que a actuação da infeliz criança foi, só por si, idónea para a ocorrência do acidente e que o veículo automóvel foi para tal indiferente, é o mesmo que dizer que este não tem uma típica aptidão para a criação de riscos e, em consequência, não contribuiu para o mesmo acidente.

13ª - A "grande velocidade" a que se refere o Tribunal a quo é um conceito abstracto que, salvo melhor opinião, não pode ser tido em conta para a apreciação e decisão do caso subjudice.

14ª - A hemifaixa de rodagem por onde o VU circulava só tinha 3,5m de largura, pelo que, circulando a 2 metros da berma, não pode, na nossa modesta opinião, dizer-se que tal veículo circulava o mais próximo possível das bermas.

15ª - A estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo VU está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente, tanto mais que no mesmo a sua intervenção não foi amorfa (Neste último sentido, Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador, Américo Marcelino, in "Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil", 6 edição, pág.339).

16ª - Ao condutor do VU era-lhe exigível um especial dever de cuidado e uma conduta meticulosamente prudente, pois que conhecia o local do embate e se aproximava de um entroncamento.

17ª - Por isso, não podia ele ignorar a imprevisibilidade do comportamento das crianças que frequentam o local que se situa dentro de uma localidade, numa rua marginada por edificações, num meio rural, onde à falta de outros locais, a rua é o parque natural dos folguedos infantis.

18ª - Pelo que, tal comportamento omissivo do condutor do veículo VU, também não deixa de se repercutir, em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão do evento lesivo.

19ª - Assim e a admitir-se que o comportamento do menor de seis anos é culposo, que o acidente a ele poderá ser imputado e que a sua conduta contribuiu para os consequentes danos que para ele resultaram, deve, ainda assim, concluir-se que, para tal, também contribuiu o risco próprio do veículo, VU-.

20ª - O que de acordo com a interpretação do preceituado no Art° 505 do Código Civil, reclama a subsunção desta situação concursal de causas do dano à norma de repartição do dano que é o Art° 570° do Código Civil.

21ª - Deste modo, tendo em conta tudo quanto dito se deixou e a admitir que os montantes indemnizatórios poderão, eventualmente, ser reduzidos, então, crê-se, que tais montantes deverão ser fixados de acordo com juízos de equidade, atendendo às circunstâncias concretas do caso em apreço

22ª - O Tribunal a quo por erro de interpretação e ou aplicação, violou e ou não considerou, entre o mais que Vossas Excelências bem melhor suprirão, o disposto nos Art°s 503°,505° e 570° do Código Civil e Art° 13°, n° 1 do Código da Estrada então vigente.

         Contra-alegou A R Companhia de Seguros CC SA pugnando pela manutenção do acórdão recorrido por inexistência de qualquer culpa do segurado.

         Foi pedido de reenvio prejudicial de modo a que o Tribunal de Justiça da União europeia se pronunciasse sobre a interpretação a dar à 3ª Directiva Automóvel – art.1º-A – e se ela se opõe ao segmento do direito nacional interpretado da maneira como o foi nas decisões da 1ª e 2ª instâncias, impedindo assim que no caso dos autos concorresse com a culpa do menor a responsabilidade pelo risco por parte do veículo ligeiro.

Por acórdão de 9 de Junho de 2011 o Tribunal de Justiça declarou:

“A Directiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.”


***

Tudo visto,

Cumpre decidir:

B) Os Factos:

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos:

1. A responsabilidade civil emergente de acidente de viação em que fosse interveniente o veículo de matrícula VU-, encontrava-se em 12/07/2002 transferida para a ré «Companhia de Seguros CC S.A.», até ao montante de € 600.000,00, conforme apólice n° ...;

2. No dia 14 de Fevereiro de 2005, no Cartório Notarial do Sabugal, foi outorgado escritura de habilitação por óbito de DD, de acordo com a qual sucederam a DD como seus únicos herdeiros seus pais AA e BB;

3. No dia 12 de Julho de 2002, cerca das 20h e 20m, ocorreu um embate entre o veículo VU-, conduzido pelo segurado da ré e a este pertencente, e o velocípede sem motor conduzido pelo DD.

4. O VU seguia na Rua … em direcção ao chafariz dos Lameiros, freguesia de Souto, concelho do Sabugal.

5. Na mesma ocasião circulava DD no velocípede sem motor, vindo da Rua do ....

6. Não existe qualquer sinal de trânsito quer na Rua do ... quer na Rua ....

7. O VU circulava pelo lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, numa via com 7 metros de largura.

8. O veículo VU circulava dentro de uma localidade, numa rua marginada por edificações e aproximava-se do entroncamento.

9. A Rua … configura uma subida.

10. No momento do embate já começava a escurecer.

11. Na sequência do embate dos autos foi elaborada declaração amigável de acidente e viação, constante de folhas. 65, por EE, segurado da ré que a esta a entregou.

12. Os autores enviaram à ré, que recebeu, a carta registada constante de fls. 20 e 21, a qual não foi objecto de qualquer resposta.

13. Em consequência do embate DD sofreu as lesões descritas a fls. 24-25, lesões essas que foram a causa da sua morte.

14. Correu na comarca do Sabugal, processo de inquérito n° 51/02.0GBSBG, em que era arguido EE, tendo tais autos sido arquivados.

15. Foi requerida a abertura de instrução pelos autores, na sequência do que foi proferida decisão de não pronúncia, a qual veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

16. O condutor do VU embateu no velocípede conduzido pelo DD, quando este se encontrava na Rua ... (q.l°);

17. Tal choque aconteceu depois de o condutor do VU haver travado e depois de ter avistado o velocípede conduzido pelo menor (q.2");

18. O veículo VU deixou... um rasto de travagem de 7,20 metros (q.3°)

19- O veículo VU só se imobilizou depois do choque (q.4M);

20. O veículo VU circulava a uma distância de 2 metros da berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha (q.5°);

21. Em consequência do embate, DD foi projectado para a frente do VU, cerca de 23 metros (q.6°);

22. No momento do embate o piso estava bom (q.7M); 23- A Rua ... configura uma recta (q.8°);

24. O local do embate é conhecido do condutor do VU (q.9°);

25. Os autores sofreram uma grande dor e desgosto com a morte do DD, pois era o único fruto da sua união (q.10);

26. O DD era uma criança inteligente, desenvolta, saudável, alegre e robusta (q. 11);

27. Entre os autores e o seu filho DD havia uma profunda união, amor e carinho (q-12°) ‘‘

28. Os autores fecharam-se na sua dor, chorando e lamentando o sucedido (q. 14");

29. E ainda recordando-o permanentemente, inconformados com o sucedido (q.l5°);

30. Após o embate, DD foi levado para o Hospital da Guarda em estado de coma, sendo depois transferido para o Hospital Pediátrico de Coimbra onde esteve internado na Unidade de Cuidados Intensivos no período de 13-07-2002 até 19-07-2002 (q, 16°);

31. Durante o período referido em 30, o DD esteve em estado permanente de agonia e sofrimento no leito hospitalar (q, 17°);

32. Após a morte de DD, e como consequência desta, o autor teve necessidade de assistência com tratamentos médicos com assiduidade e regularidade (q.l8°);

33. Desde a data do embate, o autor despendeu em consultas médicas, 120,00 €(q.l9°);

34. Em consequência do falecimento do seu filho, o autor necessitará ainda de continuar os seus tratamentos e acompanhamento (q.20°);

35. O velocípede sem motor conduzido por DD havia custado 89,78 €(q.21°);

36. Em consequência do embate o velocípede ficou inutilizável (q.22°);

37. Com 4 deslocações ao Hospital Pediátrico de Coimbra, para visitar seu filho durante o tempo em que esteve internado, despenderam os autores a quantia de € 528,00 (q-23°);

38. Com o funeral do DD, os autores despenderam 1.700,00 € (q.24°);

39. Os autores despenderam 1.643,00 € numa campa de granito (q-25°);

40. O DD seria o amparo e a ajuda futura de seus pais na velhice e doenças destes (q.26°);

41. O DD conduzia um velocípede sem motor descendo a Rua do ... (q.27°);

42. Pela respectiva hemifaixa esquerda (q.28°);

43. A grande velocidade, com os pés fora dos pedais e sem fazer uso dos travões, com intenção de virar à esquerda, para a Rua ... (q-29°);

44. A Rua do ... é de inclinação acentuada (q.30°);

45. No local em que a Rua do ... desembocava na Rua ..., o piso era recente e continha areia e gravilha (q.31°);

46. A Rua ... perfila em ligeira lomba à aproximação da intercepção à direita com a Rua do ... (q.36°);

47. O segurado da ré subia na Rua ... a não mais de 40 Kms/h (q, 37°);

48. O segurado da ré ia atento à rua, à condução e ao trânsito (q.38°);

49. Quando o segurado da ré divisou o DD, desviou o trajecto do VU para a \esquerda da sua hemifaixa e accionou os travões numa tentativa de evitar o embate (q.39°);

50. O segurado da ré apenas divisou o DD a dois metros deste (q.40°);

51. Entre o local onde seguia o veículo VU e a Rua do ..., existe um muro gradeado de uma vivenda a dificultar a visão (q41);

52. O velocípede veio embater no lado direito do capôt e no farol direito do VU (q.42°);

53. Estatelando-se o DD à frente e ligeiramente à direita deste veículo, a cerca de 23 metros do VU (q.43°);

54. O embate verificou-se na hemifaixa direita da Rua ... por onde circulava 0 VU, frente à hemifaixa esquerda da Rua de ..., sentido trazido pelo DD (q.44°);

55. O velocípede do DD não trazia ligado qualquer foco de iluminação (q.45°);

56. DD não trazia capacete nem outro meio de protecção (q.46")

C) O Direito:

O thema decidendum é determinado pelas conclusões das alegações de recurso tal como as gizam os recorrentes. Em questão da culpa dos intervenientes no presente acidente, da existência de culpa concomitante com risco ou da total ausência de culpas e da subsistência do risco, ou seja, cumpre decidir se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil, por facto ilícito ou pelo risco implicando a obrigação de indemnizar por parte da recorrida.

Antes de qualquer análise factual e correspondente subsunção da matéria dos autos temos de nos posicionar face às novas exigências comunitárias em matéria de circulação rodoviária e consequentes acidentes de viação.

As decisões judiciais, dos Tribunais portugueses, na sua grande maioria, em matéria de acidentes de viação, têm equacionado as soluções de cada caso na base da tradicional dicotomia culpa versus risco sendo que o apuramento da culpa de um dos intervenientes ou de terceiro afasta a responsabilidade objectiva ou pelo risco.

Se é certo que as doutrinas referentes à responsabilidade civil fundada na culpa ou no risco não perderam nem a sua validade conceitual nem a esfera de aplicabilidade, a complexidade da vida quotidiana, a velocidade a que ela gira, os meios de circulação utilizados, os instrumentos de trabalho sofisticados e, por vezes, perigosos postos à disposição implicam novas leituras dos normativos referentes à responsabilidade civil, nos diversos domínios do direito e, no que ao caso concreto tange, no tocante aos arts.503º, 505º, 506º e 570º do Código Civil (CC)

Na esteira dos fundamentos do Ac. STJ de 4 de Outubro de 2007, (in www.dgsi.pt, proc.n°conv.07B1710) cuja situação fáctica tem particularidades que o diferenciam do presente processo, podemos dizer que as novas concepções comunitárias têm vindo a pôr em causa a jurisprudência e doutrina tradicionais em matéria de acidentes de viação. Para estas a imputação causal do acidente ao lesado exclui a responsabilidade objectiva. Qualquer possibilidade de concurso do perigo especial do veículo com facto, culposo ou não culposo, de terceiro ou da vítima conducente a uma repartição da responsabilidade ou a uma atenuação da obrigação de indemnizar fundada no risco é legalmente inaceitável face à interpretação a dar ao art.505º do CC para o qual (nesse contexto interpretativo) o acidente imputável ao lesado ou a terceiro ou resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo afasta o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano e, consequentemente, a responsabilidade objectiva.

Se esta posição doutrinal defendida pelo Prof. Antunes Varela e largamente seguida na jurisprudência teve objectores, v.g., o Prof. Vaz Serra que mesmo após a publicação do Código Civil continuou a defender a tese da concorrência entendendo que a expressão acidente imputável ao próprio lesado, ínsita no art.505º do CC, deve ser interpretada com o sentido de acidente devido unicamente a facto do lesado (neste sentido cfr. Prof. Calvão da Silva para quem, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade civil objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado), há que ponderar (como se refere o acórdão citado) “a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida, de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do art.505º, tratando-se da mesma forma, situações as mais díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (…), os factos das crianças e dos demais inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios, uniformizando assim, «as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação», «desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária», e conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes”

O direito comunitário apresentando-se como garante de uma maior protecção dos lesados, alargando o âmbito da responsabilidade pelo risco veio, em várias directivas, consagrar a protecção dos interesses dos sinistrados, vítimas de acidentes de viação.

Toda esta ideia de protecção da vítima, numa sociedade onde o excesso de veículos, estacionados ou em circulação, criou desequilíbrios ambientais, limitou o espaço pietonal e aumentou potencialmente a sinistralidade, tem levado a União Europeia a criar normas de maior incidência indemnizatória. Disso não é alheia a 5ª Directiva (Directiva nº2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Maio que altera as Directivas ns.72/166/CEE; 88/357/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Directiva 2000/26/CE) transposta para a ordem jurídica interna pelo Decreto-Lei nº291/07 de 31 de Dezembro.

Embora o Tribunal de Justiça da União Europeia diga que “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-membros”, com a criação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor - Decreto-Lei nº291/07 de 31 de Dezembro – dada a conexão material entre as normas do Código Civil, relativas à responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes de viação, e este último diploma, há que enveredar por novos caminhos interpretativos que permitam dar corpo a novas soluções, no nosso direito positivo, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas.

Uma interpretação actualista impõe-se na medida em que a lei só tem sentido quando integrada numa dada ordem social que é necessariamente viva, aberta a todos os estímulos que nela provocam as alterações históricas.

Diz o Prof. Oliveira Ascensão que “a fórmula em que a lei se consubstancia, está fixada, mas o sentido dessa fórmula pode variar, consoante as incidências do condicionalismo donde arrancam as suas significações (in O Direito, Introdução e Teoria Geral, pag.358).

Uma interpretação actualista impõe-se pelo próprio desenvolvimento do direito (in casu comunitário). Interpretação e desenvolvimento do direito (diz-nos Larenz in Metodologia da Ciência do Direito, pags.417 e segs.) não são essencialmente diferentes. São antes dois estádios de um processo mental. O desenvolvimento do direito conduzido de forma metódica é apenas a continuação da interpretação «em sentido próprio» para além da sua fronteira imanente, o sentido literal possível.

A ideia de que a interpretação é já uma actividade criadora e inseparável do desenvolvimento do direito não é nova. Era já comum nos anos vinte do século passado na filosofia do direito de Radebruch, Sauer, Binder ou Schönfeld, no dizer do mesmo autor em cima citado.

A actual concepção de que os juízes são responsáveis tanto pela continuidade como pelo desenvolvimento do direito; de que estão vinculados tanto ao Direito como à Justiça; e da necessidade que devem ter de fundamentar cientificamente a interpretação e o desenvolvimento do direito encontra expressão nas palavras de Bruno Heusinger, na sua despedida de presidente do Tribunal Federal alemão: “…A necessidade de estabilidade (das decisões de um Tribunal Supremo) é indispensável quando a segurança jurídica deve ser garantida. Mas um Tribunal Supremo não deve, por outro lado, aderir demasiado à tradição, ser demasiado conservador, mas sim apreender com os olhos sempre abertos as modificações do mundo e, dentro do quadro das leis, adaptar o direito a estas modificações. O acto de conhecimento do juiz é simultaneamente acção. As sentenças dos tribunais intervêm formando e transformando no correr da vida, na personalidade, no contexto familiar, no património. Deste modo se distingue a sentença judicial da serenidade das investigações teóricas”.

As disposições das directivas comunitárias em matéria de responsabilidade civil e seguro automóvel obrigatório devem, pois estar presentes em sede de interpretação do direito nacional e nas soluções a dar na aplicação desse direito. Neste sentido se pronunciou o Conselheiro Moitinho de Almeida in “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”

No acórdão supra citado foram elencados vários arestos do Tribunal de Justiça (que nos dispensamos de os aqui repetir). Embora os arestos em causa (acórdão Candolin, acórdão Elaine Farrell) digam respeito à obrigação da seguradora quanto a passageiros transportados, a sua doutrina é plenamente válida, em matéria de responsabilidade civil, para peões, ciclistas, veículos de tracção animal e quaisquer outros utentes não motorizados da via pública que por constituírem a parte mais vulnerável num acidente estradal são principal objecto de atenção das directivas comunitárias.

No acórdão Elaine Farrell o Tribunal de Justiça entendeu que o art.1º da 3ª Directiva impede que um direito nacional exclua ou limite de modo desproporcionado a indemnização de um passageiro, pelo simples facto de ter contribuído para o evento lesivo. Da mesma forma não é compatível com o direito comunitário (nomeadamente a directiva citada) uma interpretação do art.505º do CC pela qual a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano, exclua a responsabilidade pelo risco prevista no art.503º do CC.

Sendo a jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido da existência de obrigação da interpretação conforme, ou seja, que as jurisdições nacionais devem, na medida do possível, interpretar o respectivo direito à luz das directivas comunitárias (ainda que não transpostas) de acordo com os arts.249º e 5º do Tratado CE, não podemos deixar de interpretar as normas nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva em conformidade com tais directivas.  

Postas estas considerações preliminares, analisemos o caso dos autos.

         Decorre da factualidade apurada que o acidente ocorreu, ao anoitecer, na freguesia do Souto, concelho do Sabugal, entre o veículo automóvel VU-, conduzido por EE e o velocípede, sem motor, conduzido por DD, menor de seis anos de idade (docs. autênticos de fls.12 a 16) que veio a falecer em consequência do acidente.

         Nem as instâncias nem nós retiramos da matéria de facto a existência de elementos constitutivos da culpa do condutor do veículo VU-. Na verdade o condutor do veículo automóvel subia a rua ... em direcção  ao chafariz dos Lameiros pela sua mão de marcha, isto é, do lado direito da faixa de rodagem, atento à rua, à condução e ao trânsito a uma velocidade não superior a 40km/h quando foi embatido por um velocípede sem motor conduzido por uma criança, o DD que descendo pela rua do ... e pretendendo virar à esquerda, para a rua ..., acabou por colidir com o VU-, no capôt do lado direito. O EE ao aperceber-se da presença do velocípede ainda tentou desviar a sua marcha para a esquerda não conseguindo, porém, evitar o embate tendo travado no momento da ocorrência do mesmo. Em nenhuma das ruas em causa existe qualquer sinal de “stop” ou de concessão de prioridade pelo que esta se determina nos termos gerais do direito estradal.

         Não estando provada a violação de qualquer norma específica do Código da Estrada nem estando provado também que o condutor do veículo VU-, segurado da recorrida, tenha agido com inconsideração, negligência ou falta de destreza, não podemos nos determinar pela culpa deste condutor.

         No que diz respeito ao condutor do velocípede sem motor temos dos factos apurados que este descia a rua do ..., que apresenta uma inclinação acentuada, com os pés fora dos pedais, sem luz sinalizadora da sua presença pretendendo voltar à sua esquerda para entrar na rua onde se deu o embate.

         É certo que a condução imprimida ao velocípede pelo DD contribuiu para o desfecho acidental ocorrido mas poder-se-á falar em culpa deste condutor?

         A culpa radica-se numa conformação da vontade do agente com determinada actuação. E exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente, ou seja, segundo ensina o Prof. Antunes Varela, “o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo”. Exprime sempre um nexo entre o facto e a vontade do autor. Mesmo no domínio da negligência ela terá sempre de constituir uma omissão da diligência exigível do agente. No âmbito da mera culpa o autor prevê a produção do facto ilícito como possível mas por leviandade, desleixo, incúria ou precipitação realiza mentalmente a sua não verificação não tomando as providências necessárias para evitar a produção de tal facto. Noutros casos o agente nem sequer chega por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão a conceber a possibilidade do facto se verificar quando podia e devia prevê-lo se usasse da diligência devida.

         Para uma criança de seis anos, em que na normalidade da vida esta se confunde com a brincadeira despreocupada, sem consciência das exigências impostas pelo viver em sociedade, andar de bicicleta ainda que seja na via pública não representa mais d o que o preenchimento da sua vida lúdica. O seu comportamento enquanto condutor do velocípede não se enquadra sequer no conteúdo da negligência inconsciente. A imprevidência (tal como é concebida pelos adultos) faz, normalmente, parte do quadro mental de qualquer criança (da idade da dos autos) não sendo exigível que ela possa ou deva prever as consequências de um dado acto usando de uma diligência que ela não tem e muito menos que paute a sua conduta por normas estradais que de todo lhe passam despercebidas.

         A movimentar-nos no domínio da culpa sempre esta seria in vigilando mas a factologia dos autos não permite presumi-la (embora a culpa in vigilando se presuma, tal presunção não dispensa a alegação) pelo que não tem aqui que ser considerada.

         Não há qualquer nexo de imputação do facto lesivo ao menor. A imputabilidade pressupõe capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos seus actos e para se determinar de acordo com o juízo que deles faça. Aquela pressupõe a posse de certo discernimento e de certa liberdade de determinação, isto é, capacidade intelectual e volitiva o que não existe num menor de seis anos.

         Aliás é a própria lei que o reconhece no art.488nº2 do CC, o qual reza que se presume a falta de imputabilidade nos menores de sete anos e nos interditos por anomalia psíquica. E embora se trate de uma presunção juris tantum ilidível, portanto, por prova em contrário (possibilidade muito remota na prática) (art.350ºnº2 do CC) sempre à recorrida cabia o ónus da produção de uma tal prova (art.344ºnº1 do CC).

         De acordo com o art.488ºnº1 do CC “não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse estado, sendo este transitório”. Sabendo que ninguém se coloca culposamente em determinado estádio etário e que não foi ilidida a presunção do citado art.488ºnº2 sempre se terá de concluir pela não responsabilidade do menor pelas consequências do acidente para o qual contribuiu.

         Não estando em causa a culpa in vigilando concluíram as instâncias pela não reparação de qualquer dano por falta de quem responda por ele.

         Não podemos estar de acordo.

         Na ausência de culpas atribuíveis aos intervenientes no acidente resta-nos a responsabilidade objectiva de cada uma das partes em presença, com assento legal nos arts.503º, 489º, 505º e 506º todos do CC.

         Em causa está um acidente com intervenção de um velocípede sem motor conduzido por uma criança de seis anos e um veículo automóvel ligeiro, cuja perigosidade, em abstracto, decorre da sua própria natureza e que, na situação dos autos era conduzido pelo segurado da recorrente, na via pública de uma povoação aberta também a veículos não motorizados.

         Embora não se tenha provado que o condutor do veículo circulasse a uma velocidade não permitida, pelo Código da Estrada ou desatento ao trânsito e à condução no interior de uma povoação, não deixa de relevar o facto, sem que isso se projecte no domínio da culpa, de que uma qualquer velocidade (in casu inferior a 40Km/h) imprimida a um veículo automóvel, no interior de uma povoação onde a presença de crianças que correm atrás de uma bola, que andam de bicicleta ou que inopinadamente fogem da mão da mãe constitui uma realidade não meramente virtual, potencia o risco próprio do veículo nos termos do art.503º do CC e não deixou, no caso concreto de se repercutir, em sede de causalidade, no processo dinâmico que conduziu ao evento lesivo.

         Por outro lado, ainda que não possamos falar em culpa do menor ou em imputabilidade ao mesmo das consequências do facto danoso não deixou a sua conduta de contribuir seriamente para a eclosão do evento lesivo. Se, em abstracto, as potencialidades de risco causado por uma bicicleta não sejam comparáveis às que decorrem da utilização de um veículo automóvel, no caso concreto, a condução destemida do menor (sem os pés nos pedais e a grande velocidade) por uma via pública, aberta ao trânsito automóvel, não deixou de criar um grave risco e ser causa não pouco despicienda na produção do acidente.

Daí que, no caso vertente, a contribuição de cada um dos veículos para os danos, dadas as circunstâncias da colisão, é extremamente próxima pois, se é certo que o velocípede sem motor está mais na dependência do condutor (que sobre ele exerce completo domínio) o que não acontece com um automóvel e que o peso de cada um deles não é comparável, não é menos certo que a forma como a bicicleta foi conduzida e o facto da inexistência de qualquer protecção do seu utilizador, facilitou em alto grau as lesões do condutor.

         Sem embargo de se reconhecer que, no caso concreto, não está propriamente em causa uma situação de nítida concorrência entre culpa e risco, temos que à luz de uma interpretação conforme às normas comunitárias de acordo com o exposto supra, há que concluir que para o acidente em causa e para os danos que dele resultaram contribuíram a conduta do menor e os riscos próprios do veículo VU-. O que de acordo com a interpretação dada ao art.505º do CC impõe a subsunção desta situação concorrencial de causas do dano à norma de repartição do mesmo prevista no art.506º do CC aplicável às situações de risco.

         Na colisão sem culpa de nenhum dos condutores (art.506º do CC), responde cada um na medida do risco. Assim, a proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos a atender para a fixação da indemnização, no caso de colisão sem culpa, tem de ser estabelecida em função da contribuição dada em concreto por cada veículo. E o nº1 do art.506º é aplicável a todos os prejuízos indemnizáveis resultantes do acidente de viação.

         No caso em apreço se é relevante a forma como o menor conduzia a sua bicicleta não podemos deixar de notar a desproporção existente entre um veículo automóvel e um velocípede sem motor, sobretudo quando vai imprimido por uma velocidade (ainda que contida nos limites legais da circulação em localidades) que deixa, contudo, um rasto de travagem de 7,20 metros e projecta a vítima a 23 metros do local do embate. Assim fixa-se em 60% o risco do automóvel e 40% o do velocípede sem motor.

                  Finalmente há que determinar quais os danos indemnizáveis e em que medida o são.

         Em primeiro lugar deve ser considerado o dano morte.

         É, hoje, jurisprudência prevalente que a perda da vida, em si mesmo considerada, constitui um dano, independente de outros danos não patrimoniais que a vítima tenha padecido, cuja reparação confere aos herdeiros, por transmissão mortis causa, um direito a indemnização nos termos do art.496ºnº2 do CC.

         Pela perda do direito à vida de uma criança de seis a importância de 50.000,00 €, pedida pelos AA parece-nos perfeitamente aceitável face ao valor absoluto que a vida representa.

         Para além do dano morte terá de ser considerado, em sede de direitos não patrimoniais, o sofrimento da vítima durante o período que antecedeu a sua morte e o sofrimento dos pais com a perda do filho.

No que diz respeito ao primeiro, da factualidade apurada retira-se que após o embate, o DD foi levado para o Hospital da Guarda em estado de coma, sendo depois transferido para o Hospital Pediátrico de Coimbra onde esteve internado na unidade de cuidados intensivos no período de 13-07-2002 até 19-07-2002; e que durante estes seis dias o DD esteve em estado permanente de agonia e sofrimento no leito hospitalar.

Tendo em consideração a dificuldade real de valoração do sofrimento de alguém que está em estado de coma, importa, contudo, atentar no período que durou essa agonia (seis dias) pelo que nos parece equitativa a atribuição de uma indemnização cifrada em 20.000,00 €.

Os danos não patrimoniais dos pais do DD decorrem do sofrimento destes pela perda do filho único de ambos. Os danos não patrimoniais não se presumem têm de advir de factos que os comprovem. O sofrimento dos pais do DD está demonstrado em sede de facto: o amor que os unia à criança e o desgosto incomensurável por eles sofrido com a sua morte, os transtornos psíquicos que a ambos causou ainda que com maior incidência no pai é determinante de uma indemnização de 40.000,00 € a atribuir a cada um deles, não havendo, contudo, motivo para melhor valorar a dor sentida pelo pai. Embora dos factos assentes resulte uma maior prostração psicológica do pai tal não significa que o desgosto pela perda do filho seja superior ao da mãe. Significa, apenas, que a estrutura psicológica do pai se apresenta como mais débil que a da mãe do DD.

No domínio dos danos patrimoniais há considerar os gastos efectivos do A em consultas médicas que desde a data do acidente até à propositura da acção se cifra em 120,00 €; as deslocações ao Hospital Pediátrico de Coimbra, para visitar seu filho durante o tempo em que esteve internado, em que foi dispendida pelos AA a quantia de 528,00 €; os gastos com o funeral do DD no montante de 1.700,00 €; o custo da campa do DD que se cifrou em 1.643,00 €. Acresce a estes montantes o custo do velocípede inutilizado no valor 89,78 €.

Não está minimamente provada a existência de danos futuros. Os danos futuros protelam-se no tempo contendo, pela sua própria natureza, uma dada incerteza de concretização. Não podem, todavia, ser meramente hipotéticos. O art.495ºnº3 do CC estipula o direito a indemnização aos que podiam exigir alimentos ao lesado. Mas tal exigência tem de se fundamentar em factos relevantes à sua concretização e ao cômputo indemnizatório à data da morte do lesado e não em meras hipótese de um futuro incerto. Dizer que uma criança de seis anos iria ser o amparo na velhice de seus pais é manifestamente insuficiente para um cálculo indemnizatório por danos futuros.

As quantias que o A poderá vir a despender com tratamentos médicos em virtude do abalo psíquico sofrido com a morte do filho devem ser apuradas, se for caso disso, em futura liquidação.

Assim, a tudo atendendo, computa-se os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no montante de 154.080,78 €. Tendo em conta que a recorrida é apenas responsável, a título de risco, por 60% do montante indemnizatório, fixa-se tal montante em 92.448,46 €.

Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial revista e revogando o acórdão recorrido condenam a R a pagar aos AA a quantia de 92.448,46 € a título de indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais por estes sofridos. A esta quantia acresce o que se vier futuramente liquidar e, juros de mora à taxa legal desde a data deste acórdão até efectivo e integral pagamento.

Custas aqui e nas instâncias por AA e R na proporção dos respectivos decaimentos.

Lisboa, 5 de Junho de 2012

Orlando Afonso (Relator)

João Bernardo

Távora Victor