COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
BENS NO ESTRANGEIRO
BEM IMÓVEL
DOMICÍLIO
RÉU
Sumário


I – O primeiro factor desencadeador da competência internacional dos tribunais portugueses, nos termos do art. 65, nº1, al. a) do C.P.C., é o facto do réu ou algum dos réus ter domicílio em território português, salvo tratando-se de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro.

II – Uma acção pode versar sobre bens imóveis e todavia ter por fim fazer valer, não um direito real, mas um direito de obrigação.

III – É o caso em que se pede a anulação ou a declaração de nulidade de um testamento feito por cidadã portuguesa, residente em Portugal, no Consulado Geral do Brasil, em Lisboa, que abrangia bens imóveis sitos no Brasil.

IV- Não constituindo a regulação de direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos no Brasil, o objecto do litígio, o simples facto da ré ter domicílio em Portugal é suficiente para fundar a competência dos tribunais portugueses.
A.R.

Texto Integral

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

         AA e marido BB, residentes na casa da Veiga, da freguesia de Couceiro, da comarca de Vila Verde, instauraram a presente acção ordinária contra a ré CC, divorciada, residente na Rua ..., Lisboa, pedindo que esta seja condenada a ver declarada a anulação ou nulidade do testamento que a falecida mãe de ambas efectuou no Consulado-Geral do Brasil, em Lisboa, em 23 de Junho de 2005.

Alegaram, para tal e em suma, que a primeira Autora e a Ré são as únicas filhas e herdeiras dos seus falecidos pais, da qual aquela é cabeça-de-casal.

A falecida mãe de ambas outorgou em 23 de Junho de 2005 um testamento no Consulado-Geral da Republica Federativa do Brasil.

A mesma já havia efectuado anteriormente outros dois testamentos em Cartórios Notariais do Porto.

No testamento realizado no Consulado-Geral do Brasil, deixou a quota disponível à Ré, no valor de metade, o que é permitido pela lei brasileira, enquanto nos primeiros tinha deixado 1/3 de acordo com a lei portuguesa; apesar de existirem bens imóveis no Brasil a falecida nunca sequer lá se deslocou.

A falecida não poderia ter efectuado o último testamento como o fez uma vez que tal só é facultado aos Brasileiros, nos termos do próprio Regulamento do Consulado.

                                                        *

         A ré contestou.

                                                        *

         Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, declarando-se a ineficácia do testamento efectuado pela falecida DD, elaborado em 23 de Junho de 2005 no Consulado-Geral da Republica Federativa do Brasil e a condenação da Ré a reconhecer essa ineficácia.

                                                        *

         Apelou a autora.

A Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 23-11-2011, declarou oficiosamente o Tribunal Português internacionalmente incompetente para conhecer do pleito, absolvendo em consequência a ré da instância, nos termos dos arts 494, alínea a) e 493, nº2, do C.P.C.

                                               *

Inconformados, os autores recorreram para este S.T.J., onde resumidamente concluem:        

1- Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da causa.

2 – Basta a existência de um dos factores enunciados no art. 65 do C,P.C., para que os tribunais portugueses sejam competentes para julgar a presente acção.

3 – No caso concreto, temos vários factores acumulados para justificar a competência dos tribunais portugueses, por exemplo:

a) – A recorrida reside em Portugal – princípio da competência do tribunal do domicílio do réu.

b) – A lei reguladora da sucessão da testadora é a lei portuguesa.

c) – O tribunal competente para tratar do inventário por morte da finada  testadora é um tribunal português, no caso o Tribunal de Vila Verde, onde o mesmo inventário corre.

d) - Foi praticado em Portugal o facto que serve de causa de pedir na presente acção, ou seja, ocorreu em Portugal, a morte da testadora.

e) – A recorrente só pode tornar efectivo o seu direito por meio de acção proposta em território português.

4 – Uma acção de anulação de um testamento não é uma acção relativa a direitos reais sobre imóveis, mas quando muito uma acção obrigacional, lato sensu.

5 – Se não fosse aceite a competência internacional dos tribunais portugueses, estaríamos num caso flagrante de inconstitucionalidade, uma vez que estaria ser negado à recorrente a sua legítima materna e, por outro lado, estava a ser negado aos Notários portugueses a sua qualidade exclusiva para serem os únicos com competência para lavrar testamentos aos cidadãos portugueses, enquanto residentes em Portugal.

6 – Ao fazer um novo testamento, desta feita no Consulado –Geral do Brasil, em Lisboa, a finada testadora quis usar, fraudulentamente, duas quotas disponíveis, uma a portuguesa e outra a brasileira, quando ela sabia bem que, à sua sucessão, só se podia aplicar a sua lei pessoal, ou seja, a lei portuguesa.

7 – Termina por pedir que se revogue o Acórdão recorrido e se declarem os tribunal portugueses internacionalmente competentes para julgarem a presente acção de anulação do ajuizado testamento, confirmando-se a sentença recorrida.

                                               *

A recorrida CC contra-alegou, dizendo que, para a hipótese de procedência da competência internacional dos tribunais portugueses, a sentença recorrida viola o disposto nºs arts 22, 2156 e 2159, nº2, todos do C.C.                   

                                                        *

Corridos os vistos, cumpre decidir.

                                               *

         A Relação considerou provados os factos seguintes:

1- A. e R. são as únicas filhas de EE e DD.

2- A falecida DD efectuou em 9 Março de 1994, no extinto 6° Cartório Notarial do Porto, o “testamento” cuja certidão se encontra a fls. 178 a 181 dos autos e nos exactos termos em que aí consta.

3 - - Efectuou igualmente em 17 de Maio de 2005, no 4° Cartório Notarial do Porto, o “testamento” cuja certidão se encontra a fls. 182 a 184 dos autos e nos exactos termos em que aí consta.

4 - - Efectuou ainda em 23 de Junho de 2005, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, o “testamento público” cuja cópia certificada se encontra a fls. 185/186 dos autos e nos exactos termos em que aí consta.

5 - Esta apenas teve a nacionalidade portuguesa e sempre residiu em Portugal, tendo nascido em 10 de Agosto de 1920 na freguesia e concelho de Espinho, sendo filha de FF e GG.

6- E veio a casar em 27 de Dezembro de 1944 com EE (falecido em 15 de Julho de 2005) tendo falecido em 13 de Setembro de 2005, tendo residência habitual há décadas na Rua ... Porto.

7- No “Manual de Serviço Consular e Jurídico”, da Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, consta, nomeadamente: Capitulo 2.0, Secção 1ª, 2.1.7, "As funções consulares são: (...) e) prestar ajuda e assistência aos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas do Estado que envia; f) agir na qualidade de notário e oficial de registro civil e exercer funções similares, assim como outras de carater administrativo, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor;"

8- Consta ainda no Capitulo 4.0, Secção 4.1.59 "Somente os brasileiros e os portadores de carteira Registro Nacional de Estrangeiros -       E - válida pode valer-se dos serviços de natureza notarial e de registro civil prestados pelas Repartições Consulares brasileiras, com exceção do reconhecimento de firmas de tabeliães estrangeiros, de portadores de carteira Registro Nacional de Estrangeiros - RNE - válida e da autenticação de documentos expedidos por órgãos oficiais na jurisdição do Posto."

                                                        *

         A única questão a decidir consiste apenas em saber se os tribunais portugueses dispõem de competência internacional para o conhecimento da causa, em que se pede a anulação ou a declaração da nulidade do referido testamento, outorgado pela mãe da autora e da ré, no Consulado-Geral do Brasil, em Lisboa, no dia 23 de Junho de 2005.

                                                        *

         Vejamos :

As normas de competência internacional servem-se normalmente de alguns elementos de conexão com a ordem jurídica nacional, para atribuição de competência aos tribunais dessa mesma ordem jurídica, para o conhecimento de uma certa acção.

A diferença entre competência interna e competência internacional pode estabelecer-se nos termos seguintes:

- a competência interna respeita às situações que apenas determinam a aplicação dos critérios da competência interna dos tribunais portugueses;

- a competência internacional  refere-se aos casos que, na perspectiva da ordem jurídica portuguesa, apresentam uma conexão com outras ordens jurídicas e que, por isso, exigem a aplicação das regras da competência internacional.

Assim, a competência internacional dos tribunais portugueses é a competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecerem de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresenta, igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

As normas que definem as condições em que os tribunais de uma ordem jurídica são competentes para resolução de uma questão que apresenta conexão com várias ordens jurídicas podem designar-se por normas de recepção.

É essa a função dos critérios enunciados nas várias alíneas do nº1, do art. 65, do C.P.C.

Em sede de competência internacional dos tribunais portugueses, o objectivo essencial da reforma processual de 1995/1996 foi o de aproximar, tanto quanto possível, o nosso sistema de direito comum com o consagrado nas Convenções de Bruxelas e de Lugano.

Pois bem.

 

O primeiro factor desencadeador da competência internacional dos tribunais portugueses é o que vem consagrado na alínea a), do nº1, do art. 65 do C.P.C., ou seja: ter o réu ou algum dos réus, domicílio em território português, salvo tratando-se de acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro.

A testadora, mãe da autora e da ré, sempre teve nacionalidade portuguesa e sempre residiu em Portugal, onde veio a falecer.

A ré tem o seu domicílio na cidade de Lisboa.            

Todavia, a Relação decidiu que a presente acção respeita a direitos reais sobre imóveis sitos em país estrangeiro (Brasil), pelo que considerou afastada a competência internacional do tribunal português para o conhecimento da causa, nos termos da segunda parte da alínea a), do nº1, do citado art. 65 do C.P.C.   

Com o devido respeito, não se afigura ser esse o melhor entendimento.

Com efeito, o pedido da presente acção consiste na anulação ou declaração de nulidade do indicado testamento feito pela mãe da autora e da ré no Consulado-Geral do Brasil, em Lisboa, no dia 23 de Junho de 2005. por ter sido lavrado contra a lei e em fraude à lei, ao pretender dispor do valor de duas diferentes quotas disponíveis: a portuguesa e a brasileira.

Daí que não se esteja perante uma acção relativa a direitos reais sobre imóveis sitos no Brasil.

Já Alberto dos Reis (Comentário ao Código do Processo Civil, Vol. I, 2º ed, pág. 174), ensinava que “ a acção pode versar sobre imóveis ou dizer respeito a um imóvel e, todavia, ter por fim fazer valer, não um direito real, mas um direito de obrigação. É o caso por exemplo de acção proposta pelo vendedor contra o comprador para rescindir o contrato de venda de prédio, ou de acção de comprador contra o vendedor a pedir a entrega de imóvel vendido.”

E, logo a seguir, acrescenta o insigne processualista (Obra e local citados):

“ Bem decidiu por isso, a Relação do Porto, em Acórdão de 19 de Novembro de 1930 ( Revista  dos Trib., Ano 48, pág. 345), declarando sujeita ao foro do domicílio do réu, e não ao forum rei sitae, a acção em que se pedia o reconhecimento da falsidade duma procuração e a anulação de doação feita no uso dessa procuração, com a consequente reversão ao património dos doadores, dos bens doados”.      

No mesmo sentido se orienta o Ac. S.T.J. de 13-1-2005 (Cadernos de Direito Privado, nº 16, Outubro/Dezembro de 2006, págs. 21/22), onde se escreve:

“Não basta, para que a hipótese legal se dê por verificada, que a acção, apelando à mera literalidade da fórmula, se relacione como quer que seja indirectamente, ou se prenda a título secundário ou acessório, com um direito real sobre imóvel, alheada do espírito garantístico de faculdades compreendidas na titularidade do direito.

Torna-se mister que a lide tenha nesse direito real o seu objecto ou fundamento nuclear como causa petendi”.     

Assim, face ao pedido e à causa de pedir, é de concluir que a presente acção não tem por objecto fazer valer o direito real de propriedade sobre  prédios sitos no Brasil, nem sequer um direito pessoal de gozo, mas antes um direito de obrigação, visando a anulação ou declaração de nulidade do mencionado testamento.

Consequentemente, não se verifica a excepção a que alude a segunda parte da alínea a), do nº1, do art. 65, do C:P.C.

 Logo, tendo a ré domicílio em território português, ocorre o factor de atribuição de competência internacional dos tribunais portugueses, previsto na dita alínea.  

Cada um dos factores atributivos de competência indicados no aludido art. 65, nº1, do C.P.C., tem valor autónomo, pelo que basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam internacionalmente competentes ( Lebre de Freitas, Código do Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 2ª ed, pág. 137). 

Aqui chegados, impõe-se a revogação do Acórdão recorrido e a determinação da baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, para conhecimento do objecto do recurso de apelação, pois, com a decretada absolvição da instância da ré, não se tratou de qualquer questão que tivesse ficado prejudicada pela solução dada a outras, mas antes do conhecimento do próprio objecto da apelação, in totum, o que afasta a possibilidade de aplicação do preceituado no art. 715, nº2 ex vi do art. 726 do C.P.C.

                                               *

Termos em que concedendo provimento ao recurso, decidem :

- revogar o Acórdão recorrido e, consequentemente, declarar internacionalmente competente o tribunal português para conhecer do mérito da causa;

- determinar que o processo baixe à Relação de Lisboa, para conhecimento do objecto da apelação, pelos mesmos Ex.mos Desembargadores, se possível. 

         Custas pela parte vencida  a final.

                                                                  Lisboa, 19-6-2012

Azevedo Ramos  (Relator)

Silva Salazar

Nuno Cameira