I - A relação tripolar pressuposta pelo contrato de trabalho temporário determina que a posição jurídica de empregador seja titulada pela empresa de trabalho temporário, pertencendo à empresa utilizadora, por delegação daquela, a direcção e organização do trabalho, e cabendo, doutro passo, ao trabalhador temporário o acatamento das prescrições da empresa utilizadora no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança e medicina no trabalho.
II - O vínculo obrigacional do qual emergem os direitos previstos na Lei dos Acidentes de Trabalho estabelece-se entre o sinistrado ou os seus beneficiários legais, por um lado, e a entidade empregadora ou (e) a seguradora, por outro, entroncando esta concepção nas teorias do risco económico ou do risco profissional, de acordo com as quais quem beneficia da actividade prestacional do trabalhador e conforma a sua laboração, através de um vínculo – real ou potencial – de autoridade/subordinação jurídica e económica, deve igualmente assumir a responsabilidade pela reparação dos sinistros que com ele ocorram.
III - É, assim, patente que, por não existir qualquer vínculo jurídico entre o trabalhador temporário e a empresa utilizadora ou quem se assuma como o dono da obra ou quem, no momento, assuma as tarefas da sua coordenação, a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho recai, necessariamente, sobre a empresa de trabalho temporário, a entidade empregadora do trabalhador sinistrado, sem prejuízo, naturalmente, do direito de regresso que lhe possa assistir contra os responsáveis referidos nos artigos 18.º, n.º 3, e 31.º, n.º 4, da Lei 100/97, de 13 de Setembro (LAT).
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.
I)
1.
AA, viúva, e seus filhos menores, BB e CC, na qualidade de beneficiários do sinistrado DD vieram propor a presente acção, sob a forma do processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra “Companhia de Seguros – EE”, “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, Câmara Municipal de GG e “HH, Construções, Lda.” (empresa utilizadora), pedindo que seja reconhecido o acidente como sendo um acidente de trabalho, a responsabilidade pela ocorrência do mesmo atribuída às rés e estas condenadas a pagar à autora: (i) a pensão anual e vitalícia no montante de € 8.650,50, devida desde o dia seguinte à morte do sinistrado; (ii) o subsídio por morte, no valor de € 4.824,00; (iii) o subsídio para despesas de funeral no montante de € 3.216,00, dado que houve trasladação; (iv) os juros de mora sobre as importâncias em dívida, à taxa legal, desde o respectivo vencimento até integral pagamento; e a pagar aos seus filhos menores: (i) a pensão anual e temporária de € 8.650,50 até aos 18, 22 anos ou até aos 25 anos, enquanto se verificarem as condições a que se refere o artigo 20.º, alínea c), da Lei n.º 100/97, de 13-09, devida desde o dia seguinte à morte do sinistrado; o subsídio por morte, no valor de € 4.824,00; (iii) os juros de mora sobre as importâncias em dívida, à taxa legal, desde o respectivo vencimento até integral pagamento.
Alegaram, em síntese, serem, respectivamente, viúva e filhos menores do sinistrado. No dia 17 de Novembro de 2007, o sinistrado foi vítima de um acidente trabalho quando exercia as funções de pedreiro, por conta da ré “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, cedido à ré “HH – Construções, Lda.”. O acidente consistiu no desabamento de uma parte do telhado da obra na qual o sinistrado laborava, sendo que este ficou debaixo de uma placa de cimento. Em consequência desse evento, o sinistrado sofreu lesões que foram causa directa e necessária da sua morte. O acidente ocorreu por não terem sido observadas quaisquer normas de protecção colectiva ou individual.
A ré “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.” tinha a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho transferida para a ré “CA – Seguros, S.A.”, pela retribuição de € 518,50 mensais, acrescida da quantia de € 5,75 diários, a título de subsídio de alimentação.
Regularmente citadas, as rés contestaram.
Alegou, em síntese, o réu Município de GG não ter responsabilidade na ocorrência do acidente que vitimou o sinistrado, pugnando pela sua absolvição dos pedidos.
A ré “HH Seguros – Companhia de Seguros de ..., S.A.” alegou, em síntese, que, não obstante estar para si transferida a responsabilidade emergente de acidente de trabalho que vitimasse o sinistrado, apenas responde subsidiariamente pelas prestações peticionadas, por o acidente de trabalho se ter ficado a dever à inobservância das regras de segurança.
A ré “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.” alegou, em síntese, não poder ser responsabilizada pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado em virtude de a eventual violação das regras de segurança lhe não ser imputável, visto ter cedido o sinistrado à empresa utilizadora.
A ré “HH – Construções, Lda.” alegou, em síntese, que o acidente não ocorreu devido a uma actuação dolosa ou negligente, mas antes a uma avaliação deficiente do estado do edifício onde se realizava a obra, pelo que inexiste fundamento para a reparação, agravada, do sinistro.
Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, fixou-se a matéria de facto assente, bem como a base instrutória, que foram objecto de reclamação por parte da ré seguradora, com êxito parcial.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que condenou, a título principal, a ré “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.” a pagar à viúva do sinistrado e aos descendentes deste as pensões – agravadas – resultantes do acidente de trabalho e o subsídio por morte.
Mais condenou, subsidiariamente, a ré seguradora no pagamento das mesmas prestações, embora pelo seu valor normal.
2. Inconformada com a decisão, a ré seguradora dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de fls. 862 a 878, lhe não concedeu provimento, mantendo a sentença recorrida.
3. É contra esta decisão que se insurge a ré seguradora, mediante recurso de revista, em que alinha as seguintes conclusões:
«1.º Vem o presente recurso interposto da douta sentença final que condenou a Ré FF -Empresa de Trabalho Temporário, Lda. a título principal, a pagar aos autores/beneficiários as pensões devidas na sequência do acidente mortal ocorrido no dia 17 de Novembro de 2007 com DD, condenou ainda a ora recorrente a título subsidiário (art. 18.°, n.° 2 LAT).
2.º Porquanto, deverá o presente recurso ser julgado procedente sendo a Recorrente totalmente absolvida,
3.º Na sequência da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resultou provado, como aliás bem concluiu a Meritíssima Juiz a quo, aquando da prolação da douta sentença recorrida que: “o acidente que vitimou mortalmente o sinistrado ocorreu por violação de regras de segurança por banda da dona da obra e da empreiteira geral e não por culpa directa, a qualquer título, da segunda Ré.
Na verdade, resulta da matéria de facto que o acidente ocorreu porque não foram tomadas as medidas de protecção necessárias na obra de remodelação da escola, não tendo sido avaliados os riscos relativos aos trabalhos de demolição que iriam ser efectuados na remodelação do edifício da escola, nem tomadas as providências para que tais trabalhos decorressem em segurança - é o que decorre dos factos dados como provados nas alíneas K a V da matéria de facto dada como provada.
Na verdade, o incumprimento das regras de segurança em obra, é evidente nestes autos e infere-se que se tivesse sido correctamente avaliada a situação da laje que desabou, quer em termos de projecto, quer em termos de execução da obra em segurança, nomeadamente através de uma correcta avaliação dos riscos dos trabalhos a efectuar, o acidente em causa teria sido evitado, através do escoramento da referida laje.
Pelo que é notório a violação de deveres de cuidado e de obrigações lesais por parte da dona da obra e empreiteira, incumprimento que causou o colapso da laje que soterrou o sinistrado, artigo 483 do Código Civil.
O nexo causal entre o acidente e a inobservância das regras de segurança é evidente, tendo em conta a matéria de facto dada como provada, bem como a negligência de actuação das entidades que deveriam ter cumprido tais regras e implementado medidas preventivas do desabamento da laje no decurso das obras de remodelação da escola, demonstrando-se como evidente que foi apenas o desabamento da laje a causa da ocorrência da morte do sinistrado. (...)”.
4.º No entanto, não obstante a Meritíssima Juiz a quo ter considerado que, indubitavelmente, existiram violação de normas de segurança por parte da dona da obra e empreiteira - empresa utilizadora, certo é que as mesmas foram absolvidas, sendo ao invés condenada a empresa de trabalho temporário!!
5.º Ora, é certo que o trabalhador falecido encontrava-se ao serviço da empresa utilizadora HH, Lda. por força do contrato celebrado entre esta e a empresa de trabalho temporário; que a empresa de trabalho temporário tinha celebrado contrato de seguro para cobertura de acidentes de trabalho, como aliás estás a mesma obrigada; que, no momento do acidente o trabalhador falecido exercia a sua actividade laboral sob as ordens e direcção da empresa utilizadora.
6.º E ainda é certo, que o acidente dos autos resultou de uma actuação culposa da empresa utilizadora.
7.º O contrato de trabalho temporário apresenta a especialidade de se tratar de um contrato de trabalho “triangular” em que a posição contratual da entidade empregadora é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário (que contrata, remunera e exerce poder disciplinar) e o utilizador (que recebe nas suas instalações um trabalhador que não integra os seus quadros e exerce, em relação a ele, por delegação da empresa de trabalho temporário, os poderes de autoridade e de direcção próprios da entidade empregadora).
8.º O trabalho temporário caracteriza-se, pois, pela articulação entre um contrato de trabalho temporário celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador, pelo qual este se obriga, mediante retribuição daquela, a prestar temporariamente a sua actividade a utilizadores, e um contrato de utilização de trabalho temporário, contrato de prestação de serviços estabelecido entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário, pelo qual esta se obriga, mediante remuneração, a colocar à disposição daquela um ou mais trabalhadores temporários.
9.º Existe pois uma partilha da posição contratual do empregador, uma vez que, designadamente, durante a execução do contrato de trabalho temporário, o trabalhador fica sujeito ao regime de trabalho aplicável ao utilizador no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança e medicina no trabalho, o utilizador deve informar a empresa de trabalho temporário e o trabalhador temporário sobre os riscos para a segurança e saúde do trabalhador inerentes ao posto de trabalho a que será afecto.
10.º A referida partilha da posição jurídica de empregador vem ainda contemplada noutras normas no quadro da prevenção de riscos profissionais, que prevêem especificamente a repartição de competências em matéria de segurança e protecção dos trabalhadores no caso em que são várias as entidades envolvidas relativamente à actividade do trabalhador, designadamente, a alínea a), do n.º 4 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro, e o artigo 273.°, n.° 4, alínea a), do Código do Trabalho, à data do acidente em vigor, contempla de igual forma esta obrigação do “empregador”.
11.º Como é que deverá ser enquadrada a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho por parte da empresa utilizadora quando o mesmo resulte - como efectivamente resultou, ficou provado e não foi impugnado ou posto em causa pelas empresas envolvidas - da violação de normas de segurança por parte da empresa utilizadora?
12.º É esta a questão essencial e objecto do presente recurso.
13.° O trabalhador temporário mantém um vínculo jurídico-laboral à empresa de trabalho temporário (contrato de trabalho); mas durante a vigência do contrato de utilização temporária, a subordinação jurídica - entendida como a relação de dependência da conduta pessoal do trabalhador face as ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador -transfere-se para a entidade utilizadora.
14.º É, por sua vez, a existência desse vínculo originário com a empresa de trabalho temporário que justifica que seja esta a efectuar o pagamento das remunerações do trabalhador, auferindo, por sua vez, a retribuição que é devida pelo facto de colocar esse mesmo trabalhador à disposição do utilizador; bem como que seja esta a cumprir as obrigações legais relacionadas com a segurança social e também a ela incumbe efectuar o correspondente seguro de acidentes de trabalho.
15.º Trata-se por isso de uma relação tripartida, onde a figura da “entidade patronal” está repartida entre a empresa de trabalho temporário e a empresa utilizadora, sendo que é a esta última que cabe implementar e cumprir todas as medidas relacionadas com a segurança no trabalho.
16.º Pelo que, em caso de incumprimento manifesto das normas de segurança por parte da empresa utilizadora, e tendo esse incumprimento originado o acidente de trabalho, apenas caberá àquela a responsabilidade pela reparação dos danos respectivos (art. 18.° LAT).
17.º No presente caso, verificamos que o sinistrado falecido (trabalhador temporário contratado pela Ré FF, Empresa de trabalho temporário), no dia do acidente estava a trabalhar sob a autoridade e direcção da empresa utilizadora, Ré HH, Lda.
18.º Ficando provado o nexo de causalidade entre a ocorrência do acidente e a inobservância de regras de segurança, por parte da Empresa utilizadora, bem como ainda do Município de GG.
19.º O que não foi posto em causa, nem impugnado por aqueles Réus!
20.º Só o utilizador está legal e tecnicamente equipado para executar o trabalho e implementar as normas de segurança, estando à empresa de trabalho temporário vedado intervir nas matérias relacionadas com a organização e implementação da segurança no trabalho.
21.º Pelo que, não vemos como poderá a Ré FF, empresa de trabalho temporário, responder pela falta do cumprimento de um dever que não podia cumprir, porque está legalmente imposto à empresa utilizadora, também Ré na presente acção.
22.º Como conciliar o regime jurídico do trabalho temporário com a Lei de Acidentes de Trabalho (LAT), designadamente nos casos da reparação previstos no artigo 18.° da LAT?
23.º Trata-se de situação “especial” que deverá ser atendida como tal para efeitos do apuramento das responsabilidades pela produção de acidente de trabalho, nas situações em que o sinistrado é um trabalhador temporário!
24.º Os deveres e obrigações da empresa utilizadora quanto à higiene e segurança no trabalho, advém directamente da lei e do contrato de utilização!
25.º Não poderá a empresa de trabalho temporário ser condenada por “negligência alheia”, ou culpa por violação de normas de segurança, quando, afinal, a lei impõe esse dever específico ao utilizador!
26.º E, não se pode invocar que a empresa utilizadora é totalmente alheia à relação laboral que existe efectivamente com aquele trabalhador que, afinal, está ao seu serviço e sobre ele exerce autoridade!
27.º Pois, por efeito do contrato de utilização de trabalho temporário passa a assumir as responsabilidades da entidade empregadora no que se refere a autoridade e direcção na execução do trabalho (em todas as vertentes que envolve, designadamente a segurança).
28.º Nesta linha de orientação vão os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 1996 (Proc. n.° 104/96) e Acórdão de 6 de Novembro de 2002 (Proc. n.° 877/02), sendo que este último considerou que o contrato de utilização temporária é equiparável, para efeitos reparatórios, ao típico contrato de trabalho, em termos de poder afirmar-se que a empresa utilizadora é o empregador real, ao passo que a empresa de trabalho temporário é o empregador formal ou aparente. Para em seguida concluir que, em tal situação, “A empresa utilizadora responde em via principal, pela totalidade das pensões e indemnizações devidas em caso de acidente de trabalho”.
29.º Deverá ser ainda citado o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.12.2003 (Proc. n.° 421/02), que expressamente referiu que “o seguro contra acidentes de trabalho que à empresa de trabalho temporário cabe efectuar em benefício do trabalhador temporário (...), destina-se a cobrir as situações reparatórias provenientes de acidentes de trabalho que não ocorram por culpa do utilizador (...)” — pense-se, por exemplo, do acidente in itinere, ou o “puro” acidente de trabalho (puramente “acidental” e sem culpa).
30.º Tendo em consideração tudo o que supra se vem dizendo, concluímos que a circunstância de a empresa de trabalho temporário se encontrar obrigada a garantir aos trabalhadores temporários um seguro contra acidentes de trabalho, os termos previstos no artigo 41.°, da Lei n.° 19/2007, não assume, com o devido respeito, o relevo que a douta sentença e o Douto Acórdão recorridos pretendem atribuir!
31.º A garantia de que o seguro é feito pela empresa de trabalho temporário, cobre afinal todas as situações reparatórias provenientes de acidentes de trabalho que não ocorram por culpa do utilizador - e que envolvam, por isso, uma responsabilidade objectiva.
32.º Só não cobre, como vimos demonstrando e ao contrário do alegado nas decisões recorridas, as situações que envolvam a responsabilidade subjectiva da entidade patronal (culpa da empresa de trabalho temporário ou culpa da empresa utilizadora)!
33.º Numa pura relação de trabalho “bipartida” em que a entidade patronal violou normas de segurança (art. 18.° da LAT) - independentemente de existir seguro, a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho será da entidade empregadora (actuando o seguro somente a título meramente subsidiário).
34.,º Nos casos em que a entidade patronal não tenha seguro, se for apurada a sua culpa na produção do acidente (art. 18.° LAT), caso esteja impossibilitada (economicamente) de cumprir a obrigação de reparação do acidente de trabalho, actuaria então o Fundo e Acidentes de Trabalho!
35.º Não vemos razão para que regime seja diferente quando a relação laboral é tripartida, como o caso dos presentes autos.
36.º Quando existe culpa da entidade patronal, a mesma está em regra relacionada com violação ou omissão de normas de segurança, como o esteve no caso dos presentes autos (artigo 18.° LAT), e quando a direcção do trabalho e a obrigação de implementação das regras de segurança e fiscalização do seu cumprimento está a cargo da empresa utilizadora, só esta pode responder em primeira linha por essa actuação ou omissão.
37.º É a trabalhar para a empresa utilizadora que, verdadeiramente, o trabalhador é colocado em risco no caso de incumprimento por parte daquela de normas elementares de segurança.
38.º A disciplina dos acidentes de trabalho, mormente nos casos do artigo 18.° da LAT, pode e deve ser compreendida, enquadrada e adaptada a cada situação em concreto.
39.º E, ao contrário do que o douto Acórdão faz crer, não vemos que exista incongruência alguma quando se imputa a culpa a responsável diferente consoante as circunstâncias do acidente!
40.º Quando estamos perante um acidente de trabalho, caso o mesmo não seja pura e simplesmente “acidental”, passe a redundância, poderão haver diferentes responsáveis - logo porque a culpa pode ser do sinistrado ou da sua entidade patronal!
41.º E não se compreende com a alegação de que “se uma determinada entidade responde por culpa sua, como se pode chegar à conclusão que responde outra quando não haja culpa daquela?”!
42.º Pois que ela própria entra em contradição com os demais fundamentos e decisão!
43.º Não poderá ser condenada a pagar a empresa de trabalho temporário, quando a violação das normas de segurança foi da única responsabilidade da empresa utilizadora!
44.º Quando estamos perante os casos de culpa da entidade patronal (art. 18.° da LAT), o seguro nem sequer actuará, à partida, podendo ser totalmente excluída a responsabilidade da seguradora!
45.º E não havendo houvesse seguro de acidentes de trabalho e a entidade responsável condenada não tivesse recursos económicos, seria então responsável pelo pagamento o Fundo de Acidentes de Trabalho.
46.º Nos casos da aplicação em concreto do artigo 18.° da LAT, designadamente no caso dos presentes autos onde se provou a culpa da Ré empresa utilizadora, se deverá tratar a questão da responsabilidade com alguma particularidade e especificidade, quando se está perante uma relação laboral tripartida em que, na realidade, a violação das normas de segurança ocorreram por parte da empresa utilizadora e não da empresa de trabalho temporário.
47.º E é um alto “grande”, “culpar” e condenar, a empresa de trabalho temporário, por violação de regras de segurança que incumbiam à empresa utilizadora implementar!
48.º Não faz sentido o raciocínio, que pretende ser “automático”, de que como é a empresa de trabalho temporário obrigada a ter seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores temporários, então é ela a “entidade patronal”... mesmo que a violação de normas de segurança não tenha sido da sua responsabilidade, mas da empresa utilizadora!!!
49.º Com o devido respeito, não se compreende o “automatismo” de que quem faz o seguro é o responsável pelos acidentes, quando estamos num caso do artigo 18.° da LAT e numa relação laboral tripartida, ou se quisermos ainda numa partilha entre duas entidades distintas das incumbências e obrigações que caberiam a uma entidade patronal em sentido lato!
50.º Pensamos assim, que não tem qualquer influência a existência ou não de seguro, pois que existiria sempre culpa de quem tinha o dever de no momento implementar as medidas de segurança (art. 18.° LAT) - aqui neste caso da empresa utilizadora e não a empresa de trabalho temporário!
51.º Pois que, em rigor, assim que exista “culpa” (designadamente na violação ou omissão de medidas de normas de segurança) por parte da entidade que detém a efectiva autoridade e direcção sobre o trabalhador, estamos no âmbito do disposto no artigo 18.° da LAT, afastando-se da “primeira linha”, sempre, a responsabilidade da seguradora pela reparação do acidente de trabalho.
52.º É “incongruente”, compaginar que apesar da culpa da empresa utilizadora, a mesma é ab initio é sempre absolvida, só porque o acidente ocorreu com trabalhador temporário!
53.º Ou seja, se o mesmo acidente tivesse ocorrido com trabalhador do seu quadro, então já seria responsável pela reparação do acidente de trabalho (independentemente da existência ou não de seguro)!
54.º Não faz sentido concluir que a lei permita nunca penalizar a empresa utilizadora pelo acidente de trabalho ocorrido com trabalhador temporário, mesmo quando o acidente foi por sua culpa causado!
55.º A responsabilidade pela reparação de Acidente de Trabalho cabe à entidade patronal porque ela retira da força do trabalho um proveito económico e o trabalhador está ao seu serviço e no seu interesse, mas isso não pode fazer com que se vá ao extremo oposto que é responsabilizar uma empresa de trabalho temporário a ter que responder em primeira linha pelos actos culposos da empresa utilizadora, quando os factos que consubstanciam a actuação culposa (maior parte das vezes negligente) daquela lhe são totalmente alheios!
56.º Cabe ao utilizador exercer os poderes de autoridade e direcção relativos à prestação do trabalho, estando, por isso, obrigado a enquadrá-lo no respectivo sistema de saúde, higiene e segurança no trabalho.
57.º Ocorreram incongruências na Douta Sentença e Acórdão recorridos: pois que imputam a responsabilidade pelo acidente à violação de normas de segurança por parte do Réu HH, Lda., empresa utilizadora e do Réu Município de GG, dona da obra, mas a final, absolve aqueles “culpados” e condena no pagamento das pensões a Ré FF, empresa de trabalho temporário (nos termos do art. 18.° da LAT)!!!
58.º Acresce que, a “culpa” pressupõe um comportamento, pelo menos negligente, por parte do agente a quem está a ser imputada essa culpa.
59.º No presente caso, a “culpa” na violação de normas de segurança apenas poderá ser imputável à empresa utilizadora e por via do contrato de empreitada que também existe no presente caso, ao Município de GG (DL 273/2003) - não se compreendendo como se possa fazer o “nexo” entre um hipotético “comportamento” da empresa de trabalho temporário (que nem a autoridade e direcção na execução do trabalho tinha!), com a produção do presente acidente!
60.º A empresa de trabalho temporário não cabia a direcção na execução do trabalho ou implementação de normas de segurança, mas sim à empresa utilizadora, por força da relação tripartida, obrigações e competências repartidas entre ambas, que expressamente a lei de contrato de trabalho temporário prevê!
61.º Lei que é especial em relação ao regime geral do contrato de trabalho, e que por essa razão, para efeitos do disposto no artigo 18.° da LAT (cfr. tb 273°, n.° 4 a) do Código de Trabalho em vigor à data do acidente), a empresa utilizadora do trabalho temporário, deverá ser considerada como “verdadeira” entidade empregadora!
62.º E, por isso, é a empresa utilizadora a responsável pela reparação do presente acidente de trabalho!
63.º Foram assim violadas por parte da “entidade patronal”, empresa utilizadora do trabalho e executante (estando o trabalhador falecido a laborar sob as suas ordens e direcção e subordinação jurídica), bem como por parte do Dono de Obra diversas disposições legais (artigos 159.°, 188.°, 245.°, da Lei n.° 35/2004, de 29 de Julho; art. 11.°, 19.°, 20.°, 22.°, 29.° do Dec. Lei 273/2003 de 29 de Outubro; art. 89.°, 162.°, 204.°, 272.°, 273.°, 275.°, 276.°, 278.° da Lei 99/2003 de 27 de Agosto; art. 2.º, 10.°, 12.°, 13.° de 101/96 de 3 Abril; art. 36.°, 39.°, 47.°, 50.°, 51.°, 54.°, 61.°, 151.°, 154.°, 155.°, 156.° e 157.° do Decreto n.° 41821 de 11 de Agosto de 1958), mormente aquelas directamente relacionadas com as funções e deveres da terceira Ré, enquanto dona da obra, que além do mais acumulava funções de coordenador de segurança e fiscal!
64.º Pelo que, deverá ser esta Ré também “condenada”, mas que, dado não ter qualquer relação com o trabalhador temporário falecido para efeitos de reparação do acidente de trabalho, sempre o seria através do direito de regresso que a empresa utilizadora contra a dona da obra exerceria, na medida da proporção das responsabilidades na violação das normas de segurança que se viessem apurar em acção própria para o efeito.
65.º No caso vertente, como resultou amplamente demonstrado nos autos, o acidente deverá ser imputado, culposa e causalmente, à empresa utilizadora, também Ré, uma vez que resultou da sua actuação violadora de regras de ordem técnica e de elementares princípios de prudência e segurança no trabalho.
66.º Tratando-se de uma actuação culposa imputável ao utilizador do trabalho temporário, e não à empresa de trabalho temporário, fica necessariamente excluída a hipótese de qualquer responsabilidade subsidiária da Ré seguradora, ora recorrente.
67.º Devendo, consequentemente, ser a ora Recorrente absolvida!»
Conclui pela procedência do recurso, «(…) sendo absolvida a ora Recorrente, com todas as consequências legais».
O autores, bem como as demais rés, não contra-alegaram.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, o qual não mereceu resposta das partes.
Corridos os «vistos», há que decidir.
4. Sabido que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso (artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), daí resulta que a questão a conhecer na revista se prende, essencialmente, com a possibilidade de, no regime do trabalho temporário, a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho ser imputável à empresa de trabalho temporário.
II)
O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:
1) A autora AA era casada com o sinistrado DD e ambos são pais dos menores BB, nascido a … de … de …, JJ, nascido a …. de … de … e CC nascido a … de Novembro de ….
2) O sinistrado nasceu em 4 de Abril de 1967.
3) Foi vítima de um acidente de trabalho ocorrido no dia 17 de Novembro de 2007 entre as 9 horas e as 9 horas e 10 minutos.
4) O autor faleceu devido às lesões sofridas, no acidente acima referido, pelas 11 horas e 45 minutos desse mesmo dia, causadas pelo colapso da laje da cobertura do alpendre onde se encontrava a trabalhar, tendo ficado esmagado por esta contra o pavimento do chão.
5) O acidente ocorreu na escola EB1 do ..., sita em ..., GG.
6) À data do acidente, o sinistrado trabalhava para a FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda., com sede em Tarouca por força da celebração de um contrato a termo incerto com esta celebrado, nos termos constantes do documento n.º 2 junto a fls. 289 e seguintes dos autos que se dá como reproduzido.
7) A qual determinou que o sinistrado fosse trabalhar ao serviço da empresa HH – Construções Lda.
8) No momento do acidente, o autor trabalhava sob as orientações da empresa utilizadora, terceira ré.
9) A segunda ré tinha a sua responsabilidade por ocorrência de acidentes de trabalho transferida para a primeira ré pela totalidade da remuneração auferida pelo sinistrado, de acordo com a apólice n.º ....
10) O sinistrado auferia o salário mensal de € 518,50, acrescido de € 5,75 diários a título de subsídio de alimentação.
11) O trabalho do sinistrado, no dia do acidente, consistia em operações de picagem do reboco exterior da parede mestra, e encontravam-se a decorrer na parte da obra onde se encontravam a decorrer operações de carregamento de detritos para um monte de entulho e no dia anterior tinham ocorrido operações de arranque e demolição do chão, pavimento de mosaico, com o uso de um martelo pneumático.
12) O exterior da parede mestra havia sido parcialmente picado no dia 16 de Novembro de 2007.
13) O encarregado da obra e o director desta estavam incumbidos de vigiar e controlar os trabalhadores em obra quanto ao seu ritmo e modo de trabalho.
14) Não foi dada ordem para montar o escoramento pelo encarregado da obra nem pelo director da obra.
15) O alpendre da escola era constituído por uma estreita laje de cobertura de telheiro existente no tardoz do edifício, cuja argamassa estava fracamente armada com uma malha quadrada de aço em mau estado de conservação e resistência, coberto por telhas.
16) A laje era inclinada, tinha aproximadamente 8 metros de comprimento e apresentava uma cimalha que aparentava ser uma viga estrutural.
17) A cimalha não era uma viga estrutural mas ornamental construída com argamassa bastarda.
18) No momento do acidente, o sinistrado estava a trabalhar com um martelo de picar.
19) A poucos metros do local onde o sinistrado estava a trabalhar, tinha estado, no dia anterior, a trabalhar um martelo pneumático a destruir o chão do pavimento existente por baixo do alpendre do edifício da escola em remodelação.
20) O sinistrado usava capacete.
21) A demolição das paredes maciças de alvenaria estava prevista no projecto de execução.
22) Dias antes do acidente foram demolidas, as paredes de alvenaria das casas de banho existentes por debaixo do alpendre.
23) À data da celebração do contrato de trabalho com o autor, a segunda ré forneceu-lhe um capacete e botas de biqueira de aço, um colete reflector e umas luvas.
24) A quarta ré era a adjudicatária da empreitada de remodelação do parque escolar EB1 de ..., sendo dona da obra o Município de GG.
25) O município de GG nomeou um coordenador de segurança para obra que acumulava a função de fiscal da obra.
26) Em 19 de Setembro de 2007, em deslocação à obra, o fiscal da terceira ré verificou que decorriam trabalhos de demolição pelo que chamou a atenção do encarregado da obra que era necessário proceder ao escoramento da obra.
27) O que sucedeu novamente em 9 de Outubro.
III)
Conhecendo:
a)
Antes de centrarmos a nossa apreciação na concreta questão que se deixou enunciada, é de notar, tal como consideraram as instâncias sem qualquer reacção das partes, que estamos, in casu, perante a existência de um típico acidente de trabalho – porquanto ocorrido no tempo e local de trabalho e que produziu no sinistrado lesão(ões) corporal(ais) que foi(ram) causa directa e necessária da sua morte – regulado, ao tempo, pela Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), e seu Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (RLAT). Estamos, por se tratar, também, de questão já decidida e que não mereceu reacção das partes, maxime, da ora recorrente, na presença de um acidente de trabalho cuja causa assentou na violação de regras de segurança, pelo que dúvidas inexistem quanto à reparação – a título agravado – dos danos que dele resultaram.
Do exposto decorre, tal como, aliás, já decorria do sobredito enunciado, que a questão a apreciar se prende, fundamentalmente, com a possibilidade de a reparação do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado ser imputável – a título principal – à ré “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, enquanto empresa de trabalho temporário.
Na verdade, entende a recorrente – seguradora da referida ré e que no desfecho do pleito tem interesse, atenta a responsabilidade subsidiária (mas pelas prestações ditas normais) que sobre si recairá em caso de impossibilidade de cumprimento, pela responsável principal, das obrigações emergentes do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado – que a reparação dos danos decorrentes do acidente deverá ser imputada à empresa utilizadora do trabalho temporário, na justa medida em que é esta quem, directamente, exerce o poder de orientação e conformação da prestação laboral sendo, por isso, quem tem o dever de garantir que essa prestação ocorre em condições de segurança.
b)
As instâncias, formulando, quanto a tanto, juízo coincidente, afirmaram a responsabilização, a título principal e agravado, da ré “FF – Empresa de Trabalho Temporário, Lda.”, desconsiderando a possibilidade de assacar à empresa utilizadora da mão-de-obra do sinistrado essa responsabilização, atenta a inexistência de vínculo laboral entre aquela e este.
Em particular no Acórdão recorrido ponderou-se como segue:
«O problema fundamental gira à volta das relações que resultam da realização de um contrato de trabalho temporário, relações essas que também envolvem a seguradora. Subjacente a este está a definição da entidade responsável, perante o sinistrado, pelas prestações resultantes de um acidente de trabalho.
Esta matéria vem regulada na Lei n.º 19/2007, de 22 de Maio, e no Cód. do Trabalho de 2009, nos artigos 172.º a 192.º.
Trata-se de uma situação jurídica, bem diferente da do contrato de trabalho normal, que tem na sua base dois contratos e como sujei-tos três pessoas. Os contratos são (1.º) o de trabalho temporário, propriamente dito, e o de prestação de serviços; os sujeitos são a empresa de trabalho temporário (doravante ETE), a empresa utilizadora (doravante EUt.) e o trabalhador.
O contrato de trabalho temporário é celebrado entre e ETE e o trabalhador por força do qual este obriga-se a prestar a sua actividade a utilizadores, mantendo o vínculo laboral com a ETE — art.º 172.º, als. a) e b), CT. O que o distingue do comum contrato de trabalho é que o trabalhador vincula-se perante uma empresa para ir trabalhar para outra.
Por seu turno, o contrato de utilização de trabalho temporário é celebrado entre as duas empresas, a ETE e a EUt., por força do qual aquela obriga-se, mediante retribuição, a ceder um ou mais trabalhadores temporários. Trata-se de um contrato civil.
Os três sujeitos são, como está bem de ver, a ETE, a EUt. e o trabalhador.
Este trabalhador é trabalhador da ETE e não da EUt..
Embora exista uma repartição da figura entidade patronal, o certo é que não tem havido grandes dúvidas em afirmar que a entidade empregadora do trabalhador cedido é a ETE e não a EUt.. Mesmo admitindo a tese da «dualidade de empregadores», as notas fundamentalmente caracterizadoras da qualidade da entidade patronal estão reservadas à ETE: o pagamento da retribuição e o poder disciplinar (cfr. artigos 172.º, al. a), «mediante retribuição daquela») e 185.º, n.º 4, CT. Como escreve M.ª do Rosário Ramalho, «esta empresa é o verdadeiro empregador dos trabalhadores temporários e não, simplesmente, uma agência de intermediação de emprego ou de colocação de trabalhadores» (Direito do Trabalho, II, Coimbra, Almedina, 2006, p. 265, e Pedro R. Martinez, Direito do Trabalho, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2006, p. 655). A lei é clara nesse sentido ao definir o contrato de trabalho temporário.
Mas além disto temos de entrar em linha de conta com outra realidade que, por ser obrigatória, não pode ser esquecida em qualquer relação laboral: o contrato de seguros de acidentes de trabalho que é o celebrado entre uma entidade patronal e uma seguradora.
Este último contrato é, na nossa situação, celebrado entre a ETE (como tomadora do seguro) e a seguradora e tem por pessoa segura o «trabalhador por conta de outrem, ao serviço do tomador de seguro, no interesse do qual o contrato é celebrado», conforme se explica no contrato dos autos (fls. 17).
Que este último contrato é celebrado entre as referidas pessoas resulta com clareza, do art.º 177.º, n.º 3, CT, e do art.º 37.º, n.º, Lei n.º 100/97. Aquele dispositivo, ao determinar que o contrato de utilização deve conter uma cópia da apólice de seguro que englobe o trabalhador temporário, «sem o que o utilizador é solidariamente responsável pela reparação dos anos emergentes de acidente de trabalho» é bem revelador de quem é o único obrigado a celebrar tal tipo de seguro. Mesmo sem ser tão claro como o art.º 22.º do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro (não alterado pela legislação posterior), o sentido é o mesmo. Por seu turno, o citado art.º 37.º impõe a obrigação da entidade patronal transferir a sua responsabilidade para uma seguradora — e já se viu que a ETE é o empregador.
É tendo em conta estes dados jurídicos que se analisará a argumentação da seguradora.
O primeiro é a ETE não poder ser responsabilizada por ter cedido o trabalhador sinistrado à empresa utilizadora; pese embora o português utilizado, cremos que o sentido é que a ETE não pode ser responsabilizada porque não tinha o trabalhador à sua disposição, isto é, não controlava as condições de trabalho no local em que o sinistrado estava — e não que a própria cedência seja fonte de responsabilidade, claro.
Isto porque é à EUt. que cabe o cumprimento das regras de segurança, nos termos do art.º 8.º, n.º 4, al. a), do Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro, e do art.º 273.º, n.º 4, al. a), do CT/2003 (entretanto substituído pela Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro).
Sem dúvida que a EUt. tem esta responsabilidade, não como empregadora mas como utilizadora (a lei distingue as duas figuras), como executante de uma obra. Isto resulta do próprio objecto do contrato de utilização temporária (e não do contrato de trabalho temporário) que implica que os poderes de direcção na definição da prestação de trabalho, bem como as condições em que decorre essa prestação, são da sua conta, conforme resulta do art.º 185.º, n.º 2, CT.
Perante o que antecede e o facto de o acidente ter resultado da violação de regras de segurança por parte da EUt., entende a recorrente que só esta pode ser responsabilizada. Ou seja, em tendo havido violação das regras de segurança por parte da EUt., as prestações que decorrem do acidente de trabalho não cabem à ETE nem, consequentemente, à sua seguradora. Até porque, considerando o disposto no art.º 18.º, Lei n.º 100/97, não se pode dizer que a EUt. seja um representante da ETE.
Contudo, não é assim.
(…)
A entidade patronal é a primeira responsável pelos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores (sublinhamos para destacar, realçar a ligação íntima entre o empregador e os trabalhadores; estes são trabalhadores daquela independentemente no local onde prestem trabalho). E da mesma maneira que é responsável perante os seus trabalhadores não o é perante trabalhadores de outras empresas. Não é a EUt. que responde por acidentes de trabalho perante trabalhadores que não são seus.
Por outro lado, assiste-se a uma espécie de mistura, perdoe-se a expressão, entre quem está obrigado a garantir as condições de segurança (implementado as respectivas medidas) e entre quem está obrigado à reparação de acidentes de trabalho. Parte-se da primeira para afirmar que o responsável pelas condições de segurança é também o responsável pelas prestações decorrentes de acidente de trabalho. Mas este, salvo o devido respeito, é um salto lógico impossível de dar e não encontra, como não podia encontrar, qualquer apoio na legislação aplicável. É que as obrigações de segurança numa obra (e o seu cumprimento defeituoso) não alteram o contrato de trabalho nem o contrato de seguro.
Que não é assim afirma-o também a jurisprudência mais recente. Referimo-nos aos acórdãos do STJ, de 30 de Setembro de 2004 (www.dgsi.pt, Doc. SJ200409300037754), e da Relação de Lisboa, de 25 de Janeiro de 2006 (no mesmo local, proc. n.º 8792/2005-4).
Pode ler-se no primeiro:
«Ainda que a responsabilidade pela observância das condições de segurança num determinado local incumba a um terceiro (que responderá por tal perante as entidades fiscalizadoras competentes ou até em face da entidade patronal, na sede própria), continua a ser a entidade patronal - que paga a remuneração e exerce o seu poder de autoridade sobre o trabalhador -, a responsável directa perante este por determinar a execução da prestação laboral em local onde não foram previamente cumpridas as prescrições legais sobre higiene e segurança no trabalho».
E pode ler-se no segundo:
«Ainda que a responsabilidade pela observância das condições de segurança num determinado local incumba a terceiro, continua a ser a entidade patronal do sinistrado a responsável directa perante este por determinar a execução da prestação laboral em local onde não foram previamente cumpridas as prescrições legais sobre higiene e segurança no trabalho».
O fundamental é sempre a responsabilidade da entidade empregadora por acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores. De maneira nenhuma se vê como um terceiro, sem prejuízo de outros tipos de responsabilidade, há-de ser responsabilizado por prestações que a lei (art.º art.º 37.º, nº 1, Lei n.º 100/97) não lhe impõe. Decorre deste preceito legal (embora não tão claramente como do art.º 7.º, Lei n.º 98/2009, agora vigente) a responsabilidade exclusiva, em primeiro linha, da entidade patronal e a obrigação de realizar o contrato de seguro (ficando, então, a seguradora obrigada em primeira linha em substituição do tomador de seguro).
A ETE não é condenada por negligência alheia; é condenada pelo perigo de colocar o trabalhador nas mãos de terceiro sendo que um dos perigos é a violação de regras de segurança; a ETE assume, como não podia deixar de fazer, a integridade física do trabalhador cedido.
A recorrente apoia-se no acórdão do STJ, de 3 de Dezembro de 2003, que, por sua vez, [se] apoia no acórdão do mesmo Alto Tribunal, de 6 de Novembro de 2002. Esta jurisprudência não trata directamente da definição de entidade patronal (embora a refira) e respectivas responsabilidades mas sim do contrato de seguro num caso como o dos autos. Afirma que tal contrato (o de seguro celebrado entre a ETE e a seguradora e em que é beneficiário o trabalhador cedido) «destina-se a cobrir situações reparatórias provenientes de acidentes de trabalho que não ocorram por culpa do utilizador». Isto porque o «contrato de utilização temporária é equiparável, para efeitos reparatórios, ao típico contrato de trabalho, em termos de poder afirmar-se que a empresa utilizadora é o empregador real, ao passo que a empresa de trabalho temporário é o empregador formal ou aparente. Para em seguida concluir [o acórdão de Novembro de 2002], que, em tal situação, “a empresa utilizadora responde em via principal, pela totalidade das pensões e indemnizações devidas em caso de acidente de trabalho»; o seguro «cobre as situações reparatórias provenientes de acidentes de trabalho que não ocorram por culpa do utilizador». (fim de transcrição).
c)
O acórdão recorrido, por tecer pertinentes e ajustadas considerações, merece a nossa anuência quanto à solução alcançada e que, de resto, vem no alinhamento da Jurisprudência deste Supremo Tribunal, mormente a seguida no Acórdão de 29 de Março de 2012, proferido na Revista n.º 289/09.0TTSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, e cujos termos se seguirão de perto, atenta a analogia da situação fáctica ali apreciada.
A relação tripolar pressuposta pelo contrato de trabalho temporário determina que a posição jurídica de empregador seja titulada pela empresa de trabalho temporário – é esta empresa que contrata o trabalhador, lhe satisfaz a retribuição e que está obrigada a satisfazer os encargos sociais da contratação, bem como a realizar o seguro de acidentes de trabalho –; todavia, e por delegação da empresa de trabalho temporário, pertence à empresa utilizadora a direcção e organização do trabalho, sendo que ao trabalhador temporário incumbe o acatamento das prescrições da empresa utilizadora no que respeita ao modo, lugar, duração de trabalho e suspensão da prestação de trabalho, higiene, segurança e medicina no trabalho.
Ante o quadro exposto, forçoso é concluir que entre o trabalhador temporário e a empresa utilizadora não existe qualquer vínculo jurídico e, por maioria de razão, inexiste esse vínculo entre o trabalhador e quem, eventualmente, se assuma como o dono da obra ou quem, no momento, assuma as tarefas da sua coordenação.
Desta feita, a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho recai, necessariamente, sobre a empresa de trabalho temporário, a entidade empregadora do trabalhador sinistrado, sem prejuízo, naturalmente, do direito de regresso que lhe possa assistir contra os responsáveis referidos nos artigos 18.º, n.º 3, e 31.º, n.º 4, da Lei 100/97.
Aduz a recorrente, em seu abono, que «quando existe culpa da entidade patronal, a mesma está em regra relacionada com violação ou omissão de normas de segurança, como o esteve no caso dos presentes autos (artigo 18º LAT), e quando a direcção do trabalho e a obrigação de implementação das regras de segurança e fiscalização do seu cumprimento está a cargo da empresa utilizadora, só esta pode responder em primeira linha por essa actuação ou omissão».
Mas não tem razão a recorrente.
Conforme tem sido o entendimento deste Supremo Tribunal e ponderando a disciplina legal que rege a relação jurídica do trabalho temporário, conclui-se que a empresa utilizadora exerce, por delegação, os poderes de autoridade e de direcção próprios da entidade empregadora e, nesta medida, não estando demonstrado que tenha aquela empresa utilizadora contrariado instruções que, a esse respeito, lhe tivessem sido dadas pela empresa de trabalho temporário – veja-‑se que a recorrente não alegou nem provou que a empresa utilizadora tenha informado a empresa de trabalho temporário acerca dos riscos para a saúde e segurança do trabalhador ao ocupar o posto de trabalho e, nessa medida, da impossibilidade, que alega, de, efectivamente, face à natureza e perigosidade dos trabalhos, verificar aquela empresa se as prescrições sobre segurança no trabalho estavam a ser cumpridas –, os seus comportamentos traduzem-se em actos da própria empresa de trabalho temporário, que a vinculam e responsabilizam e que impõem se conclua pela violação culposa, por esta, através da “representante”, das apontadas regras legais de segurança no trabalho (cfr., veja-se, a este propósito, o Acórdão desta secção de 3 de Fevereiro de 2010, proferido no processo n.º 162/2001.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
Na verdade, o termo “representante”, a que alude o art. 18.º, n.º 1, da LAT, refere-se às pessoas que gozam de poderes representativos de uma entidade empregadora e actuem nessa qualidade, abrangendo normalmente os administradores e gerentes da sociedade, cujas características preenchem as próprias do mandato, e ainda quem no local de trabalho exerça o poder directivo, como sucede com a empresa utilizadora do trabalho temporário.
Em jeito de síntese se dirá que, no âmbito da LAT, a obrigação de reparar os danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais recai sobre as pessoas singulares ou colectivas de direito privado e de direito público, não abrangidas por legislação especial, relativamente a trabalhadores ao seu serviço, sendo que tais entidades são obrigadas a transferir a responsabilidade prevista naquela lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro.
Da exposta enunciação legal decorre que o vínculo obrigacional do qual emergem os direitos previstos na referida lei se estabelece entre o sinistrado ou os seus beneficiários legais, por um lado, e a entidade empregadora ou (e) a seguradora, por outro.
Uma tal concepção entronca nas teorias do “risco económico” ou do “risco profissional” – subjacente ao conceito de acidente de trabalho contido no art. 6.º, n.º 1, da LAT – de acordo com o qual quem beneficia da actividade prestacional do trabalhador e conforma a sua laboração, através de um vínculo – real ou potencial – de autoridade/subordinação jurídica e económica, deve igualmente assumir a responsabilidade pela reparação dos sinistros que com ele ocorram.
Essa responsabilidade subsiste, inclusivamente, nas situações em que o acidente foi causado por outros trabalhadores ou por terceiros. Na verdade, como facilmente se compreenderá, o empregador não se pode alhear das condições concretas de segurança em que os seus trabalhadores exercem a actividade, limitando-se a confiar o cumprimento dessas obrigações a terceiros (como, por exemplo, a empresa utilizadora do trabalho temporário). Daí que o facto de a responsabilidade pela definição e observância das regras de segurança incumbir a um terceiro não exima o empregador da sua responsabilidade infortunística perante os seus trabalhadores, ainda que caiba a um terceiro a direcção e orientação da actividade destes (cfr., o Acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Março de 2010, proferido na Processo n.º 436/09.1YFLSB- 4.ª Secção, também citado no Acórdão recorrido, acessível em www.dgsi.pt; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 2008, proferido no Processo n.º 836/08, acessível em www.dgsi.pt).
Ante os considerandos que se deixaram expostos, a empresa de trabalho temporário não poderá, jamais, eximir-se ou estar dispensada do pagamento, agravado, das pensões aos beneficiários do sinistrado, sem prejuízo, como dito, do direito de regresso que lhe assista.
É, pois, por esta via de afirmar a responsabilidade – a título agravado – da empresa de trabalho temporário e, ainda que a título subsidiário e pelas prestações normais, da sua seguradora, ora recorrente.
Improcedem, por tudo quanto se deixa exposto, as conclusões da alegação de recurso, assim se mantendo o Acórdão recorrido.
IV)
Em face do exposto, nega-se a Revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 20 de Junho de 2012
Sampaio Gomes (Relator)
Leones Dantas
Pinto Hespanhol