I - Tratando-se de dívida originada por não entrega de contribuições devidas à segurança social, estas encontram-se perfeitamente determinadas, desde o momento em que a entrega era legalmente exigível, ou seja, muito antes da formulação do próprio pedido cível enxertado na acção penal. E a falta de entrega dessas contribuições configura a prática de um facto ilícito.
II - Sendo assim, rege o n.º 2 do art. 805.º do CC, e não o n.º 3. De acordo com tal prescrição, há mora do devedor independentemente de interpelação (judicial ou extrajudicial): a) – por a obrigação ter prazo certo; b) – por a obrigação provir de facto ilícito.
III - Estabelece, por seu turno, o art. 806.º, n.º 1, do CC, que, «na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora». Nos termos do art. 5.º, n.º 3, do DL 103/80, de 09-05 (RJCP), «o pagamento das contribuições deve ser efectuado no mês seguinte àquele a que disserem respeito, dentro dos prazos regulamentares em vigor». E o art. 10.º, n.º 2, do DL 199/99, de 08-06, estabelece que as contribuições devidas à segurança social «devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito (…)».
IV -Daqui decorre que a constituição em mora, no que toca às contribuições devidas à segurança social, verifica-se a partir do 15.º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito. Daí serem obrigações de prazo certo. A partir do referido dia vencem-se juros de mora.
V - Nos termos do art. 3.º, n.º 1, do DL 73/99, de 16-03, «a taxa de juros de mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês do calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente», não podendo, todavia, nos termos do art. 4.º deste diploma legal, a liquidação dos juros de mora ultrapassar os últimos 5 anos anteriores à data do pagamento da dívida sobre que incidem.
I. RELATÓRIO
1. No 6.º Juízo Criminal de Lisboa (2.ª Secção), no âmbito do processo comum singular n.º 10987/05.1TDLSB, foram julgados a sociedade AA Comércio de Equipamento & Produtos Ecológicos, Lda., BB e CC, tendo os primeiros sido absolvidos e o último condenado pela prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, previsto e punido pelos arts. 6º e 107º, nº 1, por referência ao art. 105º 1, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e arts. 30º 2 e 79º 1, ambos do Código Penal (CP), na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros) e ainda, na procedência parcial do pedido de indemnização civil, no pagamento à demandante do montante de 43.917,72 €, respeitantes às cotizações vencidas e não pagas desde o mês de Novembro de 2002 até ao mês de Dezembro de 2004, acrescida dos juros vencidos e vincendos calculados de harmonia com o disposto no art. 16º do D.L. 73/99 de 16 de Março.
2. Inconformado com a decisão, o arguido CC interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, em provimento parcial do recurso, considerou o recorrente apenas responsável pelo pagamento da quantia de € 35 222,81, correspondente ao período entre Novembro de 2002 e, pelo menos, 4 de Fevereiro de 2004, a que deviam acrescer juros de mora legais contados a partir da notificação para contestar o pedido cível.
3. Por seu turno, o Instituto de Segurança Social, I.P., na qualidade de demandante civil, inconformado com esta decisão da Relação, no que tange à indemnização civil e restritamente à questão dos juros de mora, veio interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação da seguinte forma:
1- O Tribunal da Relação de Lisboa, parece inclinar-se, de alguma forma, para a aplicação ao caso vertente da doutrina constante do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.° 4/2002 de 09-05-2002, publicado no DR I Série - A n.° 146 de 27-06-2002.
2- Contudo, a doutrina daquele acórdão visa situações em que tenha havido atualização da indemnização, quer por aplicação da correção monetária ao pedido inicial, quer por avaliação atualizada do desvalor do dano. O que não é de todo o caso que V. Exas. têm entre mãos.
3- Na verdade, resulta do mencionado acórdão uniformizador do STJ, a sua particular incidência aos casos em que se considerou a atualização até à data da sentença e se coloca a questão de, em aplicação do artigo 805.°, n.° 3, do Código Civil, contar os juros desde a citação; se se contassem, o titular do direito à indemnização beneficiaria de uma duplicação relativamente ao tempo que mediou entre a citação e a sentença: acumularia juros e atualização monetária. Mas o caso sob recurso tem outros contornos.
4- É primacial sublinhar que na obrigação pecuniária, a indemnização por mora corresponde aos juros a contar da data da constituição em mora. Quanto a esta, se a obrigação provém de facto ilícito, e sendo o crédito líquido, a mora tem lugar desde a data dos factos geradores dos danos e começam a vencer-se juros; se o crédito não é líquido, começam estes a vencer-se desde a liquidação ou, não tendo esta tido lugar antes da citação, com esta.
5- Por outro lado, não está a ser ponderada e atendida na decisão sob exame, uma das regras mais "sagradas" em Direito: a lei especial (Dec. Lei n.° 73/99, de 16 de março), prevalece sobre a lei geral (critério da especialidade), ainda que esta seja posterior, exceto "se outra for a intenção inequívoca do legislador" (cf. artigo 7.°, n.° 3 do Código Civil).
6- E o referido Dec. Lei 73/99, regula em geral os regimes dos juros de mora das dívidas ao Estado e outras entidades públicas, qualquer que seja a natureza dessas dívidas, e existindo lei especial, não pode a mesma ser derrogada pela Lei Geral, designadamente pelo Código Civil e Portarias que fixam as taxas de juros previstas naquele Diploma Legal.
7- De resto, a alínea c) do art.° 3.° do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, expressamente estipula que se aplicam subsidiariamente (às infracções fiscais não aduaneiras), quanto à responsabilidade civil, "as disposições do Código Civil e legislação complementar", É precisamente essa legislação complementar que tem aqui aplicabilidade como, de resto, foi intenção inequívoca do legislador (cf. exórdio do DL 73/99 ).
8- Logo, ao pedido de indemnização civil deduzido pela segurança social, em processo comum fundado na prática de crime de abuso de confiança contra a segurança social, aplica-se, a taxa de juros de mora de 1% ao mês, aumentando uma unidade por cada mês de calendário ou fracção, se o pagamento se fizer posteriormente ao mês a que respeitarem as contribuições, nos termos do art. 3.°, n.° 1, do Dec. Lei n.° 73/99, de 16 de março.
9- Além do mais, no caso de danos, resultantes da prática de crime de abuso de confiança contra a segurança social, por força das disposições próprias que constituem normas especiais que afastam a regra geral estabelecida no art.° 806.° n.° 1 CC, o devedor demandado entra em mora a partir do 15.° dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito, e em consequência desse facto estamos perante obrigações com prazo certo.
10- Sublinhamos que, nos termos das alíneas a) e b) do n.° 2 do artigo 805.° do CC, se a obrigação tiver prazo certo e se a obrigação provier de facto ilícito, há mora do devedor independentemente de interpelação. E recorde-se que a condenação no pedido civil assentou na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, ou delitual, com consagração expressa no artigo 483.° do Código Civil.
11- Ou seja, decorre diretamente da lei o momento a partir do qual existe mora do devedor, isto é, a partir do 15.° dia do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito, pelo que estamos em face de obrigações de prazo certo,
12- A matéria relativa aos juros não é subsumível ao n.° 3 do art. 805.° do CC, uma vez este preceito regula as situações de responsabilidade por facto ilícito se o crédito for ilíquido.
13- Nenhuma disposição legal aponta no sentido do direito penal tributário, e muito menos, de forma inequívoca, afastar a aplicação das taxas de juro moratórias que se encontram previstas na legislação especial a que aludimos.
14- Por outro lado, o art. 129.°, do C. Penal, quando alude à «lei civil», não pode ser interpretado no sentido de excluir a aplicação da lei tributária quando esteja em causa a prática de um crime tributário do qual resultou responsabilidade civil.
15- Incontornavelmente, a interpretação e aplicação do direito que o TRL fez da lei no acórdão sob impugnação, conduziria (caso transitasse em julgado esta decisão), a um claro benefício ao infrator.
16- Com efeito, a nosso ver não é compaginável com uma sã aplicação da justiça que a taxa de juro devida a uma pessoa coletiva pública por responsabilidade civil decorrente da prática de crime de abuso de confiança contra a segurança social seja mais "generosa", mais baixa, e por maioria de razão, diferenciada daquela que normalmente decorre de um qualquer incumprimento prestacional ou tributário.
17- De facto, fundando-se a indemnização na prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social e sendo, portanto, o crédito líquido, os juros de mora são devidos a partir do primeiro dia imediatamente a seguir ao termo do prazo para a entrega das prestações em dívida, e a respectiva taxa é a prevista no Decreto-Lei n.° 73/99, de 16 de março (cf. exatamente nesse sentido o Ac. do STJ de 10/01/2007, Proc. n.° 4099/06 – 3ª Secção, tirado pelos Exmos. Senhores Juízes Conselheiros: Santos Cabral (relator); Pires Salpico; Oliveira Mendes; e Henriques Gaspar).
18- Aplicando a lei no tempo à data dos factos, (cf. artigo 12.° do CC), estão violados no segmento civil do acórdão sob recurso os seguintes comandos legais: arts°. 805.°, n.° 2, alíneas a) e b), e 806.°, n.° 1, do C. Civil, 3.°, n.° 1 do Dec. Lei n.° 73/99, de 16 de Março, arts°. 5.°, n.° 3, do Dec. Lei n.° 103/80, de 9 de maio, 16.°, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.° 411/91, de 17 de outubro, e 10.°, n.° 2, do Dec. Lei n.° 199/99, de 8 de junho.
19- Desta sorte, o douto acórdão da Relação de Lisboa, por se encontrar cimentado na violação dos preceitos legais que invocámos, deve ser revogado no que se refere à decisão do pedido de indemnização civil, devendo consequentemente o demandado -CC - ser condenado a pagar ao demandante a quantia de € 35.222,81, acrescida de juros de mora à taxa prevista no n.° 1 do artigo 3.° do Decreto Lei n.° 73/99, de 16 de março, mas; contados a partir do termo do prazo em que cada uma das quantias referentes às contribuições deduzidas (período entre Novembro de 2002, e pelo menos até 4 de Fevereiro de 2004), deveriam ter sido entregues ao demandante, até integral e efetivo pagamento.
4. Não houve resposta do demandado.
5. Neste Tribunal, o Ministério Público entendeu que não devia emitir parecer quanto ao mérito, por estar em causa a indemnização civil, pronunciando-se, no entanto, pela admissibilidade do recurso, já que o montante do pedido (petição entrada em 23/02/2010) é superior á alçada do tribunal recorrido e o valor dos juros, na parte desfavorável para o recorrente, é de valor superior a essa alçada.
6. No despacho preliminar, o relator foi de entendimento que o recurso é admissível, foi interposto em tempo e por quem tem legitimidade para o efeito, tendo o efeito sido fixado correctamente.
7. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo veio para conferência para decisão.
II. FUNDAMENTAÇÃO
8. Matéria de facto apurada
8.1. Factos dados como provados
1- A arguida "AA - Comércio de Equipamentos e Produtos Ecológicos, S.A.", contribuinte nº ... da Segurança Social, é uma sociedade anónima que tem por objecto a importação, exportação, representações e comercialização de equipamentos e produtos ecológicos.
2- Os arguidos BB e CC, o primeiro, entre Novembro de 2002 e Dezembro de 2004 e, o segundo, entre Novembro de 2002 e pelo menos até 04 de Fevereiro de 2004, assumiram as funções de administradores da sociedade arguida, tomando estes todas as decisões referentes ao destino daquela.
3- A sociedade arguida, entre Novembro de 2002 e Dezembro 2004, exerceu de facto a actividade a que se tinha destinado, satisfazendo prestações a diversos clientes e pagando aos seus fornecedores e alguns credores.
4- No exercício da actividade acima referida, a sociedade arguida, entre Novembro de 2002 e Dezembro de 2004 teve, sob a sua dependência laboral, um número variável de trabalhadores, declarados à Segurança Social, os quais recebiam os seus salários e estavam sujeitos à retenção na fonte das contribuições por eles devidas à Segurança Social, calculadas pela incidência das percentagens variáveis entre 10% e 11% sobre as remunerações auferidas.
5- Das remunerações por si pagas a esses seus trabalhadores, a sociedade arguida efectuou os descontos referentes às contribuições pelos mesmos devidas à Segurança Social, nos termos estipulados pela lei.
6- Sucede porém que, no período correspondente a Novembro de 2002 e Dezembro de 2004, nos períodos referentes às respectivas administrações, os arguidos BB e CC, deixaram de cumprir a obrigação de entregar à Segurança Social tais contribuições, retidas mensalmente das remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores.
7- Assim, os arguidos retiveram mensalmente, contribuições por si devidas à Segurança Social, nas circunstâncias de tempo e nos montantes que a seguir se indicam:
Período | Contribuições em dívida (em €) |
Nov-02 | 496,57 |
Jan-03 | 2.904,16 |
Fev-03 | 3.068,63 |
Mar-03 | 3.214,59 |
Abr-03 | 5.151,75 |
Mai-03 | 3.130,11 |
Jun-03 | 2.351,39 |
Jul-03 | 2.622,61 |
Ago-03 | 3.251,16 |
Set-03 | 1.847,14 |
Out-03 | 1.845,55 |
Nov-03 | 3.598,46 |
Dez-03 | 1.740,69 |
Jan-04 | 2.492,15 |
Fev-04 | 913,09 |
Mar-04 | 2.020,48 |
Abr-04 | 797,43 |
Mai-04 | 274,87 |
Abr-04 | 274,87 |
Jul-04 | 274,89 |
Ago-04 | 274,89 |
Set-04 | 274,45 |
Out-04 | 274,45 |
Nov-04 | 274,45 |
Dez-04 | 548,9 |
Total | 43.917,72 |
8- O que perfaz o quantitativo global de €43.917,72, valor esse que a sociedade arguida deduziu das respectivas remunerações, pagas aos seus trabalhadores.
9- Os arguidos BB e CC, na qualidade de entidade patronal e de administradores da sociedade arguida, nos respectivos períodos, sabiam que estavam obrigados a entregar à Segurança Social as quantias monetárias resultantes dos descontos efectuados nos salários dos seus empregados, até ao dia 15 do mês seguinte àqueles a que se referiam.
10- Porém, os mesmos, não entregaram dentro dos respectivos prazos legais as referidas quantias, nem nos 90 dias decorridos sobre o termo desses prazos.
11- O arguido CC, notificado para o efeito, não efectuou o pagamento da quantia em dívida, acrescida dos juros respectivos, no prazo de 30 dias
13- A quantia referida em 8) não foi paga, até à presente data pelo arguido BB.
14- A sociedade arguida reteve e não entregou, até à presente data, à Segurança Social a quantia total de € 43.917,72 referente às deduções por si efectuadas a título de contribuições para a Segurança Social nas remunerações dos seus trabalhadores, a qual ingressou no acervo patrimonial da sociedade, tornando-se coisa sua.
15- Não obstante a sua situação de dívida à Segurança Social, a sociedade arguida, continuou a laborar, a pagar vencimentos e a efectuar pagamentos a fornecedores.
16- Sabiam os arguidos BB e CC, nos respectivos períodos de administradores da sociedade arguida, que eram responsáveis pelo pagamento perante a Segurança Social das contribuições devidas pelos trabalhadores, as quais eram, para tanto, por si deduzidas e retidas dos seus salários.
17- No entanto, e apesar de conscientes desse seu dever, não efectuaram esse pagamento a que estavam obrigados, antes introduzindo no acervo patrimonial da sociedade arguida as quantias deduzidas das remunerações, com as quais efectuaram diversos pagamentos relacionados com a actividade da sociedade.
18- Agiram os arguidos livre, deliberada e conscientemente, actuando em nome e no interesse da sociedade arguida, com vista a enriquecer o património da sociedade ao fazer ingressar na mesma as quantias monetárias que sabiam não lhe pertencer e que deveriam ser entregues à Segurança Social, no prazo legal.
19- Actuaram os arguidos, no essencial, sempre da mesma forma e repetindo as descritas condutas enquanto foram conseguindo, de modo idêntico de todas as vezes em que não efectuaram a entrega mensal das quantias por si devidas à Segurança Social.
20- Na verdade, no período ao qual respeitam os factos supra mencionados, deixaram os arguidos de cumprir com a obrigação de entregar as quantias devidas a título de contribuições para à Segurança Social, sempre que tal incumprimento se mostrasse em termos financeiros mais favorável à sociedade, motivados pela circunstância de não ter sido, durante esse período de tempo, alvo de qualquer inspecção por parte da Segurança Social, confiando na morosidade da sua actuação e aproveitando a oportunidade favorável à prática de tais actos.
21- Bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei.
22- O arguido BB é economista de formação embora não exerça essa actividade desde 2009.
23- O arguido BB vive sozinho em casa cedida por um familiar.
24- Faz face as suas despesas em virtude de alguns créditos que tem pendentes e que tem vindo a receber.
25- O arguido CC é licenciado em gestão e está reformado em virtude do que aufere cerca de € 2.100,00 mensais.
26- Vive com a companheira em casa arrendada pela qual paga mensalmente a quantia de € 380,00.
27- Tem um encargo mensal de € 500,00 por empréstimo bancário.
28- Aos arguidos não são conhecidos antecedentes criminais.
29- A sociedade arguida foi declarada insolvente, por sentença proferida 26/04/2005, transitada em julgado em 23-05-2005, proferida no âmbito dos autos de insolvência que correm termos sob o n.º 197/04.0TYLSB no 2.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa.
30- A sociedade arguida foi detentora da marca nacional “Clyma”.
31- Durante os exercícios de 2002 a 2004 foram levantadas das contas da sociedade arguida quantia compreendida em cerca de 90 mil euros para pagamento a uma sociedade de advogados no Brasil.
32- A quantia mencionada não foi devolvida à sociedade arguida.
33- A “RBC” e a “R...t” mantiveram relações económicas com a sociedade arguida.
8.2. Factos dados como não provados:
a) Os arguidos retiveram mensalmente do ordenado dos seus trabalhadores, contribuições por si devidas à Segurança Social, em Novembro de 2002 a quantia de €1809,07 e em Janeiro de 2003 a quantia de 2690,41, e num total entre Novembro de 2002 a Dezembro de 2004 a quantia global de € 45.016,47.
b) O arguido BB e a sociedade arguida foram notificados para efectuar o pagamento da quantia em falta, acrescida dos juros respectivos, no prazo de 30 dias.
c) O arguido CC não praticou qualquer dos actos que lhe são imputados na acusação
d) O arguido CC não tomou qualquer decisão referente aos destinos da sociedade arguida, nomeadamente de cariz financeiro e respeitante à segurança social.
e) À data dos factos, a sociedade arguida era detentora de bens móveis, direitos de créditos sobre terceiros e numerário, num valor global superior a €300.000,00.
f) A marca referida em 30) dos factos provados está registada a favor da sociedade arguida no Instituto Nacional de Propriedade Industrial sob o n.º 356197 e publicada no boletim da propriedade industrial n.º 01/2004 que se destinava a assinalar produtos da classe internacional 20 (contentores não metálicos de armazenagem e transporte de resíduos, caracterizados por serem contentores tripartidos de grande dimensão e de rua, destinados a vidro, papel e outros materiais diversos, em compartimentos separados cujo valor ascendia a cerca de € 100.000,00.
g) A sociedade arguida era detentora de um direito de crédito, por liquidar, mas seguramente nunca inferior a €100.000,00 que detinha sobre o arguido BB, por actos e contratos por este celebrados consigo mesmo e com empresas por ele detidas e/ou controladas ao longo dos últimos anos, enquanto administrador de facto e de direito em alguns períodos da sociedade 1.ª arguida que diminuindo ou frustrando a satisfação de credores, acabaram por conduzir a AA à situação de insolvência em que se encontra.
h) Era o arguido BB quem de forma exclusiva controlava e geria os aspectos financeiros da sociedade arguida sob a capa de alegados contratos de prestação de serviços da RBC-Consultoria e Gestão de Empresas, Ld.ª.
i) Em virtude dos contratos celebrados em 04 de Maio de 2001, 1 de Agosto de 2001 e 01 de Março de 2002, o arguido BB fez com a sociedade arguida pagasse à sociedade RBC, Ld.ª cerca de € 250,000 sem qualquer contrapartida.
j) Até pelo menos 31 de Janeiro de 2004 foi sempre o arguido BB quem, de forma exclusiva, definiu e determinou a política e estratégia comercial da sociedade arguida, quantificou os objectivos, definiu os recursos humanos e materiais necessários à prossecução da actividade empresa, negociou, em nome da sociedade arguida, tudo o que entendeu necessário para os objectivos definidos, assegurou a qualidade dos produtos e serviços da sociedade, tratou do estabelecimento e desenvolvimento da estratégia de marketing em função da estratégia global da empresa.
k) O arguido BB determinava os preços de venda dos produtos quando a empresa se apresentava em concursos públicos, o principal sector de mercado da sociedade arguida, esmagando e, em alguns casos anulando mesmo, as margens de lucro da sociedade, em benefício a sociedade “R..., S.A.” empresa que produzia os produtos da sociedade arguida e da qual era igualmente presidente este arguido.
l) No exercício de 2002 o arguido BB mandou levantar das contas bancárias da sociedade arguida, em numerário, a quantia de € 93.709,29 para pagar honorários e despesas a advogados no Brasil para tratar de um processo judicial, do seu único e exclusivo interesse.
m) Em consequência do referido em 31) e 32) dos factos provados a sociedade arguida ficou totalmente descapitalizada.
n) CC actuou sempre sob a orientação, direcção, subordinação económica e fiscalização do arguido BB o qual apenas defendeu os seus interesses e os interesses das sociedades que ele controlava, ou seja, “RBC e R...”.
o) O arguido CC nunca controlou ou geriu os aspectos financeiros da sociedade arguida e o arguido BB não se dispensou de o fazer exclusivamente.
p) Se o arguido CC quisesse proceder ao pagamento das quantias em dívida, designadamente, à segurança social, nunca tal lhe seria permitido fazer.
q) No período a que respeitam as contribuições em dívida à segurança social o arguido BB nunca exerceu de facto a administração da sociedade arguida.
r) Foi sempre o arguido CC quem exerceu a administração de facto da sociedade arguida.
s) O arguido BB não decidia o que a sociedade comprava, fabricava e vendia, contratava ou despedia trabalhadores ou pagava salários.
t) O arguido BB não tinha qualquer intervenção nos destinos da sociedade, sendo totalmente alheio às decisões sobre o rumo da mesma, as quais eram tomadas pelo arguido CC.
u) Era o arguido CC quem decidia o que fazer aos valores recebidos pela sociedade arguida, se aplicados no pagamento de salários, fornecedores e impostos ou contribuições da segurança social.
v) O arguido BB desconhecia que as contribuições à segurança social referidas na acusação não tinham sido entregues.
9. Questões a decidir:
- Os juros de mora
9.1. Na decisão recorrida, quanto aos juros de mora considerou-se o seguinte:
Como se viu, da matéria de facto provada decorre claramente o cometimento de tal crime por parte do recorrente, crime que tem natureza dolosa.
Por outro lado, não se suscita qualquer dúvida quanto ao facto de, em consequência da omissão, ilícita e culposa, de não entregar as quantias descontadas nos salários dos trabalhadores à Segurança Social, esta ficou privada dessas quantias que lhe eram destinadas, assim sofrendo um dano de natureza patrimonial – com efeito, a partir do momento em que a entidade patronal desconta nos salários dos seus trabalhadores os valores das contribuições legalmente devidas, tais valores passam a pertencer à Segurança Social, embora só posteriormente esta possa exigi-los. E a não entrega desses valores no prazo legalmente fixado, além de constituir o facto ilícito típico, causa necessariamente um dano à Segurança Social que dá causa à obrigação de indemnizar.
Assim, embora já não estando em causa a responsabilidade tributária (pois não é o crime que gera a prestação tributária), o valor do dano causado será coincidente com o valor da prestação tributária em falta – embora os juros de mora devidos não possam ser os reclamados pela demandante (previstos no D.L. 73/79, de 16 de Março, ou seja, os juros pela mora no cumprimento da prestação tributária), mas antes os previstos na segunda parte do nº 3 do artigo 805º do Cód. Civil.[1]
Aqui chegados, cabe referir que o valor pelo qual o recorrente é responsável de contribuições não pagas não é aquele que foi fixado na sentença recorrida, mas tão somente a o referente ao período entre Novembro de 2002, e pelo menos até 4 de Fevereiro de 2004, em que ele assumiu as funções de administrador da sociedade arguida.
Por isso, não podia o Tribunal a quo imputar-lhe a responsabilidade e condená-lo no pagamento das prestações vencidas depois de Dezembro de 2003. Efectivamente, o pagamento das contribuições a partir do mês de Janeiro de 2004 (porque deveria ter ocorrido até 15 de Fevereiro de 2004, data em que o recorrente, nos termos dados como provados, já não exercia as funções de administrador da “AA”), não pode ser imputado ao recorrente.
Pelo que se conclui que o recorrente é apenas responsável pelo pagamento de 35.222,81 €, a que acrescem juros de mora legais contados a partir da notificação para contestar o pedido de indemnização civil[2].
9.2. Como vimos, o tribunal “a quo”, considerando que a fonte da obrigação de indemnizar radica na prática de um facto ilícito de natureza penal – no caso, um crime de abuso de confiança fiscal à segurança social, previsto e punido pelos arts. 6.º e 107.º, n.º 1, por referência ao art. 105.º, n.º 1, todos do RGIT e arts. 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, ambos do CP - levou – e bem – a questão da indemnização para o âmbito do direito civil, desde logo por imposição do art. 129.º do CP, nos termos do qual “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.
Como tal, na questão dos juros de mora, considerou o disposto no art. 805.º do Código Civil (CC) e, neste, o seu n.º 3, nomeadamente a segunda parte. Este dispositivo estabelece o seguinte: “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar liquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”
A primeira observação a fazer é a de que o preceito rege para as situações de o crédito ser ilíquido. Esse é o pressuposto geral dentro do qual funciona a excepção da segunda parte: tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco (…)
Mas acontece que falha no caso aquele pressuposto geral, traduzido na iliquidez do crédito. Com efeito, tratando-se de dívida originada por não entrega de contribuições devidas à segurança social, estas encontram-se perfeitamente determinadas, desde o momento em que a entrega era legalmente exigível, ou seja, muito antes da formulação do próprio pedido cível enxertado na acção penal. E mais: a falta de entrega dessas contribuições configura a prática de um facto ilícito, como o reconheceu a decisão recorrida, que manteve a condenação penal do arguido/demandado.
Sendo assim, rege o n.º 2 do art. 805.º citado, e não o n.º 3. De acordo com tal prescrição, há mora do devedor independentemente de interpelação (judicial ou extrajudicial): a) – por a obrigação ter prazo certo; b) – por a obrigação provir de facto ilícito.
Estabelece, por seu turno, o art. 806.º, n.º 1 do CC que, «na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.»
Nos termos do art. 5.º, n.º 3 do DL 103/80, de 9 de Maio (Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência), «o pagamento das contribuições deve ser efectuado no mês seguinte àquele a que disserem respeito, dentro dos prazos regulamentares em vigor». E o art. 10.º, n.º 2 do DL n.º 199/99, de 8 de Junho, estabelece, por seu turno, que as contribuições devidas à segurança social «devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito (…)»
Daqui decorre que a constituição em mora, pelo que toca às contribuições devidas à segurança social, verifica-se a partir do 15.º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito. Daí que sejam obrigações de prazo certo.
A partir do referido dia vencem-se juros de mora.
Dispõe a propósito o art. 16.º do DL 411/91, de 17 de Outubro:
1 - Pelo não pagamento das contribuições à segurança social nos prazos estabelecidos são devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção.
2 - A taxa dos juros de mora é igual à estabelecida para as dívidas de impostos ao Estado e é aplicada da mesma forma.
Sobre tal matéria rege ainda o DL 73/99, de 16 de Março, que, no seu art. 1.º determina:
1 - São sujeitos a juros de mora as dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas que não tenham forma, natureza ou denominação de empresa pública, seja qual for a forma de liquidação e cobrança, provenientes de:
a) Contribuições, impostos, taxas e outros rendimentos quando pagos depois do prazo de pagamento voluntário;
(…)
Ainda nos termos do art. 3.º, n.º 1 de tal diploma legal «a taxa de juros de mora é de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês do calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente», não podendo, todavia, nos termos do art. 4.º deste diploma legal, a liquidação dos juros de mora ultrapassar os últimos 5 anos anteriores à data do pagamento da dívida sobre que incidem.
De todo o exposto resulta que, da conjugação do estabelecido no Código Civil, nomeadamente nas normas dos artigos 805.º, n.º 2, alíneas a) e b), 806.º, n.º 1 e disposições dos diplomas legais citados, a constituição em mora se verifica a partir do 15.º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito as contribuições em dívida e que os juros de mora respectivos são também os indicados nos preceitos referidos desses diplomas, e não os juros a que faz referência o n.º 2 do art. 806.º, com referência ao art. 559.º, n.º 1, ambos do CC, aqui postergados pelas normas especiais que aqueles diplomas constituem, como já se decidiu neste Tribunal no acórdão de 01/01/2007, Proc. n.º 4099/06, da 3.ª Secção.
É que, nos termos do n.º 3 do art. 7.º do CC, «a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.» E, aliás, não faria sentido que, no caso de indemnização fundada na prática de um crime, os juros de mora fossem mais atenuados do que os devidos pela simples constituição em mora resultante de cumprimento tardio da obrigação.
III. DECISÃO
10. Nestes termos, acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto pelo Instituto de Segurança Social, I. P., determinando-se que sobre o montante da indemnização de € 35 222, 81 (trinta e cinco mil, duzentos e vinte e dois euros e oitenta e um cêntimos) incidam juros de mora computados da forma requerida e explicitados no número anterior, ou seja, com vencimento a partir do 15.º dia do mês seguinte àquele a que as contribuições disserem respeito e à taxa de 1% se o pagamento se fizer dentro do mês do calendário em que se verificou a sujeição aos mesmos juros, aumentando-se uma unidade por cada mês de calendário ou fracção se o pagamento se fizer posteriormente, não podendo, todavia, a liquidação dos juros de mora ultrapassar os últimos 5 anos anteriores à data do pagamento da dívida sobre que incidem.
11. Custas do recurso cível pelo demandado-recorrido (art.s 446.2 CPC e 523.º CPP).
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Junho de 2012
Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor
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[1] Negrito não constante da decisão recorrida.
[2] Negrito não constante da decisão recorrida.