RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES
ACTIVIDADES PERIGOSAS
PISCINA
CULPA
PRESUNÇÃO DE CULPA
CULPA DO LESADO
Sumário


I - Numa abordagem conceptual pode qualificar-se uma actividade de exploração de piscinas, instaladas num parque aquático, designadamente a descida de escorregas, como consubstanciando uma actividade perigosa, pelo risco intrínseco que pode envolver.
II - Ainda que assim não fosse, sempre a utilização de uma coisa imóvel, com as características de um escorrega, poderia condensar uma presunção de culpa, nos termos do art. 493.º, n.º 1, do CC.
IIII - A presunção de culpa estabelecida não é compaginável com uma culpa ostensiva e uma actividade contravencional de quem beneficia de tal presunção a seu favor, sob pena de ocorrer uma perversão desajustada e injusta dos deveres do explorador de actividade perigosa.
IV - Se este tomou todos os cuidados que lhe eram exigíveis para prevenir as situações de perigo potencial que a actividade encerra e desencadeia, nomeadamente procedendo à afixação de cartazes contendo as regras, formas e modos de utilização dos dispositivos reputados perigosos, não lhe é exigível que, para além de circunstâncias anormais a que deva acorrer, tenha de estabelecer um sistema de vigilância visando o concreto comportamento de todos e cada um dos potenciais utilizadores dos escorregas.

Texto Integral


Recorrente: AA.

Recorridas: “BB, S.A.”; “CC, S.A.”; “DD, Lda.”.

I. – Relatório.

Iterando a sua dissensão quanto à decisão prolatada na apelação que havia interposto da decisão proferida no Tribunal Judicial de Amarante, que na respectiva improcedência, confirmou a decisão de improcedência que havia sido ditada neste último tribunal, recorre, de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, o autor, AA, havendo a considerar os seguintes,  

I.1. – Antecedentes Processuais.

AA, casado, residente em Rio Novo, lote 157, na Nazaré, intentou acção de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “CC – , SA, com sede em ......, Fregim, Amarante e BB, SA, com sede no ........, 00 em Lisboa alegando, em síntese, que:

- a 28 de Julho de 2001, o autor encontrava-se em Amarante e decidiu, conjuntamente com a sua família e alguns amigos, deslocar-se ao Parque Aquático, propriedade da 1ª ré, sito em ......, naquele concelho, tendo entrado no estabelecimento pelas 15,00 horas;

- já dentro do estabelecimento comercial, o autor utilizou por várias vezes as diferentes instalações de diversão existentes no parque aquático e acessíveis a todos os respectivos utentes;

- pelas 17,30 horas decidiu utilizar uma das piscinas aí instaladas, que tem agregada um “ escorrega” aquático, diversão comum a todos os parques desta natureza;

- para tanto, subiu o elemento de ascensão vertical de acesso ao dito escorrega e, uma vez atingido o topo do escorrega, aguardou a sua vez de iniciar a descida;

- durante o período que permaneceu aguardando pela sua vez de  iniciar a descida, a utilização do escorrega foi interrompida pelos agentes de vigilância em serviço no parque aquático, porquanto o caudal de água que habitualmente circula em tais escorregas se interrompeu, por razões que o autor desconhece e a isso não se encontrava obrigado;

- certo é que decorridos que foram cerca de 20 minutos, a água voltou a correr escorrega abaixo e a utilização do mesmo foi permitida;

- o autor foi o primeiro a utilizar o escorrega após a falta da água;

- o autor iniciou a descida na posição ventral e quando mergulhou na piscina embateu com o crânio no fundo da mesma;

- como resultado directo do impacto, o autor sofreu “ fractura-luxação C5 C6 com instalação de tetraplegia “, conforme relatório médico emitido pelo Centro de Medicina de reabilitação de Alcoitão;

- o autor foi de imediato transportado par ao hospital de Amarante para primeiros socorros;

- aí se constatou o seu gravíssimo estado e a necessidade de transferência para o Hospital Central de S. João, no Porto, onde foi submetido a intervenção cirúrgica para redução;

- permaneceu neste hospital até 30 de Julho de 2001, tendo, nessa data, sito transferido para o Hospital de Penafiel para iniciar programa de reabilitação;

- neste último hospital, foi “ conectado a prótese ventilatória por traqueostomia durante cerca de dois meses com posterior transferência para o serviço de traumatologia da mesma unidade hospitalar;

- a 21 de Janeiro de 2002, teve alta desta unidade hospitalar e a 29 deu entrada no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, onde ficou internado para programa de reabilitação onde permaneceu até 10 de Maio de 2002;

- durante o período inicial de tal permanência, o autor tinha, não só um quadro clínico neuro-motor de tetraplegia ASIA C que se veio a revelar permanente;

 - lhe foi atribuído um grau de desvalorização permanente de deficiência de 80%;

- sustentava a sua família – esposa e filho com 5 anos de idade – exercendo a profissão de jogador de futebol profissional;

- até ao termo da época desportiva de 2000/2001, o autor era jogador do Futebol Clube de Famalicão e após o termo dessa época havia sido contratado pelo União Sport Clube de Paredes, para desempenhar  a sua actividade de jogador de futebol;

- o referido contrato, para além de prémios de jogo e por objectivos, de carácter aleatório, o autor iria auferir um salário base de PTE 500.000$00, hoje equivalente a € 2.493,99 euros;

- o autor tinha a legítima e normal expectativa de desempenhar a sua actividade de jogador profissional de futebol por vários anos mais;

- tudo isto se impossibilita por força do acidente supra descrito;

- necessita permanentemente de apoio familiar para os actos mais simples da vida quotidiana;

- para além dos tratamentos custeados pela SS e pelo Sistema Nacional de Saúde, viu-se obrigado a realizar o montante global de 8.889,29 € e desconhece neste momento quais os montantes que irá, forçosamente, despender por força do seu quadro clínico.

Conclui pedindo a condenação das rés na quantia de € 642.542,94 corrigida pela taxa de inflação que correr até trânsito em julgado, bem como em juros de mora e sanção pecuniária compulsória nos termos legais.

Citadas as rés, vieram contestar por impugnação e por excepção:

Por excepção, a primeira ré invocou a sua ilegitimidade por apenas ser proprietária do espaço cuja exploração foi cedida à Sociedade ......., Lda, tendo invocado, também, a ineptidão da petição inicial por o autor, na sua perspectiva, se ter limitado a alegar o acidente fundado nas deficientes condições sem, contudo, alegar os factos em que as sustenta;

Por excepção, a segunda ré invocou que está excluído do âmbito do seguro os danos resultantes de actos praticados que contrariem ou violem as regras de segurança.

Por impugnação alegam, fundamentalmente, que:

- foram adoptadas pela ré CC, enquanto proprietária do parque, e pela ..........., enquanto exploradora do mesmo, todas as providências possíveis e precauções tidas como idóneas, com o fim de prevenir os danos, maxime quanto a medidas para garantir a segurança dos utentes do PA;

- por isso, o autor não pode invocar a seu favor o desrespeito das regras de segurança, seja na construção, seja na manutenção, estipuladas para os Parques Aquáticos, nem imputar a causa do acidente às condições deficientes do escorrega e do tanque no dia do acidente;

- na verdade, como o próprio confessa, o acidente deveu-se ao facto de o autor não ter respeitado duas das regras básicas de segurança do PA, em concreto a que proíbe a descida do escorrega em posição ventral e a regra que não permite mergulhar no tanque de recepção;

- acresce que o autor, para além de ter em posição ventral e mergulhado no tanque de recepção, num gesto absolutamente imprudente, no momento imediatamente anterior ao da entrada no dito tanque, deu um impulso com as mãos, de modo a entrar na água numa posição vertical e não de um modo oblíquo não tomando, assim, os cuidados necessários a que contratualmente estava obrigado;

- a água do tanque de recepção, onde ocorreu o acidente, encontrava-se no nível adequado, a poucos centímetros da saída das pistas e com cerca de 1,30 metros de profundidade;

- estavam proibidos mergulhos na piscina.

Concluem pela improcedência da acção e, em consequência, pela sua absolvição do pedido.

Na réplica, o autor pugnou pela improcedência das excepções e requereu a intervenção principal provocada da Sociedade DD como associada das rés.

Estabelecido o contraditório, o incidente foi admitido e ordenada a citação da sociedade DD, a qual contestou, invocando a ineptidão da petição inicial e, ainda, a prescrição do eventual direito do autor por terem decorridos mais de três anos e que a ocorrência do acidente se ficou a dever ao facto do autor ter desrespeitado as regras básicas da segurança.

Conclui pela procedência das excepções e, para a hipótese, de assim se não vir a entender pela improcedência da acção.

Foi apresentada réplica.

A fls. 520 foi proferido despacho a convidar o autor a vir aos autos explicitar as reais condições em que se encontrava o escorrega que terá dado origem aos factos em apreço.

A fls. 526 o autor veio dizer que alegou na sua petição inicial que o acidente se deveu às deficientes condições em que o escorrega se encontrava mais alegou a interrupção do caudal de água, ou seja, verificou-se um longo período durante o qual a água não desceu pelos escorregas, o que, seguramente terá implicado uma redução do nível de água na piscina.

As rés, bem como a chamada, pronunciaram-se.

No despacho saneador as excepções dilatórias de nulidade decorrente da ineptidão e de ilegitimidade, bem como a excepção peremptória de prescrição foram julgadas improcedentes.

 A primeira ré e a chamada não se conformando com a decisão interpuseram recurso, respectivamente, de agravo e de apelação

Decorrida a primeira sessão de audiência de discussão e julgamento, o autor veio, a fls.1300, requerer a ampliação da matéria da base instrutória por se concluir da instrução existirem factos que podem ser considerados essenciais para o conhecimento e a decisão da causa e que não se encontram vertidos na base instrutória.

As rés e a chamada pugnaram pelo indeferimento.

A fls.1325/1326 foi proferido o seguinte despacho:

“ Deflui do art. 264.º, nº3, do CPC que serão considerados na decisão os factos essenciais à procedência da pretensão formulada que sejam complemento ou concretização de outros factos que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa desde que a parte interessada manifeste vontade deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.

O autor alegou que iniciou a descida em posição ventral e que quando chegou à piscina embateu com o crânio – arts. 19 e 20 da petição.

Pretende agora que seja quesitado em função da prova já produzida, e com oposição das partes contrárias, que:

72º No momento em que se iniciou a descida do escorrega o autor partiu na posição de sentado?

73º Depois da descida o autor alterou a posição em que seguia passando a descer de joelhos e acenando?

74º Antes de entrar na água o autor retomou a posição de sentado?

75º No momento em que termina o percurso no escorrega o autor sentiu um impacto após o qual passou a ter dificuldades em nadar e em vir à superfície?

Esta factologia é complemento ou concretização da alegada na petição, a qual, é muito parca e vaga. Nesta decorrência o inciso citado permite ao autor, alavancar na instrução da causa, suprir a lacunosa alegação inicial, não se podendo coarctar ao autor uma estratégia/válvula de escape que o sistema lhe concede para não comprometer a sua pretensão com base numa deficiente alegação para a qual a parte não contribui e em prol da verdade para-processual.

Por tudo isto, admito a ampliação da base instrutória com os quesitos 72 a 75 supra-referidos admitindo ainda a prestação de esclarecimentos por parte dos Srs. Peritos quanto a esta factologia.

“(…)”.

As rés, bem como a chamada, inconformadas interpuseram recurso.

Finda a audiência de discussão e julgamento foi fixada a matéria de facto, a qual não foi objecto de reclamação e, de seguida, foi proferida sentença que absolveu as rés, bem como a interveniente DD, Lda do pedido deduzido pelo autor.

Inconformados com esta decisão interpôs recurso o autor recurso de apelação, no qual vieram a ser apreciadas as seguintes questões: a) reapreciação da decisão de facto proferida pela 1.ª instância; b) excepção de prescrição; c) erro na interpretação e aplicação do direito.

A final, o Tribunal da Relação julgou improcedente o recurso de agravo que a interveniente principal “”DD, Lda.” havia interposto da decisão que havia julgado improcedente a excepção de prescrição, tendo-o julgado improcedente, do mesmo passo que julgou improcedente a apelação interposta pelo Autor, com o que manteve inalterada a decisão proferida na 1.ª instância.

É desta decisão que vem interposto recurso, de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, para o que foi alinhado o epítome conclusivo que a seguir queda extractado.     

I.2. – Quadro Conclusivo.

“I. O Tribunal a quo não apreciou os diversos enquadramentos jurídicos, em sede de responsabilidade civil, nomeadamente a hipótese de responsabilidade contratual, ou mesmo a responsabilidade pelo risco, pelo que a Douta Decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º/1/d) CPC, aplicável aos recursos ex vi artigos 716.º e 732.º do CPC, na redacção ainda aplicável a estes autos.

II. O Douto Acórdão recorrido errou na reapreciação da matéria de facto, sendo a fundamentação nele contida insuficiente, para além de que existem contradições evidentes na fundamentação e valoração de meios de prova em moldes que não estão de acordo com o previsto na lei.

III.    O tribunal valorou incorrectamente os depoimentos prestados pelas testemunhas, nomeadamente no que respeita a alegadas contradições ou inexactidões entre os depoimentos das testemunhas do autor/recorrente, para além de que valorizou o depoimento sobre factos não provados que em nada relevaram para a decisão final, por não ter sido quantificada indemnização a favor do autor.

IV.   O Douto Acórdão recorrido erra ao considerar que os danos teriam sido causados devido a um comportamento por parte do autor, quanto à posição de descida, comportamento esse que não ficou provado nos autos, tanto mais que não foi possível provar, com exactidão, o momento em que teria ocorrido o alegado impulso.

V.     O Douto Acórdão recorrido erra novamente, quando valora e aprecia erradamente a prova pericial produzida nos autos, tanto mais que o excerto que foi levado à decisão recorrida nada prova quanto à causalidade entre o comportamento do autor e o dano sofrido.

VI.   Novamente, erra a Douta decisão recorrida quanto extrai de documentos dos autos a prova do regular funcionamento, naquele dia e naquela hora em que os danos foram produzidos no autor, o normal funcionamento do parque aquático e o cumprimento das regras de segurança, mais a mais depois das ocorrências verificadas naquela data, quanto aos cortes de abastecimento de água ao escorrega.

VII   É evidente que mesmo um estabelecimento que está licenciado para laborar pode dar causa a danos, por sua responsabilidade, nomeadamente por factos estranhos ou anormais, que podem sempre ocorrer e, por isso mesmo, obrigam à existência de seguro, por imposição legal.

VIII. O autor não teria de provar que o nível de água no tanque de recepção estaria baixo, a partir do momento em que alegou e provou, os diversos cortes de abastecimento de água, na data do sinistro e imediatamente antes deste (v. pontos 2 a 4 da matéria de facto dada como provada).

IX. A Douta decisão recorrida não fundamenta em que medida é que o comportamento do autor/recorrente teria sido, por si só, a causa única dos danos sofridos, ao ponto de ser excludente de qualquer dever de indemnização a cargo das rés e/ou da interveniente principal.

X. A resposta dada ao ponto 14 da BI vai além do que foi alegado pelas partes e levado à matéria a provar.

XI. O Douto Acórdão recorrido não procedeu à aplicação de critérios racionais de apreciação dos factos e da prova, por meio de um ajuizamento racional da actividade probatória, nem aventou uma correcta exposição dos motivos e/ou razões pelas quais o Tribunal considerou demonstrados determinados factos ou realidades jurídica e processualmente relevantes.

XII. Assim o Douto Acórdão recorrido vai contra os artigos 341.º, 342º, 344.º/1, 349º, 350º, 362.º, 371.º, 389.º e 396.º do CC, bem como os artigos 591.º, 655.º e 712.º/1 (em especial, a alínea a) desse número) e 2 do CPC, sendo errada a conclusão de que a prova testemunhal, pericial e documental levaria a confirmar a decisão da primeira instância.

XIII. O Douto acórdão recorrido erra igualmente ao considerar ilidida a presunção de culpa, decorrente do artigo 493.º do CC.

XIV. Erra igualmente quanto se baseia no facto de, alegadamente, o comportamento do autor ser a causa única dos danos sofridos, já que quer a proprietária, quer a exploradora do parque aquático, ré e interveniente nos autos, não demonstraram ter cumprido integralmente as condições de segurança.

XV. O simples cumprimento de obrigações legais, baseadas na sinalética (cujo efectivo conhecimento pelo autor não ficou provado) e na existência de licenças não permite, por si só, considerar ilidida a presunção de culpa por parte das proprietária e/ou da exploradora do parque, ao ponto de o autor ter sofrido aqueles danos apenas por sua culpa.

XVI. Tal juízo não se coaduna com o facto de o tipo de serviços prestados naqueles parques aquáticos comportar riscos acrescidos, na medida em que existe exposição pessoal e física a actividades desportivas, impondo uma especial exigência para lograr a ilisão daquela presunção.

XVII. Como vem sendo entendido pela Doutrina, a leviandade ou ligeireza daquele que o dever visa proteger implicará apenas uma ponderação do seu concurso para a produção do dano que sofreu ao abrigo do art. 570 do Código Civil, mas não exclui necessariamente a indemnização, que pode manter-se na íntegra ou limitar-se a ser reduzida.

XVIII. Ficou provado nos autos a existência de culpa por parte da proprietária e/ou da exploradora do parque aquático, nomeadamente quanto aos deveres de cuidado e de vigilância que estava obrigada a assegurar, caso a caso, em relação a cada utente, e que são inerentes a uma relação contratual daquela natureza, para além da prova dos demais pressupostos da responsabilidade civil.

XIX. Um comportamento de risco, por parte do autor/recorrente, a existir, nunca seria excludente da responsabilidade civil das recorridas.

XX. Ou seja, o Douto Acórdão recorrido é ilegal, também:

Por violação do artigo 500º do CC, no que toca à conduta dos funcionários do parque aquático;

Em qualquer caso, por violação dos artigos 798.º a 800.º do CC;

Se assim não se entender, por violação do artigo 493º/2 do CC;

Por último, e só se nenhum dos anteriores fundamentos proceder, por violação dos artigos 483.º/1, 486º, 490º, 496.º e 497.º do CC;

Por violação dos artigos 562.º e 570º do CC.

Termo em que, sempre com o Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, consequentemente:

Ser julgada procedente a arguição de nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, com as cominações previstas na lei; e, em qualquer caso,

Serem as recorridas condenadas no pedido formulado pelo autor, no termos do artigo 729.º/1 do CPC; ou, se assim não se entender,

Ser ordenada a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, para proferir uma decisão conforme à lei, se necessário for com alteração ou ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 729.º/3 e 730.º CPC,”

Sem epítome conclusivo, responderam a “BB, S.A.” – cfr. 1707 a 1709 – e a “”CC , S.A.” – cfr. fls. 1718 1728.  

I.3. – Questões a resolver.

Das conclusões extractadas supra, sacam-se para a apreciação da revista, as sequentes questões:

- Nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia – cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código Processo Civil;

- Responsabilidade civil – Pressupostos – Actividade Perigosa – Responsabilidade Objectiva – Responsabilidade Contratual.   

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

“1- No dia 28 de Julho de 2001, pelas 17.30 mn, o autor, a fim de utilizar uma das piscinas instaladas no Parque Aquático, sito em ......., Fregim, Amarante, que tem agregado um escorrega, subiu o elemento de ascensão vertical de acesso ao mesmo e atingindo o topo aguardou a sua vez de iniciar a descida.

2- Durante o período de tempo em que aguardou pela sua vez de iniciar a descida, a utilização do escorrega foi interrompida pelos agentes de vigilância aí em serviço, porquanto o caudal de água que por aí circulava se interrompeu.

3- Interrupção essa causada por sucessivas interrupções de energia eléctrica, devido a trovoadas que se faziam sentir, tendo essa interrupção se prolongado por um período temporal que em concreto não foi possível apurar, mas nunca inferior a 10 mn e nunca superior a 20 mn.

4- Quando a água voltou a correr pelo escorrega a sua utilização foi imediatamente autorizada pelos vigilantes.

5- Depois dessa autorização, o autor utilizou o escorrega.

6- Na altura em que o autor se preparava para descer pelo escorrega, encontrando-se junto do mesmo um vigilante, aquele autor providenciou por se colocar na posição de sentando com as pernas para a frente.

7- O autor posicionou-se dessa forma.

8- O autor, após ter descido uma parte de percurso do escorrega, em concreto não apurada, alterou a posição em que seguia, passando a deslizar de joelhos e depois de deitado de cabeça para a frente, tendo deste modo mergulhado na água.

9- Em virtude dessa posição ventral e da velocidade que adquiriu durante o percurso do escorrega, a entrada do autor na água não foi amortecida, tendo o autor, nesse momento da entrada, sentido um impacto, após o qual passou a ter dificuldades em nadar e em vir à superfície.

10- Na altura e que o autor desceu o escorrega, a água no tanque de recepção encontrava-se com 1,30m de profundidade.

11- No escorrega utilizado pelo autor existe um painel indicando que é proibida a sua utilização na posição ventral e que é proibido mergulhar no tanque de recepção.

12- Esse painel encontrava-se num sítio de passagem dos utentes que antes de chegarem à zona de início da descida têm de passar em fila por dois corredores delimitados por gradeamento de ferro, de modo que, quando entram no segundo corredor, ficam virados para esse painel.

13- Tal painel encontrava-se visível e era legível.

14- O parque Aquático é dotado de um regulamento interno afixado na portaria, junta às bilheteiras de entrada, onde consta a proibição de mergulhar nos tanques de recepção, bem como a proibição dos lançamentos de pé ou de forma diferente da indicada, para cada equipamento, no placard afixado junto à respectiva plataforma de saída.

 15- Aí é identificado que é proibida a posição ventral.

16- O escorrega utilizado pelo autor era, à data do sinistro em causa nos autos, formado por quatro pistas paralelas com separadores, com uma directriz recta na secção aberta, sendo que o material da superfície de deslizamento, as inclinações das pistas, a velocidade que as mesmas permitiam atingir e as demais condições estavam de acordo com a legislação então em vigor.

17- A parte final da pista foi concebida de modo a abrandar a velocidade da descida dos utentes e a prepará-la para a chegada numa posição segura ao tanque de recepção.

18- Em virtude do impacto provocado pela entrada de água na posição ventral, o pescoço do autor sofreu uma hiper-flexão forçada, o que lhe provocou uma fractura-luxação C5-C6 com instalação de tetraplegia.

19- Foi, de imediato, transportado para o hospital de Amarante para ser submetido a primeiros socorros.

20- Após, foi transferido para o Hospital de S. João, no Porto, onde foi submetido a intervenção cirúrgica para redução-fixação da fractura-luxação de C5 – C6.

21- Permaneceu neste hospital até 29-07-2001, altura em que foi transferido para o hospital de Penafiel, para iniciar programa de reabilitação.

22- Aí esteve síndroma de insuficiência respiratória.

23- Em virtude disso foi transferido para o hospital de S. João, onde foi conectado a prótese ventilatória por traqueotomia durante dois meses.

24- No final do mês de Outubro de 2001, foi submetido a desconectação da prótese ventilatória e posterior transferência para o serviço de Traumatologia da mesma unidade hospitalar.

25- Tendo tido alta no dia 21 de Janeiro de 2002.

26- No dia 29-01-2002, foi internado no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, onde ficou internado para programa de reabilitação.

27- Onde permaneceu até ao dia 10 de Maio de 2002.

28- Durante o período inicial de tal permanência, o autor tinha um quadro clínico neuromotor de tetraplegia ASIA C, que veio a revelar permanente.

29- Era necessário fazer esvaziamento do esfíncter vesical de três em três horas, por terceira pessoa e era obrigado a manter algália no período nocturno.

 30- Apresentava úlceras de pressão grau 1 a nível da região sagrada/sulco interglúteo e orifício de traqueotomia permeável com bordos epitetelizados.

31- E foi submetido a litoterícia, por litíase vesical a 13 de Março de 2002.

32- No dia 10 de Maio de 2002, o autor mantinha o quadro neuro-motor de tetraplegia ASIA C, deambulava de forma independente em cadeira de rodas, necessitava de ajuda nas transferência e para assumir a posição de pé no standing-frame, alimentava-se sem necessidade de ajudas de técnicas, necessitando de ajuda na preparação de alguns alimentos, apresentava escrita com traço seguro com caneta de feltro e engrossador, estava independente na técnica de algiação intermitente limpa, tinha treino intestinal instituído em dias alternados com emolientes e supositório de bisacodil e apresentava disfunção eréctil ligeira, pelo que de imediato foi medicado com citrato de sildenafil.

33- Esse quadro clínico é irreversível, o que o impede de desempenhar qualquer tipo de actividade e de ter um dia a dia normal.

34- Ficou com uma incapacidade de 80%.

35- Antes do acidente era uma pessoa saudável, sustentava-se e sustentava a sua esposa e o filho, exercendo a profissão de jogador de futebol profissional.

36- Até ao termo da época desportiva 2000/2001, foi jogador do Futebol Clube de Famalicão, sendo que, à data do sinistro em causa nos autos, já se havia iniciado a pré-época seguinte e o autor, nessa altura, já era jogador de futebol do União Sport Clube de Paredes.

37- NO Futebol Clube de Famalicão, auferiu, na época de 2000/2001, o montante liquido anual de €20.000,00 liquidada em 10 prestações mensais de igual valor, englobando-se nas referidas prestações os valores correspondentes aos meses de Junho e Julho  e ao subsídio de Natal, sendo que, no União Sport Clube de Paredes, começou a auferir um valor, em concreto não apurado , mas nunca inferior aquele montante.

38- O autor tina a expectativa de desempenhar a sua actividade de jogador profissional de futebol por mais alguns anos.

39- O autor necessita permanentemente de apoio de terceiros para se deslocar do leito para a cadeira de rodas e não consegue satisfazer as suas necessidades fisiológicas sem apoio.

40- Não tem capacidade para desempenhar qualquer das actividades profissionais a que, normalmente, as pessoas imobilizadas em cadeiras de roda podem aceder.

41-A Segurança Social atribuiu ao autor, para seu sustento e da sua família, uma quantia em concreto não apurada, mas nunca inferior a € 290,00 e nunca superior a € 350,00.

42- Para além daquela quantia e dos rendimentos provenientes da actividade profissional da esposa, este agregado familiar não tem outra fonte de rendimento.

43- O autor paga a prestação mensal pelo empréstimo bancário em virtude de aquisição da sua habitação o montante de €370,00.

44- Em despesas médicas e hospitalares o autor despendeu a quantia de € 8.889,29.

45- Por referência à data da propositura da acção, o autor continuará a necessitar de tratamentos médicos e paramédicos, não sendo possível, por ora, quantificar o respectivo montante.

46- Os familiares e amigos têm ajudado/auxiliado financeiramente o agregado familiar do autor.

47- Na altura do acidente e posteriormente, o autor sentiu fortes dores, as quais atingiram o grau 7 numa escala de 7 graus de gravidade.

48- O autor continuará a sentir dores para o resto da vida.

49- O autor sofreu e continuará a sofrer de um quadro de depressão.

50- O autor nasceu no dia 26 de Agosto de 1971.

51- A aquisição do direito de propriedade, por compra, do prédio urbano constituído, para além do mais, por parque aquático, com área de 118.340 m2, sito em ......, Fregim, Amarante, encontra-se registada, através da inscrição G1, a favor da ré CC, SA, desde 24-07-1991.

52- Por documento datado de 2 de Janeiro de 1998, denominado contrato promessa de cessão de exploração, a ré CC, SA, declarou prometer ceder e a ré DD, Lda, declarou prometer aceitar a cessão da exploração do Parque Aquático supra identificado.

53- A partir dessa data, a requisição das vistorias, a obtenção de licenças indispensáveis ao funcionamento do parque, o cumprimento das disposições legais em vigor durante o seu funcionamento e abertura ao público e a sua exploração, competia à ré DD, Lda.

54- Á data do acidente, a ré DD, Lda., enquanto exploradora do parque aquático em causa nos autos, era titular de licença de funcionamento relativa ao mesmo, emitida pelo IND em 5 de Junho de 2000.

55- A réDD, Lda., transferiu a responsabilidade civil relativa à sua exploração profissional para a ré BB SA, através do contrato de seguro titulado pela apólice nº 00000000 sujeito a uma franquia contratual de 10%, no mínimo de € 149,64 e com capital máximo por sinistro de por ano de € 498.800,00.

56- A garantia decorrente dessa apólice não abrange os danos resultantes de actos praticados que contrariem ou violem normas de funcionamento e de segurança, assim como recomendações dos vigilantes, nem os danos sofridos por qualquer pessoa em consequência de acto voluntário por ela praticado contra o expressamente determinado por quem de direito.

De acordo com o disposto no artigo 659,nº3 do CPC é de ter, ainda, em conta os seguintes factos:

- EE apresentou em 20-09-2001 queixa por o seu marido se encontrar internado no Hospital de S. João no Porto.

- O Ministério Público, junto do tribunal judicial da Comarca de Amarante, no dia 21-07-2001, proferiu despacho de arquivamento, “ por não se colher dos autos indícios suficientes de o acidente que determinou a paraparésia de AA ter tido origem em negligência da arguida ou de quaisquer responsáveis ou vigilantes do parque Aquático CC, SA, antes ou no decurso da utilização das instalações de diversão por aquele” – NUIPC 893/01.4 GBAMT -

- A presente acção deu entrada no tribunal judicial da comarca de Amarante no dia 23-07-2004, tendo o autor solicitado a citação nos termos do artigo 478 do CPC.”

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia – cfr. alínea b) do artigo 668.º do Código Processo Civil.

Estima o recorrente que: “[o] Tribunal a quo não apreciou os diversos enquadramentos jurídicos, em sede de responsabilidade civil, nomeadamente a hipótese de responsabilidade contratual, ou mesmo a responsabilidade pelo risco, pelo que a Douta Decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º/1/d) CPC, aplicável aos recursos ex vi artigos 716.º e 732.º do CPC, na redacção ainda aplicável a estes autos.”Uma decisão judicial (proferida por tribunal singular - sentença - ou colectivo - acórdão - é nula – cfr. artigos 668.º e 716.º, n.º 1 do Código Processo Civil - quando: b) “[não] especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”; d) “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.”  
Os actos judiciais cumprem no processo uma função pré-estabelecida e estão pré-ordenados à consecução de um determinado resultado, a prolação de uma decisão com força e autoridade jurisdicional que defina um direito litigioso. A decisão proferida deve conter-se dentro dos limites do direito rogado e em congruência com os factos alegados e as provas aportadas pelas partes. [[1]]

A congruência – principio adoptado de forma expressa no ordenamento jurídico processual espanhol (cfr. artigo 218.º da Lei de Enjuiciamento Civil) – enquanto princípio referente ao desenvolvimento do processo, expressa os limites do juízo jurisdicional, isto é, o âmbito que se deve alcançar e que a sentença não deve ultrapassar, fundamentalmente no aspecto do pronunciamento do veredicto, mas também no intelectual e lógico (fundamentos da decisão). O mencionado principio, que no ordenamento jurídico processual indígena colhe assento nos artigos 264.º e 661.º do Código Processo Civil, desdobra-se em três vertentes ou assume-se como polarizador de três proposições paradigmáticas, a saber: adequação da sentença às pretensões das partes, de maneira que aquela dê arrimada resposta a todas estas; correlação entre as petições de tutela e os pronunciamentos da decisão; harmonia entre o solicitado e o decidido.

A congruência de uma sentença atina com uma qualidade que se refere, não à relação entre si das distintas partes e elementos da sentença, mas sim à relação da sentença com a pretensão dos litigantes. Uma sentença é congruente na medida em que decide na coerência interna do processo e é incongruente, ainda que revelando coerência na sua argumentação lógico-racional, se se afasta da estrutura performativa que resulta ou decorre da composição de interesses postos em tela de juízo na causa.

Podem ocorrer incongruências quando na sentença deixam de se fazer declarações que as pretensões exigem ou omitem declarações ou decisões sobre pontos litigiosos. A doutrina alemã e austríaca falam, neste caso, no chamado “instituto do procedimento da integração”. Neste caso, se ocorre omissão de pronúncia não existe violação do princípio da congruência ou seja que a sentença não deve taxar-se de incongruente. Do que se trata é de uma sentença incompleta e o que haverá é que completá-la, mediante petição da parte. Segundo uma corrente chamar-se-ia a este vício “incongruência omissiva”, em violação do que se chama princípio da exaustividade.       

A regra ou principio da incongruência ou incoerência, que, itera-se, deve cumprir-se entre as alegações de facto, não se aplica relativamente às alegações de direito da acção ou da contestação, já que pode ocorrer divergência e desconformidade entre estas alegações e a decisão, por o tribunal não estar sujeito e vinculado às alegações jurídicas ou indicações normativas que as partes forneçam. Na verdade o tribunal está vinculado ao fundamento, não pela fundamentação, e a fundamentação inclui não só a forma de apresentar os argumentos, mas também os concretos elementos jurídicos aduzidos: os preceitos legais e os princípios jurídicos citados e o entendimento que deles as partes fazem. Consubstancia-se neste procedimento a regra “iura novit curia” – o tribunal conhece do direito e isto porque o direito não tem que ser provado; o tribunal pode e deve aplicar o direito que conhece como estime mais acertado, desde que se atenha á causa de pedir, que dizer, ao genuíno fundamento – não à fundamentação – da pretensão. O pressuposto da correcta aplicação da regra “iura novit curia”é dupla: 1.º que o tribunal respeite, na sua essência a causa petendi da pretensão do litigante; 2.º que os demais litigantes tenham podido, do mesmo passo que o tribunal, conhecer e afrontar esse genuíno fundamento da pretensão, o que equivale à observância dos princípios da igualdade das partes e da audiência ou do contraditório.      
A lei delineia e modela a estrutura da sentença – cfr. artigo 659.º do Código Processo Civil - pontuando as partes em que se estrutura e as questões que deve apreciar e decidir. Delineada a estrutura deste acto jurisdicional (por excelência), o desvio ao figurino gizado pelo legislador ocasiona uma patologia na formação e estruturação da decisão susceptível de ervar o acto de nulidade.
Entende a recorrente que o tribunal violou o principio da exaustividade ou da pronúncia cabal, por ter deixado de emitir pronunciamento sobre uma questão que tinha sido debatida ou aportada pela parte durante o processo, a saber a a omissão de pronúncia quanto à relação jurídica donde emerge a obrigação de indemnizar - contratual ou extracontratual, e nesta com presunção de culpa para o lesante ou pelo risco.
Concretamente apela a recorrente para os vícios contidos nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código Processo Civil que, preceituam respectivamente, que: “b) quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; d) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).” (Estimamos não ter a recorrente lanceado o acórdão com o estatuído na segunda parte da última das transcritas alíneas, a saber “ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, mas tão só, como expressamente refere, omissão de pronuncia quanto a questões que lhe foram suscitadas pela recorrente)           
Como já ficou aflorado supra, a omissão de pronúncia constitui uma incompletude da decisão que pode ser sanada pela integração, no acto decisório, da apreciação, pelo tribunal que a proferiu, da questão que a sentença omitiu.
A nulidade da sentença - ou do acórdão, como ora sucede - cfr artigo 716.º, n.º 1 do Código Processo -  por omissão da pronúncia quanto a qualquer das questões que a parte alegou e quis submeter á decisão do tribunal conecta-se, de forma inderrogável, com o preceituado no n.º 2 do artigo 660.º do código Processo Civil quando estatui que “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” [[2]]
Pela injunção determinativa contida no artigo 660.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil ao juiz está cominada a imposição legal de tomar conhecimento de todas as questões que tenham sido trazidas e debatidas pelas partes no processo. As questões controvertidas que tenham sido objecto de alegação por parte dos sujeitos processuais involucrados na acção e que estando contidas na causa de pedir e no pedido devem ser conhecidas pelo tribunal sob pena de não fazendo o tribunal se eximir à sua função de julgamento pleno e total. [[3]]
O pedido de solução de uma determinada questão, de facto ou de direito, solicitada a um órgão jurisdicional contém, de ordinário, um núcleo de factos cuja verificação probatória pode, ou não, vir a ser subsumível a um suposto normativo que encerra uma afirmação preceptiva e da qual o ordenamento jurídico faz derivar uma consequência jurídica. É este núcleo referencial e típico que se constitui como questão a eleger pelo tribunal para solução do litígio que opõe dois ou mais sujeitos. Na sustentação dos factos que suportam as questões de direito que um litigio encerra soem as partes aduzir razoamentos integradores e justificantes do sentido da acção que os factos pretendem traduzir, explicações das próprias acções no contexto em que foram realizadas e enquadramentos de concatenação com o sentido normativo que estimam assistir-lhe e estar subjacente à justeza das acções realizadas.
As primeiras constituem-se como lídimas e próprias questões que as partes pretendem que o tribunal venha a conhecer, enquanto que as segundas devem ser assumidas como elementos adjuvantes de compreensão, de interpretação e integração que as partes trazem a tribunal numa visão individual que pretende justificar a sua própria acepção da realidade factual e jurídica de que julgam possuir razão. Torna-se este núcleo argumentativo num património particular do sujeito que o produz e impulsiona sem outro efeito que não seja fornecer ao tribunal uma visão privada e sectária dos factos essenciais que devem constituir o primeiro núcleo de questões indicado. Este núcleo ou veio de argumentação deve, porque tributário de uma visão particular e interessada dos factos que constituem a questão essencial de direito, quedar arredado da pronúncia que, na decisão, o juiz venha a efectuar para solução do litígio, ainda que possam servir como método argumentativo, de afirmação ou refutação, do iter lógico-indutivo que há-de cevar a fundamentação de direito da decisão.    
Deve, pois, na decisão ocorrer uma congruência entre as questões que o sujeito trouxe a juízo para obter uma resolução jurisdicional e aquelas que efectivamente devem ser resolvidas pelo tribunal. Esta congruência ou necessidade de coincidência significativa entre o que é pedido e o que é solucionado traduz-se numa concordância de decisão jusprocessual que torna o veredicto assumido conforme às exigências que devem vertidas numa sentença. [[4]] Ou dizendo de outra maneira para que a decisão adquira pregnância e do mesmo passo validade formal torna-se necessário que se confira uma identidade entre o que é pedido e o que é julgado, entre o que o tribunal elegeu e definiu, na interpretação que fez do conjunto de factos alinhados pelos sujeitos nas respectivas peças processuais, com o que a final veio a tomar conhecimento e a dar pronúncia. Na eleição das questões de direito o juiz não pode ir além do que está contido nos factos aportados pelos sujeitos, mas não está limitado pela enunciação que delas façam as partes.      
A questão essencial que o autor trouxe a tribunal, traduzida numa factualidade que pretende inculcar a responsabilidade das rés pela ocorrência de uma situação que ocasionou um estado lesivo no corpo do autor, foi a premência da obrigação de indemnizar a cargo das imputadas responsáveis pela produção do resultado danoso ocorrido na esfera pessoal do autor. Em rectas e lhanas razões, o autor pretende ser ressarcido pelos danos que, em seu juízo terão sido ocasionados por um deficiente e contravencional estado em que se encontrava a piscina onde teria que desaguar depois de ter percorrido o espaço do escorrega que se tinha disposto a efectuar. É desta factualidade que emerge a questão de direito que uma vez provada, se provada, faria surgir a obrigação de indemnizar por parte das Rés com base na responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana.

Como se sabe o ordenamento processual português consagrou o princípio da substanciação que, “[segundo] o qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, mas antes será necessária a indicação especificada do facto constitutivo desse direito (cf. Prof. A. Reis - Código do Processo Civil Anotado, vol. II, 3. edição, página 356; Prof. Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, página 297; Prof. Castro Mendes Manual do Processo Civil -1963,página 299).” [[5]/[6]]
Alegados os factos constitutivos do direito vulnerado e que o demandante pretende ver reintegrado e refeito através de uma acção judicial, cabe ao tribunal fixar a qualificação do direito – cfr. artigo 664.º do Código Processo Civil.  Daí que não seja curial que o peticionante exerça a função de qualificação dos factos e com isso pretenda forçar o tribunal a conhecer de todas as questões de direito que, eventualmente, tenha eleito como qualificadoras dos factos que alegou. Os factos alegados balizam e condensam as questões de direito e ao tribunal cabe eleger, itera-se, a(s) questão(ões) de direito que integram o núcleo jurígeno que o tribunal deve conhecer na sentença.
Percorrida a petição inicial, constata-se que o autor alegou factos que estima terem vulnerado a sua integridade física, imputando às rés a culpa por não terem curado de em manterem a piscina em condições que impedissem o resultado danoso que descreve – maxime artigos 70.º a 75.º da petição inicial.
O autor não fez derivar a responsabilidade do incumprimento de um contrato (atípico) que tivesse celebrado entre si e as demandadas exploradoras do parque de diversões, nem se descortina que na petição tenha procurado imputar a responsabilidade a qualquer funcionário das demandadas, que nem sequer identifica, pelo que a pretensão do autor em que o tribunal conhecesse da responsabilidade do comitente ou da responsabilidade não colhe suporte factual nos factos alegados.
Ao não ter conhecido destas questões, enunciadas pelo autor nas conclusões da apelação e agora também na revista, mas, itera-se, sem suporte na factologia descrita na petição, inicial o acórdão não violou qualquer dispositivo jusprocessual, designadamente a alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código Processo Civil. E não infringiu o tribunal recorrido qualquer disposição às regras que regem para o conhecimento pleno das questões de direito, pela singela razão que lhe estava vedado pela obrigação legal que lhe está cometida de se cingir aos factos alegadas pelas partes – cfr. segunda parte do inciso contido no artigo 664.º do Código Processo Civil.
O tribunal recorrido, a mais, ou para além, do que havia acontecido no tribunal de 1.ª instância, conheceu da questão de direito inserta no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, correctamente, por esta questão ter sido aventada pelas rés nas respectivas contestações.
Não tinha o tribunal recorrido, itera-se, que tomar conhecimento, por incumprimento, de um eventual contrato (atípico) que haja celebrado com as demandadas, pela singela razão, como se asseriu supra, os facto alegados não sustentam ou habilitam o tribunal a eleger essa questão como questão decidenda e que, portanto, devesse ser objecto de pronúncia.                               
Não cobra acolhimento, pelas expostas razões, a invocada nulidade do acórdão revidendo, pelo que queda desatendida.   

II.B.2 – Responsabilidade civil – Pressupostos – Actividade Perigosa – Responsabilidade Objectiva – Responsabilidade Contratual.   

O autor ancora a responsabilidade das rés na deficiente manutenção da estrutura que permitia a actividade lúdica de escorregamento de uma pessoa por um espaço abaulado (concavo) por onde corria água e que desaguava numa piscina. Consubstancia-se, assim, na negligência dos operadores ou zeladores do parque – que o autor não identifica numa clamorosa deficiência técnico-jurídica da formulação da causa de pedir (sibi imputat) – a causa fundante do pedido de indemnização que formula. A obrigação de indemnizar, como se intentou demonstrar supra, fá-la o autor radicar na culpa, que o autor imputa às demandadas e não a qualquer comissário, individualmente considerado, donde só a titulo de responsabilidade civil extracontratual se vislumbra a possibilidade de assacar qualquer tipo de responsabilidade às demandadas.

Como se alcança da causa de pedir, o autor substancia a alegação factual na deficiente planificação e desenvolvimento do processo de condução de água pelo escorrega e de nível de água da piscina. Para o autor, depois de ter falhado a água no abastecimento do caudal, adequado, no escorrega, dever-se-ia ter aguardado para que o nível de água ou de enchimento da piscina onde os escorregas fazem precipitar os utilizadores atingisse um determinado nível de modo a permitir uma entrada sem problemas para aqueles que utilizassem os referidos escorregas.

Faz o autor derivar o seu pedido de uma causa de pedir cujos pressupostos ancoram na verificação de um facto ilícito (note-se, aliás que o próprio autor faz demonstração disso quando interpõe a acção poucos dias de expirar o prazo de três (3) anos para a prescrição, pedindo a citação prévia das demandas), no caso a deficiente e desadequada aptidão do escorrega, quiçá em contravenção com as regras orientadoras de ajustada utilização, da culpa da entidade a quem competia zelar por uma correcta manutenção e adequação dos níveis de água nos meios utilizados no escorregamento das pessoas até á piscina, e, concasualmente, por virtude dessa acção, na verificação de um resultado danoso, a saber a violação de um direito pessoal, o direito á integridade física do autor. O resultado danoso, teria ocorrido, assim, pela imputada violação dos deveres de cuidado das rés, pelo nexo de causalidade que reputa existir entre o facto ilícito, a culpa e o evento danoso ou resultado, e finalmente a imputação do facto ilícito às entidades que fazem a exploração da actividade lúdica.

Nesta acepção os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana dever-se-iam ter por verificados se o autor tivesse logrado demonstrar a culpa, efectiva ou presumida de qualquer das rés, o que não aconteceu.

Na verdade resulta da matéria de facto dada como provada que o autor iniciou o processo de escorregamento pelas vias montadas para o efeito, em posição de sentado (com as pernas para a frente) tendo a determinado momento da descida invertido a posição e passado a processar o deslizamento, primeiro de joelhos e depois em posição ventral – cfr. pontos 6 a 8 da decisão de facto, a que corresponde a resposta dos quesitos 14, 28 e 73 da respectiva base instrutória )fls. 1412). Mais ficou comprovado que existiam painéis indicadores da forma e modo como os escorregas deveriam ser utilizados, interditando o deslizamento em posição ventral e o mergulho na piscina, que esses painéis estavam colocados em posição de passagem obrigatória para os utilizadores e antes de chegarem à zona do inicio da descida – cfr. pontos 11 a 17 da decisão de facto. Ficou ainda provado – resposta aos quesitos 25 e 72 (fls. 1412, bem assim fls. 1325 e 1326) – que depois de ter falhado a luz e com isso ficado interrompido o abastecimento de água aos escorregas e depois de regularizada a situação, “na altura em que o autor se preparava para descer pelo escorrega, encontrando-se junto do mesmo um vigilante, aquele autor providenciou por se colocar na posição de sentado, com as pernas para a frente.”       

Em nosso juízo, e em vista da matéria de facto dada como adquirida, e malgrado as consequências permanentes que advieram para o autor, não inculcam a verificação dos pressupostos da responsabilidade extracontratual da parte das entidades exploradoras do parque.

  Acedendo a apreciar a questão numa perspectiva da qualificação da utilização de pistas de escorrega com desaguamento numa piscina como consubstanciando uma actividade perigosa, estamos em crer, acertando com a posição que subscrevemos no douto acórdão desta secção de 12-01-2012, relatado pelo Conselheiro Gregório Jesus, que, em face da decisão de facto, não se poderá deixar de imputar ao autor a culpa na produção do resultado danoso.

No citado aresto que, data vénia, nos permitimos transcrever, ponderou-se que: “"[neste] n.º 2 estabelece-se o seguinte: “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

A lei estabelece neste caso uma inversão do ónus da prova, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma actividade perigosa. É este que tem de provar, para se eximir à responsabilidade, que não teve culpa na produção do facto danoso.

Esta presunção de culpa assenta sobre a ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano, daí que, quanto aos danos causados no exercício de actividades perigosas, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar.

O carácter perigoso das actividades impõe um especial dever de diligência e “afasta-se indirecta, mas concludentemente, a possibilidade do responsável se eximir à obrigação de indemnizar, com a alegação de que os danos se teriam verificado por uma outra causa... mesmo que ele tivesse adoptado todas aquelas providências”[7].

Contudo, não define a lei o que deva entender-se por actividade perigosa, limitando-se a fornecer ao intérprete uma directiva genérica para sua identificação, apenas admitindo que ela possa derivar da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios empregues, nem sendo viável um conceito que abarque todos os casos.

A recorrente sustenta que a exploração de um parque aquático, dotado das necessárias condições de segurança, não pode ser considerada actividade perigosa.

Retratemos, então, com breves pinceladas, em que termos se tem pronunciado, a este título, alguma da mais autorizada doutrina nacional e jurisprudência.

Vaz Serra, apoiado pela doutrina italiana que cita, define como actividades perigosas as “que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades”[8].

Segundo Almeida Costa, deve tratar-se de actividade que, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, “tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral[9]. O que qualifica uma actividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que tanto pode radicar na sua própria natureza como na natureza dos meios utilizados.

Por sua vez, Antunes Varela sublinha a ideia de que “o carácter perigoso da actividade (causadora dos danos) pode resultar, como no texto legal (art. 504º, 2), se explicita, ou da própria natureza da actividade (fabrico de explosivos, confecção de peças pirotécnicas, navegação aérea, etc.) ou da natureza dos meios utilizados (tratamento médico com ondas curtas ou com raios X, corte de papel com guilhotina mecânica, tratamento dentário com broca, transporte de combustíveis, etc.)[10].

Também, como se considerou no Acórdão deste Supremo de 29/04/08, no Proc. nº 08A867, disponível no ITIJ, “A perigosidade a que alude o art. 493º, nº2, do Código Civil é uma perigosidade intrínseca da actividade exercida, quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e não em função dos resultados danosos, em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade ou risco dessa actividade”.

Parece, pois, poder inferir-se que há-de ser perante cada caso concreto, ponderando todas as circunstâncias e variáveis, que a actividade perigosa se definirá[11]. Se casos há em que é manifesta (ex. fabrico de explosivos e de material pirotécnico, transporte e comercialização de combustíveis e outras matérias inflamáveis, navegação aérea), outros existem em que ela se dilui na perigosidade do quotidiano que caracteriza quase todas as actividades hodiernas e acompanha cada cidadão na sua rotina diária.

Assim, e tomando posição perante este caso concreto, decerto que na maior parte das vezes não se possa considerar perigosa para efeitos do aludido preceito a exploração duma piscina. Não divergimos do entendimento perfilhado no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 13/10/09, Proc n.º 318/06.9TBPZ.S1, no ITIJ, a que se arrima a recorrente, segundo o qual “não…parece que a simples actividade de exploração de uma piscina envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral.

Tal como num ginásio se podem praticar diversas disciplinas, umas mais simples e outras mais complicadas, envolvendo estas mais riscos do que aquelas – a prática de um qualquer desporto envolve sempre um perigo de dano – não aceitamos que se considere a prática da natação, melhor a exploração de um estabelecimento comercial cujo objecto é a natação, como uma actividade perigosa.[12]

Mas, convenhamos que realidade bem diferente é o funcionamento de um parque aquático, composto por um complexo de piscinas, neste caso quatro, com escorregas de água, com várias pistas, em duas delas, por natureza não especialmente vocacionado para a prática da natação usual e relaxante, aberto ao público com uma frequência que, em regra, excede em muito a ocupação de uma vulgar piscina, por vezes mesmo em sobrelotação, e concorrido maioritariamente por jovens em busca de alguma adrenalina, predispostos a condutas irreverentes, bem como por muitas crianças, grande parte das vezes não vigiadas, em actividades aquáticas, elas mesmas de risco, com empurrões, correrias, e brincadeiras nem sempre ajustadas.

Outrossim, esta actividade, pelas características de algumas das infraestruturas utilizadas, numa mescla e simbiose de diferentes elementos que se comportam de diversos modos, uns duros (escadas, rampas e bordas das piscinas), outros moles (água e relvados), outros ainda escorregadios (áreas marginais às piscinas, sobretudo os pavimentos que as circundam, e escorregas), e pela própria concepção das actividades e natureza dos equipamentos (grelhas de protecção que por algum facto imprevisto ou estranho deixem de cumprir a sua função, e condutas de aspiração, umas e outras com maiores dimensões que o habitual), envolve uma especial aptidão produtora de danos.

É tudo isto que explica que estes espaços estejam submetidos a especiais e detalhados regulamentos, não só de concepção e construção como de conduta e segurança dos utentes a fim de evitar acidentes, e não apenas tendentes a possibilitar o seu tranquilo e confortável uso. Tanto assim, como se dá nota na decisão da 1ª instância, que após várias condenações do Estado Português por omissão legislativa, foi publicada legislação específica referente à instalação e funcionamento dos recintos com diversões aquáticas, bem como o Regulamento das Condições Técnicas e de Segurança dos Recintos com Diversões Aquáticas, respectivamente, Dec. Lei nº 65/97 de 31/03 e Decreto Regulamentar nº 5/97 da mesma data, cujo Capítulo IV, dirigido aos Meios de Segurança, é um inequívoco sinal dos graves riscos que os parques aquáticos envolvem para a saúde e segurança dos seus utentes.

Sem dúvida, pois, que um complexo de piscinas da natureza do referido nos autos pode criar um perigo especial para os utentes desse serviço, mas muito particularmente um escorrega de 40 metros de comprimento, composto por quatro pistas, num parque aquático para utilização por crianças e adolescentes iniciais, como era o caso do autor então com 11 anos de idade, é uma actividade perigosa em função da natureza dos meios utilizados.

Por isso, consideramos que a actividade própria da exploração dum parque aquático deve ser considerada, por regra, perigosa para efeitos do preceito citado.”

A caracterização de uma actividade como perigosa, como vem afirmado em diversos acórdãos deste tribunal, não está definida na lei pelo que: “[segundo] Almeida Costa, deve tratar-se de actividade que mercê a sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral. O que qualifica uma actividade como perigosa será a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão que tanto pode radicar na sua própria natureza como na natureza dos meios utilizados.

Por isso, a perigosidade de uma actividade há-de ser apurada, caso a caso, perante as circunstâncias concretas.” – cfr. Acórdãos de 10-12-2009 e 21-04-2010, ambos relatados pelo Conselheiro Alberto Sobrinho. No mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal Justiça de 30-11-2010, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, onde se considerou constituir actividade perigosa, neste sentido concreto, o exercício de ginástica (salto mortal) sem a correcta e especializada assistência do professor de ginástica).

O dano causado por uma actividade perigosa, na definição e caracterização ensaiada pelo Professor Antunes Varela, in “Obrigações em Geral”, pág. 565, poderá resultar “[ou] da própria natureza da actividade (fabrico de explosivos, confecções de peças pirotécnicas, navegação área, etc.) ou da natureza dos meios utilizados (tratamento médico com ondas curtas ou com raios X, corte de papel com guilhotina mecânica, tratam    dentário com broca, etc.)”. No mesmo sentido vai o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2008, quando refere que: “A perigosidade a que alude o art. 493.º, n.º2, do Código Civil é uma perigosidade intrínseca da actividade exercida, quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e não em função dos resultados danosos, em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade ou risco dessa actividade”.

Procurando uma caracterização/definição minimamente arrimada com as noções doutrinárias, afigura-se-nos que o enquadramento de um escorrega na categoria de actividade perigosa, cumpridas que estejam todos os critérios de segurança na instalação, de adequação dos dispositivos às regras técnicas de produção, de manutenção, de condições para o escorregamento, notadamente os níveis de água existentes no escorrega e na piscina, pode ser questionável. Na verdade, na sociedade actual caracteriza-se por exponenciar as situações de risco ou de perigo, sendo que esse risco terá de ser sempre perspectivado como o risco permitido ou risco tolerável, considerando o padrão de evolução societária e as regras de prudência que em face dessa evolução, um individuo historicamente colocado há-de adoptar para conformar a sua conduta interrelacional com as condições vivenciais em que tem conduzir a sua vida. Vale por dizer que, a sociedade actual deixou de poder, como acontecia nos estádios anteriores, de assegurar ao indivíduo padrões de segurança (institucionais) mínimos com que possa previsionar e prospectivar a sua vida. O risco tornou-se um elemento ontológico e invadeável da vida do indivíduo em sociedade (Veja-se para uma abordagem sociológica, Ulrik Beck, “Sociedade de Risco”). Decorre desta concepção da sociedade que o individuo, na sua adaptação ás transformações e evoluções societárias, enformou a sua vivência a novas formas de risco (material), admitindo e aceitando novos meios de produção de risco, desde que salvaguardadas regras de segurança consideradas passíveis de assegurar uma fruição estabilizada e indemne a criação de níveis de perigo incomportáveis com a lesividade de valores como a integridade física e psíquica. Os níveis de tolerância que esta nova acepção da vida adquiriu espelham-se em quase todos os sectores da vida societária e constituem hoje um factor de padronização do vivenciar sócio-pessoal.   

Do que se disse, de forma perfunctória, quanto a uma nova realidade sócio-pessoal de aceitação de níveis de risco permitidos é susceptível de colocar em crise algumas das antigas concepções de actividade perigosa ou pelo menos mitigar e matizar meios de assumpção de risco que poderiam ser susceptíveis de ser geradoras desse tipo de actividade.

Seja, porém, como for e numa abordagem conceptual, pensamos poder qualificar uma actividade como a que era explorada pelas rés como consubstanciando um a actividade perigosa, pelo risco intrínseco que pode envolver uma vez desencadeada a descida e a impossibilidade que qualquer imprevisto pode despoletar e perverter uma descida normal e desassoreada.

Ainda que assim, não fosse, sempre a utilização de uma coisa imóvel, com as características de um escorrega utilizado pelo autor poderia condensar uma presunção de culpa nos termos do n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil, nomeadamente, no segmento primeiro “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar (…) responde pelos danos que a coisa ou animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.” Sublinhado nosso.

  Em qualquer das perspectivas por que se enfocasse a questão sempre ela se viria a converter numa inversão do ónus da prova, a cargo das demandadas, decorrente de uma presunção de culpa que a exploração de uma actividade sujeita a riscos acrescido e imprevisíveis importaria, nos termos do citado artigo 493.º do Código Civil.  

Em revisitação das regras em matéria probatória, que em face a esta qualificação quedam subvertidas, dir-se-á que se em matéria de responsabilidade civil extracontratual a culpa do lesante, se constitui como elemento constitutivo do direito à indemnização (art. 483º, nº 1), sendo ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão. No entanto, existindo uma presunção legal de culpa, como é o caso de a lesão ter ocorrido por virtude do exercício de uma actividade perigosa, ocorre uma inversão do ónus da prova, que deixa, assim, de competir ao lesado para passar a recair sobre o autor do dano (arts. 342º, nº 1, 344º, nº 1 e 487º, nº 1).

Respingando, data vénia, o que a propósito da inversão do ónus da prova foi escrito no acórdão supra transcrito: “[observa] Meneses Leitão que a responsabilização prevista neste artigo, “parece ser estabelecida a um nível mais objectivo do que o que resulta das disposições anteriores, uma vez que, além de não se prever a ilisão da responsabilidade com a demonstração da relevância negativa da causa virtual, parece-se exigir ainda a demonstração de um grau de diligência superior à das disposições anteriores, uma vez que, em lugar da simples prova da ausência de culpa (apreciada nos termos do art.º 487º, nº 2), o legislador exige a demonstração de que o agente “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir” os danos, o que parece apontar para um critério mais rigoroso de apreciação da culpa, ou seja, para um critério da culpa levíssima”

Significa tal que nas situações enquadráveis nesta norma a presunção de culpa do agente é ilidida pela demonstração de que actuou não apenas in abstracto, como teria actuado o bom pai de família pressuposto no art. 487º, nº 2, uma pessoa medianamente cautelosa e atenta em face do condicionalismo próprio do caso concreto, mas, mais do que isso, empregando todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar os danos. Por isso, se diz que o caso previsto neste art. 493º, nº 2 representa uma responsabilidade subjectiva agravada ou objectiva atenuada, de modo tal que o lesante só fica exonerado quando tenha adoptado todos os procedimentos idóneos, segundo o estado da ciência e da técnica ao tempo em que actua, para evitar a eclosão dos danos.”

Como resulta da matéria de facto dada como adquirida, as entidades exploradoras do parque de diversões, possuíam pessoas a vigiar os escorregas – encontrando-se uma quando o autor iniciou a descida – e possuíam em locais visíveis por todos aqueles que pretendessem utilizar esses meios de diversão a forma e o modo como a descida se devia efectuar – cfr. resposta positiva aos quesitos 16.º a 20.º, notadamente os quesitos 16.º a 19.º, que perguntavam, em síntese, acerca da: (existência de painel indicador da proibição de utilização do escorrega em posição ventral e de proibição de mergulhar no tanque (16.º); do posicionamento do painel em que eram feitas estas prescrições (em sitio visível de passagem de pessoas e antes de chegarem ao inicio da descida, sendo que para iniciar descida, o painel fica defronte para o utilizador) (17.º); se o parque possuía regulamento interno, donde constasse a proibição dos utentes mergulharem no tanques de recepção (18.º); e que era proibida a adopção da posição ventral (19.º). Pensamos não ser exigível que as entidades exploradoras tivessem que adoptar outros meios de aviso e de aconselhamento para além daqueles que, legalmente lhe são exigidos. Não se afigura exigível que as demandadas devessem promover mais quaisquer acções de aconselhamento e instrução do que aqueles que estavam colocadas em locais bem visíveis do parque e ainda pelo posicionamento de um vigilante junto ao ponto de inicio de descida do escorrega, que verificava a posição em que esta era iniciada.

Ao invés, e infaustamente para o autor, este desrespeitou, como se comprova pela resposta aos quesitos 14.º, 28.º e 73.º - “Provado apenas que o autor, após ter descido uma parte do percurso do escorrega, em concreta não apurada, alterou a posição em que seguia, passando a deslizar de joelhos e depois deitado de cabeça para a frente, tendo deste modo mergulhado na água” - todas as regras e avisos existentes no parque, tendo iludido o vigilante com o inicio de descida em posição correcta para ao longo do percurso ter alterado a sua posição e passado a descer de forma contravencional ao estabelecido. É um facto que nestas circunstâncias sempre estaria inviabilizada uma intervenção do vigilante, dado que depois de iniciada a descida se torna impossível qualquer tentativa obviar a uma desenlace fatal ou potencialmente lesivo para a saúde e integridade física do agente que tenha subvertido as regras de descida, tal como a boa técnica aconselha.         

A presunção de culpa estabelecida contra as demandadas não é compaginável com uma culpa ostensiva e uma actividade contravencional de quem beneficia de uma presunção de culpa a seu favor, sob pena de ocorrer uma perversão desajustada e injusta dos deveres do explorador de actividade perigosa. Se este tomou todos os cuidados que lhe eram exigíveis para prevenir situações as situações de perigo potencial que a actividade encerra e desencadeia, nomeadamente procedendo á afixação de cartazes contentores das regras, formas e modos de utilização dos dispositivos reputados perigosos, não lhe é exigível que, para além de circunstâncias anormais a que deva acorrer – como terá sido o caso de interrupção do funcionamento dos escorregas por ausência de suficiente caudal de água – estabelecer um sistema de vigilância pessoalizado e visando o concreto comportamento de todos e cada um dos potenciais utilizadores.

Temos, assim, para nós que o autor infringiu as regras que o parque estabeleceu para a utilização do dispositivo de escorrega e com a sua conduta, de forma imprevidente, imprudente e negligente pelo que só a esta conduta deve ser atribuído o resultado danoso verificado.

A atribuição da culpa ao lesado, faz com que se deva, em nosso juízo, manter a decisão das instâncias, malgrado, itera-se, as infaustas, duradouras e irreversíveis consequências que advieram para o autor.                        

Tal como se depreende do que ficou dito supra não se aprecia a culpa com base na presunção da culpa contratual, dado que se afirma uma causa de pedir e um pedido tendo por base um facto ilícito, culposo e não qualquer contrato que haja sido celebrado entre o autor e as entidades exploradoras do parque. Ou pelo menos a ocorrência de um negócio jurídico que envolvesse contribuições recíprocas não vem substanciado na causa de pedir, pelo que não pode aqui ser apreciado.   

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar a revista;

- Condenar o recorrente nas custas do recurso, sem prejuízo dos benefícios judiciários de que tem vindo a usufruir.

Lisboa, 10 de Julho de 2012

Gabriel Catarino (Relator)
António Joaquim Piçarra
Sebastião Póvoas

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[1] Cfr. para maiores desenvolvimentos, de la  Oliva Santos, Andrés e Diez-Picazo Giménez, Ignacio, in “Derecho Procesal Civil - El proceso de declaración”, Editorial Universitária Ramón Areces, 3.ª edición. 2008, págs. 445-466
[2] Cfr. Alberto dos Reis, in “Código Processo Civil Anotado”, Vol. V, págs. 52-58 e 142-143; Jacinto, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Processo Civil”, Vol. III, Lisboa, 1972, pág. 247 e 228.
[3] Jacinto, Rodrigues Bastos, in op. loc. cit., pág. 228.
[4] No sentido que se advoga vejam-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/01/05, 5/05/05, e 31/05/05, respectivamente, Proc. 04B4251, 05B839 e 05B1730, e disponíveis in www.dgsi.pt . Ainda em recente Acórdão desta secção em que o aqui relator interveio como 2.º adjunto se escreveu a propósito da difusa percepção em que estas duas realidades conceptuais, se assim se podem qualificar, “[E]sta nulidade é uma constante nos recursos, originada na confusão que se estabelece entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. São, na verdade, coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que deva conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento, ou razão produzida pela parte.
Com efeito, quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão pois a expressão “questões” referida nos arts 660º, nº 2 e 668º, nº 1, al. d), do CPC não abrange os argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.
Sendo o espaço de censura da recorrente o acima mencionado, o problema que ela aqui coloca nada tem que ver com uma pretensa omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença nos termos do artigo 668.º, n.º 1, do CPC acima caracterizada.” - Acórdão deste Supremo de 21-06-2011, relatado pelo Conselheiro Gregório de Jesus. 
[5] Cfr. a este propósito o Ac. do STJ de 05-11-2009, in www.stj.pt.

[6] Ainda relativamente ao principio do dispositivo e o correlato principio da substanciação o acórdão deste Tribunal de 02-02-2010 (relatado pelo Conselheiro Sebastião Povoas). “O seu conceito (da causa de pedir) é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão formulada pelo demandante, sendo especificada com alegação de factos ou circunstâncias concretas ou individualizadas.

“E, de acordo com o artigo 264.º do Código de Processo Civil “às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as suas excepções’ (n.º 1), sendo que o julgador ‘só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º, de atender, ainda que oficiosamente, aos factos instrumentais que resultem da instrução e da discussão da causa e, finalmente, os factos que sejam ‘complemento ou concretização de outros’ (...) ‘desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar’ e garantido, que seja, o contraditório (n.º 2 e 3).
[7] Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, I, 9ª ed., pág. 616.
[8] In “Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades”, BMJ, n.º 85, pág. 378, em nota.
[9] Direito das Obrigações, 10ª edição, pág. 587/588.
[10] Loc. cit., págs. 616/617.
[11] A questão da perigosidade prevista neste preceito foi objecto de particular atenção no que respeita aos acidentes de circulação terrestre, pelo Assento nº 1/80 de 21/11/1979, publicado no DR, I Série, de 29/01/80, e no BMJ n.º 291, pág. 285, que se pronunciou em sentido negativo.
[12] Tese igualmente acolhida no Acórdão deste STJ de 6/05/10, Proc. nº 864/04.9YCGMR, no ITIJ.