I - O processo de decisão sobre a execução de MDE comporta 3 fases: a apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado (conteúdo e forma) ─ art. 16.º, n.ºs 2 a 4, da Lei 65/03, de 23-08; a detenção e audição da pessoa procurada ─ arts. 16.º, n.ºs 5 e 6, 17.º e 18.º; a decisão sobre a execução do MDE ─ arts. 20.º e 22.º.
II - Só depois do juiz se certificar da legalidade do MDE, com verificação dos pressupostos formais e materiais que a lei exige para a validade e exequibilidade do mesmo, pode ordenar a sua entrega ao MP para que providencie pela detenção da pessoa procurada.
III - O conteúdo do mandado de detenção, concretamente a descrição da natureza e qualificação jurídica da infracção, bem como a descrição das circunstâncias em que foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação nela assumido pela pessoa procurada, são imprescindíveis para que a mesma possa pronunciar-se sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade e, em último termo, sobre se deseja que seja executado o mandado de detenção ou, ao invés, opor-se à sua execução.
IV - Mas, ao contrário do que entende o recorrente, a lei não prevê que do MDE para efeitos de procedimento criminal, constem as circunstâncias ou os fundamentos, mais concretamente os indícios, nos quais a autoridade emitente baseia o pedido de detenção e entrega, pois, conforme se decidiu no Ac. STJ de 16-02-2006, Proc. n.º 569/06, “a execução de um mandado de detenção não se confunde com o julgamento de mérito da questão”.
V - Como a emissão e a execução do MDE mais não constituem que o exercício dos instrumentos do Estado de direito em matéria de cooperação judiciária europeia, com vista à administração da justiça penal, mostra-se desprovida a alegação do recorrente de que o MDE contra si emitido constitui uma situação integradora de abuso de direito.
VI -Conquanto o abuso do direito seja insusceptível, sem mais, de aplicação em matéria de cooperação judiciária internacional, tanto mais que este instituto de direito civil constitui um limite normativo imanente aos direitos subjectivos, certo é que só se verifica quando o direito é exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social ou quando se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.
VII - De acordo com o art. 5.º, n.º 1, al. f), do CP, aditado na reforma de 1998, que introduziu o princípio da administração supletiva da lei nacional, o Estado tem competência para punir os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros que se encontrem em Portugal, mas que não podem ser extraditados ou entregues em execução de MDE, assim se evitando a impunidade destes factos.
VIII - Só em caso de impossibilidade legal de execução de MDE é que os tribunais portugueses dispõem de competência para punir factos cometidos fora do território nacional por estrangeiro, o que equivale por dizer que o procedimento criminal só poderia ser exercido em Portugal contra o recorrente no caso de o MDE contra ele emitido não pudesse ser executado, o que não se verifica.
IX -Ao MDE subjazem os princípios do reconhecimento mútuo e da confiança, segundo os quais a decisão que é tomada por uma autoridade judiciária competente em virtude do direito do Estado membro de onde procede o mandado é aceite e reconhecida tal como foi proferida, tendo um efeito directo e pleno sobre o conjunto do território da União. Por isso, a circunstância da pessoa procurada entender que não praticou os factos delituosos é irrelevante para o Estado receptor, que só tem de conhecer da conformidade legal do próprio mandado no sentido de o poder executar, pois a decisão é do Estado que o emitiu e é perante ele que aquela tem de exercer os seus direitos de defesa relativos ao procedimento criminal e não no âmbito do MDE.
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Através de difusão no âmbito do sistema Schengen, o Gabinete Nacional Sirene comunicou ao Grupo Operativo da Polícia Judiciária a existência de um mandado de detenção europeu inserido naquele SIS, contra o cidadão georgiano AA, com os sinais dos autos.
Na sequência dessa comunicação procedeu-se à detenção da pessoa procurada, a qual foi conduzida ao Tribunal da Relação Évora, onde se processou a sua audição, na sequência da qual foi restituída à liberdade, com sujeição a termo de identidade e residência e à obrigação de apresentação semanal no posto da Polícia de Segurança Pública de Portimão.
No acto de audição foi requerida a fixação de prazo para oposição ao mandado e apresentação de meios de prova, com declaração de não renúncia ao princípio da especialidade.
Apresentada a oposição no prazo concedido, à qual respondeu o Ministério Público, o tribunal, mediante acórdão, deferiu a execução do mandado de detenção europeu para comparência de AA perante as autoridades judiciárias belgas, tendo em vista o exercício de procedimento criminal contra o mesmo por crime de furto com violência[1], cometido no dia 26 de Novembro de 2009 em Rotselaar, Bélgica, sob condição de a autoridade judiciária competente belga permitir que o detido cumpra em território português a pena que eventualmente lhe venha a ser aplicada.
Inconformado, interpôs recurso o detido.
São do seguinte teor as conclusões extraídas da motivação de recurso[2]:
«I. Vem o recorrente pugnar por serem consideradas insuficientes as informações comunicadas pelo Estado emissor, no que tange ao modus e grau de participação, cf. previsão na alínea e) do n° 1 do art.° 3º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, especialmente quando em confronto com as provas apresentadas pelo requerido, nomeadamente o facto de no mesmo dia se encontrar a trabalhar em Portimão) daí dever ser determinada solicitação ao Estado Belga de informações complementares, pertinentes e mais concludentes, cf. previsão do art.° 16° n° 2 e 22° n° 2 da mesma citada Lei, nos termos e pelas razões descritas acima na Motivação - articulados 1 a 6.
II. Vem o recorrente pugnar igualmente pela recusa da execução do mandado de detenção europeu, por qualquer decisão que a permita, necessariamente integrar, in casu, a figura de abuso de direito, cf. art.° 334° CC, tal qual se demonstrou, com o consequente afastamento da aplicação das normas contidas na Lei 65/2003, que pela tese que se subscreve se torna ilegal, logo ilegítima, comunicando-se essa decisão, após trânsito em julgado, à autoridade judiciária de emissão, no mais curto prazo, solução que entende ser a que melhor se quadraria com a justiça do caso e a concomitante aplicação ao mesmo, nos termos e pelas razões descritas acima na Motivação - articulados 7 a 34.
III. Tanto mais que o recorrente está perfeitamente identificado, assim como se sabe com certeza o seu paradeiro, o que permite ao Estado Belga lograr alcançar a almejada inquirição do requerente pela via da cooperação penal comunitária e/ou internacional, através das autoridades judiciárias nacionais.
IV. E assim não causar danos profundos ao recorrente, ao invés dos que qualquer outra solução inevitavelmente acarreta e já não reparará.
V. Não devendo a Lei 65/2003 ser aplicada, porquanto, assim não sendo, a execução do MDE integrará uma notória situação de abuso de direito, em termos clamorosamente ofensivos da Justiça, conduzindo a sua aplicação a uma intolerável ofensa do nosso sentido ético-jurídico.
VI. O que configura uma situação de todo ilegal e ilegítima, que a ordem jurídica deve rejeitar, por se entender violado o que dispõe o art.° 334° do Código Civil, de acordo com a mais adequada subsunção dos factos ao direito no presente caso, tal qual se deixou expresso na motivação.
VII. A não ser entendido como se reclama, e a haver determinação no sentido do deferimento e da execução do MDE emitido pelas autoridades judiciarias belgas, deve a entrega ser suspensa, para que o requerido possa ser sujeito a procedimento criminal em Portugal e nele se possa defender cabal e justamente, e tido o Tribunal Judicial de Portimão como o competente para o pertinente procedimento, nos termos e pelas razões descritas acima na Motivação - articulados 35 a 46.
VIII. Sendo que a peticionada suspensão encontra eco legal no art.° 31° n° 1 da predita Lei 65/2003, conforme aliás se descreveu na motivação.
IX. Last but not least, sempre se dirá que o Acórdão sob sindicância está ferido de inconstitucionalidade, nos termos e pelas razões descritas acima na Motivação -articulados 47 a 54.
X. Efectivamente, o Tribunal recorrido, ao não sopesar os factos levados pelo recorrente ao seu conhecimento, não em ordem a que consubstanciassem qualquer juízo de valor quanto à questão que determinou a emissão do MDE, mas antes enquanto elemento ponderativo a objectivar o confronto que deveria ter sido elaborado no sentido de ser aferida da bondade do MDE, nas circunstancias do caso e tendo presente a sua fundamentação insuficiente, violou os princípios da imparcialidade e da presunção da inocência, consagrados constitucionalmente.
XI. Em clara violação, pelo menos, do art.° 32° da CRP.
XII. E se vai ao arrepio da CRP, o Acórdão é nulo e não produtor de qualquer efeito, o que deverá ser reconhecido».
Na contra-motivação apresentada o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
1. Douto acórdão exarado no dia 17 de Agosto de 2012, nos Autos de Mandado de Detenção Europeu n.º 99/12.7 YREVR que deferiu «a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido pela Sra. Juiz de Instrução do Tribunal de Primeira Instância de Lovaina (Leuven), Bélgica, no âmbito do processo n.º 1009/10 (LE.II.LB.3565/09), com a entrega de AA, cidadão georgiano, nascido a 07.08.1974, filho de .... e de ...i, portador do Bilhete de Identidade romeno n.º ..., emitido a ... e válido até ..., pela eventual prática de um crime de furto com violência, cometido em 26.11.2009 em Rotselaar, Bélgica».
2. O mandado de detenção europeu contém as informações constantes do n.º 1 do artigo 3º da Lei n.º 65/03, de 23 de Agosto.
3. O requerido não invocou qualquer causa de recusa de cumprimento do mandado, nem as mesmas se verificam, tendo-se limitado a invocar factos que não constituem motivo de recusa.
4. A execução deste MDE implica é a simples comparência perante uma autoridade judiciária para a produção de meios de probatórios tendo em vista apurar se o arguido deve ser sujeito a julgamento pelo crime já indiciado e subsequente julgamento., se for caso disso.
5. É difícil compaginar a figura do “abuso do Direito” com os poderes do Estado nacional.
6. Os acórdãos não são inconstitucionais.
7. As interpretações conferidas a preceitos legais é que podem estar feridas de inconstitucionalidade.
8. Deve improceder a pretensão do recorrente.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Começando por definir o objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões extraídas da motivação apresentada, verifica-se serem os seguintes os fundamentos da impugnação:
a) Insuficiência da informação constante do mandado de detenção;
b) Abuso do direito;
c) Suspensão da execução do mandado de detenção;
d) Inconstitucionalidade da decisão de entrega.
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Insuficiência da informação constante do MDE
Vem alegado que as informações prestadas pelo Estado emissor do mandado de detenção se mostram insuficientes, infundamentadas ou, pelo menos, deficientemente fundamentadas, em violação do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 3º da Lei n.º 65/03, de 23 de Agosto[3], visto que as autoridades judiciárias belgas não dizem em que circunstâncias ou com que fundamentos chegaram à conclusão de que contra o recorrente existem suspeitas de haver participado com mais dois indivíduos no crime de roubo objecto do mandado de detenção, nem indicam o modus e o grau de participação naquele facto, a que acresce a circunstância de no dia indicado como o da prática do crime o recorrente se encontrar em Portimão, conforme provas que apresentou, bem mais consistentes, razão pela qual devem ser solicitadas informações complementares, pertinentes e mais concludentes.
Decidindo, dir-se-á.
São três as fases que o processo de decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu comporta:
1. A apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado (conteúdo e forma) – artigo 16º, n.º 2 a 4;
2. A detenção e audição da pessoa procurada – artigos 16º, n.ºs 5 e 6, 17º e 18º;
3. A decisão sobre a execução do mandado – artigos 20º e 22º.
Debruçando-nos sobre a primeira fase do procedimento, a da apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado de detenção, constatamos que a lei a elege como antecedente prévio e necessário, condição essencial da fase seguinte, a da detenção e audição da pessoa procurada. Com efeito, da hermenêutica do n.º 5 do artigo 16º[4], resulta claramente que só após a sindicação da suficiência das informações e da regularidade do mandado, o que tem lugar em despacho liminar a proferir pelo juiz relator – n.º 2 do artigo 16º[5] –, é ordenada a entrega daquele para detenção da pessoa procurada.
Prevendo a lei, no caso de insuficiência das informações, a solicitação das informações complementares necessárias – n.º 3 do artigo 16º. Informações cujo juízo de suficiência deverá ter especialmente em conta, de acordo com a parte final do n.º 2 do artigo 16º, o concreto conteúdo do mandado de detenção estabelecido no artigo 3º[6]. Conteúdo que a lei, sob a epígrafe de direitos do detido (artigo 17º, n.º 1), impõe seja dado a conhecer à pessoa procurada, ao estabelecer que a pessoa procurada é informada, quando for detida, da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu.
Em consonância com o disposto no n.º 5 do artigo 18º que, vai mais além, impondo ao juiz relator, aquando da audição do detido, o elucide sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção e sobre o direito de se opor à execução do mandado ou de consentir nela e os termos em que o pode fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade. Conteúdo que, de acordo com o n.º 5 do artigo 16º, é determinante para a entrega do mandado, tendo em vista a detenção da pessoa procurada, no sentido de que, não constando do mesmo as informações exigidas pelo artigo 3º, o juiz não pode ordenar o prosseguimento do procedimento, isto é, não pode ordenar a detenção da pessoa procurada.
O que bem se percebe.
Com efeito, só depois de o juiz se certificar da legalidade do mandado de detenção, com verificação dos pressupostos formais e materiais que a lei exige para a validade e exequibilidade do mesmo, pode ordenar a sua entrega ao Ministério Público para que providencie pela detenção da pessoa procurada[7].
Conteúdo que a lei, repete-se, impõe seja dado a conhecer ao detido, já que essencial para que o mesmo possa exercer o seu direito de audição e de oposição ao mandado, ou seja, o seu direito de intervenção no acto, maxime de defesa, com respeito pelo contraditório.
É que, como se consignou no acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Outubro de 2006[8], resulta do disposto no artigo 21º, n.º 2, da Lei n.º 65/03, que a oposição da pessoa procurada pode ter por fundamentos o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa do mandado de detenção europeu, causas de recusa previstas nos artigos 11º e 12º, consoante se trate de recusa imposta ou facultativa.
Donde que o conhecimento do conteúdo do mandado de detenção é conditio sine qua non de um adequado exercício do direito de defesa, postulado, ao menos, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República, tendo em conta, nomeadamente, que só conhecendo o conteúdo do mandado de detenção se poderá saber, por exemplo, se a infracção foi amnistiada (artigo 11º, alínea a), se a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro (alínea c) do artigo 11º), se a infracção é punível com pena de morte ou com outra pena de que resulte lesão irreversível da integridade física (artigo 11º, alínea d), se está pendente em Portugal procedimento criminal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção (artigo 12º, n.º 1, alínea b).
Por outro lado, o conteúdo do mandando de detenção, concretamente a descrição da natureza e qualificação jurídica da infracção, bem como a descrição das circunstâncias em que foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação nela assumido pela pessoa procurada, também são imprescindíveis para que a mesma possa pronunciar-se sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade e, em último termo, sobre se deseja ou deve consentir seja executado o mandado de detenção ou, ao invés, opor-se à sua execução.
Ao contrário do que entende o recorrente AA, porém, a lei não prevê que do mandado para efeitos de procedimento criminal, constem as circunstâncias ou os fundamentos, mais concretamente os indícios, nos quais a autoridade emitente baseia o pedido de detenção e entrega. O que, aliás, bem se percebe. Com efeito, como se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Fevereiro de 2006, proferido no Processo n.º 569/06, citado no acórdão impugnado: «a execução de um mandado de detenção não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob responsabilidade do Estado emissor, restando neste âmbito, ao Estado da execução, indagar da respectiva regularidade formal e dar-lhe execução agindo nessa tarefa com base no princípio do reconhecimento mútuo em conformidade, nomeadamente com o disposto na Lei n.º 65/03 e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho – artigo 1º, n.º 1, da Lei citada».
Examinando o concreto conteúdo do mandado emitido contra o recorrente verificamos que dele constam todas as informações impostas pelo n.º 1 do artigo 3º. Para além da identificação da pessoa procurada, ali se dá conta da qualificação jurídica da infracção, com referência directa aos dispositivos legais que a prevê e indicação do limite máximo da pena aplicável, bem como das circunstâncias em que terá sido perpetrada, com menção da data da sua prática, do lugar do seu cometimento e do grau de participação nela assumido pelo recorrente.
Destarte, improcede a primeira questão colocada pelo recorrente, consabido que, ao contrário do alegado, o mandando de detenção contém todas as indicações que a lei impõe, tendo permitido àquele exercer, de forma plena, os seus direitos de oposição[9].
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Abuso do direito
Entende o recorrente que conquanto o mandado de detenção contra si emitido seja legal e legítimo, a ser deferido, criará uma situação integradora de abuso de direito, conforme o disposto no artigo 334º, do Código Civil, visto que os direitos fundamentais de que goza se sobrepõem ao interesse do Estado belga na sua detenção e extradição para efeitos de exercício de procedimento criminal, interesse que poderá ser satisfeito através dos mecanismos legais de cooperação judiciária internacional em matéria penal, mediante a sua audição em Portugal, sendo aqui interrogado, podendo ainda o Estado belga solicitar às autoridades portuguesas o carreamento de outras provas tidas por pertinentes, evitando-se, assim, o dano que a execução do mandado lhe irá causar, ao ser retirado do seu ambiente familiar e da sua actividade profissional, o que poderá ocasionar a perda do emprego, quando é certo que as suspeitas que sobre si recaem não têm consistência.
Conquanto o instituto jurídico do abuso do direito seja insusceptível, sem mais, de aplicação em matéria de cooperação judiciária internacional, concretamente à emissão e execução do mandado de detenção europeu, tanto mais que aquele instituto de direito civil constitui um limite normativo imanente ou interno dos direitos subjectivos, certo é que o abuso do direito só se verifica quando o direito é exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social ou, quando, com o respectivo exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.
O mandando de detenção europeu objecto do processo foi emitido pelo Estado belga tendo em vista o exercício da acção penal contra o recorrente AA por suspeita da prática de crime punível com prisão de 15 a 20 anos, sendo certo inexistir qualquer motivo legal que obste à sua execução, designadamente qualquer causa de recusa (obrigatória ou facultativa), mostrando-se pois a sua emissão e ordenada execução rigorosamente conformes à Lei n.º 65/03, de 23 de Agosto.
A emissão do mandado e a sua execução mais não constituem, pois, que o exercício ou utilização dos necessários instrumentos do Estado de direito em matéria de cooperação judiciária europeia, tendo em vista a administração da justiça penal.
Mostra-se pois desprovida de qualquer fundamento a alegação do recorrente.
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Suspensão da execução do mandado de detenção
Sob a invocação de que a lei substantiva penal, ao contrário do decidido no acórdão impugnado, atribui competência aos tribunais portugueses para o conhecimento do crime que se encontra subjacente ao mandado de detenção europeu contra si emitido, conforme preceito da alínea f) do n.º 1 do artigo 5º do Código Penal, entende o recorrente AA, ao abrigo do disposto no artigo 31º, da Lei n.º 65/03, dever ser suspensa a execução do mandado de detenção para a sua sujeição a procedimento penal em Portugal.
A Lei n.º 65/03 ao estabelecer no artigo 31º[10] a apelidada entrega diferida para que a pessoa procurada e detida seja sujeita a procedimento criminal penal em Portugal, pressupõe, obviamente, que os tribunais portugueses sejam competentes para conhecimento do crime ou crimes que subjazem ao mandado de detenção.
No caso vertente, porém, certo é que os tribunais portugueses carecem de competência.
Vejamos.
O dispositivo legal invocado pelo recorrente segundo o qual os tribunais portugueses dispõem de competência para conhecimento da infracção que se encontra subjacente ao mandado de detenção contra si emitido, qual seja a alínea f) do n.º 1 do artigo 5º do Código Penal, preceitua que:
«1. Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:
…
f) Por estrangeiros que forem encontrados em Portugal e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português».
De acordo com este preceito, aditado na reforma de 1998, que introduziu o princípio da administração supletiva da lei nacional, o Estado tem competência para punir os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal, mas que não podem ser extraditados ou entregues em execução de mandado de detenção europeu, assim se evitando a impunidade destes factos. Daqui decorre que só em caso de impossibilidade legal de execução de mandado de detenção europeu dispõem os tribunais portugueses de competência para punir factos cometidos fora do território nacional por estrangeiro contra quem o mandado haja sido emitido, o que equivale por dizer que o procedimento criminal só poderia ser exercido em Portugal contra o recorrente AA no caso de o mandado de detenção europeu contra ele emitido não pudesse ser executado, o que não se verifica.
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Inconstitucionalidade da decisão de entrega
Alega o recorrente que o acórdão impugnado ao determinar a execução do mandado de detenção contra si emitido sem haver ponderado devidamente a necessidade de pedido de esclarecimento ou de informação mais sustentada ao Estado emissor no que concerne à conduta delituosa que lhe é imputada, bem como ao não solicitar em alternativa à execução do mandado de detenção a sua audição em Portugal e, bem assim, ao não suspender a execução do mandado, violou, pelo menos, os princípios da imparcialidade e da presunção de inocência, princípios que gozam de consagração constitucional, razão pela qual está ferido de inconstitucionalidade nos termos do artigo 32º, da Constituição.
O recorrente ao arguir a violação dos princípios constitucionais da imparcialidade e da presunção de inocência não fundamenta minimamente a sua alegação, limitando-se à produção de uma afirmação.
Como vimos de apreciar, a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, concretamente no que concerne às matérias objecto do recurso interposto – insuficiência da informação constante do mandado de detenção, abuso do direito e suspensão da execução do mandado de detenção –, mostrando-se rigorosamente consonante com a lei aplicável (Lei n.º 65/03), lei que, obviamente, se mostra conforme à Constituição, concretamente com o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, atentos os direitos consignados no artigo 17º e as garantias de defesa previstas no artigo 13º[11].
Em todo o caso sempre se dirá que ao mandado de detenção europeu subjazem os princípios do reconhecimento mútuo e da confiança, segundo os quais a decisão que é tomada por uma autoridade judiciária competente em virtude do direito do Estado membro de onde procede o mandado é aceite e reconhecida tal como foi proferida, tendo um efeito directo e pleno sobre o conjunto do território da União, dada a existência de total e mútua confiança entre os Estados membros de que a decisão respeita, formal e substancialmente, o direito do Estado emissor, razão pela qual ao Estado receptor do mandado não cabe sindicar a decisão.
Assim, a circunstância de a pessoa procurada entender que não praticou os factos delituosos que determinaram a emissão do mandado é irrelevante para o Estado receptor, que só tem de conhecer da conformidade legal do próprio mandado no sentido de o poder executar, pois a decisão é do Estado que o emitiu e é perante ele que aquela tem de exercer os seus direitos de defesa relativos ao procedimento criminal e não no âmbito do mandado de detenção europeu[12].
Como já se deixou consignado, a execução de um mandado de detenção europeu não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor[13].
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Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 7 UC.
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Oliveira Mendes (relator)
Maia Costa
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[1] - O crime é punível pelo Código Penal belga com pena de 15 a 20 anos de prisão.
[2] - O texto que a seguir se transcreve corresponde integralmente ao constante da motivação de recurso apresentada pelo detido.
[3] - Serão deste diploma legal todos os demais preceitos a citar sem menção de referência.
[4] - É do seguinte teor aquele dispositivo:
«Quando o mandado de detenção europeu contiver todas as informações exigidas pelo artigo 3º e estiver devidamente traduzido é ordenada a sua entrega ao Ministério Público, para que providencie pela detenção da pessoa procurada».
[5] - Dispõe o normativo em causa:
«Efectuada a distribuição, o processo é imediatamente concluso ao juiz relator para, no prazo de cinco dias, proferir despacho liminar sobre a suficiência das informações que acompanham o mandado de detenção europeu, tendo especialmente em conta o disposto no artigo 3º».
[6] - É do seguinte teor o artigo 3º:
«1. O mandado de detenção europeu contém as seguintes informações, apresentadas em conformidade com o formulário anexo:
a) Identidade e nacionalidade da pessoa procurada;
b) Nome, endereço, número de telefone e de fax e endereço der correio electrónico da autoridade judiciária de emissão;
c) Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva nos casos previstos nos artigos 1º e 2º;
d) Natureza e qualificação jurídica da infracção, tendo, nomeadamente, em conta o disposto no artigo 2º;
e) Descrição das circunstâncias em que a infracção foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infracção da pessoa procurada;
f) Pena proferida, caso se trate de uma sentença transitada em julgado, ou a medida da pena prevista pela lei do Estado-membro de emissão para essa infracção;
g) Na medida do possível, as outras consequências da infracção.
2. O mandado de detenção deve ser traduzido numa das línguas oficiais do Estado membro da execução ou noutra língua oficial das instituições das Comunidades Europeias aceite por este Estado, mediante declaração depositada junto do Secretariado-Geral do Conselho».
[7] - Exigência que tem a sua cabal justificação se atentarmos que a execução de um mandado de detenção priva, imediatamente, a pessoa procurada do direito à e de liberdade.
[8] - Proferido no Recurso n.º 3758/06.
[9] - Em todo o caso, sempre se dirá que do mandado emitido, conquanto a lei o não exija, consta indicação dos indícios existentes contra o recorrente, tendo-se ali consignado que a vítima do crime objecto do mandado, nas declarações que prestou, fez uma descrição dos sinais característicos dos respectivos autores e um reconhecimento de AA como um dos dois autores do facto criminoso.
[10] - É do seguinte teor o n.º 1 do artigo 31º da Lei 65/03:
«1. O tribunal pode, após ter proferido decisão no sentido da execução do mandado de detenção europeu, suspender a entrega da pessoa procurada, para que seja sujeita a procedimento penal em Portugal ou, no caso de já ter sido condenada por sentença transitada em julgado, para que essa pessoa possa cumprir, em Portugal a pena respectiva».
[11] - Neste preciso sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 05.07.29, proferido no Processo n.º 2790/05.
[12] - Cf. os acórdãos deste Supremo Tribunal de 07.01.25 e de 07.06.06, proferidos nos Processos n.ºs 271/07 e 2182/07.
[13] - Para além do citado acórdão deste Supremo Tribunal de 06.02.16, proferido no Processo n.º 569/06, o acórdão de 07.08.09, proferido no Processo n.º 2847/07.