DESISTÊNCIA
FRIEZA DE ÂNIMO
HOMICÍDIO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
MEIO INSIDIOSO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA GRAVE
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário

I - A arguida foi condenada na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. pelos arts. 145.º, n.ºs 1, al. b), e 2, 132.º, n.º 2, als. h), i) e j), com referência ao art. 144.º, al. d), todos do CP, porquanto com a lâmina de um x-acto, que previamente adquiriu, desferiu um golpe no lado esquerdo do pescoço do assistente, com quem mantinha uma relação de namoro, ao mesmo tempo em que lhe disse “se não és meu não hás-de ser de mais ninguém”, mas, quando o viu a desfalecer, telefonou para o INEM e ajudou-o a estancar o sangue do pescoço com um lenço.
II - Se é evidente o desvalor da ação, a perversidade da conduta da arguida (atraindo o ofendido a uma autêntica cilada), a intensidade do dolo, a frieza na preparação e na execução do crime, a conduta posterior ao facto, manifestada na prestação de auxílio ao ofendido, também não pode deixar de relevar, ainda que já tenha sido atendida para efeitos de desistência voluntária, com o abandono da subsunção dos factos ao crime de homicídio.
III -Dentro da moldura penal de 3 a 12 anos, entende-se adequada a pena de 5 anos de prisão, que satisfaz as exigências de prevenção geral, que não prejudica excessivamente os interesses de ressocialização e que não ultrapassa a medida da culpa.
IV -A pena de prisão só pode ser suspensa caso seja possível formular um juízo de prognose favorável sobre o comportamento do agente, em termos de ser previsível, com um razoável grau de segurança, afirmar que a simples ameaça da pena desviará o agente da prática de novos crimes (n.º 1 do art. 50.º do CP).
V - Como o crime ocorreu em circunstâncias muito específicas e dificilmente repetíveis (a arguida agiu movida por ciúme e na altura estava internada em estabelecimento psiquiátrico devido a um estado depressivo provocado pelo falecimento de dois familiares próximos num curtíssimo espaço de tempo) e como a arguida mostrou ser sensível aos valores protegidos pelo direito (desistiu activamente da sua conduta ao observar o estado de sofrimento do ofendido), é de prever, de forma razoavelmente segura, que a ameaça da pena será suficiente para que não cometa novos crimes.


Texto Integral

               

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. RELATÓRIO

  AA, com os sinais dos autos, foi condenada pelo Tribunal Coletivo do 2º Juízo Criminal de Viseu, por acórdão de 17.9.2010, como autora material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 1 e 2, i) e j), 22º, nº 2, b), e 23º, todos do Código Penal (CP), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução sob regime de prova pelo mesmo período de tempo.

Inconformado, recorreu o Ministério Público (MP) para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo o reenvio do processo para novo julgamento, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, subsidiariamente, a revogação da suspensão da pena.

Por acórdão de 1.6.2011, a Relação, julgando o recurso procedente quanto ao pedido principal, determinou o reenvio do processo para novo julgamento, conforme peticionado pelo recorrente.

Realizado novo julgamento em 1ª instância, e reformulada a matéria de facto, foi a arguida condenada, por acórdão de 9.2.2012, na pena de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos arts. 145º, nºs 1, b), e 2, 132º, nº 2, h), i) e j), com referência ao art. 144º, d), todos do CP.

            Dessa decisão recorre a arguida, que conclui:

Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão de 09/02/2012 que condenou a ora Recorrente na pena de 6 (seis) anos de prisão efectiva, pela prática em autoria material e consumada de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts°. 145°, n.° 1, al. b) e 2, 132°, n.° 2, als. h), i) e j), com referência ao art. 144°, al. d), todos do Código Penal.

E este recurso é interposto na convicção de que, salvo o devido e muito respeito pelos Meritíssimos Juízes "a quo", não foram ponderados todos os elementos relevantes, aquando da escolha da medida concreta da pena a aplicar à Arguida.

O objecto do presente recurso restringe-se ao pedido de reapreciação da medida da pena aplicada à arguida/recorrente, in casu, na pena de 6 (seis) anos de prisão, entendendo a recorrente que a pena aplicada é excessiva e desadequada.

Entende aora recorrente que os Meritíssimos Juízes "a quo" não fizeram uma correcta aplicação do Direito aos factos, nomeadamente quanto à medida da pena aplicada à recorrente, que foi, em muito, excessiva.

Com efeito,

Salvo melhor opinião, deveriam ter sido ponderados, no momento da escolha da medida da pena concreta a ser aplicada à Arguida, elementos relevantes como: A sua idade ainda jovem (à data da prática dos factos tinha 21 anos), as condições pessoais, a sua confissão espontânea, livre, o arrependimento sincero demonstrado, a colaboração daquela para a descoberta da verdade material e para a realização da justiça, o facto de não ter qualquer condenação criminal anterior, os motivos que levaram a arguida a cometer tal crime e as consequências/lesões que daí resultaram na pessoa do ofendido.

Na verdade, na determinação da medida da pena, não foi tido em conta a actuação da arguida, essencial para o socorro da vítima e o contributo activo demonstrado para a não morte do ofendido.

Resultou provado da audiência de julgamento, e por isso consta da matéria de facto provada -pontos 16. e 17. do Douto Acórdão que ora se recorre, que foi a arguida quem voluntariamente chamou o INEM, "e fê-lo com o comprovado propósito de socorrer a vítima, ajudando-o ainda a estancar o sangue do pescoço com um lenço, a mesma intenção com que deu indicação e assinalou ao INEM a respectiva localização afim de apressar o auxilio, o que tudo fez de livre vontade perante a total incapacidade física do assistente para o fazer".

Acontece que este comportamento que demonstra um sentimento de desespero e verdadeiro arrependimento perante o próprio acto que acabara de praticar, tendo-se inclusive entregue voluntariamente às autoridades e assumido as consequências dos seus actos, revelando consciência do desvalor da sua conduta e o reconhecimento do valo jurídico então ameaçado (vida humana), não foi valorado na determinação da medida da pena aplicada, como impõe o art.° 71° do Código Penal.

A pena de prisão aplicada é desproporcional e excessiva, pois consideramos, salvo melhor opinião, exceder o grau da culpa.

No grau de culpa, porém, também há que sopesar que a arguida à data da prática dos factos tinha uma imputabilidade diminuída, tal como consta dos relatórios médicos juntos aos autos, pois a sua Personalidade Perturbada devido aos seus antecedentes psico/emocionais levou a que tivesse dificuldades em antecipar as consequências dos seus actos, pelo que se traduz numa atenuação da pena.

De facto, o douto Tribunal a quo ao determinar a concreta medida da pena, assentou na prevenção e nas exigências de exteriorização física da reprovação, alheando-se da recuperação e ressocialização da arguida, não tomando em boa conta a sua personalidade, os factos que a levaram a cometer o crime, e o comportamento posterior da mesma.

Assim, considerando a pena concretamente aplicada excessiva, deveria ter sido aplicada pena de substituição, pois consideramos que este tipo de penas não compromete minimamente em relação à comunidade a confiança e a reiteração da validade da norma violada.

Neste contexto, a prevalência não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. Importa não esquecer que a aplicação de uma pena visa além da protecção de bens jurídicos, "a reintegração do agente na sociedade", vide art.° 40° do Código Penal.

Assim, a pena de prisão aplicada à arguida/recorrente não devia ser superior a 4 (quatro) anos, sendo a mesma suspensa na sua execução por igual período.

Pressuposto básico da aplicação de pena de substituição à recorrente será a existência de factos que permitam um juízo de prognose positivo, tal conclusão terá de se fundamentar em factos concretos que apontem de forma clara a forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos, o que há fortes probabilidades de no caso concreto se verificar, até porque à arguida foi aplicada no presente processo a medida de coação Obrigação de Permanência na Habitação, a qual durou cerca de um ano.

Perante os motivos/premissas anteriormente expostos, julgamos que o cumprimento de pena de prisão efectiva constituirá uma solução claramente insatisfatória para atingir o apontado fim das penas - a recuperação da arguida para a sociedade, o que não se consegue com a clausura da mesma.

Ao não entender assim, o douto Acórdão recorrido violou o preceituado nos artigos 40°, 50°, 70°, 71° e 72° n.° l e 2 al. c) do Código Penal.

É de sublinhar que a sujeição de uma pessoa a um local onde proliferam doenças incuráveis, e onde pela companhia de outros reclusos se aprende a cometer mais crimes e a usar a violência, por vezes são maiores os males do que os benefícios.

Por outro lado, é do conhecimento geral que a medida de suspensão da execução da pena tem um elevado conteúdo reeducativo e pedagógico, uma vez que permite manter as condições de socialização, como factores de inclusão e evita os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental.

Afigura-se que a simples censura dos factos e a ameaça de prisão, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Conclusões:

1. Elementos Relevantes como: A sua idade ainda jovem (à data da prática dos factos tinha 21 anos), as condições pessoais, a sua confissão espontânea, livre, o arrependimento sincero demonstrado a colaboração daquele para a descoberta da verdade material e para a realização da justiça, o facto de não ter qualquer condenação criminal anterior, os motivos que levaram a arguida a cometer tal crime e as consequências/lesões que daí resultaram na pessoa do ofendido, como impõe o artigo 71° do Código Penal, deveriam, salvo melhor opinião, ter sido ponderados no momento da escolha da medida da pena a ser aplicada à arguida.

2. Deveria ter sido ponderado e de especial relevância o facto de a arguida ter prestado voluntariamente socorro ao ofendido e o contributo activo demonstrado para a não concretização da morte do ofendido, tendo desenvolvido todos os esforços ao seu alcance para que o ofendido fosse socorrido, como impõe o artigo 72° n.° 2 al. c) do Código Penal.

3. Deveria ter sido ponderado o arrependimento sincero da arguida, nomeadamente a reparação, até onde lhe foi possível, dos danos causados.

4. A recorrente não tem antecedentes criminais.

5. A pena de prisão aplicada à arguida não devia ser superior a 4 (quatro) anos.

6. À recorrente foi aplicada a medida de coação Obrigação de Permanência na Habitação.

7. Tal pena de prisão de quatro anos, atendendo o sentido pedagógico e ressocializador da pena, deverá ser suspensa na sua execução.

8. É justa e suficiente para efeitos de exigências de prevenção, a aplicação da pena de quatro anos, suspensa na sua execução.

9. Assim, considerando a pena concretamente aplicada excessiva, deveria ter sido aplicada pena de substituição, devendo esta ser de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução.

            O Ministério Público respondeu, dizendo:

I Questão-de-direito.

A) - Medida da pena:

1. Em consequência da prática, em autoria material, de um crime de "ofensa à integridade física grave qualificada", p. e p. nas disposições dos arts°. 132°/2-h), i) e j), 144° d) e 145/1-b) e 2 do Código Penal;

Numa moldura abstracta de 03 a 12 anos de prisão;

Foi aplicada à arguida, AA, a pena de 06 anos de prisão.

2. Não concorda a ora recorrente com a pena que lhe foi aplicada, que considera:

-Excessiva, por ser superior a quatro anos de prisão;

-Dado não terem sido devidamente ponderados, no essencial, a sua idade ainda jovem (21 anos à data da prática dos factos); as condições pessoais; a sua confissão livre e espontânea, o arrependimento sincero, a sua colaboração para a descoberta da verdade, a ausência de antecedentes criminais, os motivos que presidiram à prática do crime e as consequências/lesões que resultaram na pessoa do ofendido.

3. Contrapomos nós, todavia, que as concretas circunstâncias da prática do crime, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa - valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art. 71° do Código Penal para a determinação da pena -, permitem a conclusão de que a pena concretamente aplicada se mostra, adentro da sua moldura abstracta, justa e criteriosa, dando expressão acertada às exigências da prevenção especial e geral, integrada esta pela ideia da culpa.

3.1 Efectivamente, assim o cremos:

Visto o elenco dos relevantes factos provados - que a recorrente não impugnou;

Perante o teor da douta decisão recorrida em matéria de fixação da pena concreta (que aqui não vamos reproduzir), com cujas considerações lógico-jurídicas, na sua correcta relação dialéctica com os factos, concordamos (cfr. págs. 20-21).

3.1.1 Concretizando.

Não se revela - contra o alegado – que:

A arguida tenha demonstrado sincero arrependimento pela prática do crime;

Seja espontânea a confissão, pois que, não sendo integral, deverá ser relativizada e mitigada a sua relevância e a sua espontaneidade;

Os motivos da prática do crime possam (como parece decorrer da sua expressa menção), à luz de uma correcta valoração jurídico-penal, ser vistos como expressão de uma atitude de mérito e elevação ético-social - antes pelo contrário, as motivações da arguida assentaram num sentimento de ciúme doentio e anacrónico, expressão clara de uma postura que eleva o ter ou não ter a postulado lógico e ontológico do agir em comunidade, objectivando e coisificando o ser (no caso, o outro), assim despojado da sua matriz pessoal-individual.

A arguida agiu, por fim, em circunstâncias que revelam tripla especial censurabilidade, sendo de acentuar a insidiosidade da sua actuação e a reflexão sobre o instrumento utilizado.

3.1.2 Como se não bastasse, atente-se que sendo o factum a matriz genética do Direito Penal, apenas de forma acessória considerações que lhe sejam exteriores (como a idade do agente e a ausência de antecedentes criminais) poderão ser erigidas em critérios da valoração atinente à determinação da pena concreta, sem nunca, porém, poderem conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.

Não violou a douta decisão, recorrida o disposto no art. 71° do Código Penal.

B) - Suspensão da execução da pena de prisão:

1. Se assim não se entender, ou seja, se o Tribunal "ad quem" decidir aplicar à arguida pena de prisão não superior a 5 anos, julgamos então, com todo o respeito, que, em face das circunstâncias que já sopesámos e dos critérios decisores vertidos na disposição do art. 50º/1 do Código Penal, não deverá ser decretada a suspensão da execução da pena em causa.

2. Discorda a recorrente, que pretende que seja suspensa na sua execução a pena de prisão a aplicar, invocando, em síntese, que: ...O cumprimento da pena de prisão efectiva constituirá uma solução claramente insatisfatória para atingir o apontado fim das penas - a recuperação da arguida para a sociedade, o que não se consegue com a reclusão da mesma.

3. Dizemos nós, contudo:

No caso, com todo o respeito por opinião contrária, não se revelam nos autos os pressupostos de que depende uma decisão de suspensão da execução da pena de prisão normativamente justa e criteriosa e ético-socialmente eficaz.

Efectivamente, não nos parece que, no caso e em concreto, "...a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição":

Protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr, o art. 40º/1 do Código Penal). Concretizando:

4. Como bem foi frisado no acórdão condenatório, sopesou o Colectivo para determinação da pena, nomeadamente:

Além da gravidade da lesão infligida, que obrigou à imediata intervenção cirúrgica do assistente..., a circunstância de, entre as diversas alíneas do n.° 2 do art. 132° do Código Penal, se verificar mais do que uma qualificativa da ofensa à integridade física (grave);… …

Contra a arguida milita a acentuada carga dolosa, dolo directo, que subjaz à sua conduta e manifesto desvalor da personalidade que evidenciou, que denota uma formação deficiente, quando a circunstância de se tratar do seu namorado deveria maior contra-motivação ética.

São elevadas as exigências de prevenção geral, nomeadamente a necessidade de reafirmar a validade da norma violada...

4.1 Mas, para a questão que agora tratamos, urge destacar ainda, dos "factos provados":

33. A arguida não padece de qualquer doença mental, embora evidencie carência e instabilidade afectiva e perturbação do estado-limite ("borderline") da personalidade, caracterizada pela realização de esforços desesperados para evitar o abandono real ou imaginário, impulsividade, pessimismo, baixa auto-estima, estabelecimento de relações interpessoais instáveis e intensas, comportamento suicidário e auto-mutilante, e surgimento de raiva intensa e dificuldade em a controlar.

4.2 E, como já se referiu, a colaboração da arguida para a realização da justiça é visivelmente mitigada (como, aliás, resulta da douta fundamentação) - em face da falsa e pensada alegação de que comprara o x-acto e a faca para do ofendido se defender, por temer que este a pudesse agredir, e de que a agrediu mesmo, já na parte traseira da carrinha, antes de o ter golpeado com o x-acto.

5. Ou seja:

Por um lado, sendo …manifesto o desvalor de personalidade que evidenciou, que denota uma formação deficiente;

Não está minimamente garantido - antes pelo contrário - que a própria arguida possa sentir um mínimo da eficácia da condenação através da aplicação do regime da suspensão da execução da pena de prisão, assumindo e auto-consciencializando intimamente a real gravidade do facto-crime cometido.

-Por outro lado, não se pode menosprezar, na avaliação crítica da questão, o valor, essencial e primordial, da protecção de bens jurídicos, ou seja, da prevenção geral, atinente aos fins das penas.

6. Em síntese:

-Revelam-se, perante a personalidade denotada pela arguida, prementes as necessidades da prevenção especial, através da intimidação, não como fim em si mesmo, mas como instrumento que induza a íntima auto-consciencialização sobre real gravidade do facto-crime cometido - intimidação "preventivo individual" (cfr. o Ac. STJ de 13.01.10, "in" CJ, XVIII, I, 180).

-O elevado grau de ilicitude e a intensidade da culpa dolosa são expressão de uma formação deficiente da personalidade da arguida.

-São recorrentes, na comunidade, os casos de extrema violência alegadamente passional, que, na verdade, traduzem apenas, como acima se expôs, uma anulação do ser, em que o agir é determinado por sentimentos de frustração e de incapacidade de aceitar o não ter.

-São, pois, em concreto, prementes as necessidades de prevenção geral, integrada pela ideia da culpa e pela da exigência, socialmente cara, da aplicação da pena justa, merecida e necessária;

-Os "crimes de sangue" (especialmente no âmbito conjugal ou amoroso) constituem, precisamente, um dos domínios em que actualmente mais se fazem sentir as necessidades de prevenção geral.

-Não se denota dos autos um efectivo, sincero e desinteressado arrependimento da arguida.

7. Insistimos, pois, com todo o respeito:

Não é claro, em face da personalidade da arguida, que seja razoável concluir por um "prognóstico favorável" da sua futura conduta ético-social;

E verdade é que se opõem à suspensão da execução da pena as prementes exigências de reprovação e prevenção do crime e da consequente defesa do ordenamento jurídico.

7.1 Não justificam tal juízo:

-A idade da arguida;

-O sua origem familiar;

-A sua condição económico-social;

-O facto de ter contribuído para o socorro da vítima (não constitui circunstância com expressiva relevância, pois que, não o tivesse feito, e estaria a arguida a debater-se com uma condenação entre os 12 e os 25 anos de prisão).

-Alguma colaboração com a Justiça (postura que em julgamento veio, como já se referiu, a enviesar);

-A ausência de antecedentes criminais.

8. Mas, no referido plano da prevenção geral, é imperativo concluir, face aos argumentos acima aduzidos, que só "exteriorização física da reprovação", pela execução da pena de prisão aplicada, dá satisfação adequada às exigências de preservação do ordenamento jurídico.

Há, efectivamente, em vista das finalidades de prevenção geral (e no respeito pelo "princípio da culpa"), limites mínimos da punição que não devem ser ultrapassados, mesmo perante os ditames da ressocialização (ou da sua desnecessidade), sob pena de intolerável e perniciosa inversão de toda a lógica do sistema jurídico-penal.

Pela sua expressividade e pertinência para o caso dos autos, vejam-se, nomeadamente, em reforço da tese que defendemos:

-O Ac. STJ de 18.04.2007, Processo n.° 07P1136 (in ITIJ - Bases Jurídico-Documentais):

A finalidade da pena é a protecção dos bens jurídicos e, se possível, a ressocialização do agente do crime; a sua medida concreta um puro derivado de um critério de necessidade, ditado por uma dimensão subordinada ao princípio da proporcionalidade e, consequentemente, da proibição de excesso, fundado no art. 18.° n.° 2, da CRP.

...Tudo porém balizado pela culpa, que fornece a moldura de topo, dentro dela actuando as sub- molduras de prevenção geral e especial...

-Ac. STJ de 27.04.2006, Processo n.° 06P548 (ibidem):

O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto; com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica».

De qualquer modo, «os limites de pena assim definida (pela necessidade de protecção de bens jurídicos) não podem ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só pode intervir numa posição subordinada à prevenção geral».

II Em conclusão:

Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, mantendo-se os termos da decisão recorrida.

Se assim não se entender, por ser de condenar a arguida em pena de prisão não superior a cinco anos, deverá não ser decretada a suspensão da execução da pena de prisão a aplicar.

            Neste Supremo Tribunal, o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:


(…)
2Do mérito do recurso:
                Emitindo parecer, como nos cumpre, sobre as questões que vêm colocadas [escolha e medida da pena, como vimos], cabe começar por dizer que o magistrado do Ministério Público na 1.ª Instância, na respectiva resposta, já rebateu, ponto por ponto e com a pertinência devida, os fundamentos esgrimidos pela recorrente sobre cada uma dessas concretas questões, sendo que a clareza da argumentação ali desenvolvida, bem como dos elementos (nomeadamente factuais, normativos e jurisprudenciais) aduzidos nos dispensa, porque de todo desnecessário e redundante, do aditamento de mais desenvolvidos considerandos em defesa do decidido.

Revemo-nos, pois, na contra-argumentação do Exmo colega que, de forma que temos por proficiente, “desmonta” qualquer dos fundamentos convocados pela recorrente para criticar a escolha e a dimensão da medida concreta da pena fixadas pelo Tribunal.
2.1A graduação da medida concreta da pena deve, com efeito, ser efectuada, como é sabido, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção no caso concreto (art. 71.º, n.º 1 do CP), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2).
Nos termos do art. 40.º, n.º 1, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na ordem jurídico-penal (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial positiva), sendo certo que, como também se sabe, a referência (legal) aos bens jurídicos conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade de pena e a gravidade do facto praticado, a qual, desta forma, integra o conteúdo e o limite da prevenção.
Mas, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do mesmo art. 71.º), sendo certo que “disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva” (Ac. STJ de 10/4/96, CJ-STJ 96, II, 168).
Por outro lado, e também com Anabela Rodrigues, há ainda que ter em conta que «no âmbito da valoração dos factores de medida da pena vigora o princípio – comummente conhecido por princípio da proibição da dupla valoração – de que não devem ser apreciados para efeitos de determinação da medida da pena aqueles factores que se referem a aspectos já tidos em consideração pelo legislador ao estatuir as molduras penais. Desta forma, não só os elementos do crime – ilícito, culpa e punibilidade –, como as circunstâncias modificativas – atenuantes ou agravantes, nominadas ou inominadas, resultantes de “exemplos-padrão” ou conformadoras de casos excepcionalmente graves ou pouco graves –, são abrangidos pelo princípio».
2.2 Descendo a esta luz ao caso dos autos, e tendo em conta a factualidade dada como provada, vejamos então quais são os factores relevantes, da ilicitude e da culpa, a ponderar:

Para a gravidade da ilicitude há que atender (i) ao tipo e modalidade de ofensa escolhida pela arguida [golpe com a lâmina de um x-acto], (ii) à zona do corpo escolhida e atingida [no pescoço da vítima e em direcção à carótida-jugular, que contém órgão vital], (iii) à situação em que a vítima se encontrava [de olhos vendados e por isso totalmente indefesa e incapaz de reagir], e por último (iv) às lesões provocadas pela ofensa [uma cicatriz horizontal linear] e respectivas consequência médico-legais [15 dias de doença, sendo 2 com afectação da capacidade para o trabalho geral e 5 com afectação da capacidade para o trabalho profissional].

Por sua vez, a culpa da arguida, uma vez que se trata de uma culpa concreta, ou seja a culpa pelo facto de ter agido como agiu, reflecte a gravidade da ilicitude, que é intensa uma vez que, sendo por um lado atenuada pela circunstância de as lesões provocadas na vítima não serem irreversíveis nem terem provocado sequelas de significativo relevo, não pode por outro deixar de ser significativamente agravada pela frieza de ânimo/reflexão sobre os meios empregados, bem como pela natureza da relação de namoro estabelecida com a vítima, estes indiscutivelmente factores autónomos a equacionar para efeitos de determinação da pena concreta, isto porque não considerados para a fixação da moldura penal respectiva.

Por outro lado, e noutra perspectiva, se é certo que é ainda de ponderar, como o fez aliás o tribunal recorrido, que a arguida não tem antecedentes criminais, tinha apenas 21 anos de idade à data da prática do crime e apresenta uma estrutura da personalidade do tipo “bordeline”, personalidade essa que de certa forma – e não o justificando de todo –, sempre pode contribuir para uma explicação do seu comportamento, não é menos certo também que tal tipo de personalidade deve relevar em sede de perigosidade, justificando alguma agravação das necessidades de prevenção especial, pelo inquestionável perigo de assumpção de comportamentos semelhantes em situações similares que se lhe possam voltar a deparar

Por último, há que dizer que as necessidades de prevenção geral não podem também ser descuradas, tanto mais que está em causa um comportamento claramente inserido no arco da criminalidade relacionada com a denominada “violência doméstica”, realidade e fenómeno com que, com acurada sensibilidade social, se depara actualmente a sociedade portuguesa e cuja contenção vem cada vez mais reclamando.

                Tudo ponderado, e tendo em conta a moldura abstracta da pena correspondente ao crime cometido – prisão de 3 a 12 anos –, afigura-se-nos que a medida concreta da pena não deveria ter deixado de ser graduada, dentro da metade inferior da respectiva moldura abstracta, entre pelo menos os 5 e os 6 anos de prisão, medida essa sempre incompatível, ainda que porventura viesse a entender-se ser de reduzir para os 5 anos, com a impetrada, mas injustificável, substituição pela suspensão da execução, nos termos do art. 50.º, n.º 1 do CP. Por inquestionáveis exigências quer de prevenção geral – decorrentes, como vimos, da necessidade de contenção deste tipo de criminalidade –; quer de prevenção especial – tendo em conta o valor pouco significativo das atenuantes nesta sede convocáveis e a perigosidade imanente à personalidade da arguida –, não cremos que a aplicação de uma pena substitutiva da prisão pudesse ainda realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.     Com o muito devido respeito por opinião diversa, e mesmo no quadro de eventual redução para 5 anos, estamos em crer que a opção por uma reacção criminal que passasse ainda por uma pena substitutiva da prisão redundaria inexoravelmente numa efectiva defraudação das expectativas comunitárias na vigência das normas violadas, descurando-se por completo a necessária (e hoje particularmente sentida) protecção dos bens jurídicos tutelados que é, nos termos do art. 40.º, n.º 1 do Código Penal, a finalidade primeira da aplicação das penas, finalidade esta que se sobrepõe e condiciona, como é sabido, a pretensão de reinserção social da condenada, conforme expressamente decorre do comando normativo ínsito na indicada norma. Como ensina, aliás, a Prof. Anabela Rodrigues, embora como pressuposto e limite da culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, só na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.

                2.3 Aqui chegados, porém, afigura-se-nos que o tribunal recorrido, em função do caso julgado, parcial, formado pelo primeiro Acórdão proferido nestes autos, exarado a fls. 722/731, quanto à medida da pena ali aplicada, que não foi impugnada pelo Ministério Público no recurso que então interpôs [fls. 740 e segs.], não poderia ter aplicado agora uma pena em medida superior àqueles 4 anos e 6 meses de prisão, uma vez que, se não tivesse sido ordenado o reenvio do processo e se, ao invés, tivesse procedido apenas a pretensão, subsidiária, do Ministério Público no sentido de que a pena imposta não fosse substituída pela suspensão da execução da prisão, estamos em crer que seria tão somente aquela, e não qualquer outra, a dimensão da pena a ser cumprida pela ora recorrente, sob pena de violação do principio da proibição da reformatio in pejus, normativamente densificado no art. 409.º do CPP. 

                2.4 – Termos em que, e assim sem prejuízo de, dentro dos pressupostos supra enunciados em 2.3, se nos afigurar não poder deixar de ser equacionada a redução da pena a aplicar à arguida para os 4 anos e 6 meses de prisão, agora efectiva, fixados na primeira decisão proferida nos autos, se emite parecer no sentido da improcedência do recurso.

            Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), a arguida não respondeu.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. A única questão colocada pela recorrente é a da medida da pena, que pretende que seja reduzida para 4 anos de prisão e suspensa na sua execução, ao que se opõe o Magistrado do MP na 1ª instância.

            Contudo, o sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal coloca uma questão prévia: a do caso julgado parcial do acórdão de 17.9.2010, quanto à medida da pena (4 anos e 6 meses de prisão, suspensa), que não teria sido impugnada pelo MP no recurso que então interpôs dessa decisão, daí concluindo que neste segundo acórdão a arguida não poderia ter sido condenada em pena superior.

            Analisada a matéria, não procede, no entanto, esta questão prévia.

            Recorde-se que a arguida fora condenada inicialmente na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução, tendo dessa decisão interposto recurso apenas o MP, pedindo o reenvio do processo para novo julgamento, e subsidiariamente a revogação da suspensão da pena. A Relação atendeu a pretensão principal do MP, reenviando o processo, ficando prejudicada obviamente a pretensão subsidiária.

            Ora, o caso julgado parcial tem como pressuposto que o arguido (ou o MP em seu exclusivo benefício) tenha interposto recurso da decisão inicial. É precisamente pelo facto de faltar a impugnação do MP (sinal de que se conforma com a decisão) que se forma caso julgado (parcial) sobre a medida da pena imposta na decisão inicial, que passará a funcionar como limite não ultrapassável no novo julgamento, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus (indireta).

            No caso dos autos, foi o MP que recorreu da primeira decisão, pedindo o reenvio do processo, a título principal. Atendido esse pedido, não existe qualquer fundamento para invocar o princípio da reformatio in pejus no novo julgamento, pois não houve conformidade do MP, antes impugnação da decisão na sua globalidade.

            Conclui-se, pois, pela improcedência da questão prévia.

           

            2. Há, pois, que apreciar a matéria do recurso. Para tanto, importa conhecer a matéria de facto, que é a seguinte (em itálico e sublinhado a matéria aditada no segundo julgamento):

1. No dia 30 de Setembro de 2009 [por lapso manifesto refere-se o dia 31.9.2009 na decisão recorrida], a arguida AA combinou encontrar-se com o assistente BB, com quem mantinha uma relação amorosa, no dia seguinte, às 15 horas, junto ao portão do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de São Teotónio, sito na localidade de Abraveses, em Viseu, local em que a mesma se encontrava internada a receber tratamento psiquiátrico desde o dia 17 de Agosto de 2009, tendo alta agendada para o dia 2 de Outubro de 2009;

2. No dia seguinte, 1 de Outubro de 2009, a arguida solicitou nos serviços daquele Departamento de Psiquiatria que lhe fosse dada autorização para uma saída de curta duração, a fim de tratar de assuntos na Segurança Social e Centro de Emprego em Viseu, tendo para o efeito assinado um termo de responsabilidade, ausentando-se da enfermaria cerca das 14 horas e 15 minutos;

3. De seguida, a arguida deslocou-se ao estabelecimento denominado “D...L...”, pertencente à firma “L... II, Lda.”, sito nas proximidades do referido Departamento de Psiquiatria, e às 14 horas e 23 minutos, adquiriu uma faca de cozinha sem serra, no valor de € 1,10, e um x-acto, da marca “Lifetime”, com cabo de plástico de cor azul e um comprimento de lâmina de 10 cm., com mais três lâminas, no valor de € 1,75;

4. Após sair do referido estabelecimento, e no trajecto de volta ao Departamento de Psiquiatria, a arguida deitou a faca que acabara de adquirir num caixote do lixo e colocou o x-acto na mala que trazia consigo;

5. À hora e no local combinado, junto ao portão do referido Departamento de Psiquiatria, a arguida encontrou-se com o assistente BB, que ali se deslocou conduzindo o veículo ligeiro de mercadorias, de marca “Citröen”, modelo “Berlingo”, com a matrícula ...-QT, pertencente ao seu pai, tendo a arguida entrado no referido veículo e se sentado no lugar do passageiro;

6. De seguida, o assistente BB conduziu o referido veículo até ao Monte de Santa Luzia, junto ao Campo de Futebol de 11, no concelho de Viseu, local onde parou a viatura;

7. Uma vez lá chegados, após uma discussão relacionada com um contacto via internet do assistente BB com outra rapariga, saíram os dois para a zona de carga da viatura, com a intenção de ali terem relações sexuais;

8. Na zona de carga, o assistente BB despiu parcialmente a roupa que trazia vestida, tendo apenas ficado de t-shirt, boxers e meias, e deitou-se de barriga para cima, tendo a arguida lhe perguntado se queria que lhe fizesse uma surpresa, o que este aceitou;

9. Após remexer no interior da sua mala, que havia trazido consigo para a zona da carga, a arguida sugeriu ao assistente BB que lhe vendasse os olhos com o lenço preto que a mesma usava ao pescoço, o que aquele permitiu;

10. Quando o assistente BB já se encontrava de olhos vendados, a arguida, que se mantinha junto ao lado esquerdo do mesmo, disse-lhe que ia buscar vaselina à sua mala que se encontrava aos pés daquele, tendo de seguida introduzido a mão no interior da mesma e dali retirado o x-acto que anteriormente havia adquirido;

11. Então, empunhando com a mão direita o referido x-acto, desferiu com a lâmina deste um golpe no lado esquerdo do pescoço do assistente BB, em direcção à carótida-jugular, só não a atingindo por razões alheias à sua vontade;

12. Logo a seguir, a arguida procurou, da mesma forma, atingir o assistente BB com a lâmina do x-acto no peito, o que só não sucedeu porque o mesmo conseguiu agarrar com força e afastar o pulso da arguida que o empunhava, impedindo-a de o golpear novamente, acabando o x-acto por cair no chão da viatura.

13. Ao mesmo tempo que o atingiu e o tentava atingir novamente, a arguida disse “se não és meu não hás-de ser de mais ninguém”, e que o iria matar, matando-se de seguida, actuando a arguida até este momento sempre com o propósito de matar o assistente.

14. Logo após o x-acto ter caído, como o assistente se sentisse a desfalecer, encontrando-se fisicamente incapaz de pedir auxílio designadamente de telefonar, pediu à arguida para chamar o INEM.

15. Respondeu-lhe a arguida, inicialmente, que não o faria, por recear ir presa.

16. Contudo, ficando então impressionada pelo estado em que o então namorado se encontrava, vendo-o a desfalecer muito ensanguentado, continuando a jorrar sangue, trémulo de suores frios e de aspecto pálido, a arguida, minutos depois, anuiu voluntariamente a telefonar para o I.N.E.M. (112), o que fez após insistência daquele para o efeito, agora, com o propósito de o socorrer, ajudando-o ainda a estancar o sangue do pescoço com um lenço.

17. A fim de apressar a chegada da equipa do INEM, a arguida deu indicação, via telefónica, sobre a respectiva localização e à aproximação daquela foi à estrada para assinalar a sua presença, o que tudo fez de livre vontade perante a total incapacidade física do assistente para o fazer, convicta de realizar os esforços que entendia necessários ao salvamento do namorado.

18. Apesar do assistente se encontrar totalmente incapaz de se defender, dada a sua forte debilidade física, a arguida não só não prosseguiu, podendo fazê-lo, a execução dos golpes com o x-acto, como promoveu o socorro da vítima, nos termos sobreditos, com a intenção de evitar a sua morte.

19. Em consequência do golpe desferido pela arguida, o assistente BB as lesões descritas nos relatórios clínicos juntos a fls. 22 a 27 e também descritas e examinadas na perícia de avaliação do dano corporal juntas aos autos a fls. 177 e 178, nomeadamente uma ferida cortoperfurante, com 2,5 cm. de largura, na entrada na região anterior do pescoço, apresentando várias veias seccionadas e sangrantes, que foram laqueadas, e um nervo seccionado na região posterior, sofrendo ainda hemorragia abundante e acentuado estado hipotérmico, lesões estas que eram susceptíveis de causar a morte ao assistente, o que só não aconteceu pelo facto deste, minutos depois, ter sido socorrido pelo INEM e posteriormente acompanhado clinicamente no Hospital de Viseu onde foi cirurgicamente operado ainda no mesmo dia.

20. Em consequência directa e necessária destas lesões, o assistente sofreu perigo para a vida, circunstância que a arguida sabia e quis provocar-lhe ao desferir aquele golpe no pescoço da vitima.

21. Aquando da realização da perícia médico-legal o assistente apresentava uma cicatriz horizontal, linear, com 5 cm. de comprimento, a nível da região anterior do pescoço à esquerda;

22. Estas lesões foram causa de um período de doença de 15 dias, sendo 2 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 5 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional;

23. A arguida utilizou o x-acto de forma totalmente surpreendente para o assistente BB, que desconhecia a sua existência, e que, por se encontrar vendado, não viu a arguida empunhar, tendo sido por isso completamente surpreendido pelo primeiro golpe, não tendo qualquer hipótese de dele se defender;

24. A arguida comprou previamente o referido x-acto para com ele atentar contra a vida do assistente BB, sabendo que ao vendá-lo e golpeá-lo daquela forma e naquele local do corpo, podia atingir órgãos vitais daquele, e dessa forma causar-lhe a morte, o que quis até ao momento sobredito;

25. A arguida tinha conhecimento das características daquele x-acto e respectiva lâmina, e sabia que o mesmo podia ser utilizado para matar ou ferir alguém com gravidade;

26. A arguida, ao actuar da forma acima descrita, agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;

27. A arguida havia sido internada no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de São Teotónio por padecer de uma depressão, causada pelo falecimento, no mês de Março de 2009, da sua avó e do seu irmão, acontecimentos estes ocorridos num período temporal de 3 dias;

28. A arguida é solteira, residindo em casa de sua mãe;

29. A arguida encontra-se actualmente desempregada, embora tivesse trabalhado como operadora de caixa até ao mês de Junho de 2009;

30. A arguida não aufere quaisquer rendimentos, subsistindo a expensas de sua mãe;

31. A arguida completou o 12º ano de escolaridade;

32. A arguida não mantém contacto com o seu pai, que se divorciou da mãe quando aquela ainda era criança;

33. A arguida não padece de qualquer doença mental, embora evidencie carência e instabilidade afectiva, e perturbação de estado-limite (“borderline”) da personalidade, caracterizada pela realização de esforços desesperados para evitar o abandono real ou imaginário, impulsividade, pessimismo, baixa auto-estima, estabelecimento de relações interpessoais instáveis e intensas, comportamento suicidário e auto-mutilante, e surgimento de raiva intensa e dificuldade em a controlar;

34. A arguida admitiu em audiência de julgamento a maior parte da conduta que lhe era imputada, e que consta dos factos dados como provados;

35. A arguida não tem antecedentes criminais.

                3. A recorrente invoca em seu favor várias circunstâncias, como a idade (21 anos à data dos factos), as condições pessoais, a confissão espontânea, o arrependimento, a ausência de antecedentes criminais, a motivação do crime.

            Nos termos do art. 40º, nºs 1 e 2, do CP, as penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa. A prevenção geral constitui pois o fundamento da pena, que deverá igualmente atender às razões da prevenção especial na vertente ressocializadora, funcionando a culpa somente como limite.

            Na determinação da pena concreta, a lei manda atender às circunstâncias do caso, e nomeadamente à ilicitude, ao modo de execução do crime e à gravidade das suas consequências, à intensidade do dolo, à motivação do crime, às condições pessoais do agente, à conduta anterior e posterior ao facto (art. 71º, nº 2, do CP).

            Apreciando os factos, é desde logo evidente o desvalor da ação, a perversidade da conduta da arguida (atraindo o ofendido a uma autêntica cilada), a intensidade do dolo, a frieza na preparação do crime e na sua execução. Estas circunstâncias estão, porém, ao menos em parte, cobertas pela qualificação do crime.

            A motivação passional do crime, incontestável, não constitui propriamente uma circunstância atenuante da culpa.

            De valor reduzido, em termos atenuativos, se mostram circunstâncias como a idade e a ausência de antecedentes criminais. A confissão foi parcial, embora a arguida tenha admitido a maior parte da conduta apurada.

            A conduta posterior ao facto, manifestada na prestação de auxílio ao ofendido não pode deixar de relevar, mas já foi atendida para efeitos de integração dos factos na desistência voluntária, com o abandono da subsunção dos mesmos ao crime de homicídio e a sua integração no crime de ofensa à integridade física grave qualificada.

            São fortes, no caso, as exigências da prevenção geral, mitigadas, no entanto, pelas razões da prevenção geral ressocializadora, atenta a idade da arguida.

            Numa ponderação global dos factos, e tendo em conta a moldura penal do crime (de 3 a 12 anos de prisão), entende-se adequada a pena de 5 anos de prisão, que se considera satisfazer as exigências da prevenção geral, sem prejudicar excessivamente os interesses da ressocialização, e não ultrapassar a medida da culpa.

            Resta indagar se, podendo essa pena ser suspensa (art. 50º, nº 1, do CP), o deverá ser.

            A pena de prisão só poderá ser suspensa se se puder formular um juízo de prognose favorável sobre o comportamento do agente, em termos de ser previsível, com um razoável grau de segurança, que a simples ameaça da pena o desviará da prática de novos crimes (nº 1 do citado art. 50º).

            As circunstâncias do caso dos autos, sobretudo as posteriores ao facto criminoso, permitem formular esse juízo de prognose. Na verdade, o crime ocorreu em circunstâncias muito específicas e dificilmente repetíveis. Com efeito, a arguida agiu movida por ciúme, desconfiada da infidelidade do ofendido, com quem mantinha uma relação amorosa, estando nessa ocasião a arguida internada em estabelecimento psiquiátrico por se encontrar em tratamento de um estado de depressão provocado pelo falecimento, meses antes e num curtíssimo espaço de tempo, de dois familiares próximos (avó e irmão).

Por outro lado, a conduta subsequente à ofensa corporal, com a desistência ativa da arguida, perante a observação do estado de sofrimento do ofendido (ver especialmente os nºs 16 a 18 da matéria de facto), mostra que ela é sensível aos valores protegidos pelo direito, fazendo assim prever, de forma razoavelmente segura, que a ameaça da pena agora cominada será suficiente para que ela não cometa novos crimes.

Sendo assim, é de decretar a suspensão da pena, necessariamente sujeita a regime de prova (nº 3 do art. 53º do CP).

            III. DECISÃO

            Com base no exposto, e na procedência parcial do recurso, decide-se:

a) Revogar o acórdão recorrido na parte referente à medida da pena, que se fixa em 5 (cinco) anos de prisão;

b) Suspender a execução da pena por 5 anos, com regime de prova, nos termos dos arts. 50º, nºs 1 e 5, e 53º, nº 3, do CP;

c) Manter, no mais, o acórdão recorrido.

Sem custas.

                                   Lisboa, 17 de outubro de 2012



Maia Costa (relator) **
Pires da Graça (“Vencido. Atenta a matéria de facto atenuante, posterior à prática do crime, reduziria a pena para quatro anos de prisão, sem que decretasse, porém, a suspensão da sua execução, ainda que fosse subordinada a regime de prova, porque, no meu ponto de vista, as características da personalidade da arguida, e, a circunstância do crime e sua elevada gravidade (a sua preparação, modo de execução, região atingida, forte intensidade do dolo, sentimentos manifestados no seu cometimento), não são de molde a concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”).
Pereira Madeira (“com voto de desempate”).