ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PRÉDIO INDIVISO
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
COMPROPRIETÁRIO
CONSENTIMENTO TÁCITO
COMPORTAMENTO CONCLUDENTE
RATIFICAÇÃO DO NEGÓCIO
CONFIRMAÇÃO DO NEGÓCIO
CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CADUCIDADE
Sumário

I - Celebrado entre a mãe do autor e a ré, em 1989, contrato verbal de arrendamento de um prédio urbano em compropriedade, pertencente a uma herança ilíquida e indivisa da qual era cabeça de casal a mãe do autor e a um filho desta última, verifica-se que, na respectiva celebração, a mãe do autor actuou na qualidade de representante sem poderes desse seu filho e, simultâneamente, em representação da citada herança ilíquida e indivisa.
II - Provado que esse arrendamento perdurou no tempo, mantendo-se sem incidentes durante cerca de 16 anos após a morte da mãe do autor, não tendo o outro comproprietário ou qualquer dos herdeiros deduzido oposição, tal actuação cai na previsão da norma especial para arrendamento de prédios indivisos constante do art. 1024.º, n.º 2, do CC, verificando-se um posterior consentimento, que é, no caso, uma verdadeira ratificação/sanação juridicamente qualificável como confirmação, nos termos e para os efeitos do art. 288.º do CC.
III - No caso, não sendo exigida escritura ública para a celebração do arrendamento, a lei não exige forma expressa para a confirmação, podendo verificar-se através de comportamentos que, sem qualquer margem para dúvida, sejam concludentes no sentido de demonstrarem um animus confirmandi.
IV - Enquanto a previsão normativa da al. c) do art. 1051.º do CC se reporta à caducidade do contrato de locação em consequência da cessação do direito ou dos poderes legais com base nos quais o contrato foi celebrado, o n.º 2 do art. 1024.º do mesmo Código estabelece um regime especial para o arrendamento de prédios em compropriedade, afastando a regra geral do art. 1407.º do CC.
V - Por aplicação do disposto no art. 1404.º do CC, mesmo naquelas situações em que o contrato de arrendamento é celebrado pelo cabeça de casal em acto de administração da herança, o contrato de arrendamento não caduca caso os co-herdeiros tenham dado o seu assentimento ao contrato, de forma expressa ou tácita.

Texto Integral




Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. AA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra BB, Lda, pedindo:
a) a declaração de ilegitimidade da ocupação por parte da ré do rés-do-chão do prédio em causa desde 12-08-2008;
b) a condenação da ré a reconhecer a propriedade do autor sobre tal parte do prédio que vem ocupando sem título que legitime tal ocupação e a restituir-lhe o mesmo livre de pessoas e coisas;
c) a condenação da ré a indemnizar o autor pela privação da posse da fracção desde 12-08-2008, à razão de € 1.000,00 por mês, até à data da efectiva entrega da mesma, valor que, na data da instauração da acção, perfaz a quantia de € 12.000,00;
d) a condenação da ré no pagamento de uma quantia pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de entrega da fracção ao autor que venha a ser decidida neste processo, acrescida de juros de mora à taxa de 5% ao ano, no valor mínimo de € 33,33 por cada dia de atraso, valor que deve ser repartido em igual medida para o autor e para o Estado;
e) a condenação da ré no pagamento das custas e demais encargos da lide.

Para tanto, alegou que por força da escritura de partilhas outorgada em 6-08-2008 é dono do imóvel identificado no artigo 1º da petição inicial, o qual, por si e antecessores, desde data anterior a 1942, foi sempre fruído, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de que lhes pertencia.
Em data indeterminada de 1989, a sua mãe, CC, verbalmente, deu de arrendamento à ré o rés-do-chão do referido prédio, onde esta vem exercendo a sua actividade comercial.
Naquela data o prédio pertencia na proporção de metade ao seu irmão, DD, e a outra metade, em situação de indivisibilidade, sem determinação de parte ou direito, à sua mãe, CC e aos seus filhos DD, EE, FF e AA.
A mãe faleceu em 25-09-1992 e, na sequência desse óbito, a propriedade do prédio identificado na petição inicial, passou a pertencer por direito próprio ao referido DD e, a outra metade, em situação de indivisibilidade, sem determinação de parte ou direito, ao mesmo DD e aos seus irmãos EE, FF e AA.
Posteriormente, faleceu, em 30-04-2001, o referido DD, no estado de solteiro, e a sua metade do prédio foi transmitida indivisa, sem determinação de parte ou direito, a seus irmãos, EE, FF e AA.

Tal situação de indivisibilidade cessou na sequência de escritura de partilha outorgada em 06-08-2008, data em que a propriedade do prédio foi adjudicada ao ora autor
 A sua mãe dispôs do prédio como se fosse a única titular e não obteve o consentimento dos demais comproprietários para arrendar o rés-do-chão.
Invocou, por isso, a ineficácia do aludido contrato de arrendamento em relação a si, cuja discordância manifestou após 06-08-2008.
Comunicou à ré a caducidade do contrato de arrendamento e, como ela se recusa a celebrar novo contrato de arrendamento, vem recusando o recebimento das rendas desde a data em que, pela partilha, passou a ser o único proprietário do prédio, evocou a caducidade do contrato de arrendamento celebrado pela sua mãe, nos termos do artigo 1051º, c) do Código Civil, porquanto, com a morte da mãe e a escritura de partilha, cessou a administração da herança, invocou a nulidade do contrato de arrendamento celebrado, atenta a não observância da forma legal e o disposto no artigo 1029º, b), e al. b), do artigo 80º do Código do Notariado e alegou que a ocupação ilícita da ré vem lhe vem causando prejuízos.
Contestou a ré, que deduziu o incidente de valor, excepcionou a incompetência do tribunal, invocou a ineptidão da petição inicial, excepcionou que o contrato de arrendamento verbal celebrado pela mãe do autor obteve o consentimento dos demais consortes, excepcionou a ininvocabilidade pelo locador da nulidade do arrendamento celebrado sem observância da forma legal, nos termos do artigo 1029º, 1, e 3, do Código Civil, e excepcionou o manifesto abuso do direito do autor, porque sempre agiu como proprietário único, sempre reconheceu o arrendamento durante 20 anos e apenas agora veio instaurar esta acção. Atribuiu ao autor litigância de má fé.
Apresentada a réplica, o autor respondeu ao incidente do valor da acção e à matéria de excepção, defendendo a sua improcedência. Perante os documentos juntos pela ré, alegou que os recibos de renda foram por si emitidos em período anterior a 06-08-2008, data da aquisição do prédio por partilha e foram emitidos a pedido de sua irmã, então cabeça-de-casal. Negou ter recebido qualquer renda no período posterior a 06-08-2008.
Decidido o incidente do valor da causa, foi o mesmo estabelecido em 32.535,03 euros.
Realizada audiência preliminar, foi proferido despacho saneador que julgou inverificada a nulidade por ineptidão da petição inicial. Seleccionada a matéria de facto assente e a controvertida, com elaboração da base instrutória e reclamação do autor, que foi atendida.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo e foi decidida a matéria de facto sem reclamação.
Foi proferida sentença na qual se decidiu julgar parcialmente procedente, por provada a acção, e assim, condenar a Ré a reconhecer a propriedade do Autor sobre o rés-do-chão do prédio em causa nos autos, absolvendo a Ré da parte restante dos pedidos.
Desta sentença foi interposto recurso de apelação.
Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto foi a apelação julgada parcialmente procedente e, mantendo-se a condenação relativa à propriedade do A sobre o prédio em causa, decidiu-se declarar a caducidade do arrendamento celebrado com a R e a ilegitimidade da ocupação do rés do chão a partir de 7/1/2009, condenando-se a R a restituir-lhe esse rés do chão livre de pessoas e coisas.
Condenou-se, ainda a R a indemnizar o A pela ocupação daquele rés-do-chão até efectiva entrega pelo valor correspondente à quantia mensal fixada como “renda do locado”.

II. Deste acórdão foi interposto o presente recurso de revista.
 Nas conclusões da sua alegação diz, em síntese, a recorrente que:
1. Ao concluir pela declaração de caducidade do arrendamento, o acórdão viola a lei substantiva porquanto se verifica erro na determinação da norma aplicável;
2. Na verdade menciona o artigo 1024º para demonstrar que o comportamento do recorrido configura um assentimento no arrendamento, o que faz no pressuposto de a mãe do recorrido ter outorgado o contrato como administradora ou cabeça de casal de herança indivisa, assim aplicando o artigo 1051º, alínea c);
3. Porém a actuação da mãe do recorrido (CC) ocorreu na condição de comproprietária aplicando-se o nº 2 do artigo 1024º;
4. O acórdão conclui pela situação de indivisibilidade do prédio dado de arrendamento à recorrente, excluindo a compropriedade titulada pela mãe do recorrido;
5. Por aplicação do direito vigente em 1942 a propriedade adquiria-se, entre outros, por sucessão por morte sendo certo que, tal como agora, o momento da aquisição era o da abertura da sucessão;
6. Através de argumentos que invoca e fundamenta afirma a recorrente que em 1989, data do contrato de arrendamento a referida CC (mãe do recorrido, autor na acção) actuou como comproprietária e não em administração da herança, não podendo assim concluir-se pela caducidade do arrendamento por cessação dos poderes de administração (alínea c) do artigo 1051º CC no qual o acórdão recorrido estriba a decisão);
7. Acrescenta que à data de celebração do contrato de arrendamento (1989) estava já em vigor o disposto no artigo 1024 nº 2 CC na sua primitiva redacção aplicável como aqui ocorre à celebração de arrendamento sobre prédio indiviso e outorgado por um comproprietário;
8. Nessa medida a validade do negócio jurídico celebrado sobre o prédio estava dependente do assentimento dos restantes comproprietários, antes ou depois daquela celebração;
9. Assentimento que o recorrido prestou durante 19 anos com a sua actuação.
10. Invocando jurisprudência sustentadora da sua posição e colocando em causa a inconstitucionalidade da decisão por alegada violação do artigo 52º da CRP, conclui a recorrente pela revogação do acórdão recorrido.

Houve contra-alegações nas quais se pugna pela manutenção da decisão recorrida.
                                                                                                                                                       
III. Fundamentação de facto
1 - O autor é proprietário do prédio urbano sito na Praça .............., ...e...., da freguesia de Cedofeita, concelho do Porto, inscrito na matriz sob o artigo 3425 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...................,propriedade registada a seu favor pela Ap. 6 de 2008/08/19.
2 -Através da Ap. 7 de 1942/02/13, foi registada a aquisição da propriedade a favor dos irmãos do autor DD e EE, ambos então menores, na proporção de metade para cada um deles.
3 - A identificada menor EE faleceu em 27-06-1942, com oito meses de idade.
4 - Na sequência de tal óbito a metade de que ela era proprietária foi transmitida aos seus pais GG e CC, que também usava CC, seus legítimos sucessores e pela Ap. 6 de 1942-08-14 foi registada essa aquisição com base na sucessão legítima.
5 - GG faleceu em 01-01-1977.
6 - Na sequência deste óbito a propriedade do mesmo prédio passou, então, a pertencer ao já referido DD, na proporção de metade e a outra metade, em situação de indivisibilidade, sem determinação de parte ou direito, à viúva CC e aos filhos sobrevivos desta DD, EE, FF e AA, o autor.
7 - CC faleceu em 25-09-1992.
8 - Por escritura de habilitação de herdeiros de 16-12-1992, lavrada na Secretaria Notarial de Matosinhos, foram habilitados como únicos herdeiros de CC, seus quatro filhos DD, EE, FF e AA, o autor.
9 - Posteriormente, em 30-04-2001, faleceu DD, no estado de solteiro, maior, sem descendentes.
10 - Através de da escritura de habilitação de herdeiros de 21-02-2003, lavrada no 9º Cartório Notarial do Porto, foram habilitados como herdeiros de DD seus irmãos, EE, FF e AA, o autor.
11 - Não obstante os sucessivos óbitos relatados, os diversos bens da herança, nomeadamente o prédio identificado em 1º supra, nunca foram partilhados e foram-se mantendo em situação de indivisibilidade.   
12 - Esta situação de indivisibilidade cessou na sequência da escritura de partilha outorgada em 06-08-2008, no notário HH, data em que a propriedade do prédio identificado em 1º foi adjudicada ao autor, conforme certidão extraída da escritura exarada a fls. 37 a 39 verso do livro de escrituras diversas nº 189-A.
13 - Em data indeterminada de 1989 a mãe do autor CC, por contrato verbal, deu de arrendamento à ré, mediante retribuição não apurada, o rés-do-chão do prédio identificado atrás, onde esta vem, desde então, exercendo a sua actividade comercial de venda ao público de artigos papelaria, jornais, revistas, tabaco e outros.
14 - O autor enviou à ré a carta de 12-08-2008 na qual comunicou àquela a caducidade do contrato, convidando a ré à celebração de contrato de arrendamento para poder manter-se no prédio – cf. carta junta como documento nº 14 e cujo teor se dá por integrado e reproduzido.
15 - A ré vem recusando a celebração de contrato de arrendamento com o autor, recusando, por outro lado, a entrega voluntária da parte do prédio que ocupa.
16 - O autor, vem recusando o recebimento das rendas desde a data em que, pela partilha, passou a ser proprietário único do prédio.
17 - Há mais de 15 anos, quer por si quer pelos seus antepossuidores, o autor detém e frui tal prédio como coisa sua, [inscrevendo-o na matriz e nele efectuando as alterações… [pagando as taxas e impostos inerentes, nomeadamente o imposto autárquico, além de o fazer sem exercício de qualquer violência e de forma pública, de boa fé, sem oposição e de forma ininterrupta, sem suspensões nem interrupções.
18 - O autor escreveu e assinou a carta constante de fls. 143, datada de 11-11-2006, pela qual declara dever a II, sócio e gerente da ré, a quantia de 10 mil euros e declarou obrigar-se a pagar essa quantia até 31-12-2006 e declarou que caso não seja possível até àquela data cumprir autorizava o credor a não pagar as rendas do estabelecimento até ter concluído todo o pagamento.
19 - No dia 15-10-2008 a Ré depositou na Caixa Geral de Depósitos a quantia de € 468,00 para pagar a renda de € 156,00 referente aos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2008, ao abrigo do artigo 18º do NRAU.
20 - O Autor foi notificado desse depósito em 17 de Outubro de 2008.
21 - O referido DD era portador de doença psiquiátrica do foro das chamadas “ psicoses”, facto que, o impossibilitava de administrar os seus bens, móveis e imóveis, nomeadamente o prédio identificado no item 1 da matéria assente - resposta quesito 1º.
22 - O DD não tinha noção do valor das coisas, nomeadamente do dinheiro - resposta quesito 2º.
23 - Motivo pelo qual todas as questões relacionados com aquele prédio, nomeadamente as relativas à celebração do contrato de arrendamento celebrado com a ré, fossem, de facto, tratadas pela sua mãe, C, embora à margem de qualquer autorização/consentimento obtidos em processo judicial de inabilitação ou interdição - resposta quesito 3º.
24 - O autor e seus irmãos EE, FF não deram autorização por escrito para a celebração do referido contrato de arrendamento - resposta quesito 4º.
25 - A ré está a ocupar o referido rés-do-chão e que enquanto durar essa ocupação não pode o mesmo ser arrendado a outrem - resposta quesito 6º.
26 - O prédio localiza-se no C....., que é uma zona de grande movimento da cidade, com transportes públicos e praça de táxis à porta, junto a duas igrejas, com vários estabelecimentos comerciais da mais variada gama de produtos em seu redor (electrodomésticos, vestuário e têxtil, diversos bancos, restaurantes, sapatarias, pastelarias, funerária, talhos e cabeleireiros, farmácia e outros), junto a posto policial, ao hospital da Prelada, estação de correios e centro de saúde - resposta quesito 7º.
27 - A ocupação de parte do prédio pela ré diminui as possibilidades de o autor proceder à venda do prédio na sua totalidade - resposta quesito 9º.

28 - Antes da data referida no item 14 º da matéria assente o Autor recebeu rendas e emitiu os respectivos recibos relativamente ao arrendamento a que se refere a matéria assente - resposta quesito 12º.
29 - Até à data a que se refere o item 14 da matéria assente o autor não se opôs ao arrendamento dos autos - resposta quesito 13º.
30 - Nenhum dos irmãos do autor se opôs ao arrendamento a que se refere a matéria assente - resposta ao quesito 14º.
31 - A ré entregou ao autor o valor devido a rendas e o autor entregou à Ré os respectivos recibos de renda por si assinados – resposta aos quesitos 16º e 17º.
32 - O autor também tratou com a arrendatária do 1º andar do imóvel dos assuntos relativos a este andar - resposta quesito 18º.
33 - Foi o autor que mostrou o imóvel quando pretendeu em dado momento aliená-lo - resposta quesito 19º.
34 - Provado apenas o que consta do item 14º da matéria assente - resposta quesito 20º.
35 - Ao abrigo do artigo 659º, nº3, do CPC e com base na certidão de fls. 19 a 22, considero provado o seguinte: pela Ap. 6 de 1942/08/14 a quota do imóvel que pertencia à falecida EE foi registada a favor de seus pais, por sucessão legítima, na proporção de ¼ para cada um (facto aditado na sentença, mas que não traduz a realidade exarada no documento, como aduziremos).

IV. Do mérito
Como foi referido nas decisões (divergentes) das instâncias estamos perante uma acção de reivindicação por via da qual o A (recorrido) pretende ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Praça .............., ...e...., da freguesia de Cedofeita, concelho do Porto, inscrito na matriz sob o artigo 3425º e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ..................., cujo direito de propriedade e encontra inscrito a seu favor pela Ap. 6 de 2008/08/19 e a restituição do mesmo por parte da R que, alegadamente e na tese do A, o ocupa sem título que legitime essa ocupação.
Contrapôs a R que a sua ocupação é legitimada por um contrato de arrendamento celebrado com a mãe do A (CC) em data indeterminada do ano de 1989; face à posição assumida pelas partes e a factualidade provada há assim que indagar se o contrato de arrendamento evocado pela R obsta à restituição do locado ou se, pelo contrário e como se decidiu no acórdão recorrido, tal contrato caducou nos termos do artigo 1051º alínea c) do Código Civil.
Definindo com o possível rigor a questão de direito que aqui se coloca, tanto tendo em atenção a solução acolhida no acórdão recorrido como o sustentado pelas partes (recorrente e recorrido) nas alegações e contra alegações, tudo reside em saber se ao efectuar o arrendamento verbal aqui em causa a mãe do A actuou na qualidade e no âmbito das funções de cabeça de casal da herança indivisa na qual, á data da celebração do arrendamento, se integrava metade indivisa do prédio objecto desse contrato (situação que, apesar da nossa divergência relativamente a esse efeito, consagrado no acórdão recorrido, sustentaria a decisão ao julgar verificada a caducidade do contrato por aplicação do citado artigo 1051º, alínea c) CC)[1] ou se, como se sustenta no recurso da R, a situação se enquadra na previsão do nº 2 do artigo 1024º, ou seja a mãe do A actuou, em representação (sem poderes) do seu filho DD (co-proprietário de ½) e simultaneamente na qualidade de cabeça de casal representando a herança nos termos do disposto no artigo 2079º na qual se integra a outra metade do prédio e, assim, como consorte administrador do prédio indiviso (em compropriedade), devendo, na sua tese, afastar-se a verificação da caducidade nos termos supracitados[2].
Esclareça-se desde já que enquanto a previsão normativa da alínea c) do artigo 1051º, na sequencia do que já dispunham os artigos 1601º e 1602º do Código de Seabra[3], se reporta à caducidade do contrato de locação em consequência de cessação do direito ou dos poderes legais com base nos quais o contrato foi celebrado, o nº 2 do artigo 1024º, na sequencia do que já estabelecia o artigo 1598º do referido antigo Código, estabelece um regime especial para o arrendamento de prédios em compropriedade afastando a regra geral do artigo 1407º.
Posto isto.
Está demonstrado que, e isto para fazermos uma breve sequencia cronológica dos factos que relevam, em 1942 por morte de EE, filha da referida CC e irmã do autor, a metade do prédio aqui em causa a esta pertencente, prédio de que eram comproprietários, em partes iguais, a referida EE e o irmão DD, foi transmitida a seus pais GG e CC, e que em 01-01-1977, por morte do GG, aquele direito sobre essa metade do prédio passou a integrar a herança do de cujus, sem determinação de parte ou direito.
Neste contexto, em data não determinada do ano de 1989, a CC deu de arrendamento o rés-do-chão desse prédio indiviso, prédio que se mantinha, como bem refere o acórdão recorrido, em compropriedade - ½ integrava a referida herança ilíquida e indivisa e o outro ½ era propriedade daquele DD - sendo perante esta realidade fáctica e jurídica, que, face às questões que são colocadas, temos que elucidar se e em que qualidade a mãe do A estava (ou não) legitimada a dar de arrendamento o imóvel sem intervenção ou consentimento dos titulares da herança e do consorte.
Na parte que se reporta á metade do prédio (em compropriedade) que integrava a herança a sua administração estava deferida ao cabeçalato (artigo 2079º do Código Civil) 2080º, 1, a), do Código Civil[4]) incumbindo esse cabeçalato ao cônjuge meeiro, ou seja àquela CC; a ela cabia e coube a administração da herança nesse período (artigo 2087º do Código Civil).
Na outra metade (indivisa) a administração caberia ao respectivo titular no caso o DD, resultando da factualidade provada que, por razões do foro mental e apesar da inexistência de qualquer interdição, os bens deste sempre foram, de facto e sem qualquer oposição da sua parte ou dos seus irmãos, administrados pela sua mãe.
Ainda que, como se sublinha no acórdão recorrido se ignorem as condições concretas em que o contrato (verbal) de arrendamento foi celebrado, conduz-nos a matéria de facto, nomeadamente a que se reporta à situação ou titularidade jurídica do locado, à conclusão que, na sua celebração, a mãe do A actuou, e só poderia ter actuado, na não na qualidade de cabeça de casal na prática de acto de administração de bem da herança – entendido este nos termos e por aplicação do disposto nos artigos 2079º e 2089 a 2091º CC (lembramos que apenas metade do prédio integrava a herança indivisa) mas sim, na qualidade de representante sem poderes do seu filho DD (co-proprietário da outra metade) e, simultaneamente em representação da herança na qualidade (de facto) de consorte administrador do prédio indiviso; acresce que esse arrendamento (que teve lugar em 1989) perdurou no tempo, sem qualquer oposição dos herdeiros, mesmo depois de verificada a morte da referida CC (cabeça de casal) em 1992 (apenas três anos após a celebração do contrato) e de ocorrida a morte do herdeiro e comproprietário DD ou seja o contrato perdurou sem qualquer incidente durante cerca de 16 anos após a morte da mãe do A.
Estamos, sem dúvida, no quadro de uma actuação que cai na previsão da norma especial para arrendamento de prédios indivisos constante do artigo 1024º nº 2 e na qual se verifica um posterior consentimento tanto do outro comproprietário como dos co-herdeiros, consentimento que é, no caso, uma verdadeira ratificação/sanação juridicamente qualificável como confirmação nos termos e para os efeitos do artigo 288º CC[5].
Isto porque a integração na previsão legal do artigo 1051º alínea c) fundamentadora da caducidade do contrato pressuporia, situação que aqui se não verifica, que o locador tivesse actuado no quadro de poderes de administração ou do direito de que, na altura, estivesse investido.
Como já tivemos ocasião de referir, mesmo depois de verificada a morte da CC, em 1992, e até à liquidação e partilha da herança, que veio a ter lugar em 6-08-2008 o contrato perdurou sem incidentes sem que quer o outro comproprietário quer qualquer dos outros herdeiros tenha deduzido oposição a esse contrato de arrendamento celebrado, nas circunstancias descritas, por sua mãe cerca de três anos antes da sua morte.
Como se salienta no acórdão recorrido após a morte da CC e mesmo após a morte, em 30-04-2001, do DD (herdeiro e comproprietário de metade do prédio) os bens continuaram por partilhar e a situação do locado foi-se mantendo, sem oposição de qualquer dos herdeiros, ainda que pela morte deste DD (titular exclusivo de ½ do prédio) a situação de indivisibilidade do prédio se tenha esbatido, em resultado da ½ do prédio que lhe pertencia (em compropriedade com as heranças indivisas abertas por óbito de sua falecida irmã EE e seus pais), ter passado a integrar a sua herança (cujos titulares são os seus sobrevivos irmãos que, do ponto de vista jurídico, poderiam dispor da propriedade de todo o imóvel e questionar o arrendamento do rés-do-chão).
Revelam todavia os factos que nem o autor nem os seus irmãos, EE e Américo, disputaram a subsistência do arrendamento que, se manteve sem oposição até 6-08-2008, estando mesmo comprovado que nem o autor nem os seus irmãos se opuseram ao arrendamento (nºs 29 e 30 dos fundamentos de facto) e que nesse período, há até registos de alguns comportamentos do autor concludentes no sentido da aceitação do contrato (designadamente recebendo da ré o valor das rendas e entregando-lhe os respectivos recibos de renda, por si assinados (nºs 28 e 31 dos factos provados), tal como também tratou com a arrendatária do 1º andar do imóvel de assuntos a ele relativos, mostrando-o quando pretendeu, em dado momento, aliená-lo (nºs 32 e 33 dos factos provados) no sentido do reconhecimento tácito dos diversos herdeiros que, ao longo das sucessivas aberturas de sucessão, foram encabeçando o direito às heranças, incluindo do autor.
Tal como se conclui relativamente ao comproprietário e a todos os co-herdeiros também o autor, como co-herdeiro das heranças indivisas acima identificadas, deu o seu assentimento tácito ao arrendamento (de prédio indiviso) efectuado por sua mãe, assentimento que, como já tivemos ocasião de referir, uma vez dado depois da celebração do contrato tem a natureza jurídica de uma confirmação do acto (artigo 288º do Código Civil) confirmação para a qual, no caso, a lei não exige forma expressa[6], podendo verificar-se, como aqui ocorre, através de comportamentos que sem qualquer margem para duvida são concludentes no sentido de demonstrarem um animus confirmandi.
Estamos, assim, perante um contrato de arrendamento validamente celebrado nos termos da disposição especial prevista no nº 2 do artigo 1024º CC, em que os locadores são os comproprietários do locado e não a cabeça de casal individualmente considerada (na prática de acto de administração da herança) situação que afasta, ao contrário do que se decidiu no acórdão recorrido, a caducidade desse contrato nos termos e com fundamento no disposto no artigo 1051º alínea c) do mesmo Código.
Importa referir que sempre tem sido nosso entendimento que, por aplicação do disposto no artigo 1404º, mesmo naquelas situações em que o contrato de arrendamento é celebrado pelo cabeça de casal em acto de administração da herança o contrato de arrendamento não caduca caso os co-herdeiros tenham dado (como aqui ocorre) o seu assentimento ao contrato de forma expressa ou tácita.
Só assim não ocorrerá quando a cabeça de casal seja simultaneamente usufrutuário e seja nesta qualidade que tenha celebrado o contrato de arrendamento[7].
Deve, assim, ser concedida a revista.
Mesmo que assim não fosse, hipótese que abstractamente colocamos por entendermos que a situação evidenciada nos autos assim o impõe, o reiterado comportamento do autor ao longo de 19 anos traduzido quer no recebimento de rendas e emissão de recibos como até na proposta de compensação com as rendas de um seu débito para com o gerente da arrendatária justificaria que a confiança da R (ou dos seus representantes) sempre fosse, em nome dos princípios da boa fé e da confiança, tutelada.
Toda esta actuação do aqui A, prolongada no tempo e susceptível de provocar a criação de um sentimento de confiança na R relativamente à estabilidade do contrato de arrendamento em causa é incompatível porque absolutamente contraditória com a posição que ele assume nos autos, a qual traduz um manifesto abuso de direito enquadrável quer na proibição de venire, já que o A assume uma posição antagónica com o comportamento que durante anos assumiu relativamente à mesma situação, quer na figura da supressio, uma vez que vem, assumir, em manifesta violação do referido principio da confiança, uma posição jurídica que não exerceu e, caso discordasse da actuação de sua mãe, poderia ter exercido ao longo de 19 anos, considerando-se desta forma ilegítimo o aqui manifestado exercício de um alegado direito que, no caso, se mostra em contradição com todo o comportamento antes exercido.
A conduta do A revela-se social e eticamente reprovável, excedendo em todo o circunstancialismo apurado, o fim social e económico do direito[8], razão pela qual, e independentemente da posição já acima exposta e decisão consequentemente tomada, a acção nunca poderia proceder face ao que dispõe o artigo 334º CC.

V. Decisão –
Com os fundamentos expostos acorda-se em conceder a revista revogando-se o acórdão recorrido na parte em que declara a caducidade do contrato de arrendamento condenando, em consequência, a R a restituir o rés-do-chão (locado) livre de pessoas e coisas e no pagamento de uma indemnização.

Custas pelo A.

Lisboa, 30 de Outubro de 2012

Mário Mendes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

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[1] A herança indivisa não configura uma situação de compropriedade mas sim de comunhão, pelo que se o cônjuge sobrevivo der de arrendamento um prédio pertencente à herança indivisa tal contrato caducará, nos termos da alínea c) do artigo 1051º CC, com o termo dos poderes de administração por morte ou partilhas.
[2] V. sobre estes efeitos Código Civil Anotado – Pires de Lima/Antunes Varela, anotações aos artigos 1024º e 1051º.
[3] Estas disposições legais referiam especialmente os administradores de bens dotais, os usufrutuários, os fiduciários e os arrendamentos de bens de menores e interditos.
[4] Na redacção anterior à vigência do Decreto-Lei n.º 496/1977, de 25 de Novembro, por a abertura da sucessão datar de Julho de 1977 e este diploma entrar em vigor em 1 de Abril de 1978.
[5] V. Acórdão deste STJ de 28/11/2002 do qual é relator o Conselheiro Ferreira de Almeida.
[6] Apenas no caso de a lei exigir escritura pública para a celebração do arrendamento deve o assentimento ser prestado de igual forma (artigo 1024º nº 2).
[7] Neste sentido os acórdãos deste STJ de 28/1/97 (em dgsi), 3/5/90 (BMJ 397/459) e de 22/11/94 (BMJ 441/305).
[8] V. Acórdão deste STJ, de 22/11/1994, BMJ, 441/305.