CONTRATO DE COMODATO
CASA DE HABITAÇÃO
EDP
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
Sumário


I - O contrato de comodato trata-se de um contrato real quoad constitutionem, gratuito – onde não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante, muito embora este possa impor, sem natureza correspectiva, ao comodatário certos encargos (cláusulas modais) – meramente consensual e em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza (art. 1131.º do CC) e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição (art. 1132.º do CC).

II - Se a habitação comodatada pela EDP não o foi para uso determinado, nem foi convencionado prazo certo para a respectiva restituição, e não podendo sustentar-se que tal comodato integra a retribuição salarial do réu (cf. art. 258.º do CT), está o réu obrigado, na qualidade de comodatário, a restituí-la logo que lhe seja exigido (cf. art. 1137.º, n.º 2, do CC)

Texto Integral

Proc. nº 629/06.3TBPRG.P1.S1[1]

               (Rel. 91)[2]

                          Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – “EDP – Energias de Portugal, S. A.” instaurou, em 27.07.06, na comarca de Peso da Régua (com distribuição ao 1º Juízo), acção declarativa de condenação, com processo comum e sob a forma ordinária, contra AA e mulher, BB, pedindo que:

                                                    /

I – Se condenem os RR. a:

                                                    /


a) – Restituir à A., imediatamente, a habitação em madeira, coberta de telha, denominada PD 3-1, sita no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Peso da Régua, livre de pessoas e bens, em virtude de o contrato de comodato celebrado entre a A. e o R.-marido ter sido já, válida e tempestivamente, denunciado pela A., encontrando-se aqueles em manifesto incumprimento contratual;
b) – Indemnizar a A., em quantia que vier a ser apurada em execução de sentença, pelos prejuízos que, com a ocupação ilegítima, ilegal e insubsistente daquela habitação, lhe vêm causando;

II – Seja fixada aos RR. sanção pecuniária compulsória no montante de € 50,00 por cada dia de atraso que tiverem em proceder à entrega/desocupação da já aludida habitação PD 3-1, livre de pessoas e bens, uma vez a tal condenados.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:

                                                   /

--- Cedeu ao R.-marido, a título gratuito e precário, a sobredita habitação, devido ao facto de o R. se encontrar a prestar serviço à A. no “Aproveitamento Hidroeléctrico da Régua” e para que nela tivesse a sua residência permanente;

--- A A. encetou acções de avaliação e levantamento das várias situações de ocupação, com vista à desactivação e eventual desmontagem/levantamento das construções e, no âmbito dessas acções, constatou que os RR. não utilizavam a referida habitação como residência permanente, antes o fazendo como residência secundária, tendo os RR. adquirido uma fracção autónoma de um prédio sito em Peso da Régua, através de escritura pública outorgada em 24.09.96, onde passaram a residir;

--- Face a tais circunstâncias, a A. diligenciou junto do R. e interpelou-o para que fizesse a entrega da mencionada habitação, livre de pessoas e bens, no prazo que lhe assinalou, ao que o R. se recusou, recusa que se mantém até hoje;

--- A não entrega da habitação mencionada vem causando à A. prejuízos e preocupações sérias, atento o avançado estado de degradação do complexo habitacional onde se insere a habitação detida, ilegítima e ilicitamente, pelo R., prejuízos esses que só poderão ser determinados após a entrega da habitação.

       Na contestação, pugnaram os RR. pela improcedência da acção, porquanto:

                                                 /

--- A casa cuja entrega a A. aqui reclama foi atribuída pela EDP ao R., como contrapartida da prestação de trabalho do mesmo que acresce ao seu salário, contrapartida essa que constitui parte da sua retribuição laboral, garantindo a lei ao trabalhador a proibição da diminuição daquela, pelo que os RR. ocupam, legitimamente, a referida habitação, não estando obrigados a entregá-la por mera determinação da entidade empregadora, continuando o R. a ter em tal habitação a sua residência permanente;

--- Mesmo na hipótese de a casa de que se trata ter sido cedida por comodato, sendo-o para um uso determinado, a obrigação de restituição só tem lugar quando findar esse uso e, se os RR. continuam a servir-se da residência para habitação, prestando o R. serviço naquele local, não assiste qualquer legitimidade à A. para exigir a entrega da habitação.

       Na réplica, rejeitou a A. a relevante factualidade aduzida pelos RR., reiterando, por seu turno, o por si alegado e peticionado.

       Foi proferido despacho saneador, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.), de que reclamaram ambas as partes, com total êxito dos RR. e parcial da A..

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 08.03.11) sentença que, julgando, parcialmente, procedente a acção, condenou os RR. “a restituir, imediatamente, à A. a habitação em madeira, coberta de telha, denominada PD 3-1, sita no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Peso da Régua, devoluta de pessoas e bens”, do mais peticionado os absolvendo.

       Julgada procedente, por acórdão da Relação do Porto, de 19.03.12, a apelação dos RR., com a inerente improcedência da acção, interpõe, agora, a A. a presente revista, visando a revogação daquele aresto, conforme extensíssimas alegações culminadas com a formulação de não menos abundantes “conclusões” que, por isso e no que releva, de seguida se sintetizam:

                                                 /

1ª – A resposta negativa produzida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto relativamente aos itens 11) 12) e 13) e positiva ao item 28) da Base Instrutória (BI) está ferida de manifesta ilegalidade e não poderá ser mantida;

2ª – Existe, pois, fundamento sério e válido para a restituição à aqui recorrente da habitação em causa nos presentes autos, nos termos do que se encontra consignado no art° 1137°, n°1 do Código Civil, o que para todos os devidos e legais efeitos se peticiona pela presente via;

3ª – O princípio da livre apreciação da prova cede face a situações de prova legal, como seja a prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais;

4ª – Tendo em devida atenção a matéria de facto assente (Factos Provados) nas alíneas q), r), v), aa), bb) e cc), sempre os recorridos teriam de entregar à recorrente a habitação em mérito, não tendo os mesmos o direito de recusar a entrega da habitação que foi atribuída ao recorrido-marido por aquela, uma vez que não são detentores de qualquer título que os legitime a não entregar a dita habitação;

5ª – Assim, também por força do presente argumento, a decisão da 1ª instância deveria ter sido mantida, só tal não tendo acontecido pela errada interpretação e aplicação que o Venerando Tribunal da Relação do Porto retirou, quer da prova carreada para os autos, quer das normas legais que ao caso vertente se mostram aplicáveis;

6ª – A atribuição da habitação em mérito, por parte da A./recorrente ao R. marido/recorrido, não constituiu, como não constitui, contrapartida do trabalho por este prestado, contrariamente ao que este veio a sustentar aquando da apresentação da sua contestação em Juízo;

7ª – Resulta da matéria factual provada que a antecessora da ora recorrente e esta cederam aos seus trabalhadores, de forma gratuita, a utilização das supra referidas habitações, tendo em vista, numa primeira fase, a construção do “Aproveitamento Hidroeléctrico” e, numa segunda fase, a exploração desse empreendimento, de forma a garantir a disponibilidade de mão-de-obra nas imediações do local de trabalho;

8ª – Atenta a definição consagrada no artigo 258° do Código do Trabalho aqui aplicável, a utilização pelos trabalhadores e, nomeadamente, pelo R.-marido, das aludidas casas/habitações, não constitui parte da sua retribuição;

9ª – A circunstância de ter ficado provado que, quando foi proposta ao R. marido a transferência para a Central da Régua, este aceitou no pressuposto de se manterem as condições de trabalho, designadamente, a atribuição de uma residência individual no local, não afasta o entendimento acima perfilhado e acabado de referir;

10ª – A cedência da habitação em questão peia recorrente ao R.-marido foi efectuada, a título gratuito, não integrando a sua retribuição;

11ª – A cedência em mérito, apenas, pode ser subsumida à figura do contrato de comodato;

12ª – No caso em apreciação, importa ter em devida ponderação, tendo em conta, quer as considerações jurídicas supra enunciadas, quer os factos provados, que, salvo melhor compreensão, a cedência da habitação em mérito, pela recorrente ao recorrido marido, nas condições em que ocorreu, para que este com a sua mulher e com a filha nela habitassem, aí estabelecendo a sua residência permanente, foi efectuada no primordial interesse destes, a título gratuito e precário, integrando, nessa medida e por consequência, um contrato de comodato e não de um qualquer outro direito, designadamente o direito de uso e habitação;

13ª – O facto de a recorrente, ainda que reflexamente, também daí poder retirar, eventualmente, qualquer utilidade marginal, não consente ou autoriza qualificar pela inexistência do contrato de comodato e reconduzir a situação em mérito a qualquer outra figura jurídica, nomeadamente, à figura do direito de uso e habitação;

14ª – A poder aceitar-se que a recorrente possa ter beneficiado, eventualmente, de tal situação, tal só poderia ter acontecido por via reflexa e não directa, surgindo tal benefício como um efeito colateral e não por via principal, razão pela qual a objecção ou restrição acima enunciada não se mostra idónea para descaracterizar ou afastar os elementos essenciais do contrato de comodato que, no caso em concreto e em apreciação, se encontram totalmente preenchidos;

15ª – A empresa antecessora da recorrente, ao conceder tal alojamento ao recorrido-marido, fê-lo dado que, ao tempo, tinha disponibilidade para tal, criando-lhe melhores condições para a execução da sua prestação laboral, sem que com isso tivesse consciência e vontade de se vincular ao que quer que seja nem a criar qualquer expectativa legítima;

16ª – Não resultou demonstrado que as partes tenham convencionado qualquer prazo para a restituição, pelo R. marido, da habitação que lhe foi cedida pela A.;

17ª – Está claramente demonstrado que os recorridos deixaram de ter residência permanente na referida habitação;

18ª – Tendo a habitação referenciada sido entregue ao recorrido-marido para que nela tivesse a sua residência permanente e tendo ficado demonstrado que não é esta a utilização que lhe é dada, torna-se lícito e legítimo concluir que o uso contratualmente determinado pelas partes findou, com a consequente extinção do contrato de comodato;

19ª – Nos termos do disposto no art. 1137°, n° 1, do C. Civil, deverão os ora recorridos entregar à recorrente a habitação em mérito e melhor descrita nestes autos, não lhes assistindo o direito a recusar a entrega de tal casa, não sendo, pois, os recorridos detentores de qualquer título que os legitime a não entregar a mesma;

20ª – A acção em mérito terá de ser julgada procedente no que concerne à pretensão da ora recorrente de condenação dos recorridos a restituírem-lhe a casa em questão, no que foram justamente condenados na 1ª instância, sendo certo que a revogação de tal decisão por parte do Venerando Tribunal da Relação do Porto só foi possível pela errada interpretação e valoração da prova existente nos autos e, bem assim, pela errada aplicação das normas legais que ao caso se mostram aplicáveis;

21ª – Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação do Porto não observou o disposto nos artigos 6°, 9°, 342°, 343°, 371°, 372°, 376° e 1137° do Código Civil e, bem assim, o disposto nos artigos 515°, 516°, 653° e 655°, todos do Código de Processo Civil.

        Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. deve conhecer-se do presente recurso de revista e, por via dele, deve revogar-se o acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, datado de 19 de Março de 2012, com todas as legais consequências, repondo-se em vigor a excelsa e imaculada decisão proferida pelo Tribunal Judicial do Peso da Régua, o que o mesmo é dizer, condenar-se os RR.-recorridos a restituir, imediatamente, à A. a habitação em madeira, coberta de telha, denominada PD 3 - 1, sita no lugar de ... , freguesia de ..., Concelho de Peso da Régua, devoluta de pessoas e bens, só assim se fazendo a costumada, inteira, plena e sã Justiça.

       Contra-alegando, defendem os recorridos a manutenção do julgado.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                *

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                                /

a) – A A. resultou da transformação em sociedade anónima da “Electricidade de Portugal EDP - Empresa Pública” que, por sua vez, foi criada na sequência da nacionalização de várias sociedades exploradoras do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, de entre elas a “Companhia Portuguesa de Electricidade, CPE, S.A.R.L.”  (A);

b) – A “Companhia Portuguesa de Electricidade, CPE, S.A.R.L.” resultou da fusão, em 1969, da “Hidro-Eléctrica do Zêzere, SARL”, “Hidro-Eléctrica do Cávado, SARL”, “Hidro-Eléctrica do Douro SARL”, “Empresa Termoeléctrica Portuguesa, SARL” e “Companhia Nacional de Electricidade, SARL” (B);

c) – Às empresas supra referidas foram outorgados direitos de concessão, quer para aproveitamento hidroeléctrico das águas de grandes rios nacionais, quer para a produção de energia eléctrica a partir de centrais termoeléctricas, bem como a exploração da rede eléctrica nacional, no caso da “CNE” (C);

d) – À “Hidro-Eléctrica do Douro, SARL” foi concessionada a exploração hidroeléctrica da energia das águas do rio Douro, quer no seu troço nacional, quer internacional (D);

e) – Ao abrigo da referida concessão, a “Hidro-Eléctrica do Douro” iniciou a construção do “Aproveitamento Hidroeléctrico da Régua”, que entrou ao serviço, em 1973, já no âmbito da “CPE, S.A.R.L.” (E);

f) – Foi disponibilizado aos trabalhadores da empresa concessionária alojamento, consoante as necessidades de cada um, independentemente de terem ou não habitação no local de origem (F);

g) – Tais instalações eram caracterizadas por provisórias (construções pré-fabricadas desmontáveis), para permanecerem durante a fase de estaleiro (G);

h) – Foram construídos aglomerados que integravam bairros para trabalhadores e demais equipamentos sociais, tendo aí se alojado trabalhadores com os respectivos agregados familiares (H);

i) – O R. é trabalhador da E.D.P., há mais de 25 anos (H-a);

j) –  Quando foi proposta ao R. a transferência para a Central da Régua, o R. aceitou no pressuposto de se manterem as condições de trabalho, designadamente, a atribuição de uma residência individual no local, onde se pudesse estabelecer com a sua mulher e filha (H-b);

k) – Quando o R. foi transferido para a Régua, os RR. deixaram a sua residência, junto da Central da Valeira, em S. João da Pesqueira, e entregaram-na à A. (H-c);

l) – Em 1992, a EDP cedeu ao R. uma habitação em madeira, coberta de telha, denominada PD 3-1, destinada a habitação, sita no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Peso da Régua (l);

m) – O R. passou a habitar a residência referida em l), após ter entregue à A. a residência identificada em k) (l-a);

n) – Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 24 de Setembro de 1996, no Cartório Notarial de Peso da Régua, os RR. AA e CC, na qualidade de segundos outorgantes, declararam comprar a fracção autónoma, identificada pela letra "CK", que corresponde a uma habitação no Bloco Traseiro, piso cinco, direito, do prédio urbano, sito na Rua …, denominado Edifício …, sito na freguesia e concelho de Peso da Régua, descrito, na Conservatória do Registo Predial, sob o n° … e inscrito, na respectiva matriz predial urbana, sob o artigo 1891 (J);

o) – Da escritura identificada em n) consta que "os segundos outorgantes declararam que aceitam esta venda e que a fracção ora adquirida se destina exclusivamente a habitação" (L);

p) – Da cláusula terceira da referida escritura pública consta que "o empréstimo destina-se à aquisição do imóvel adiante hipotecado para habitação própria permanente" (M);

q) – A A. diligenciou junto do R. para que este fizesse a entrega da habitação identificada em I) (l supra) (N);

r) – A A. dirigiu ao R., em 10.12.04, uma carta na qual lhe solicitava que contactasse os serviços da A., no Porto, para proceder à entrega das respectivas chaves, no prazo de 90 dias (O);

s) – O R. prestou serviço para a A., inicialmente na barragem de Cabril, tendo sido transferido, no ano de 1985, para a barragem de Valeira e, em 1992, para a barragem da Régua (P);

t) – O R. exerce as funções de “Técnico Principal de Exploração de Centrais da Régua, Tabuaço e Armamar (Q);

u) – Nos diversos locais onde trabalhou, ao serviço da A., foi sempre atribuída ao R. habitação custeada pela entidade empregadora (R);

v) – O R. não procedeu à desocupação nem à entrega da casa identificada em I) à A., apesar de interpelado, para o efeito, por carta registada datada de 06.04.05 (S);

w) – A construção do “Aproveitamento Hidroeléctrico da Régua” obrigou a concessionária a assegurar os meios que permitissem suprir as necessidades duma população que foi necessário deslocar para a instalação do respectivo estaleiro de obras, por um período que durou cerca de cinco anos (1º);

x) – A concessionária criou condições de permanência, no local, para os seus trabalhadores, necessárias à construção do “Aproveitamento Hidroeléctrico” enquanto estes se mantivessem ao seu serviço, afecto àquela obra ou a obras próximas (2º);

y) – Com vista a alojar o pessoal que prestou serviço na construção do “Aproveitamento Hidroeléctrico da Régua”, a concessionária criou meios para o seu alojamento, designadamente, através de pavilhões colectivos, casas unifamiliares e estalagens (3º);

z) – Tais alojamentos eram cedidos, a título gratuito e nas condições indicadas na al. cc) (4º);

aa) – Não conferindo qualquer direito ao trabalhador a utilizar a instalação facultada em oposição à vontade da empresa (5º);

bb) – A atribuição do alojamento tinha apenas como finalidade para a empresa dispor de mão de obra no local que lhe permitisse prosseguir com o caderno de encargos da concessão (6º);

cc) – O trabalhador tinha de entregar o local do alojamento à empresa quando esta o determinasse, quando cessasse o contrato de trabalho ou quando ocorresse mudança do local de trabalho (8º);

dd) – A habitação identificada na al. L)[3] foi cedida ao R., a título gratuito e por que este passou a prestar serviço à A., naquele aproveitamento hidroeléctrico (9º);

ee) – E para que nela tivesse a sua residência permanente (10º);

ff) – Art. 11º da b. i. – Alterada a resposta para “não provado” pela Relação;

gg) – Art. 12º da b. i. – Alterada a resposta para “não provado” pela Relação;  

hh) – Art. 13º da b. i. – Alterada a resposta para “não provado” pela Relação;

ii) – A não entrega da habitação tem causado à A. incómodos e transtornos e o complexo habitacional onde se insere a referida habitação encontra-se em avançado estado de degradação (15º);

jj) – Quando foi atribuída a casa ao R., a barragem da Régua encontrava-se construída, há muito tempo (18º);

kk) – A EDP iniciou um processo de desactivação do Bairro de ..., onde se encontra implantado o imóvel de que se trata e, nesse âmbito, a A. atribuiu uma compensação económica aos trabalhadores que ali residiam para que saíssem das habitações, sendo que tal compensação foi atribuída apenas àqueles que, em 2004, tinham residência permanente nas ditas habitações (23º e 24º);

ll) – Atribuindo aos trabalhadores no activo uma compensação de € 50 000,00 (25º);

mm) – E aos trabalhadores reformados uma compensação de € 40 000,00 (26º);

nn) – A A., em alternativa à compensação, possibilitou àqueles trabalhadores a escolha de outra habitação, com as respectivas características e condicionalismos que a A. possuísse em locais próximos dos respectivos locais de trabalho (27º);

nn-A) – Os RR. sempre utilizaram a referida habitação como residência permanente (28º) – Facto aditado pela Relação;

oo) – A A. facultou habitações aos seus trabalhadores do aproveitamento eléctrico (sic), no pressuposto e condição de os mesmos as irem habitar, ali estabelecendo a sua residência (29º);

pp) – Se o trabalhador tivesse residência na área do aproveitamento, não lhe seria entregue qualquer casa (30º);

qq) – Pelo facto de os aproveitamentos serem construídos em zonas distantes dos locais onde residiam habitualmente os trabalhadores que passaram a neles prestar serviço (31º).

                                              *

3 – Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[4]) –, constata-se que são, essencialmente, duas as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso, a saber:

                                              /

I – Impugnação da alteração das respostas dadas na 1ª instância aos quesitos 11º, 12º, 13º e 28º da b. i.;

II – Se, ao contrário do decidido na Relação, deve ser decretada a restituição à recorrente da habitação identificada em l) de 2 supra.

       Apreciando:

                                               *

4I – A Relação alterou para negativas as respostas dadas, na 1ª instância, aos quesitos 11º, 12º e 13º da b. i. e para positiva a resposta que havia sido dada, naquela instância, ao quesito 28º da mesma peça processual.

       A recorrente insurge-se contra tal alteração.

       Sem razão, porém: muito sucintamente, porque a tal se opõe, expressamente, o preceituado no art. 712º, nº6, quando prescreve que de tais decisões não cabe recurso para o STJ.

       Para além disso, porque, como vem sendo reiterado em sucessivos arestos deste Supremo e de que, a título de mero exemplo, se mencionam os de 12.07.07 – Proc. 07S1444.dgsi.Net – e de 05.12.07 – Proc. 06S2963.dgsi.Net –, o Supremo Tribunal de Justiça só pode censurar as respostas dadas à matéria de facto pelas instâncias quando esteja em causa a violação de regras legais sobre direito probatório material, não podendo, pois, censurar a convicção a que as instâncias chegaram sobre a matéria de facto submetida – como ocorre, “in casu” – ao princípio geral da prova livre a que alude o art. 655º, nº1.

       É que:

--- “Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito” (art. 26º da, aqui aplicável, LOFTJ – Lei nº 3/99, de 13.01);

--- “Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico adequado” (art. 729º, nº1), sendo que “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no nº2 do art. 722º” (art. 729º, nº2), ou seja, havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

       Improcedendo, pois e sem mais, as correspondentes conclusões formuladas pela recorrente, com a inerente manutenção da sobredita alteração.

                                                /

II – Está adquirido, nos autos, que a cedência da habitação referida em l) de 2 supra consubstancia um contrato de comodato em que a A. tem a qualidade de comodante e o R.-marido a de comodatário.

       Nos termos do disposto no art. 1129º do CC, “Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.

       Trata-se, no ensinamento dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela[5], de um contrato real quoad constitutionem – que só se completa pela entrega da coisa, que é feita, desde logo, sob o signo da temporalidadegratuito – onde não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante, muito embora o comodante possa impor, sem natureza correspectiva, ao comodatário certos encargos (cláusulas modais) – meramente consensual e em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza (art. 1131º do CC) e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição (art. 1132º do CC).

       Como se exarou no Ac. deste Supremo, de 15.12.11 – COL/STJ – 3º/174 – de que foi relator o Ex. mo Cons. Salazar Casanova e em que os, ora, relator e 1º Adjunto intervieram como Adjuntos, “…quando a coisa é entregue para um uso determinado tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, não a utilização da coisa em si. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do art. 1137º, nº2 do CC...;…no Ac. do STJ, de 12.06.96 (Sampaio da Nóvoa) 088392, referiu-se que «no comodato, dois requisitos são necessários para caracterizar o uso determinado do empréstimo de prédio: a) – que ele esteja expresso de modo bem claro; b) e, para evitar que em parte a situação se possa confundir com uma atitude de doação, que esse uso seja de duração limitada; neste mesmo sentido, o de o uso ser determinado, veja-se o Ac. do STJ, de 26.06.97 (Fernando Fabião) 97A334, onde se salienta que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo art. 1129º do CC, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso» Concluindo-se, de seguida: “Portanto, o comodatário, neste caso, está obrigado a restituir a coisa logo que lhe seja exigida (art. 1137º, nº2), extinguindo-se o comodato”… E, mais adiante: “O STJ tem seguido…a orientação dominante de, não convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodante poder exigir a restituição da coisa ad nutum a efectivar mediante interpelação, incorrendo o comodatário em responsabilidade civil pelo incumprimento. Neste sentido…” (indicando-se, após, 18 arestos do STJ proferidos entre 19.03.81 e 16.12.10, cuja identificação aqui se omite dada a sua fácil acessibilidade e para evitar fastidiosa repetição).

III – No caso dos autos, constata-se que, quer as instâncias, quer as partes concentraram a respectiva atenção na despoletada polémica da residência permanente, ou não, do R.-marido na habitação comodatada.

       Atendendo ao que ficou expendido em II antecedente, temos como errada uma tal perspectiva, face ao dissídio espelhado pelos autos.

       Com efeito, na apontada escalpelização da correspondente problemática jurídica, não pode entender-se que pelo facto de uma determinada habitação ter sido cedida em comodato para habitação (permanente) do comodatário, tal consubstancia um contrato de comodato para uso determinado. Este teria que ter delimitada, com subordinação ao mencionado signo da temporalidade que caracteriza o comodato (dada a respectiva natureza gratuita, alicerçada em posturas de gentileza e cortesia do comodante), a respectiva duração, por forma a que, em tese, a mesma não pudesse transmudar-se em ilimitada ou tendencialmente correspondente a toda a vida activa do comodatário. Na linha do expendido em II antecedente, a afectação a habitação do comodatário representaria, antes e com referência ao preceituado nos arts. 1131º e 1135º, al. c), ambos do CC, o fim ou finalidade do comodato.

Podendo, já e no entanto, ser havida como para uso determinado se cedida, v. g., para habitação do comodatário para lhe propiciar veraneio, junto da barragem, durante o mês de Agosto do ano em causa.

       E, se assim deve ser entendido, em tese geral, muito mais o deverá ser se for tida em conta a relevante factualidade provada.

       Na realidade, atente-se em que, além do mais, se mostra provado que:

---Tais alojamentos eram cedidos, a título gratuito e nas condições indicadas na al. cc) (al. z) de 2 supra), não conferindo qualquer direito ao trabalhador a utilizar a instalação facultada em oposição à vontade da empresa (al. aa) de 2 supra);

--- A atribuição do alojamento tinha apenas como finalidade para a empresa dispor de mão de obra no local que lhe permitisse prosseguir com o caderno de encargos da concessão (al. bb) de 2 supra); e

--- O trabalhador tinha de entregar o local do alojamento à empresa quando esta o determinasse, quando cessasse o contrato de trabalho ou quando ocorresse mudança do local de trabalho (al. cc) de 2 supra).

       Com efeito, e a admitir-se diverso entendimento, como compatibilizar a faculdade atribuída à empresa e constante da 1ª parte da transcrita al. cc) de 2 supra, se o trabalhador mantivesse a residência permanente na habitação comodatada, no momento em que a empresa lhe determinasse a entrega/restituição de tal habitação?

       Sendo, pois, de concluir que a habitação comodatada não o foi para uso determinado nem foi convencionado prazo certo para a respectiva restituição, e não podendo sustentar-se que tal comodato integra a retribuição salarial do R.-marido (Cfr. art. 258º do Cod. do Trabalho), está o R.-marido obrigado, na qualidade de comodatário, a restituí-la logo que lhe seja exigida (citado art. 1137º, nº2 do CC), ou seja, imediatamente, atento o tempo transcorrido desde a propositura da acção e não obstante o Prof. Júlio Manuel Vieira Gomes[6] sustentar que tal restituição deve ocorrer tendo em conta as circunstâncias do caso, à luz da boa fé.

       Procedendo, pois e da forma exposta, o recurso.

                                                *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se, em consequência, o acórdão recorrido, para, com a aduzida fundamentação, ficar a subsistir a sentença proferida na 1ª instância.

       Custas, aqui e na Relação, pelos recorridos-RR., mantendo-se o, aí (na 1ª instância), decidido quanto às devidas na 1ª instância.

                                                /

Lisboa, 6 de Novembro de 2012

Fernandes do Vale (Relator)

Marques Pereira

Azevedo Ramos

                                   

____________________________
[1]  Processo distribuído, neste Tribunal, em 04.09.12
[2]  Relator: Fernandes do Vale (33/12)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Marques Pereira
   Cons. Azevedo Ramos
[3]  Trata-se de evidente lapso, porquanto, em vez de “L”, deveria constar “I”.
[4]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[5]  In “CC Anotado”, Vol. II, 4ª Ed., pags. 740 e segs.
[6]  In “Cadernos de Direito Privado”, nº17, pags. 21.