ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONSTITUCIONALIDADE
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO À CAUSA
DIREITO AO RECURSO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
LACUNA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
RECLAMAÇÃO
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
RECURSO PENAL
Sumário

I - O sistema da admissibilidade dos recursos ordinários em processo civil assenta nos critérios do valor da causa e da sucumbência. A regra base é, por esta via, a da limitação, que é feita de princípio (arts. 678.º, n.º 1, e 679.º do CPC), para depois se estabelecerem exceções àquele condicionamento (n.º 2 do citado art. 678.º do CPC).
II - Diversamente, em processo penal, o art. 399.º do CPP estabelece uma cláusula geral de admissibilidade, sendo excecionais os casos pontuais de irrecorribilidade (situações dos arts. 400.º, 310.º, n.º 1, e 86.º, n.º 5, do CPP). Mas a partir do momento em que se estabelecem as exceções àquela regra de recorribilidade, que são taxativas, não faz sentido introduzir, por analogia, uma exceção da exceção, que desvirtua a lógica do sistema de recorribilidade próprio do processo penal.
III - Se a regra geral da recorribilidade é contrariada no caso da al. c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP (acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objecto do processo), essa limitação tem que se impor, sob pena de se tornar inoperante, contra a argumentação de que, à luz do processo civil, o recurso, seria de admitir.
IV - Para além do STJ só conhecer de direito (nos termos do art. 434.º do CPP, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º), este mais alto tribunal tem uma competência informada pela gravidade da situação vivida pelo arguido. E essa situação não se reputou suficientemente grave para dela conhecer o STJ, quando a pena se situar abaixo de certa medida e quando se não estiver perante o conhecimento do objecto do processo, a final.
V - É pois de rejeitar o recurso para o STJ do acórdão do Tribunal da Relação que apreciou, em sede de recurso, a decisão de 1.ª instância que incidiu sobre a questão da prescrição do procedimento criminal suscitada pelo arguido.
VI - Como esta questão já foi objecto de apreciação por dois tribunais hierarquizados, um de 1.ª instância e outro de recurso, nenhuma inconstitucionalidade existe, quanto à interpretação dos preceitos chamados à colação, para se rejeitar o recurso para o STJ, designadamente em face do que dispõem os arts. 20.º e 32.º, n.º 1, da CRP.

Texto Integral


AA, devidamente identificado nos autos, figura como arguido no P.º 712/00.9JFLSB do 2º Juízo Criminal de Oeiras, onde foi proferido despacho em 30/1/2012 (fls. 2 verso e segs.).

Como se viu, desse despacho foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, subindo como recurso independente, processado em separado e com efeito meramente devolutivo (fls. 77 e 79).

Por acórdão de 24/4/2012 a Relação negou provimento ao recurso e confirmou o despacho recorrido (fls. 119), sendo desta decisão da Relação que o arguido veio recorrer para o STJ, ao abrigo do art. 399.º e 400.º do CPP (fls. 217 e segs.).

Por decisão sumária do relator foi entendido que o acórdão da Relação de 24/4/2012 não era recorrível para o STJ, e portanto o recurso foi rejeitado, de acordo com o art. 420.º n.º 1 al. b), e n.º 2, art. 414.º n.º 2, art. 432.º n.º 1 al. b), e art. 400.º n.º 1 al. c), todos do CPP (fls. 417 e segs.).

Da decisão sumária que rejeitou o recurso, o arguido reclamou para a conferência, nos termos do art. 419.°, n.° 3, al. a), do CPP, pelo que cumpre conhecer.

[...]

C  -  APRECIAÇÃO

Começaremos por dizer, que a referência feita na reclamação ao requerimento de fls. 318 e segs. dos autos, bem como à decisão que sobre o mesmo recaiu (decisão esta que se não confunde com a decisão sumária que rejeitou o recurso), é feita à margem do objeto da própria reclamação, apenas para ser reiterada, a posição segundo a qual, a impugnação judicial da liquidação feita nos autos, quanto aos crimes de fraude fiscal por que o arguido foi condenado, “suspende ope legis a tramitação de todos os desenvolvimentos ainda pendentes do processo penal tributário”.

A reclamação estriba-se explicitamente no art. art. 419.°, n.°3, al. a), do CPP, e portanto reporta-se exclusivamente à decisão sumária proferida.

Vejamos então os pontos sobre que assenta a reclamação.

1. Quanto à questão da pretendida aplicação subsidiária do Direito Processual Civil

1.1. O reclamante parece defender que a decisão sumária proferida se devia estribar na al. a) do nº 6 do art. 417.º do CPP (haver uma circunstância que obste ao conhecimento do recurso) e não na al. b). Mas sem razão. Em primeiro lugar, porque não refere qual seria essa circunstância que impediria o conhecimento do recurso, na visão do autor da decisão sumária. Depois, porque segundo a decisão reclamada o recurso devia ser rejeitado, o que constitui a situação da al. b) do nº 1 do art. 420.º do CPP.

O recurso não devia ter sido admitido, à luz do art. 414.º nº 2 do CPP, porque se considerou que a decisão recorrida era irrecorrível. E bem.

O passo decisivo da argumentação do reclamante quanto a este ponto, é, ao que cremos, aquele em que aponta como falha da decisão sumária o não dizer “se uma disposição análoga à da alínea a) do n.° 2 do art. 678° do Código de Processo Civil deve ou não integrar o sistema de recursos penais, sobretudo quando tudo impõe, por maioria de razão, que sim”.

Ora, a posição da decisão sumária é a este propósito clara, e para tanto bastará recordar o seguinte passo: “No caso sub judice está em causa a questão da admissibilidade de recurso, e a lei processual penal prevê expressamente como exceção à regra geral de admissibilidade, a situação que ora se configura. O legislador não quis que houvesse recurso para o STJ das decisões das Relações que não conhecessem [a final] do objeto do processo.

 Tanto basta, a nosso ver, para que tenha que se considerar que o sistema processual penal, na sua lógica própria, que se não confunde com as exigências do processo civil, não apresenta aqui qualquer lacuna.

Em matéria de admissibilidade dos recursos, em processo penal, não poderá ter-se por lacunosa, uma regulamentação que expressamente prevê, como exceção à regra geral de admissibilidade, a própria situação configurada.”

Assim, se se defende que não existe qualquer lacuna, e dado que, no complexo de normas que regula a admissibilidade de recurso em processo penal, não existe uma disposição análoga à da alínea a), do n.° 2, do art. 678° do CPC, então parece óbvio que se entende que tal norma não deve figurar entre os casos de admissibilidade de recurso em processo penal.

1.2. Nenhum reparo nos merece a posição assumida na decisão sumária, sem embargo de se poder acrescentar o que se segue :

Como pano de fundo, e remontando à introdução do sistema de recursos próprio do CPP de 1987, já Cunha Rodrigues a seu tempo alertava para um certo vetor orientador, qual era “o de conferir ao sistema de recursos uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil. Salvo pormenores de regulamentação que devem procurar-se por via analógica, no código de processo civil (artigo 4.º do Código), os recursos penais passam a obedecer a princípios próprios, possuem uma estrutura normativa autónoma e desenvolvem-se segundo critérios a que não é alheia uma opção muito clara sobre a necessidade de valorizar a atitude prudencial do juiz. O Código rompe abertamente coma a tradição que, há quase um século, geminou os recursos penais e cíveis” [1] 

Ora, o sistema da admissibilidade dos recursos ordinários em processo civil assenta à partida nos critérios do valor da causa e da sucumbência para nos dizer quando é que pode haver recurso. A regra base é a da limitação, que é feita de princípio (nº 1 do art. 678.º e art. 679.º do CPC), para depois se estabelecerem exceções àquele condicionamento (nº 2 do art. 678.º citado).

Diversamente, em processo penal, o art. 399.º do CPP estabelece uma cláusula geral de admissibilidade, e são depois os casos pontuais de irrecorribilidade que constituem a exceção (situações do art. 400.º, ou do art. 310.º, nº 1, ou do art. 86.º, nº 5, todos do CPP). 

Esta diferenciação, que pode fazer-se derivar das próprias garantias constitucionais (para além da garantia geral de acesso ao direito e aos tribunais do art. 20.º da CR, o arguido beneficia ainda do direito ao recurso como específico meio de defesa em matéria penal, no art. 32.º nº 1 da CR), releva de modo importante na deteção de lacunas do processo penal, devendo recusar-se um mero paralelismo de soluções em matéria de admissibilidade de recursos [2]. E daí que a invocação de violação de caso julgado como fundamento de recurso só deva admitir-se em processo penal, quanto à matéria cível, mas na base de um princípio que informa o nosso processo de adesão, consistente no tratamento igualitário das partes civis dentro e fora do processo penal (Cf. por exemplo, Ac. de 30/6/2011, Pº 505/02.9 TAESP.P1.S1, da 5ª Secção, ou P. P. Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed. pág. 1049).

A garantia ampla da recorribilidade em processo penal é-nos dada pelo art. 399.º do CPP. Mas a partir do momento em que se estabelecem as exceções àquela regra de recorribilidade, que são taxativas, não faz sentido introduzir, por analogia, uma exceção da exceção, que desvirtua a lógica do sistema de recorribilidade próprio do processo penal.

Se a regra geral da recorribilidade é contrariada no caso da al. c) do nº 1 do art. 400.º do CPP (acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objeto do processo), essa limitação da recorribilidade terá que se impor, sob pena de se tornar inoperante, contra a argumentação de que, à luz do processo civil, o recurso, seria de admitir. É que confluem aqui os princípios orientadores da disciplina da admissibilidade de recurso para o STJ, em processo penal, que estão ausentes da lógica da admissibilidade de recursos em processo civil, e que devem sobrelevar sobre esta última [3]

Para além de o STJ só conhecer de direito (nos termos do art. 434.º do CPP, “sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 410.º”), este mais alto tribunal tem uma competência informada pela gravidade da situação vivida pelo arguido. E essa situação não se reputou suficientemente grave para dela conhecer o STJ, quando a pena aplicada se situar abaixo de certa medida, e ainda quando se não estiver perante o conhecimento do objeto do processo, a final.

1.3. É por isso que importa retomar a ideia de que, como questão prévia, há que ver se estamos de facto perante uma lacuna. 

Só há lacuna se estivermos perante uma “incompletude contrária a um plano” [4].

O “plano” é aqui a lógica própria do sistema de admissibilidade de recursos em processo penal.

O legislador não incluiu nenhuma exceção, à exceção da al. c) do nº 1 do art. 400.º do CPP (ou das outras alíneas), à regra geral da recorribilidade. Manteve-se em silêncio. “Mas existe também um silêncio eloquente da lei (…) Lacuna e silêncio da lei não são, portanto, pura e simplesmente o mesmo (…) Se existe ou não uma lacuna há de aferir-se do ponto de vista da própria lei, da intenção reguladora que lhe serve de base, dos fins com ela prosseguidos e do plano legislativo (…) A fronteira entre uma lacuna da lei e uma falha da lei, na perspetiva da política legislativa [que o arguido por certo encontraria se não defendesse a existência de uma lacuna], só pode traçar-se na medida em que se pergunte se a lei é incompleta comparada com a sua própria intenção reguladora ou se somente a decisão nela tomada não resiste a uma crítica de política legislativa ” [5].

A decisão reclamada achou que não existia qualquer lacuna, e com razão.

2. Quanto à questão da contradição de julgados

O conhecimento de quaisquer questões suscitadas na motivação de recurso e respetivas conclusões pressupõe sempre, como questão prévia, a admissibilidade legal do recurso.

Daí que se tenha tomado, na decisão reclamada, uma posição clara a tal respeito:

“Em matéria de admissibilidade dos recursos, em processo penal, não poderá ter-se por lacunosa, uma regulamentação que expressamente prevê, como exceção à regra geral de admissibilidade, a própria situação configurada.

Pelo exposto, se nos afigura desnecessário, no contexto, apurar se e como é que o Acórdão ora recorrido, de 24/4/2012, violou o caso julgado que cobre o Acórdão da mesma Relação de 14/12/2011 (ou do STJ de 13/6/2011).”

Pretender agora que, face à passagem seguinte, a decisão sumária é nula por excesso de pronuncia, invocando a al. d) do nº 1 do art. 668.º do CPC, surge como claramente despropositado.  

Em primeiro lugar, a disposição que seria de trazer à colação seria, no caso, o art. 379.º, nº 1 al. c) do CPP, por força do art. 425.º nº 4 do mesmo Código.

Depois, conhecer de uma questão é, no contexto, pronunciar-se sobre ela decidindo favoravelmente ou contra a pretensão do recorrente. Ora, a decisão sumária coíbe-se de dizer se existiu ou não violação de caso julgado, consoante pretendia o recorrente, reportando-se sempre e só à posição da Relação, sem a valorar.

Limitou-se a enquadrar a dita pretensão do recorrente, lembrando que a sua tese já havia sido defendida (e recusada) no recurso para a Relação. Portanto já tinha sido objeto de um grau de recurso.

   

3. Quanto às questões de constitucionalidade

Prevenindo “a necessidade de fazer intervir a jurisdição constitucional especializada”, pretendeu o arguido, logo no recurso para o STJ, que seria inconstitucional o sentido dos art.s 399.º e 400.º do CPP que limitasse “o direito ao recurso fora das situações tipificadas na lei criminal”. E na resposta ao parecer do Mº Pº no STJ, o arguido voltou a suscitar várias questões de inconstitucionalidade.

Pretende, agora, que a decisão sumária reclamada omitiu qualquer juízo de conformidade ou inconformidade constitucional, sobre a inexistência, em processo penal, de um mecanismo de recurso que, perante situações de violação do caso julgado, está contemplado em sede de processo civil. Pede que, caso seja confirmada a posição da decisão reclamada, em conferência, se assuma expressamente a conformidade constitucional do complexo normativo, que inviabiliza, em processo penal, um mecanismo de recurso que existe em processo civil.

Vejamos então.

Na decisão sumária proferida afirma-se que “Partindo do disposto no art. 32.º da Constituição da República que no seu n.º 1 dispõe que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, o TC tem defendido, reiteradamente, que a garantia constitucional em questão se basta com a previsão, na lei ordinária, de um duplo grau de jurisdição, sem reclamar um duplo grau de recurso”.

É inegável que a questão fulcral, levantada pelo arguido, é a do não acatamento, no despacho de 30/1/2012, da decisão proferida através do primeiro acórdão da Relação, de 14/12/2011, transitado em julgado, e em que se ordenou que a decisão ali recorrida devia ser substituída por outra “que conheça da questão da prescrição do procedimento criminal tempestivamente colocada pelo arguido”.

Ora, no recurso daquele despacho de 30/1/2012, já o recorrente defendeu junto da Relação a violação de caso julgado. E sobre essa pretensão se debruçou o acórdão de 24/4/2012. Ora, este aresto não decidiu em primeira linha contra um outro acórdão anterior da Relação, que no caso seria o de 14/12/2011. Limitou-se a dizer que a decisão recorrida não violara nenhum caso julgado.

Assim sendo, a questão em apreço já foi objeto de recurso, sobre a mesma se debruçaram dois tribunais hierarquizados, um de 1ª instância e outro de recurso, e nenhuma inconstitucionalidade existe, quanto à interpretação dos preceitos chamados à colação, para se rejeitar o recurso para o STJ, do acórdão da Relação de 24/4/2012.

Designadamente em face do que dispõe o 20.º e o art. 32.º nº 1 da CR.

D  -  DECISÃO


Em face do exposto, acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.

Custas pelo requerente, com 5 UC de taxa de justiça.

                                                            

Lisboa, 8 de Novembro de 2012


Souto de Moura (Relator)

Isabel Pais Martins

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[1] Cf. “Recursos” in “Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, pag. 384. 

[2] O que aliás acontece ainda em áreas do processo como as do regime de impedimentos, de vícios da sentença e sua correção, ou da litigância de má fé, em que a jurisprudência tem recusado a aplicação subsidiária do CPC (cf. por exemplo ao acórdãos do STJ de 7/7/2010- Pº 534/09.1YFLSB-A.S1, 5ª Secção, de 23/11/2010- Pº 138/10.6YFLSB.S1, 3ª Secção, de 14/272007- Pº 361/06, 3ª Secção).

[3] Nesta linha, o acórdão do STJ de 4/2/2009, Pº 4134/08, 3ª Secção, onde se disse, a certo passo: ”Mesmo na tese da pretensa ofensa ao caso julgado, alegada pelo recorrente como fundamento de recurso, na medida em que a decisão final seria a agora recorrida, não invalida o exposto, visto que in casu não é aplicável subsidiariamente o Código de Processo Civil, por as normas sobre o regime e tramitação dos recursos em processo penal, serem autónomas, encontrando-se expressamente previstas no Código de Processo Penal”.  

[4] A expressão é usada por Batista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1983, pág. 194.

[5] Cf. Karl Larenz in “Metodologia da Ciência do Direito”, 3ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, págs. 525, 529, 530 e 531.