1. Numa acção de divisão de coisa comum, a divisibilidade de um prédio através da constituição da propriedade horizontal por sentença judicial não depende do acordo de todos os comproprietários, bastando-se com o requerimento de algum deles e com a verificação dos requisitos substantivos (art. 1417º do CC) e os de ordem administrativa.
2. Não obsta à constituição da propriedade horizontal ope judicis o facto de as fracções apresentarem valores diversos, já que o processo especial de divisão de coisa comum admite que possam existir tornas entre os comproprietários.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - PAULO e LIA intentaram a presente acção de divisão de coisa comum contra LUÍS e MARIA relativamente a um prédio urbano, com o fundamento de que este pertence em comum e partes iguais aos AA. e aos RR., não lhes convindo permanecer na indivisão.
Os RR. contestaram e requereram que fosse determinada a divisão do prédio urbano mediante constituição da propriedade horizontal em duas fracções autónomas atribuídas a cada um dos dois comproprietários, de acordo com os critérios do art. 1056º, nº 1, do C.P.C.
Realizadas duas perícias, foi proferida decisão a declarar a divisibilidade em substância do prédio objecto da acção, nos termos propostos pelos peritos (duas fracções autónomas: fracção A e fracção B).
Interposto recurso de apelação, foi revogada a sentença, por se considerar o prédio indivisível, tendo em conta, por um lado, a falta de acordo entre os comproprietários e, por outro, o facto de a divisão através da autonomização de fracções implicar o pagamento de tornas a um deles.
O R. interpôs recurso de revista em que concluiu que:
a) O Tribunal "a quo" violou o disposto nos arts. 1.417º e 1.415º do CC, ao decidir que o prédio dos autos é indivisível por não poder ser imposto o regime da propriedade horizontal do mesmo prédio contra a vontade dos AA., pese embora estarem preenchidas todas as condições para ser dividido segundo esse regime.
b) Como resulta do art. 1.417º do CC, a propriedade horizontal pode ser constituída por decisão judicial proferida em acção de divisão de coisa comum, desde que qualquer consorte o requeira (o que os Recorrentes oportunamente fizeram) e se verifiquem os requisitos civis e administrativos que estão preenchidos.
c) Assim, impõe-se concluir que, face aos requisitos legais impostos pelas referidas normas, o prédio dos autos é divisível em substância através da constituição de duas fracções autónomas "A", correspondente ao rés-do-chão, e "B", correspondente ao 1º e 2º andares, com a descrição constante do relatório da perícia colegial.
d) Uma vez verificada a divisibilidade em substância do prédio, deviam ter sido fixados os quinhões e convocada a conferência de interessados a que alude o art. 1056º, nº 1, do CPC, tendo em vista a adjudicação.
e) Por conseguinte, o Tribunal "a quo", violou também o disposto nos arts. 1.055º (a contrario) e 1056º, nº 1, uma vez que determinou, a convocação da conferência de interessados para as finalidades previstas para o caso do prédio não ser divisível.
f) Na eventualidade de não ser possível concretizar a adjudicação por acordo, a realização do sorteio previsto no art. 1056º do CPC não exige que o valor dos quinhões seja igual, podendo, eventualmente, o consorte que receba a fracção com valor inferior reclamar o pagamento de tornas, tal como sucede no processo de inventário, cujo regime, neste particular, deve ser aplicado analogicamente.
Houve contra-alegações.
II - Com interesse para a decisão, estão assentes os seguintes factos:
1. AA. e RR. são comproprietários de um prédio urbano, sito na R. de …, …, descrito na CRP sob o nº000000000000 e inscrito na matriz predial urbana no art. 2136.
2. O rés-do-chão do prédio em causa, destinado ao comércio, está arrendado, pagando o inquilino uma renda mensal de € 200,00.
3. O 1º e o 2º andar do mesmo prédio estão devolutos.
4. O prédio referido nos números anteriores não está sujeito ao regime da propriedade horizontal, mas reúne condições para ser dividido segundo esse mesmo regime.
5. Na primeira perícia realizada, foi efectuada a avaliação do prédio pela forma seguinte:
a) Caso o prédio fosse transformado em regime de propriedade horizontal, com a criação das duas fracções e no estado actual, ou seja, o rés-do-chão ocupado e os dois pisos desocupados, o valor das fracções seria:
- Fracção A - r/c – espaço destinado a comércio, com a área de 35,00 m2 e com o valor de € 53.232,00 (221,80 x 12 x 20).
- Fracção B - 1º e 2º andares destinados a habitação, com a área de 95,50 m2 e com o valor de € 66.850,00 (95,50m2 x € 700,00/m2).
b) Caso o prédio estivesse na sua totalidade devoluto, o valor das fracções seria:
- Fracção A - r/c – espaço destinado a comércio, com a área de 35,00 m2 e com o valor de € 70.000,00 (35,00m2 x € 2.000,00).
- Fracção B - 1º e 2º andares destinados a habitação, com a área de 95,50 m2 e com o valor de € 66.850,00 (95,50m2 x € 700,00/m2).
6. Na segunda perícia realizada, foi efectuada a avaliação do prédio pela forma seguinte:
- Fracção A – (35,2 x € 1.200,00) = € 42.000,00;
- Fracção B – (95,5m2 x € 450,00) = € 42.975,00.
7. Nesta segunda perícia, após lhes ter sido solicitado esclarecimento, os peritos referiram que, a ser constituída a propriedade horizontal do prédio, a fracção a que corresponderia o espaço comercial situada ao nível do rés-do-chão e caso não esteja devoluta, o seu valor seria de € 13.500,00 e a outra fracção teria o valor de € 42.975,00.
III – Decidindo:
1. Está em causa no presente recurso a apreciação da questão da divisibilidade do prédio urbano em situação de compropriedade, mediante a constituição de duas fracções autónomas, uma correspondente ao rés-do-chão e outra ao 1º e 2º andares.
No acórdão recorrido, contrariando a decisão da 1.ª instância, concluiu-se pela indivisibilidade, com dois fundamentos. Em primeiro lugar, considerando que a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial apenas é possível com o acordo de todos os comproprietários. Em segundo lugar, concluindo que a afirmação da divisibilidade do prédio pressupõe que a sua divisão possa ser feita, por acordo ou por sorteio, sem que nenhum dos comproprietários tenha de dar ou de receber tornas, o que não sucederia no caso, já que as duas fracções autónomas que podem ser constituída têm valores diversos.
Trata-se, em qualquer dos casos, de argumentos que não correspondem à melhor leitura que pode extrair-se dos dispositivos legais.
2. A compropriedade é uma das formas por que pode apresentar-se o direito de propriedade. Mas, como é natural, a diversidade de interesses ou de comportamentos propicia a conflitualidade, sendo o direito avesso à manutenção indefinida de uma fonte de conflitos, prescrevendo a lei, em termos inequívocos, que, não havendo cláusula de indivisibilidade (com prazo máximo de 5 anos, nos termos do art. 1412ºº), cada um dos interessados pode requerer a divisão da coisa comum.
Delimitados os quinhões, se acaso a coisa for divisível em substância, parte-se para a fase de atribuição a cada um dos comproprietários da parcela que lhe compete, atribuição essa que respeitará o eventual acordo dos interessados ou o sorteio que for realizado (art. 1056º, nº 1, do CPC). Já em situações de indivisibilidade, admite-se uma alternativa: adjudicação da coisa a um dos comproprietários, com atribuição de tornas aos demais, ou venda da coisa, com distribuição pelos comproprietários do produto obtido pelos interessados, de acordo com as respectivas quotas (nºs 2 e 3).
3. Divergem as partes e divergiram as instâncias quanto à verificação do requisito da divisibilidade.
Apesar de os relatórios periciais e de a informação da autoridade administrativa competente asseverarem que é possível, em face da legislação ou regulamentação existente, a constituição de duas fracções autónomas, a Relação, aderindo à tese dos AA., concluiu que essa fórmula está inviabilizada, atenta a falta de acordo dos comproprietários para a constituição da propriedade horizontal e para a correspondente autonomização das duas fracções.
3.1. Estamos perante uma verdadeira petição de princípio em face do regime legal que nos parece claro, importando distinguir a questão da divisibilidade da coisa, que depende apenas do preenchimento dos requisitos civis ou administrativos, da sua posterior divisão pelos contitulares, operada através de diversos mecanismos cujo accionamento dependerá das concretas circunstâncias, desde logo, da existência ou não de acordo, da opção pelo sorteio ou da venda a terceiro, com distribuição do respectivo produto.
Importa acentuar que a definição do conceito de “coisas divisíveis” consta do art. 209º do CC, norma que considera como tal as que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição do valor ou prejuízo para o uso a que se destinam (divisibilidade jurídica, como a intitula o Ac. do STJ, de 14-6-11, www.dgsi.pt).
Um tal conceito deve ainda ser conjugado com outros preceitos legais que condicionam a divisão de determinadas coisas à verificação de determinados condicionalismos, casos em que a divisão material da coisa apenas será possível se se verificarem os requisitos legais de natureza imperativa, sendo que no tocante a prédios urbanos, sobressaem as exigências ligadas à constituição da propriedade horizontal dependente do preenchimento dos requisitos previstos no art. 1415º do CC e, a par desses requisitos, dos outros de ordem administrativa ou urbanística.
Para a resolução de tal questão importa que não interfira a operação situada a jusante correspondente à eventual atribuição ou distribuição de parcelas por todos ou apenas por alguns dos comproprietários (cfr. Ac. do STJ, de 28-5-02, www.dgsi.pt)
3.2. Como decorre dos elementos que anteriormente se enunciaram, maxime dos relatórios periciais e do documento exarado pela autoridade administrativa competente (o Município), é permitida a autonomização do prédio em duas fracções, uma correspondente ao rés-do-chão e outra aos 1º e 2º andares, estando, assim, preenchido um dos elementos constitutivos do direito de divisão por essa via (Ac. do STJ, de 29-11-06, www.dgsi.pt).
Por outro lado, ainda que a propriedade horizontal seja, em regra, o resultado de uma declaração unilateral do proprietário ou dos comproprietários do prédio, o art. 1417º do CC admite expressamente, como forma de constituição da propriedade horizontal, a sentença proferida em processo de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.[1]
Estando subjacente a qualquer dos referidos processos, maxime ao processo especial de divisão de coisa comum, um conflito entre os interessados, o resultado garantido por via legal (a divisão material da coisa em situação de compropriedade) não pode ficar dependente da unanimidade, com o que se estreitaria a justa composição da lide, forçando a que o processo desembocasse na adjudicação de todo o prédio a um deles ou na sua a venda a terceiro, com eventuais prejuízos para os demais, designadamente para os economicamente mais débeis.
A solução superficialmente assumida pelo acórdão recorrido é contrária á que foi defendida por Rodrigues Pardal e Dias da Fonseca, in Da Propriedade Horizontal, pág. 224, que asseveram “não ser necessário que o pedido [de constituição da propriedade horizontal em acção de divisão de coisa comum] seja feito por todos ou com o acordo de todos os interessados”.
No mesmo sentido seguiu Aragão Seia, in Propriedade Horizontal, pág. 35, onde afirmou ser legítima a constituição da propriedade por sentença em acção de divisão de coisa comum, “desde que … seja requerida por qualquer consorte. Não é necessária unanimidade entre os consortes para a constituição da propriedade horizontal …”.
Sendo este o resultado que se extrai do elemento literal, o mesmo é confirmado pelo elemento histórico cuja evolução foi descrita por Vieira Miller, em A Propriedade Horizontal no Código Civil, pág. 101, referindo que “relativamente à acção de divisão da coisa comum, o texto do Código, pelo nº 2 do art. 1417º, que não tinha correspondente na lei anterior, cortou cerce qualquer objecção ao direito de um só comproprietário requerer, desde que o edifício satisfaça os requisitos legalmente exigidos, a constituição, por essa forma, da propriedade horizontal, por o facultar expressamente”.
Por conseguinte, ainda que a constituição da propriedade horizontal no âmbito de uma acção de divisão de coisa comum esteja dependente da iniciativa de algum dos comproprietários (neste sentido cfr. o Ac. do STJ, de 13-4-10, www.dgsi.pt), não encontra justificação a exigibilidade do acordo de todos os interessados.
3.3. Contra esta afirmação não pode ser invocada o regime legal que consta do art. 1405º do CC referente ao exercício conjunto dos direitos que pertencem ao proprietário singular.
Este preceito visa regular fundamentalmente aspectos ligados ao uso ou administração da coisa em compropriedade, devendo ser compaginado com outros preceitos, designadamente com o que confere a cada um dos comproprietários o direito potestativo de provocar a divisão da coisa comum ou com o que admite a constituição ope judicis da propriedade horizontal.
Nem se diga que a constituição da propriedade horizontal e a eventual e posterior atribuição a cada comproprietário de uma fracção não satisfaz o objectivo de eliminar a conflitualidade a que anteriormente se aludiu.
Com efeito, não existe qualquer semelhança entre a situação de compropriedade de todo um prédio e a constituição do mesmo em propriedade horizontal, com distribuição paritária das fracções, a partir do que cada condómino fica proprietário exclusivo da respectiva fracção, sujeitando-se as partes comuns a um regime mais claro e menos propício à conflitualidade.
Por outro lado, a propriedade horizontal é a forma mais corrente de atribuição dos direitos de propriedade nos meios urbanos, o que por si só esvazia qualquer argumento em torno desses aspectos marginais.
Discorda-se, assim, do que foi decidido no Ac. deste STJ, 23-9-08 (www.dgsi.pt). Salvo o devido respeito, a constituição da propriedade horizontal por sentença apenas depende da verificação da existência dos requisitos legais que seriam de exigir se acaso essa constituição fosse realizada pela via administrativa. Verificados tais requisitos, o exercício do poder jurisdicional impõe-se também às autoridades administrativas, e não está nem pode estar condicionado pela adesão de todos os interessados, mais a mais quando o problema se suscita no âmbito de um processo litigioso, como o de divisão de coisa comum.
Antecipando-nos a eventuais objecções, é de destacar a contra-argumentação exposta por Vieira Miller da seguinte forma: “havia quem contestasse esse direito essencialmente com fundamento de que, sendo a acção de divisão de coisa comum o meio de pôr fim à compropriedade, em lugar disso se facultaria por esse modo a um só comproprietário a possibilidade de impor aos outros uma nova forma de compropriedade que, ao contrário do que sucedia com a antiga, eles não poderiam fazer cessar. A objecção, alheia à verdadeira natureza jurídica da propriedade horizontal, não fez carreira” (ob. cit., pág. 101, nota 1).
Deste modo, como se decidiu na 1ª instância, o facto de os AA. não estarem de acordo quanto à constituição da propriedade horizontal não afasta a possibilidade de a mesma ser constituída por sentença, tanto mais que, como se comprovou, se verificam os requisitos legais e administrativos, nos termos do art. 1415º do CC.
4. Também não encontra sustentação o outro argumento empregue no acórdão recorrido relacionado com a necessidade de integração parcial de um dos quinhões com tornas que seriam prestadas por um dos comproprietários ao outro.
De acordo com o último relatório pericial, ponderando já o facto de o rés-do-chão estar arrendado, com arrendamento a prazo, o valor das duas fracções em que o prédio se poderá dividir é praticamente idêntico:
- Fracção A – (35,2 x € 1.200,00) = € 42.000,00;
- Fracção B – (95,5m2 x € 450,00) = € 42.975,00.
Apenas para a hipótese de o rés-do-chão não estar devoluto o valor sofre um decréscimo.
O regime a que está submetido o contrato de arrendamento não pode constituir obstáculo à referida divisibilidade, sendo matéria que apenas se repercutirá na fase subsequente da determinação do valor de cada uma das fracções e do destino que por acordo ou por outra via lhe será dado.
Independentemente de qualquer factor de ordem quantitativa, a remessa que o art. 1056º, nº 3, faz para o que se dispõe no art. 1378º do CPC sobre o processo de inventário não deixa margem para dúvidas quanto à viabilidade de integração de certos quinhões simultaneamente em espécie e em dinheiro, forma pragmática de alcançar a ajustada divisão da coisa comum.
IV – Face ao exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e passando a subsistir a sentença de primeira instância.
Custas da revista e em ambas as instâncias a cargo dos AA.
Notifique.
Lisboa, 15 de Novembro de 2012
Abrantes Geraldes (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
_________________________
[1] Podem, aliás, configurar-se ainda outras acções susceptíveis de produzirem um tal resultado de natureza constitutiva, como sucede, por exemplo, em acções de execução específica de contrato-promessa de compra e venda proposta contra o promitente vendedor, quando o contrato tenha como objecto parcelas (andares, apartamentos, etc.) de um prédio em construção ou já construído, mas ainda não submetido ao regime de propriedade horizontal (cfr. neste sentido o Ac. do STJ, de 24-5-05, anotado favoravelmente por Pinto Duarte, em Cadernos de Direito Privado, nº 19º, págs. 47 e segs.).
Nesta situação, nitidamente litigiosa, é óbvio que a constituição da propriedade horizontal, como pressuposto da execução específica que incida sobre uma fracção autónoma, não pode depender da vontade ou do acordo do promitente-vendedor, sob pena de inutilização do direito potestativo por mera vontade ou inércia do contraente incumpridor. A procedência da execução específica, verificados que sejam os requisitos gerais e ainda os que especificamente respeitam à autonomização de fracções, pressupõe precisamente uma situação de oposição do promitente-vendedor que, ainda assim, não pode constituir obstáculo à tutela efectiva do direito da contraparte a obter do tribunal uma sentença que traduza uma substituição da vontade (não declarada espontaneamente) do promitente-vendedor.