I - O art. 1077.º do CC (epigrafado “actualização de rendas”), com a redacção emergente da Lei n.º 6/2006, de 27-02, é aplicável a um contrato de locação de estabelecimento comercial celebrado em 01-08-2005.
II - Aliás, a norma constante do citado art. 1077.º do CC não constitui em termos práticos um afloramento do vinculismo arrendatício, já que no seu n.º 1 se dispõe que as partes podem estipular a possibilidade de actualização da renda, assim como o respectivo regime, o que representa a aberta consagração do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do CC) neste segmento do contrato de locação.
III - Se as partes não estipularam uma cláusula de actualização automática da renda, já que não definiram com precisão o valor certo a actualizar e o momento em que a actualização se operaria, apenas tendo definido o respectivo critério, remetendo para o índice de preços no consumidor a publicar pelo INE, tinha aquela actualização de ser comunicada com um prazo razoável de antecedência para que, obtido o acordo do locatário, se pudesse tornar exigível.
IV - O cumprimento da prestação de pagamento da renda mensal pode ser provado mediante notas de débito conjugadas com documentos comprovativos de transferência para a conta bancária do senhorio (por ordem do locatário), deste modo se extinguindo a obrigação (arts. 397.º e 762.º, n.º 1, do CC).
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Termos essenciais da causa e do recurso
AA, SA, propôs uma acção ordinária contra BB, SA, actualmente CC, SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 32.853,99 €, acrescida de juros de mora desde 27/7/11.
Invocou, em resumo, a celebração com a ré de um contrato de cessão de exploração do seu estabelecimento comercial de telecomunicações, mediante o pagamento de rendas mensais de 6.000 € +IVA; o contrato foi celebrado por seis anos, com início em 1/8/05 e termo em 31/7/11; estipulou-se que a renda mensal seria actualizada anualmente com base no índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo INE; a ré sempre pagou a renda mensal de 6000€ + IVA; por carta de 26/7/11, a autora interpelou-a para lhe pagar o valor correspondente às actualizações mensais de renda de toda a vigência do contrato; a ré não pagou; essas actualizações de rendas de toda a vigência do contrato perfazem 26.710,56€, acrescido de IVA, no valor total de 32.853,99€.
A ré contestou e deduziu reconvenção.
Na contestação, alegou a aplicação do regime do artº 1077º do CC quanto à actualização das rendas mensais e que a autora nunca lhe comunicou qualquer actualização da renda prevista no contrato, ficando assim precludido o seu direito a recuperar os aumentos não feitos; que a actualização de renda acordada não era de aplicação automática e, por isso, não a tendo realizado, não pode a autora pretendê-la agora, sob pena de venire contra factum proprium. Subsidiariamente, e porque a acção foi instaurada a 7/10/11, alegou ainda a prescrição das actualizações correspondentes a Agosto de 2006 até Julho de 2007, por força do artº 310º al. g) do CC.
Em reconvenção, pediu a condenação da autora a pagar-lhe 7.200 €, correspondentes ao valor da caução que pagou.
A autora replicou, sustentando que não actua com abuso de direito e que o artº 1077º do CC não se aplica ao caso dos autos; quanto à reconvenção, invocou a excepção de compensação entre o valor que reconhece dever à ré - 7 200€ - e o crédito que sobre ela detém.
A ré treplicou, dizendo que não há lugar à invocada compensação de créditos porquanto nada deve à autora.
No despacho saneador, conhecendo-se do mérito da causa, decidiu-se:
a) Julgar a acção improcedente, absolvendo-se a ré do pedido;
b) Julgar a reconvenção procedente, condenando-se a autora (reconvinda) a pagar à ré (reconvinte) a quantia de 7.260 €, acrescida de juros de mora desde 26/7/11 às taxas que resultam da aplicação da Portaria 597/2005, de 19/07.
Inconformada, a autora interpôs recurso per saltum para o STJ, nos termos do artº 725º, nº 1, do CPC, tendo concluído, em resumo, do seguinte modo:
1º) Por ser uma disposição específica dos contratos de arrendamento de prédios urbanos, o artº 1077º do CC não poderia ter sido aplicado ao caso sub judice, fosse por aplicação directa da remissão do artº 1109º, fosse por analogia, já que a remissão expressa do artº 1109º não deve ser entendida para as disposições gerais do arrendamento urbano, mas tão só para aquela subsecção VIII;
2º) Deverão aplicar-se ao caso sub judice as regras gerais sobre o vencimento das obrigações – artºs 406º, nº 1, 762º e 763º, nº 2, do CC;
3º) Caso se entenda que é essencial a comunicação ao locatário dos montantes da actualização anual da retribuição mensal, então deverá entender-se também que a falta dessa comunicação apenas torna a dívida inexigível, porque não vencida, enquanto a comunicação não ocorrer;
4ª) Não poderá ser atribuído qualquer valor negocial ao silêncio da recorrente, concretamente o de revelar uma inexistente renúncia tácita ao valor correspondente à actualização das rendas;
5ª) Tendo em conta que a consciência da declaração referida no artº 246º do CC corresponde à voluntariedade (consciência e vontade) de vinculação face ao direito, a declaração tácita a que a sentença faz referência não produzirá qualquer efeito por falta de consciência da declaração da recorrente;
6º) A recorrida não pode ter confiado no não exercício do direito à actualização das retribuições mensais ma vez que, por um lado, essa actualização vem prevista no contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial e, por outro, não ficou provado que a recorrente tivesse emitido qualquer nota de débito prévia ao pagamento da retribuição mensal; não houve, por isso, um comportamento da recorrente que pudesse gerar a confiança da recorrida no não exercício do direito à actualização da prestação e, nessa medida, constituir abuso do direito, proibido pelo artº 334º do CC.
A ré contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.
2. Fundamentos
a) Matéria de Facto:
1) Em 2/11/07, a sociedade “BB, SA”, foi incorporada, por fusão, na DD, SA, a qual alterou a sua denominação social para EE - Serviços de Comunicações, SA, que por sua vez alterou a sua denominação social, em 01/07/10, para CC, SA.
2) A autora é dona e possuidora de um estabelecimento destinado ao exercício da actividade da venda de produtos, equipamentos e acessórios de telecomunicações electrónicas e serviços conexos, situado no R/C dos nºs 18 a 20 do prédio urbano da Praça D. Pedro IV, Rossio, Lisboa.
3) Em 1/8/05 autora e ré celebraram contrato, por escrito, denominado “Contrato de Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial”, pelo qual a autora cedeu à ré a exploração temporária do referido estabelecimento comercial, mediante o pagamento de retribuição.
4) Na cláusula 3ª nº 1 do contrato as partes estipularam que a cessão de exploração era feita por seis anos, com início em 1/8/05, inclusive, e termo a 31/7/11.
5) Na cláusula 4ª nº 2 do contrato as partes estipularam que a contrapartida mensal pela exploração do estabelecimento é de 6.000 € a crescida de IVA à taxa legal em vigor e deveria ser paga adiantadamente no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito.
6) Na cláusula 4ª nº 3 do contrato as partes estipularam “A contrapartida mensal referida no número antecedente será actualizada anualmente com base no índice de preços no consumidor, com a exclusão da habitação, publicado pelo INE, referente a Dezembro do ano anterior”.
7) A ré sempre pagou à autora a contrapartida mensal de 6.000€, acrescida de IVA, sem que esse montante alguma vez tivesse sido actualizado ao longo dos seis anos de vigência do contrato.
8) A autora remeteu à ré carta registada com a viso de recepção, datada de 26/7/11, que a ré recebeu a 27/7/11, pela qual comunica que “…a actualização anual da contrapartida mensal devida à AA, SA, nunca foi realizada…pelo que calculamos em 29.878,72€ o montante devido a esse título…”… “Porque Vexas têm um crédito de 6.000 € acrescido de IVA correspondente a uma renda paga indevidamente, iremos compensar esse valor com a dívida referida no parágrafo anterior” … “…serve a presente para interpelar Vexas para procederem ao pagamento da quantia de 23.878,72€ até ao próximo dia 31 de Julho de 2011…”.
9) A autora nunca comunicou à ré qualquer actualização das rendas e sempre emitiu as notas de débito das rendas pelo valor de 6.000 € mais IVA.
10) No ano de 2005 a ré pagou as rendas de Agosto e Dezembro e uma caução no valor de 7 200 €.
11) No ano de 2011 a ré pagou as rendas de Janeiro a Julho de 2011.
12) Em 25/7/11 a ré solicitou à autora que lhe restituísse a quantia de 7 200€.
b) Matéria de Direito
No presente recurso não se suscita nenhuma dúvida nem há qualquer controvérsia, quer acerca da qualificação do contrato ajuizado - um contrato de locação de estabelecimento comercial - quer a respeito da aplicabilidade do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, atento o disposto nos seus artºs 59º, nº 1, e 26º. Este diploma revogou alguns artigos, alterou a redacção de outros e, além disso, repôs em vigor com nova redacção os artigos 1064º a 1113º (incluindo as respectivas secções e subsecções) do Código Civil (cfr. artº 3º do NRAU).
Entende a recorrente – tal a questão posta na conclusão 1ª - que o artº 1077º do CC, cuja epígrafe é “actualização de rendas”, não se aplica ao caso dos autos; e isto porque, em suma, o referido preceito é expressão do vinculismo típico dos contratos de arrendamento, vinculismo esse de que a locação do estabelecimento nitidamente se afasta, desde logo porque não se trata de contrato sujeito a uma disciplina legal que proteja especialmente o locatário e no qual essa protecção se justifique, designadamente através da imposição de condicionalismos vários à actualização de rendas, uma vez que não existe, à partida, uma posição de supremacia do locador relativamente ao locatário.
Entendemos, todavia, sem embargo de alguma dúvida subsistir, que a recorrente não tem razão.
Segundo o artº 1109º, nº 1, do CC, cuja epígrafe é precisamente “locação de estabelecimento”, a “transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, rege-se pelas regras da presente subsecção, com as necessárias adaptações”. Dentro do capítulo IV, título II, livro II do Código, esta subsecção é a VIII – “disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais” (artºs 1108º a 1113º) - da secção VII – “arrendamento de prédios urbanos” – secção esta que integra várias subsecções com disposições gerais e de outra natureza estendendo-se do artº 1064º até ao artº 1091º, e ainda “disposições especiais do arrendamento para habitação” que vão do artº 1092º ao artº 1107º. Deste modo, afirmando-se no artº 1064º que os preceitos da secção VII se aplicam “ao arrendamento, total ou parcial, de prédios urbanos e, ainda, a outras situações nela previstas”, e sendo certo que a locação do estabelecimento está integrada no regime do arrendamento urbano por força do citado artº 1109º, nº 1, temos por certo que as normas dos artºs 1064º a 1091º (pelo menos essas) terão aplicação ao contrato ajuizado (com as adaptações, naturalmente, que se mostrem necessárias atendendo à sua natureza específica). De resto, contrariamente ao alegado pela recorrente, não parece que a norma do artº 1077º constitua em termos práticos um afloramento do vinculismo arrendatício, já que logo no seu nº 1 se dispõe que as partes podem estipular a possibilidade de actualização da renda, assim como o respectivo regime, o que sem dúvida representa a aberta consagração do princípio da liberdade contratual (artº 405º) neste relevante segmento do contrato de locação.
Sucede que quanto a este ponto as partes estipularam aquilo que ficou a constar dos factos relatados sob os nºs 4 e 5; e deles não resulta que tenham estabelecido uma cláusula de actualização automática, já que não definiram com precisão o valor certo a actualizar e o momento em que a actualização operaria; como bem se refere na sentença, apenas definiram o respectivo critério, remetendo para o índice de preços no consumidor a publicar pelo INE. Não se estando, pois, em presença duma cláusula de actualização automática, tinha esta que ser comunicada com um prazo razoável de antecedência para que, obtido o acordo do locatário, se pudesse tornar exigível. Mas não foi isto o que, manifestamente, aconteceu, pois somente a quatro dias do termo do contrato celebrado por um prazo de seis anos a autora comunicou à ré a actualização das rendas a que nessa data procedeu, unilateralmente calculada e reportada a todo o período de duração do contrato.
Por uma outra e decisiva razão a pretensão da recorrente não pode ser acolhida.
Resulta dos factos apurados que os montantes mensais pagos pela ré a título de contrapartida pela exploração do estabelecimento locado nunca foram recusados, ou de algum modo questionados pela autora ao longo dos seis anos do contrato. A ré pagou sempre pontualmente as rendas estipuladas - e sem a actualização a que alude a cláusula 4ª, nº 3 - porque o mecanismo ali previsto nunca foi desencadeado antes de 27/7/11 (facto nº 8). Por outro lado, não se vê que a autora tenha em algum momento recusado a quitação devida, nos termos do artº 787º do CC. Pelo contrário: a nosso ver, as notas de débito juntas aos autos, emitidas pela recorrente, podem e devem ser equiparadas a verdadeiros e próprios recibos de quitação; na verdade, conjugadas com os documentos, também juntos ao processo, comprovativos da transferência bancária para a conta da autora (por ordem da ré) das quantias correspondentes à renda mensal estipulada, elas demonstram inequivocamente que a prestação devida foi realizada, deste modo se extinguindo pelo cumprimento (cumprimento pontual e integral) a obrigação da recorrida (artºs 397º e 762º, nº 1, do CC).
Tanto basta para se ver que as conclusões 1ª a 3ª devem ser rejeitadas.
Ainda quanto a estas conclusões, resta acrescentar que a norma do artº 763º, nº 2, do CC não vem ao caso porque, conforme se disse, o devedor sempre pagou a totalidade da prestação devida até à data em que o credor, a quatro dias do termo do contrato, lhe exigiu uma parte supostamente em dívida. De igual modo, não colhe o argumento de que a falta de comunicação atempada da actualização apenas torna a dívida inexigível enquanto a comunicação não se efectuar: é que, como se retira de tudo quanto de expôs, o direito do credor já se extinguira pelo cumprimento da correlativa obrigação quando a actualização da prestação foi comunicada ao devedor.
A apreciação das questões colocadas nas conclusões 4ª a 6ª mostra-se prejudicada e inútil: decidido que o direito accionado está extinto (ou, mais precisamente, que não existe alojado na esfera jurídica do autor), deixa de fazer sentido determinar se foi exercido abusivamente ou objecto de renúncia juridicamente relevante.
III. Decisão
Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.
Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira