CONTRATO DE TRABALHO
ABANDONO DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
Sumário


I -   Nos termos do disposto no artigo 403.º do CT/2009, considera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador do serviço, acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de o não retomar (n.º 1), presumindo-se esse abandono “em caso de ausência de trabalhador do serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência” (n.º 2).
II - O abandono do trabalho corresponde à denúncia (tácita) do contrato por banda do trabalhador, cuja eficácia extintiva só opera se invocado, como tal, pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de recepção. 
III - A figura do abandono do trabalho analisa-se em dois elementos estruturantes: um, objectivo, consistente no incumprimento voluntário do contrato, que na generalidade dos casos se traduz na ausência/não comparência do trabalhador no local e tempo de serviço (o trabalhador deixa de se manter disponível para prestar o seu trabalho ao empregador, incumprindo o vínculo com a sua ausência voluntária e prolongada); outro, subjectivo, traduzido no animus extintivo, que se capta através de algo que o patenteie ou que se exteriorize em factos que, de acordo com a lei, “com toda a probabilidade revelem a intenção de não retomar o trabalho”.
IV – Demonstrados os factos que constituem a base da presunção prevista no n.º 2 da norma (:a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos e a inexistência/falta de qualquer informação sobre os motivos dessa ausência), funciona, em benefício do empregador, a presunção do abandono, na plena configuração da previsão constante do n.º 1, que apenas poderia ser ilidida pelo trabalhador nos termos e pela única via prevista no n.º 4 do mesmo art. 403.º.
V – O acidente de trabalho, cujo impedimento temporário se prolongue por mais de um mês, determina a suspensão do contrato de trabalho; o trabalhador deve, porém, apresentar-se ao empregador no dia imediato à cessação desse impedimento, a fim de retomar a actividade.
VI - É de considerar verificada a situação de abandono do trabalho quando está demonstrado que o trabalhador, após ter sofrido um acidente de trabalho que lhe demandou um período de incapacidade (que cessou com a fixação da alta clínica, judicialmente declarada, em 28.09.2009), entrou em baixa, imediatamente a seguir, por incapacidade para o trabalho por estado de doença, que foi comprovando perante o empregador, com sucessivos certificados, até 21.03.2009, e que, após esta última data, não só não compareceu no local de trabalho, como não informou o motivo dessa ausência, não relevando, para esse efeito, a resposta à carta enviada pelo empregador com a comunicação de abandono do trabalho, efectuada em 21.01.2010.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                            I –

1.

AA, residente no Caminho ..........., Casa....., Água de Pena, Machico, intentou contra «BB, S.A.», com sede à Rua............., ....., ....., Funchal, a presente acção declarativa em processo comum.

 Pediu que seja declarada nula e sem qualquer efeito a declaração de abandono, bem como declarada a ilicitude do despedimento, e que a Ré seja condenada a pagar-lhe as retribuições desde 18.12.2010 até ao trânsito em julgado da decisão, bem como uma indemnização, à razão de 90 dias, nos termos do art. 157.º, n.º 4, da Lei 98/09, de 4/10, e ainda uma indemnização nunca inferior a € 20 000,00, a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros legais.

       Alegou para o efeito, em resumo útil, que entrou ao serviço da Ré em Fevereiro de 1999, para exercer as funções de oficial electricista, auferindo, à data do acidente, a retribuição mensal de € 769,00, acrescida de subsídio de alimentação no montante mensal de € 136,00; em 27 de Setembro de 2007, sofreu um acidente de trabalho, encontrando-se de baixa desde essa data até à presente, e sempre justificou as respectivas faltas através da apresentação dos certificados de incapacidade para o trabalho por estado de doença; em 21 de Janeiro de 2010, a Ré comunicou ao Autor, por carta registada, que tinha terminado o seu contrato de trabalho por abandono, mercê das faltas injustificadas superiores a 15 dias úteis.

Na contestação a ré alegou que foi o Autor que deixou de comparecer ao serviço, tendo entregue o último boletim de baixa com incapacidade até o dia 19/02/08, razão pela qual lhe comunicou que entendia que o mesmo tinha abandonado o trabalho.

       Após a realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença: “Nestes termos e com tais fundamentos decide este Tribunal julgar a presente acção declarativa com processo comum improcedente e, em consequência, absolver a Ré dos pedidos”.

2.

O A., inconformado, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou o recurso procedente e, declarando ilícito o despedimento, condenou a R. a pagar àquele a quantia de € 18.174,80, a título de indemnização em substituição da reintegração, com juros de mora devidos desde a citação e até integral embolso, absolvendo-a dos demais pedidos.

Irresignada, a R. traz-nos ora a presente Revista, cuja motivação fecha com esta síntese conclusiva:

I) O presente recurso tem como objecto toda a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, que culminou na condenação da Recorrente dos pedidos formulados pelo Recorrido.

II) Resulta que, com o devido respeito, o Tribunal a quo revelou uma incorrecta interpretação e aplicação do Direito face aos factos que constituem a matéria provada.

III) Em razão de um acidente de trabalho ocorrido a 27 de Setembro de 2007, o contrato de trabalho do Recorrido encontrava-se suspenso.

IV) E o Recorrido desde a data do acidente que não comparece no seu local de trabalho.

V) Sucede que, após a entrega do último atestado médico com efeitos até 21/03/2009, o Recorrido não mais comunicou à Recorrente a sua ausência.

VI) Nos termos do artigo 297.° do C.T. deveria o Recorrido apresentar-se no seu local de trabalho após a cessação do impedimento, o que não ocorreu.

VII) Também não procurou o Recorrido comunicar à Recorrente a justificação da sua ausência.

VIII)  Pelo que, após 22/03/2009, cessou a suspensão do contrato do Recorrido, pois não há nem havia qualquer razão para supor que o trabalhador ainda estava doente e impossibilitado de comparecer; muito pelo contrário, pois a conclusão é precisamente a oposta, quando o trabalhador deixa de apresentar documento a fundamentar a sua ausência.

IX) A 21/01/2010 a Recorrente comunicou ao Recorrido, por carta com aviso de recepção, que o vínculo laboral havia cessado por abandono do trabalho, nos termos do art. 403.º/2 do C.T.

X) O Tribunal a quo’ entendeu que a suspensão prévia do contrato era fundamento para a Recorrente conhecer a razão pela qual o Recorrido não comparecia ao serviço.

XI) No entanto, o Tribunal a quo desvalorizou a ratio do art. 403.º do C.T., que tem como requisito que seja efectuada comunicação da ausência à entidade empregadora.

XII) O acórdão baseia-se numa situação hipotética e presumida de continuidade de impossibilidade para o Recorrido laborar, quando o mesmo não o logrou provar, nem o justificou sequer perante a Recorrente ou mesmo o Tribunal.

XIII) De acordo com o padrão do trabalhador médio responsável, interessado em manter o seu "lugar de trabalho", deveria o mesmo ter comunicado à Recorrente a sua ausência e o respectivo motivo da mesma.

XIV) E o Recorrido também não alegou nem demonstrou a ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação da sua ausência prolongada por cerca de 9 meses.

XV) Não pode a Recorrente ser condenada por nulidade da declaração de abandono e em despedimento ilícito com a correspondente indemnização por falta de fundamentos legais.

XVI) A Recorrente goza de uma presunção juris tantum, a qual o Tribunal a quo não considerou correctamente, nos termos do art. 403.º/2 e 4 do C.T.

XVII) E consistindo o abandono do trabalho uma denúncia de contrato pelo trabalhador, que opera unilateralmente, sem causa, estando na livre disponibilidade do Recorrido adoptar diligências de comunicação para a transmissão à Recorrente, no mínimo de intenção de voltar ao trabalho, não é juridicamente aplicável a figura do despedimento ilícito, até porque, nas palavras da Relação de Lisboa, o contrato estava suspenso.

XVIII) Por tais motivos, deve a douta decisão recorrida ser revogada e ser a Recorrente absolvida de todos os pedidos, já que foram violados os artigos 771.º da Lei 7/2009, de 12/02, que aprova a revisão do Código do Trabalho e 295.°, 296.º/1, 297°, 381.°, alíneas a) e c), 390.° e 403.° do Código do Trabalho.

O recorrido contra-alegou, concluindo, por sua vez, – e além do mais a seguir reproduzido em síntese – que, estando em causa, no caso dos Autos, a apreciação de factos verificados durante a vigência do Código do Trabalho de 2003, (o acidente de trabalho ocorrido em 27.09.2007 e a ausência do trabalhador ao serviço desde então e por causa dele), se aplica o regime jurídico acolhido neste Código, atento o disposto no artigo 8.º, n.º 1 da Lei n.º 99/2003.

Assim, como aduziu, ‘…nos termos do seu art. 333.º, n.º 1, a ausência ao serviço do Autor/Recorrente por motivo de doença por um período superior a 30 dias, enquanto impedimento temporário do trabalhador, por facto que lhe não seja imputável e que se prolongasse por mais de um mês (v.g. doença ou acidente), determina a suspensão do contrato de trabalho.

Deve ser declarado que se manteve suspenso o contrato de trabalho por impossibilidade física do Autor, por verificação de facto respeitante ao trabalhador que lhe não é imputável e que se prolongou por mais de um mês (acidente de trabalho), conforme estabelecido no artigo 333.º, n.º 1, do Código do Trabalho em vigor à data da ocorrência.

E, nos termos do artigo 334.º daquele Código, a relação juslaboral só se restabelece definitivamente, pondo assim termo à suspensão operada ope legis, quando cessado de vez o impedimento do Autor.

 À Recorrente/Entidade Empregadora era exigível que deduzisse que o Recorrido encontrava-se ausente à data da respectiva carta datada de 18.01.2010 por incapacidade resultante de tais sequelas/lesões, não lhe sendo lícito invocar o abandono de trabalho se conhecia ou devia conhecer o motivo da ausência.

Só assim se compreende o silêncio da Ré/Recorrente durante o período decorrido entre a data do último atestado, com efeitos a 21.03.2009, e a comunicação de abandono do trabalho efectuado pela mesma em 21 de Janeiro de 2010, ou seja mais de 9 meses depois.

Da factualidade dada como provada nos presentes autos não ficou provada a falta de comunicação do motivo da ausência no período considerado como de ausência ao serviço sem comunicação.

A Ré/Recorrente não beneficia da presunção de abandono de trabalho, razão pela qual a invocação da presunção de abandono do trabalho pela Ré configura abuso do direito, afigurando-se ilícito invocar aquele abandono presumido, na medida em que a mesma conhecia ou devia conhecer o motivo da ausência, desde da data do acidente de trabalho.

Não se encontrando demonstrado, nesse quadro, o abandono do trabalho, com a correspondente eficácia extintiva do vínculo laboral, deve ser declarada a nulidade da declaração de abandono constante do ofício da Ré/Recorrente datado de 18.01.2010.

A cessação do contrato de trabalho operada pela Ré com o fundamento em abandono do trabalho, tendo em conta que vigorava um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o Autor e a Ré, configura um despedimento ilícito, já que não foi precedido de processo disciplinar, com as inerentes consequências legais (artigos 381.°, alínea c), e 382.° do Código do Trabalho)’.

                                            __

Já neste Supremo Tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que a suspensão do contrato cessou após 22.3.2009 e, por isso, o mesmo contrato cessou por abandono do trabalho, conforme art. 403.º do Código do Trabalho/2009, razão por que o recurso deveria proceder.

Notificado o parecer, não suscitou qualquer reacção das partes.

Colheram-se os vistos.

Cumpre decidir.

                                                                       II –

1. – O ‘thema decidendum’.

A questão matricial que se nos coloca é a de dilucidar e resolver se, no caso, se configura ou não uma situação de abandono do trabalho, ou seja, a de saber se o contrato de trabalho que vinculava os litigantes se deve considerar cessado por abandono do trabalho por banda do trabalhador ou se por despedimento (ilícito) da R. empregadora.

2. – Dos Fundamentos.

2.1 – De Facto.

1. O Autor foi admitido ao serviço da Ré em Fevereiro de 1999 para, sob a suas ordens, direcção e fiscalização exercer as funções de electricista-Oficial, mediante retribuição mensal que, em 2007, era de € 769,00, acrescida de subsídio de refeição, no valor de € 136,00.

2. Em 27 de Setembro de 2007 o Autor foi vítima de um acidente de trabalho, o qual deu origem à acção especial emergente de acidente de trabalho que correu termos neste Tribunal (do Trabalho do Funchal) sob o n.º 510/08.1.

3. Nesses autos o Autor foi considerado curado sem desvalorização em 29.10.2008.

4. Por carta registada com aviso de recepção, com data de 18 de Janeiro de 2010, recebida pela Autor no dia 21 de Janeiro de 2010, a Ré deu conta ao mesmo do seguinte, com relevo, que: “ Desde 20/02/2009, que não comparece no seu serviço, sem que até ao momento tenha comunicado os motivos de semelhante comportamento. (…) Por tal facto, e nos termos do art. 403.º do Código do Trabalho, consideramos terminado, por abandono, o seu contrato de trabalho”.

       5. À qual o Autor respondeu por carta registada com A/R, enviada à Ré em 15.02.2010, com cópia junta a fls.81, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

6. O Autor esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho de 28.09.2007 a 01.10.2008 e com incapacidade temporária parcial de 15% de 02.10.2008 a 20.10.2008.

7. O Autor esteve com incapacidade para o trabalho por estado de doença nos períodos de 22.10.2008 a 21.11.2008, 22.11.2008 a 21.12.2008, 22.12.2008 a 20.01.2009, 21.01.2009 a 19.02.2009 e de 20.02.2009 a 21.03.2009.

8. O Autor deslocou-se, pelo menos, duas vezes a este Tribunal, no âmbito do processo referido em 1.2., para receber o capital de remição.

9. O Autor deixou de comparecer no local de trabalho desde a data do acidente.

10. Desde o último certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença, emitido com data de 04.03.2009, o Autor não avisou a Ré previamente das faltas que iria dar, nem posteriormente as justificou.

11. Tendo indicado os motivos da ausência ao trabalho através da carta referida em 2.5.

    Como resulta do Acórdão sub judicio (fls. 170), o Tribunal da Relação, na sequência da apreciação e deferimento da impugnação da matéria de facto deduzida pelo aí recorrente, fez incluir no elenco dos factos seleccionados mais um item, com o seguinte teor:

’12. Ao autor, em consequência do acidente sofrido ao serviço da R., referido no ponto 2., foi-lhe fixada uma IPP de 10% a partir do dia imediato ao da alta, a qual foi alterada para 13%, com efeitos a 1.3.2010, por despacho proferido em 31.5.2010, no processo que correu termos com o n.º 510/08.1TTFUN.’

                                   

Estes os factos materiais que, estabilizados, constituem o quadro com base no qual se resolverá a questão suscitada no presente recurso.                                                                                 

B.2 – Os Factos e o Direito.

As Instâncias não coincidiram na solução do pleito.

Enquanto a sentença do Tribunal do Trabalho do Funchal julgou a acção improcedente, absolvendo a R. dos pedidos, o Acórdão revidendo, acolhendo as razões que enformaram a apelação, declarou ilícito o despedimento do A. e condenou a R. a pagar-lhe a quantia de € 18.174,80, a título de indemnização em substituição da reintegração, e respectivos juros de mora, dos demais pedidos a absolvendo, tudo como discriminadamente consta do respectivo dispositivo (fls. 176).

Tendo como referencial de subsunção a previsão constante do art. 403.º do Código do Trabalho/2009, considerou-se, na respectiva fundamentação jurídica, que:

 no n.º 2 do mesmo dispositivo estabelece-se uma presunção do abandono do trabalho em caso de ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência, ou seja, sem que conheça os motivos pelos quais o trabalhador não comparece ao serviço.

Deste modo, a entidade empregadora tem o ónus de prova da ausência (do trabalhador) ao serviço, mas beneficia da presunção, ‘juris tantum’, do abandono do trabalho se lhe não for comunicado o motivo da ausência.

Esta presunção pode no entanto ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da sua ausência, tal como do n.º 4 do mesmo art. 403.º do CT, não lhe bastando a prova dos factos que determinaram a ausência’.

Reportando-se, a seguir, aos factos que reteve, deles se concluiu resultar que (transcrevemos):

’o autor deixou de comparecer ao serviço da ré desde a data do acidente de trabalho, ocorrido em 27 de Setembro de 2007[1], primeiro porque esteve com ITA até 20.10.2008; depois porque continuou de baixa médica, por doença, tendo para o efeito apresentado os respectivos atestados médicos que justificavam a sua ausência. Sucede que desde o último atestado, cujos efeitos terminaram em 21.3.2009, o autor não apresentou mais atestados médicos, continuando ausente ao serviço.

Todavia, face aos anteriores atestados médicos que determinaram a baixa médica do autor por doença desde 22.10.2008, terá de concluir-se que o contrato de trabalho se suspendeu por facto não imputável ao trabalhador, devido a doença deste que se prolongou por mais de um mês, atento o disposto no n.º 1 do art. 333.º do Código do Trabalho/2003.

Assim, quando a ré enviou ao autor a carta referida no ponto 4, sabia que o contrato que os ligava se encontrava suspenso, pelo que não podia desconhecer a razão pela qual o autor não comparecia ao serviço. Aliás, só assim se compreende o silêncio da ré durante o período de tempo decorrido entre a data do último atestado, com efeitos a 21.3.2009, e a comunicação de abandono do trabalho efectuada pela ré em 21 de Janeiro de 2010, ou seja, mais de 9 meses depois.

Por outro lado, em resposta à carta de 21.1.2010, o autor responde com a carta de 15.2.2010. junta a fls. 81, onde fica esclarecido que a ré sabia que a falta de apresentação dos atestados médicos a partir de 21.3.2009 se devia ao facto de a Segurança Social, por imperativo legal, deixar de poder pagar mais subsídios por doença, sabendo, no entanto, que o autor continuava impossibilitado de trabalhar.

Deste modo, não resultaram provados factos que revelassem intenção do autor em não retomar o trabalho, (o) que constitui um requisito essencial para a existência de um abandono do trabalho, como não resultou provado que o empregador não soubesse do motivo da ausência do trabalhador, pelo que a presunção do abandono a que alude o n.º 2 do art. 403.º do C T também não se verifica.Com efeito, esta pressupõe que não tenha sido comunicado ao empregador o motivo da ausência (não exigindo a lei qualquer forma para o efeito), tendo-se apurado que a ré sabia que o contrato de trabalho em causa estava suspenso por doença do autor. E, nos termos do art. 334.º do Código do Trabalho a relação laboral só se restabelece definitivamente, pondo assim termo à suspensão operada ‘ope legis’, quando cessado de vez o impedimento do autor.

No entanto, caso a ré tivesse entendido que o motivo da suspensão do contrato havia cessado, devia ter instaurado procedimento disciplinar por faltas que justificassem um despedimento com justa causa, ou então, se fosse o caso, alegado e comprovado a caducidade do contrato por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, do trabalhador prestar o seu trabalho.

Em síntese, encontrando-se o contrato de trabalho suspenso por doença do autor, a ausência deste nunca poderia ser considerada como um abandono do trabalho, pois faltava-lhe o elemento de natureza subjectiva constituído pela intenção definitiva, por parte do trabalhador, em não retomar o trabalho, que também não se podia presumir dado que a ré sabia que o contrato de trabalho que os ligava estava suspenso por doença do autor.

Deste modo, considera-se que a carta de comunicação da cessação do contrato de trabalho enviada pela ré (…) e recebida pelo autor em 21 de Janeiro de 2010, configura um despedimento ilícito, porque sem procedimento disciplinar e sem invocação de justa causa, nos termos do art. 381.º, alíneas a) e c) do C T’.

Vejamos então.

Importa precisar previamente, em termos de aplicação da Lei no tempo, que, ante o delineado contexto de facto – …em que relevarão, em rigor, para o efeito da problemática decidenda, não tanto a data da ocorrência do sinistro laboral (Setembro de 2007), mas antes as circunstâncias de facto posteriores a 21.3.2009, data esta a partir da qual não há indicação de que se tenha mantido a incapacidade do A. para o trabalho por estado de doença – se aplicará no caso o regime estabelecido no Código do Trabalho anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, ex vi do disposto no n.º 1 do seu art. 7.º, sem deixar de reconhecer alguma compreensível reserva face ao disposto na alínea c), 2.ª parte, do n.º 5 desta disposição transitória, concretamente se admitirmos, como é razoável aceitar-se, que a situação que afinal está na base da controvérsia sujeita se iniciou (remotamente) com o acidente de trabalho, em Setembro de 2007.

(Todavia, esta precisão não tem alcance consequente, já que as normas cujo conteúdo interessa reter (maxime as atinentes à noção e requisitos da figura jurídica do abandono do trabalho e suspensão do contrato de trabalho por facto respeitante ao trabalhador) são praticamente coincidentes no Código do Trabalho/2003 e no regime legal sucedâneo que procedeu à sua revisão, com excepção marcante apenas relativamente às consequências da não apresentação imediata do trabalhador após a cessação do impedimento, o que, ante a economia da solução propugnada, não tem qualquer repercussão – cfr. arts. 334.º do Código do Trabalho/2003 e 297.º do Código do Trabalho/2009).

Como estatuído no art. 403.º do Código do Trabalho revisto[2], considera-se abandono do trabalho a ausência do trabalhador do serviço acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelam a intenção de o não retomar – n.º 1.

Presume-se o abandono do trabalho em caso de ausência de trabalhador do serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, sem que o empregador seja informado do motivo da ausência – n.º 2.

Esta presunção pode ser ilidida pelo trabalhador mediante prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência, como estabelece o n.º 4 da mesma norma.

O abandono do trabalho vale como denúncia do contrato, só podendo ser invocado pelo empregador após comunicação ao trabalhador dos factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo, por carta registada com aviso de recepção.

É pacificamente adquirido, pela doutrina e pela Jurisprudência mais qualificadas[3], que a figura do abandono do trabalho (introduzida no nosso Ordenamento Jurídico pela LCCT/Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro), se analisa em dois elementos estruturantes: um, objectivo, consistente no incumprimento voluntário do contrato que na generalidade dos casos se traduz na ausência/não comparência do trabalhador no local e tempo de serviço (o trabalhador deixa de se manter disponível para prestar o seu trabalho ao empregador, incumprindo o vínculo com a sua ausência voluntária e prolongada); outro, subjectivo, traduzido no animus extintivo, que se capta através de algo que o patenteie ou que se exteriorize em factos que, de acordo com a lei, ‘com toda a probabilidade revelem a intenção de não retomar o trabalho’.

Como se alcançou no Acórdão deste Supremo Tribunal e Secção de 3.6.2009, já referido na nota supra, para que o facto seja havido como ‘concludente’ da vontade de não retomar o serviço, por banda do trabalhador, não se torna necessário que o sentido dele extraível – citamos – haja sido representado pelo respectivo agente: a concludência de um comportamento determina-se ‘de fora’, ‘objectivamente’…não exigindo a consciência subjectiva por parte do seu autor desse seu significado implícito.

Isto posto.

Importa então averiguar se o circunstancialismo de facto presente consubstancia ou não a figura jurídica do abandono do trabalho, o que impõe concretamente a análise e ponderação dos pressupostos operatórios da presunção legal estabelecida a favor do empregador e da sua eventual ilisão por banda do trabalhador – n.ºs 2 e 4 do art. 403.º.

No caso, vem assente que o A. foi vítima de um acidente de trabalho em 27 de Setembro de 2007, sinistro que desencadeou o processo especial que correu termos sob o n.º 510/08, no Tribunal do Trabalho do Funchal, e no qual o A. foi considerado curado sem desvalorização em 29.10.2008.

Como se refere – e vem documentalmente certificado a fls. 110 e seguintes, a que nos reportamos – por sentença aí proferida em 28.9.2009 foi fixada ao A. uma IPP com um coeficiente de desvalorização de 10% desde a data da alta, o dito dia 29.10.2008.

Ordenado o cálculo do correspondente capital de remição, veio o sinistrado deduzir posteriormente incidente de revisão de incapacidade com fundamento na diminuição da sua capacidade de ganho por via do agravamento da sua situação clínica – fls. 124/ss. – tendo-lhe sido arbitrada, por decisão proferida em 31.5.2010, na sequência do exame por junta médica, uma IPP com 13% de desvalorização, com efeitos reportados a 1.3.2010, condenando-se as co-responsáveis seguradora e empregadora no pagamento da pensão diferencial entre a estabelecida e a anterior, entretanto já remida.

Não obstante tudo isto – alta por cura clínica, com IPP de 10% judicialmente conferida por sentença de 28.9.2009 e reportada à data daquela (29.10.2008), com posterior incidente de revisão – o A. não mais compareceu no local de trabalho desde a data do acidente, em 27.9.2007.

Se é certo que o acidente, enquanto impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, determina a suspensão do contrato de trabalho, é igualmente certo que o trabalhador deve apresentar-se ao empregador no dia imediato à cessação do impedimento, a fim de retomar a actividade, como prescrevem os arts. 296.º, n.º 1, e 297.º.

A verdade, porém, é que o A. não mais se apresentou ao serviço desde a data do acidente.

E não teria que o fazer, dir-se-á, pelo menos desde a data da alta por cura clínica, porquanto entrou em baixa, imediatamente a seguir, por incapacidade para o trabalho por estado de doença.

(Como vem factualizado/discriminado no item 7. da FF[4], a partir de 22.10.2008 o A. esteve com incapacidade para o trabalho por estado de doença, situação que se foi prolongando por sucessivos períodos de tempo até 21.3.2009).

 Desde então não há qualquer indicação de que o seu estado de doença se tenha mantido.

Chegados a este ponto, há que (re)equacionar as premissas, ponderando as duas perspectivas relevantes, em busca da solução consentânea.

Não se questionando que à suspensão do contrato determinada pelo impedimento temporário prolongado/acidente de trabalho se seguiu, sem hiato relevante, a suspensão decorrente da incapacidade para o trabalho por estado de doença, temos por adquirido, nos Autos, que esta cessou a 21.3.2009 – 2.ª parte do falado item 7. da FF.

Cessado o impedimento, o A., como resulta do antedito, não se apresentou ao empregador.

E, independentemente de ser ou não devido, o que realmente se constata é que, como plasmado em 10. da FF, ‘[d]esde o último certificado de incapacidade temporária para o trabalho por estado de doença, emitido em 4.3.2009, o Autor não avisou a Ré previamente das faltas que iria dar, nem posteriormente as justificou’.

Ou seja, o A., que vinha mantendo a R. informada das sucessivas prorrogações da sua situação de incapacidade, deu como última indicação a de que a mesma afinal terminou na data anunciada, em 21.3.2009.

E desde então – e pelo menos até ser interpelado pela carta registada da R. de 18.1.2010, a que se alude no ponto 4. da FF – a R. não teve quaisquer sinais do A.

Ora, alcançado este momento, o Acórdão sob censura – …depois de anotar que, face aos anteriores atestados médicos que determinaram a baixa (médica) do autor desde 22.10.2008, o contrato de trabalho se suspendeu devido a doença que se prolongou por mais de um mês – concluiu que (citamos), “[a]ssim, quando a ré enviou ao autor a carta referida no ponto n.º 4 sabia que o contrato que os ligava se encontrava suspenso, pelo que não podia desconhecer a razão pela qual o autor não comparecia ao serviço. Aliás, só assim se compreende o silêncio da R. durante o período de tempo decorrido entre a data do último atestado, com efeitos a 21.3.2009 e a comunicação de abandono do trabalho efectuada pela R. em 21 de Janeiro de 2010, ou seja, mais de 9 meses depois”.

E prossegue: “Por outro lado, em resposta à carta de 15.2.2010, o autor responde com a carta de 15.2.2010, junta a fls. 81, onde fica esclarecido que a ré sabia que a falta de apresentação dos atestados médicos a partir de 21.3.2009 se devia ao facto de a Segurança Social, por imperativo legal, deixar de lhe poder pagar mais subsídios por doença, sabendo, no entanto, que o autor continuava impossibilitado de trabalho.

Deste modo (…) não resultou provado que o empregador não soubesse do motivo da ausência do trabalhador, pelo que a presunção do abandono a que alude o n.º 2 do art. 403.º do Código do Trabalho também não se verifica”.

Tudo (re)visto e ponderado, não pode sufragar-se este juízo.

É diverso o nosso entendimento.

Temos por certo que se prefigura, in casu, uma característica situação de abandono do trabalho, na delineada dimensão normativa, conquanto se admita que de contornos não propriamente lineares.

Com efeito, reportando-nos à cronologia dos momentos de facto mais relevantes, ressalta desde logo não ser da normal evolução das coisas que uma situação decorrente de um acidente de trabalho, clinicamente estabilizada, correspondente a um quadro de IPP com 10% de desvalorização, não resulte na lógica e oportuna retoma da actividade laboral, e antes se lhe siga uma imediata passagem à situação de incapacidade para o trabalho por estado de doença, sob a alçada da Segurança Social, que se foi prolongando no tempo, por períodos sucessivamente prorrogados e que – nas palavras do A., usadas na missiva que constitui o referenciado Doc. n.º 1, a fls. 81-2 dos Autos – só terá cessado, porque, por imperativo legal, o requerente deixou de ter direito a receber a retribuição devida pela baixa médica.

Ora, a ser essa a razão por que chegou ao fim a situação de incapacidade por doença, menos se compreende que o A., a manter-se interessado em recuperar o seu posto de trabalho, não tenha significado junto do seu empregador, por um qualquer meio, essa sua pretensa disposição e/ou a razão pela qual não retomava imediatamente a sua actividade.

Por outro lado, é perfeitamente lícito ao empregador haver tomado a data de 21.3.2009 como o termo da situação de incapacidade por doença, pois se o A. sempre apresentara os certificados de incapacidade temporária para o trabalho até ao último, emitido em 4.3.2009, é muito lógico concluir-se que a data nele referida como o limite desse período corresponda realmente à cessação do impedimento.

Dissentimos, por isso, da conclusão alcançada no sentido de que a Ré, quando enviou ao A. a carta referido em 4. da FF, não podia desconhecer a razão pela qual o autor não comparecia ao serviço, sendo, no descrito contexto, menos compreensível o dilatado silêncio intercorrente, por banda do A., do que o da R….

…Não se nos afigurando consistente, com o devido respeito, que, do mero conteúdo que o A. fez inscrever na referida carta (Doc. de fls. 81-82, de 15.2.2010), se possa razoavelmente concluir que ficou esclarecido que a ré sabia que a falta de apresentação dos atestados médicos a partir de 21.3.2009 se devia ao facto de a Segurança Social, por imperativo legal, deixar de lhe poder pagar mais subsídios por doença, sabendo, no entanto, que o autor continuava impossibilitado de trabalhar.

Não é sustentável, por isso, o pressuposto de que se partiu: o de que quando a R. remeteu ao A. a comunicação do abandono do trabalho, sem qualquer informação acerca dos motivos da prolongada ausência, soubesse que o contrato se encontrava suspenso e não pudesse desconhecer a razão pela qual o A. não comparecia ao serviço.

A (base da) presunção legal de que o empregador beneficia ficou pois demonstrada: a ausência do trabalhador ao serviço durante, pelo menos, 10 dias úteis seguidos, bem como a inexistência/não recepção de informação/comunicação por banda do A. do motivo da ausência.

Demonstrados os factos que suportam a presunção – cujo benefício, reflectido na inversão do ónus da prova, respeitará ora, 'ut' arts. 344.º/1 e 350.º/1 do Cód. Civil, à reconhecida dificuldade em alegar e provar, no âmbito da figura do abandono, o elemento subjectivo, o animus extintivo a que alude o n.º 1 do art. 403.º do CT (ausência do trabalhador do serviço…acompanhada de factos que, com toda a probabilidade, revelem a intenção de não o retomar) – o seu alcance, o de que se presume o abandono do trabalho, na plena configuração do n.º 1 da previsão, só poderia ser postergado mediante a respectiva ilisão, a cargo do trabalhador, pela única via prevista no n.º 4 do mesmo art. 403.º: através da prova da ocorrência de motivo de força maior impeditivo da comunicação ao empregador da causa da ausência.

(E, como é patente, não é pela carta de 15.2.2010, com que respondeu à anterior comunicação da R., de 18.1.2010, que o A. prova o que quer que seja adrede relevante).

Assim, valendo o consumado abandono do trabalho como denúncia do contrato, nos termos previstos no n.º 3 do art. 403.º, a carta da R., no dilucidado contexto – e contrariamente ao ajuizado – limita-se a operar a plena eficácia extintiva daquela, cumprindo a exigida condição legal.

Em suma:

Procedendo as razões que enformam as asserções conclusivas da motivação do recurso, a solução censurada não pode subsistir.

Tudo tratado, do essencial, vamos terminar.

       

                                            III –

                                      DECISÃO

Nos termos expostos, delibera-se conceder a Revista e, em consequência, revogando o Acórdão impugnado, absolve-se a R. do pedido.

Custas pelo A./recorrido, nas Instâncias e neste Supremo Tribunal.

                                       

Anexa-se sumário do Acórdão.

 (Art. 713.º, n.º 7, do C.P.C., na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).

                                      

Lisboa, 28 de Novembro de 2012

Fernandes da Silva (Relator)

Gonçalves Rocha

António Leones Dantas

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[1]  - Consta o ano de 2009, por evidente lapso, pois o acidente, como antes factualizado, ocorreu em 27.9.2007.
[2]  - A esta Codificação pertencem todas as normas adiante invocadas sem outra menção de origem.
[3]  - Cfr., v.g., Jorge Leite, Prontuário n.º 33, pg. 13, citado no Acórdão deste Supremo Tribunal e Secção de 31.1.2012, tirado na Revista n.º 3436/07.2TTLSB.L1.S1; vide também Acórdãos do S.T.J. de 5.7.2007, de 26.3.2008 e de 3.6.2009, consultáveis em www.dgsi.pt/STJ.
[4] - FF = Fundamentação de Facto.