I - Circunstâncias específicas existem que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade), entendendo-se que nos casos em que tais circunstâncias ocorrem há que afastar o julgador substituindo-o por outro. Tais circunstâncias tanto podem dar lugar à existência de impedimento como de suspeição. Vem-se entendendo que enquanto o impedimento afecta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afectar a sua imparcialidade e a sua independência.
II - Como corolário de tal diversidade, decorre que no caso de impedimento ao julgador está sempre vedada a sua intervenção no processo (arts. 39.° e 40.° do CPP), enquanto no caso de suspeição, tudo dependerá das razões e fundamentos que lhe subjazem (art. 43.° do CPP). Por isso, no caso de impedimento deve o juiz declará-lo imediatamente no processo, sendo irrecorrível o respectivo despacho, sendo que no caso de suspeição poderá e deverá aquele requerer ao tribunal competente que o escuse de intervir no processo (arts. 41.°, n.º 1, e 43.°, n.º 4, do CPP).
III - Tal diversidade conduziu a que o legislador optasse também por técnicas diferentes no que concerne à previsão dos impedimentos e das suspeições. Quanto aos primeiros optou pela sua enumeração taxativa (arts. 39.°, n.º 1, e 40.º, do CPP), enquanto que relativamente às segundas optou pela consagração de uma fórmula ampla, abrangente dos motivos que sejam «adequados» a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (n.º 1 do art. 43.° do CPP), acrescida da previsão de situação (exemplificativa) susceptível de constituir suspeição (n.º 2 do art. 43.° do CPP).
IV - Com efeito, preceitua o n.º 1 do art. 43.° do CPP, que a intervenção do juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, estabelecendo o n.º 2 que pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40.º do CPP.
V - No caso vertente a questão a decidir é de suspeição, pois a requerente entende que a apreciação que terá de fazer sobre os factos que são objecto do processo em que é arguida LO poderá gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, visto que conhece particularmente aqueles factos na qualidade de Presidente da Direcção da Associação (…), porquanto aquela associação foi contactada para dar apoio jurídico à arguida.
VI - O princípio norteador do instituto da suspeição é o de que a intervenção do juiz só corre risco de ser considerada suspeita, caso se verifique motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, imparcialidade referenciada em concreto ao processo em que o incidente de recusa ou escusa é suscitado, a qual pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo ou convicção prévios em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão.
VII - É notório que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. Com efeito, não basta o mero convencimento subjectivo por parte do MP, arguido, assistente ou parte civil ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição. Por outro lado, como a própria lei impõe, não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo certo ser necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves.
VIII - A lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos, pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas. Em todo o caso, certo é que o preceito do art. 43.°, n.º l, do CPP, não se contenta com um «qualquer motivo», ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado (sério e grave), o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
IX - Tendo em consideração que a Juíza Desembargadora requerente, enquanto Presidente da Associação (…), foi contactada para dar apoio jurídico à arguida LO e tem conhecimento particular dos factos relativos ao processo em que aquela é arguida, é de concluir que a sua participação enquanto relatora do recurso interposto naquele processo é susceptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Em recurso penal a correr termos no Tribunal da Relação de Lisboa no qual figura como arguida AA, a Exma. Desembargadora relatora BB, suscitou incidente de escusa, nos termos dos artigos 43º, n.º 4, 44º e 45º, n.º 1 alínea a), do Código de Processo Penal[1], sob a alegação de que sua intervenção no processo pode ser considerada suspeita, com os seguintes fundamentos[2]:
«1. A exponente exerce funções como Juíza Desembargadora na 3ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa.
2. No exercício dessas funções foi-lhe distribuído o processo n.º 1454/12.8PAALM, de Arguida presa.
3. Sucede, porém, que a exponente tem conhecimento particular dos factos relativos àqueles Autos, por a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a cuja Direcção preside, ter sido contactada para dar apoio jurídico à Arguida.
4. Entende, assim, a exponente que tal situação poderá configurar-se como um motivo adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade na apreciação e decisão dos factos em causa.
5. Nesta conformidade, solicita a Vª. Ex.ª que lhe seja concedida a escusa a que se reporta o artigo 43º do CPP».
Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.
A lei adjectiva penal, no seu Título I, Capítulo VI, regula a problemática atinente à capacidade do juiz, tendo em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça.
Trata-se de questão, pois, que tem a ver com a composição concreta do tribunal e não com a sua competência tout court.
Em todo o caso, convirá sublinhar que o que está em questão não é a capacidade genérica do julgador, a qual deve existir sempre para que aquele possa exercer a função que lhe é confiada, mas sim a capacidade específica, a qual aqui se consubstancia na inexistência de motivo particular e especial que iniba o juiz de exercer a respectiva função num determinado caso com imparcialidade.
Com efeito, circunstâncias específicas existem que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança das «partes» e do público em geral (comunidade), entendendo-se que nos casos em que tais circunstâncias ocorrem há que afastar o julgador substituindo-o por outro[3].
Tais circunstâncias tanto podem dar lugar à existência de impedimento como de suspeição.
Vem-se entendendo que enquanto o impedimento afecta sempre a imparcialidade e a independência do juiz, a suspeição pode ou não afectar a sua imparcialidade e a sua independência.
Como corolário de tal diversidade, decorre que no caso de impedimento ao julgador está sempre vedada a sua intervenção no processo (artigos 39º e 40º), enquanto no caso de suspeição, tudo dependerá das razões e fundamentos que lhe subjazem (artigo 43º). Por isso, no caso de impedimento deve o juiz declará-lo imediatamente no processo, sendo irrecorrível o respectivo despacho, sendo que no caso de suspeição poderá e deverá aquele requerer ao tribunal competente que o escuse de intervir no processo (artigos 41º, n.º1 e 43º, n.º 4).
Tal diversidade conduziu a que o legislador optasse também por técnicas diferentes no que concerne à previsão dos impedimentos e das suspeições.
Quanto aos primeiros optou pela sua enumeração taxativa (artigos 39º, n.º 1 e 40º), enquanto que relativamente às segundas optou pela consagração de uma fórmula ampla, abrangente dos motivos que sejam «adequados» a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (n.º 1 do artigo 43º), acrescida da previsão de situação (exemplificativa) susceptível de constituir suspeição (n.º 2 do artigo 43º).
Com efeito, preceitua o n.º 1 do artigo 43º, que a intervenção do juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, estabelecendo o n.º 2 que pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º[4].
No caso vertente a questão a decidir é de suspeição.
Como já ficou dito, a Exma. Desembargadora relatora, entende que a apreciação que terá de fazer sobre os factos que são objecto do processo em que é arguida AA poderá gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, visto que conhece particularmente aqueles factos na qualidade de Presidente da Direcção da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, porquanto aquela associação foi contactada para dar apoio jurídico à arguida.
Vejamos se assim é ou não.
Da exposição feita a propósito do regime jurídico dos impedimentos, recusas e escusas decorre que o princípio norteador do instituto da suspeição é o de que a intervenção do juiz só corre risco de ser considerada suspeita, caso se verifique motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, imparcialidade referenciada em concreto ao processo em que o incidente de recusa ou escusa é suscitado, a qual pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo ou convicção prévios em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão[5].
É notório que a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. Com efeito, não basta o mero convencimento subjectivo por parte do Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição[6].
Por outro lado, como a própria lei impõe, não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo certo ser necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves.
A lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos, pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas[7]. Em todo o caso, certo é que o preceito do artigo 43º, n.º1, não se contenta com um «qualquer motivo», ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado (sério e grave), o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção[8].
Tendo em consideração que a Juíza Desembargadora requerente, enquanto Presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, foi contactada para dar apoio jurídico à arguida AA e tem conhecimento particular dos factos relativos ao processo em que aquela é arguida, é de concluir que a sua participação enquanto relatora do recurso interposto naquele processo é susceptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Termos em que se acorda deferir o pedido de escusa.
Sem tributação.
Lisboa, 05 de Dezembro de 2012
Oliveira Mendes (Relator)
Maia Costa
___________________________
[1] - Serão deste diploma legal todos os demais preceitos a citar sem menção de referência.
[2] - O texto que a seguir se transcreve corresponde integralmente ao do requerimento de escusa.
[3] - A independência dos tribunais é exigência que decorre directamente da Constituição da República – artigo 203º.
[4] - Na vigência do Código de Processo Penal de 1929 (artigo 112º) os motivos de suspeição circunscreviam-se a relações de parentesco, interesse ou inimizade que ligassem o juiz ou os seus parentes com os restantes sujeitos processuais.
[5] - A imparcialidade pode ser vista sob duas vertentes:
- subjectiva, consubstanciando-se na posição pessoal do juiz perante a causa, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou de prejudicar qualquer das partes;
- objectiva, traduzindo-se na ausência de circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tem um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais – cf. acórdão deste Supremo Tribunal de 06.09.13, proferido no Recurso n.º 3065/06.
[6] - Neste preciso sentido se pronunciou o aqui relator no acórdão da Relação de Coimbra de 96.07.10, publicado na CJ, XXI, IV, 62.
Como refere Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 237, no procedimento de suspeição o que importa, sobretudo, é considerar se em relação com o processo o juiz poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição.
[7] - Cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 96.07.10 já citado.
[8] - Cf. o acórdão deste Supremo Tribunal de 00.04.05, publicado na CJ (STJ), VIII, I, 244.