PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
OBJECTO
PERDA DE VEÍCULO
REPARAÇÃO DO DANO
VALOR REAL
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
LUCRO CESSANTE
DANO EMERGENTE
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
BOA FÉ
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
MATÉRIA DE DIREITO
RECURSO DE REVISTA
Sumário


I - O aditamento de factos que constam das respostas ao objecto de uma perícia – efectuada em 1.ª instância, e na qual foram ponderados documentos, cuja falta aí não foi arguida –, e devidamente notificada às partes, não pode ser sindicado pelo STJ, por não integrar as hipóteses, de excepção, a que alude o art. 722.º, n.º 2 do CPC.

II - A inutilização e perda total de veículo confere ao seu proprietário não só o direito à sua substituição, ou indemnização pelo respectivo valor, como também a ser indemnizado pelo uso de que foi privado no período compreendido desde a data do acidente até à data de entrega do veículo de substituição ou pagamento daquela indemnização (privação do uso).

III - A privação do uso – imobilização de viatura afecta à exploração comercial por facto culposo de terceiro (dano de imobilização) – pode configurar (i) um dano emergente – quando o transportador tem de suportar gastos adicionais de substituição, como o seja, um aluguer – ou (ii) um lucro cessante – quando importa para o transportador uma carência de benefícios por falta de disponibilidade de viatura para a sua substituição.

IV - O dano da privação do uso é um dano evolutivo (aumenta até à entrega do veículo reparado ou de substituição) que deve ser equacionado à luz de uma relação obrigacional complexa, fundada em responsabilidade civil extracontratual, a qual abrange, além do dever principal de prestação (reconstituição natural) deveres secundários de prestação: (i) sucedâneos (v.g. obrigação de indemnização), (ii) coexistentes (v.g. indemnização moratória), (iii) acessórios e, ainda (iv) laterais e de protecção da obrigação.

V - Os deveres laterais são deveres de comportamento ligados ao crédito indemnizatório, impostos pela boa fé, como o seja a existência de um dever, a cargo do lesado, de atenuar e mitigar ou, pelo menos, não agravar as consequências do dano, deixando prolongar o tempo de imobilização para depois reclamar a indemnização correspondente, sobretudo nos casos em que a responsabilidade civil permanece controvertida.

VI - Na falta de elementos que permitam quantificar o dano da privação do uso a sua fixação deve efectuar-se segundo um juízo de equidade no qual sejam ponderados todos os elementos de facto para apurar esse dano, como o sejam, o grau de violação dos deveres que integram a relação obrigacional, a facturação ou lucro médio mensal conseguido com o veículo, o tempo média da sua utilização e os serviços que o lesado deixou de efectuar, bem como o aproveitamento do motorista em outras viaturas.

VII - A fixação dos danos segundo juízos de equidade constitui matéria de direito, sujeita à censura do STJ, em recurso de revista.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

RELATÓRIO

No dia 08-10-2004, pelas 15,30 horas na EN 111, ao km 31,400, localidade de São Silvestre, concelho de Coimbra, ocorreu um acidente consistente na queda de uma ramada da parte de cima de uma árvore (freixo) plantada na berma da estrada sobre a parte da frente do tractor de mercadorias 00-00-00, pertencente a Transportes AA Lda e na altura conduzido por BB quando por ela passava.

Desse acidente resultaram, entre outros danos, a perda total do veículo.

Com vista a obterem a condenação de Estradas de Portugal EP – a quem imputavam a responsabilidade civil - a indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais, intentaram aquela sociedade e o referido motorista acção de processo ordinário, tendo sido em todas as instâncias (1ª instância, Relação e STJ) declarada a responsabilidade do Réu.

E, concretamente quanto ao dano da privação do uso do veículo, o STJ condenou o Réu na respectiva indemnização mas relegando o apuramento do respectivo montante para liquidação em posterior incidente de liquidação.

E foi para isso que a Sociedade Transportes AA Lda deduziu incidente de liquidação dos danos decorrentes da privação do uso da viatura, liquidando-os em € 254.433,50, acrescida mensalmente da quantia de € 4.634,49 vincenda até integral pagamento, bem como juros vincendos quer relativamente às mensalidades vencidas, quer às vincendas.

Para tanto, alegou que:

- facturou nos nove meses anteriores ao acidente (de Janeiro a Setembro de 2004) a quantia total de € 74.458,00, com uma facturação média mensal, pois, de € 8.273,11;

- para cálculo do seu lucro líquido mensal deve deduzir-se despesas mensais totais de € 1.921,61, para além do valor médio do gasóleo gasto por mês, que ascende a € 1.717,01, o que perfaz uma despesa média mensal global de € 3.638,62;

- assim se obtendo um lucro líquido médio mensal de € 4.634,49;

- tendo decorrido 54 meses desde a data do acidente até 08/04/2009, o prejuízo da Requerente pela paralisação do veículo até esta última data ascende a € 250.262,46, a que, para além de juros moratórios, vencidos e vincendos, no montante de € 4.171,04 até à instauração desde incidente, acresce mensalmente a quantia de € 4.634,49 vincenda até integral pagamento.

         O requerido deduziu oposição.

Prosseguindo a tramitação do incidente, teve lugar uma perícia colegial, e após julgamento foi proferida sentença que “julgou o incidente de liquidação parcialmente procedente, por em parte provado, condenando a requerida a pagar à A./Requerente, a título de indemnização pela paralisação do veículo de matrícula “00-00-00” em causa, a quantia total de € 54.500,00 (cinquenta e quatro mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal aplicável às dívidas de natureza civil, desde a data da citação para os termos do pedido incidental desde autos e até integral pagamento”.

Inconformada, recorreu a Requerente per saltum para o STJ, mas o Ex-mo Conselheiro Relator, entendendo que não se verificavam os respectivos requisitos – a questão suscitada não era apenas de direito - ordenou a baixa do processo à Relação.

Apreciando o recurso, a Relação de Coimbra confirmou a decisão.

Continuando inconformada, recorre agora de revista para este STJ, pugnando na sua alegação pela revogação do acórdão recorrido e pela liquidação dos danos no valor peticionado inicialmente (se bem que agora limitado até à data do pagamento da indemnização correspondente à perda total do veículo).

EP - Estradas de Portugal SA contra-alegou em defesa da subsistência do julgado.

Remetido o processo ao STJ, após o exame preliminar, foram colhidos os vistos.

Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.


FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso:

O objecto do recurso define-se pelas conclusões propostas pelo recorrente; daí a conveniência de as recordar:
1- Não só os factos aditados pela 2° instância, porque conclusivos não o deviam ser, como também porque, na ausência do Modelo 22 e da Declaração Anual de que falam os peritos, a prova produzida não permite falar, sem mais, em resultados de exploração;

2- No âmbito do incidente de liquidação instaurado, na sequência do ordenado anteriormente pelo STJ, realizou-se uma perícia colegial a fim de dotar o Tribunal com elementos concretos e objectivos que lhe permitissem arbitrar uma indemnização o mais justa possível;

3- O acórdão recorrido não só ignorou o referido acórdão do STJ na parte em que este manda apurar o lucro mensal médio conseguido com a viatura sinistrada, como também faz tábua rasa dos factos assentes com base no relatório pericial;

4- O grande equívoco do acórdão recorrido é não ter percebido, que não há necessariamente uma relação directa entre lucro médio mensal dado por um veículo - elemento solicitado pelo STJ - e resultado final da empresa;

5 - O n° 2 do art° 564° do CC reportando ao dano futuro - dano que aqui está em apreciação - refere que se deve atender aqueles que forem previsíveis, sendo que estes são aqueles que resultarem da análise de elementos credíveis.

6 - O cálculo da indemnização pela paralisação tem que ser feito com base no lucro gerado pela viatura sinistrada, ou seja, o volume de facturação deduzido unicamente dos chamados custos (directos) necessários para que o tractor possa circular:

7 - A obrigação de indemnização assenta nos princípios da reposição natural, nele se incluindo os benefícios que deixou de receber em consequência da lesão - arts. 562° e 564° do C.C;

8 - No caso presente, o prejuízo sofrido pela recorrente corresponde ao lucro cessante originado pela viatura 00-00-00;
         
9- O lucro cessante é a diferença entre o valor facturado e os custos directos, ou seja a diferença entre aquele e o valor total dos encargos absolutamente necessários para o tractor poder circular mantendo actividade;

10 - Deu-se como provado que a referida viatura, entre os meses de Janeiro/04 e 5etembro, facturou um total de € 74.458,00, o que dá uma média de facturação mensal de € 8.273,00;

11 - A soma dos custos indispensáveis ao funcionamento da viatura (custos directos) foi, em média, de € 4.249,12;

12 - Durante os nove meses objecto de análise da perícia, õ lucro cessante da requerente foi, pois, em média de € 4.023,88/mês, ou seja, a diferença entre a média mensal da facturação de € 8.273,00 e a média dos custos directos da viatura 00-00-00 de € 4.249,12;

13 - Assim, o dano previsível mensal decorrente da paralisação da viatura sinistrada é de € 4.023,88 pelo que deve ser este o valor que deve servir de base ao cálculo da indemnização a fixar;

14 - A recorrente esteve privada do uso do veículo durante 54,5 meses;

15 - O valor da indemnização deterá ser calculado pela forma seguinte:
-€4.023,88 X 54,5 meses = € 219.301,46;

16 - Para o caso presente, o que é relevante não é o valor, absoluto da indemnização (que até pode, ou não, ser considerado, em abstracto, elevado), mas sim se esse valor corresponde, ou não, ao dano previsível da recorrente.

17 - Será, pois, em função deste dano, e só deste, que se deve fazer o cálculo da indemnização a arbitrar ao recorrente, e não em função de outros critérios subjectivos, que aparentemente - mas só aparentemente - parecem mais justos;.

18 - O prejuízo previsível da recorrente peia paralisação/da sua viatura ascende a € 219.301,46 e, nessa medida, deve ser este o valor da indemnização arbitrar;

19 - Ao valor apurado deverá acrescer ainda os juros de mora calculados à taxa de 4% sobre o lucro médio mensal de € 4.023,88, desde o dia 8 do mês em que se vença a respectiva mensalidade até integral pagamento, com início em 08/11/04;

20 - A sentença recorrida violou, pois, os arts. 562° e 564° do CC e o art°380°, n° 4 do CPC.

Conclui, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a condenação da recorrida a pagar uma indemnização a título de paralisação da viatura sinistrada no valor de € 4.023,88 com juros de mora à taxa de 4% ao ano.


MATÉRIA DE FACTO

A matéria de facto provada é a seguinte:

 - Por decisão transitada em julgado foi a Requerida condenada a pagar à Requerente os prejuízos decorrentes da paralisação da viatura “00-00-00”.
– Reportando exclusivamente à viatura “00-00-00”, a Requerente facturou nos nove meses anteriores ao acidente – entre Janeiro/04 e Setembro/04
– a quantia total de € 74.458,00, sendo que este montante se reporta à viatura tractor “00-00-00” e aos reboques “000000”, “0000”, “00000” e “00000”, como consta do quadro apresentado a fls. 130 destes autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e sendo ainda que a percentagem correspondente exclusivamente ao dito tractor é de 97% e, bem assim, que, por outro lado, os valores dos resultados da A., de acordo com o Modelo 22 e a Declaração Anual, antes de impostos, para os anos de 2002 a 2006, são os que constam do primeiro quadro de fls. 136, cujo teor aqui se dá por reproduzido – resposta ao quesito 1.º.
– Não existindo motorista afecto à viatura “00-00-00”, a contabilidade da A. traduz encargos com motorista no valor (médio mensal) de 1.914,72 euros, de acordo com a média dos custos com o motorista de Janeiro a Abril de 2004 (os meses mais representativos face aos valores pagos de ajudas de custo no estrangeiro); atendendo-se, porém, ao conjunto dos meses de Janeiro a Setembro de 2004, a média mensal é de 1.500,61 euros – resposta ao quesito 2.º.
– E paga mensalmente € 349,73 pelo seguro da viatura – resposta ao quesito 4.º.
– Suportava despesas diversas com a viatura “00-00-00” (óleo, pneus, peças, manutenção e oficinas) no valor médio mensal de 245,40 euros – resposta ao quesito 5.º.
– A viatura “00-00-00” gastava uma média de 30,88 litros aos 100 Kms. – resposta ao quesito 6.º.
– As despesas mensais com gasóleo da viatura “00-00-00” ascendiam ao valor médio de 2.153,38 euros – resposta ao quesito 7.º.
- Nos anos de 2002 a 2006 a recorrente apresentou, para efeitos fiscais, resultados de exploração que ascenderam, em média anual, a cerca de 802 euros.
 - No mesmo período temporal a recorrente pagou de IRC cerca de 477 euros por ano.


DIREITO

Escreveu-se no acórdão do STJ de 12-02-2009 que constitui título da presente liquidação:
“Em ambos os recursos vem impugnado o valor da indemnização pela privação do uso da viatura 00-00-00, pertença da autora .
Na sentença da la instância fixou-se tal indemnização, com base na aplicação dos valores da tabela fixados entre a ANTRAM e a APS para os veículos de transporte internacional de mercadorias, durante todo o período decorrido desde a data da acidente até à do efectivo pagamento.
Todavia, a Relação considerou que «a indemnização calculada com base na aludida tabela é manifestamente exagerada (bastando atentar que a mesma corresponde ao preço de 5,4 veículos iguais ao que ficou destruído), conduzindo a uma situação de manifesto enriquecimento sem causa.
Ponderou-se que tal tabela foi pensada para paralisações de duração relativamente curta, em que se mantém todos os custos operacionais do veículo sinistrado ( art. 3° do aludido acordo), os quais, em casos de paralisações de longa duração, como sucedeu no caso, deixam, em regra, de se verificar.
E, com base em diferente critério, atribuiu à autora a indemnização de 80.000 euros, a título de indemnização pelos prejuízos decorrentes da paralisação da viatura, entre 8-10-04 e 17-6-08, e a indemnização de 57,47 euros diários, desde 18-6-08 até à data do efectivo pagamento da indemnização correspondente ao valor do veículo, tudo acrescido de juros moratórios .
Ora, está provado que o veículo sinistrado se encontrava afecto ao transporte internacional de mercadorias.
A paralisação da referida viatura, por via do acidente, provocou um dano específico no património da autora, que deixou de o poder utilizar nesse tipo de transporte.
Daí haver lugar a indemnização pela paralisação.

E sobre a ré que, enquanto lesante, recai a obrigação de reparar os danos causados o mais depressa possível e de facultar à autora um veículo de substituição.
O facto de ter ocorrido a perda total da viatura não implica que a ré fique dispensada de ressarcir os prejuízos decorrentes da privação do uso da mesma, até ter diligenciado ou criado condições para a sua substituição.
As considerações tecidas no Acórdão recorrido sobre a desaplicação, no" caso concreto, dos valores da tabela fixados entre a ANTRAM e a APS são pertinentes, e para elas se remete.
O critério de cálculo adoptado pela Relação também se mostra falível e aleatório.
O prejuízo da sociedade autora há-se resultar de factos concretos apurados. Acontece que não se alegou qual a facturação ou o lucro mensal médio conseguido com a circulação da viatura sinistrada.
Também se não provou, pelo menos, quantos dias, em média, era utilizado o veículo sinistrado no transporte a que estava afecto.
Nem se apurou que serviço internacional ou outro, o mencionado veículo deixou de efectuar em resultado da paralisação provocada pelo acidente e se o seu condutor foi ou não utilizado na condução de outra viatura.
Na falta destes elementos, nem mesmo com recurso à equidade (art. 566, n03, do C.C.), se afigura possível fixar a indemnização desejada pela paralisação do 00-00-00, pois a equidade não é arbítrio.
Assim, por mais prudente, criterioso e seguro, há que relegar a fixação. da indemnização por este dano para posterior incidente de liquidação, nos termos dos arts 661, n02 e 378, n02 e segs do C.P.C”.

Por outras palavras, o STJ, depois de referir que a paralisação e consequente impossibilidade de utilização da viatura sinistrada causou danos patrimoniais à Autora, reconheceu a falta de elementos para quantificar esses danos e fixar o valor da indemnização correspondente.

E, exemplificando, referiu alguns dos elementos de facto relevantes para apurar esse dano, quais sejam, a facturação ou o lucro mensal médio conseguido com o veículo, o tempo médio da respectiva utilização e os serviços (internacional ou outro) que deixou de efectuar bem como o aproveitamento do respectivo motorista em outras viaturas.

E porque, na falta desses elementos, nem mesmo com recurso à equidade era possível fixar a indemnização pela paralisação, é que o apuramento desta foi relegado para liquidação posterior.

Nesta, a 1ª instância, recorrendo à equidade, à míngua de factos provados atinentes à quantificação do dano da paralisação, fixou em € 54.500,00 euros a indemnização total devida por tal paralisação, acrescida de juros e mora à taxa supletiva legal, justificando-se nestes termos:

“Por isso, em equidade, vistos todos os elementos a ponderar, como supra exposto, designadamente o tempo de privação do uso/paralisação da viatura, por um lado, e a pouca credibilidade do valor apurado de lucro resultante do volume de facturação da Requerente, tal como a falibilidade da sua generalização a um período longo de quatro anos e meio, mormente atendendo às mutações ocorridas nas condições de exercício / rentabilidade da actividade em causa, para além de não estar garantida a utilização permanente do veículo por tão alargado período temporal, e a circunstância de a Requerente, a quem cabe o ónus da alegação e prova, não ter querido carrear para os autos outros factos caracterizadores/delimitantes, em concreto, do dano sofrido, afigura-se-nos dever, razoavelmente, considerar um lucro mensal perdido de não mais de € 1.000,00.

Podendo dizer-se que este valor também é falível ou aleatório, cabe referir que é o valor que este Tribunal pode encontrar em termos de equidade e razoabilidade ante as circunstâncias do caso.

Assim, obtém-se um valor indemnizatório total de € 54.500,00 (correspondente a € 1.000,00 x 54 meses e meio)”.

Melhor sorte não teve a Autora na Relação.

Com efeito, esta, depois de ponderar a discrepância entre os alegados lucros cessantes e os resultados económicos declarados pela Autora para efeitos fiscais, considerou que a indemnização por privação de uso de um veículo se prova com base em elementos contabilísticos, mas tal critério não vale para períodos de tempo longos desacompanhado de outros elementos, como sucede no caso em apreço, em que o tempo de privação de isso é superior a quatro anos.

Escreveu-se em tal acórdão, a propósito do valor fixado na 1ª instância e depois de referir a margem de discricionariedade que deve ser consentida ao tribunal na apreciação prudencial e casuística das circunstâncias do caso e dos elementos objectivos deste na avaliação deste tipo de danos:

“Porque a previsão assenta sobre danos verificáveis no futuro, relevam sobremaneira os critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no concreto, poderá acontecer segundo o curso normal das coisas. Releva, assim, o entendimento do tribunal, tendo em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.

Ora, tudo visto e ponderado, conclui-se que o montante atingido, está integrado dentro de parâmetros admissíveis, necessariamente delimitados por todos os factos apurados, e, por recurso ao juízo équo, com consideração de todos estes circunstancialismos e variáveis vivenciais prognósticamente perspectivados, se encontra sensata e prudenteme1te concretizado”.

Na presente revista, depois de questionar a matéria de facto acrescentada pela Relação, a recorrente continua a sustentar que a indemnização pela privação de uso deve ser fixada a partir da facturação realizada anteriormente ao evento lesivo.
Na verdade, na conclusão 1ª, a recorrente questiona o aditamento efectuado na 2ª instância à matéria de facto, alegando que os factos aditados são conclusivos e inexistir a prova documental dos mesmos.
Ora, os factos aditados foram os seguintes:

Nos anos de 2002 a 2006 a recorrente apresentou, para efeitos fiscais resultados de exploração que ascenderam, à média anual de cerca de 802 euros.

No mesmo período temporal a recorrente pagou de IRC cerca de 477 euros por ano.

Independentemente dos vícios da respectiva redacção, os factos aditados resultam das respostas dos peritos na perícia efectuada na 1ª instância, maxime dos quesitos 22 e 23, respostas essas que, certamente, tiveram em conta os documentos cuja falta a recorrente agora argui, sendo certo que oportunamente quando notificada dessa perícia, sobre tais respostas (cujo teor só se compreende por esses documentos haverem sido presentes aos peritos) nada disse.
E, como se sabe, é defeso, em recurso de revista, apreciar o julgamento da matéria de facto; como decorre do nº2 do art. 722º CPC, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo ofensa de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Censura também a recorrente a desconsideração, na fixação da indemnização, quer da facturação, quer do lucro mensal médio do veículo - contrariando o acórdão do STJ - a partir da ponderação de elementos contabilísticos e fiscais relacionados com o resultado final da empresa da Autora.
Sem dúvida que o lucro mensal médio resultante da exploração de um veículo é a diferença entre o que foi facturado por esse veículo durante um período de tempo e a totalidade dos respectivos encargos que a empresa obrigatoriamente tem de suportar (os chamados custos directos), como são os encargos sociais e laborais com o motorista, despesas de manutenção do veículo, combustíveis, seguros, etc, nesse mesmo período.
E o resultado final da empresa é a diferença entre a totalidade dos valores obtidos (facturação, alienação de móveis e imóveis, rendimentos de aplicações financeiras e de participações em outras empresas, etc) e o valor total dos encargos suportados, nestes se incluindo os custos directos e os custos indirectos, tais como rendas de locação financeira de móveis e imóveis, aquisição de viaturas, encargos financeiros, custos administrativos, pagamento de impostos, etc).
In extremis, numa empresa de transportes não será incompatível a existência de um lucro mensal médio proporcionado pela exploração de um certo veículo com um resultado final da empresa exíguo ou mesmo negativo…
Mas no acórdão que constitui o título da presente liquidação, o STJ limitou-se a indicar alguns factos dos quais se poderia inferir o quantitativo do dano decorrente da imobilização; trata-se de uma indicação meramente exemplificativa, sem carácter taxativo.
Como é óbvio, relevaria sempre mais o lucro mensal médio que a facturação média mensal, o tempo médio de utilização e os serviços que foram ou deixaram de ser prestados bem como o aproveitamento, ou não, do motorista noutras viaturas.
A atendibilidade do lucro cessante decorre da sua previsibilidade e esta da probabilidade e verosimilhança.
Ora, se é previsível que a imobilização de uma viatura afecta à exploração comercial cause danos, já a respectiva quantificação se apresenta eivada de escolhos.
A este propósito e citando A. de Cupis, já escrevemos na Revista nº 1875/96.5TBVNO.C1.S1 de que fomos Relator:
“O chamado dano da imobilização (dano de paro ou dano por paro na terminologia espanhola) decorre da paragem imposta a uma viatura destinada a circulação com fins de lucro quando a paragem resultou de um facto culposo de terceiro. Este dano é posterior ao causado à estrutura material da viatura cuja medida é a do custo da reparação (dano emergente). O dano de imobilização decorre da impossibilidade de utilização do veículo imobilizado por culpa de outrem e configura-se como lucro cessante quando não é possível remediar-se essa falta de utilização, sofrendo então o património do transportador uma carência de benefícios – lucro cessante – intimamente dependente da paragem do mesmo veículo. Não existe remédio quando o transportador não dispõe de outra viatura nem pode substituir o veículo danificado por outro, não podendo assim, satisfazer as exigências do tráfico que anteriormente satisfazia, sofrendo assim uma perda de ganhos (lucro cessante). Pelo contrário, o dano por imobilização configura-se como emergente quando há remédio para suprir a falta de utilização do veículo, ainda que oneroso. Quando o transportador pode substituir o veículo danificado por outro, pode continuar a sua actividade e não sofre por isto uma perda de ganhos, ainda que tenha de suportar os gastos de substituição, os quais representam um prejuízo para a estrutura actual do seu património que há que qualificar como dano emergente. Este custo constitui a perda de um elemento actual do seu património, originado pelo facto culposo do mesmo terceiro (integram também o dano a ressarcir as medidas empregadas pelo lesado para remediar ou atenuar as consequências do facto culposo, já que, visando remediar ou obviar as consequências lesivas do facto, elas mesmas se deduzem dele (cfr. Adriano de Cupis, El daño, trad esp., p. 314)”.

Para empresas de transporte (pessoas ou mercadorias) ou de aluguer de veículos automóveis, o dano da imobilização, em bom rigor, só existe se o veículo acidentado não puder ser substituído ou se a sua substituição implicar um custo acrescido (seja com a aquisição, seja com o aluguer de viatura de substituição); fora desses casos, o dano não ultrapassará a frustração da amortização do investimento que eventualmente haja sido efectuado com a aquisição da viatura ou os custos com a antecipação não projectada da aquisição.
Estando em causa o uso comercial de dada viatura, tal uso é, em si, um bem comercializável (quer dizer, susceptível de ser adquirido com dinheiro) e o dano da respectiva privação (ou imobilização) forçada só existe se a mesma não puder ser substituída por outra (pertencente ao lesado ou a terceiro) ou o puder ser com custos adicionais (v. g., aluguer).
E - reconheçamos – o recurso à facturação média da viatura sinistrada antes do acidente (durante cerca de nove meses) permite inferir o quantum do dano em que consistiria a sua privação (pelo menos num curto período após o sinistro), mas  relevaria com mais segurança e certeza no confronto com a facturação global da frota nesse período e com a mesma facturação global após o acidente; só comparando uma e outra seria possível formular um juízo de facto sobre o montante do dano que a Autora sofreu com a privação do uso do veículo.
Ora, desconhece-se se a Autora detinha uma frota de viaturas, qual a sua composição, tipo de transportes a que se encontravam afectos os veículos).
Como se ignora se a Autora, por via da inutilização forçada do veículo sem a respectiva substituição, deixou de efectuar transportes (por não dispor de outras viaturas ou se suspendeu a actividade, o que não é verosímil desde logo porque tal nem sequer foi alegado) ou, se os efectuou, se bem que recorrendo, vg. ao aluguer de viaturas, suportando os respectivos custos.
Pressuposta a existência do dano, o critério da facturação média (e subsequente dedução dos custos médios) antes do acidente disponibiliza-nos, pois, uma informação relevante em termos indiciários para o apuramento do respectivo montante mas não uma prova, uma evidência segura e certa, desse mesmo montante.
Por maioria de razão a projecção da rentabilidade de cerca de 9 meses antes do acidente não fornece um dado seguro quando está em causa um período de vários anos após o acidente …; não é por, num determinado período, se haver logrado uma determinada média de facturação que, deduzida dos custos médios, proporcionou um determinado lucro médio, que se pode afirmar coma certeza e segurança de uma decisão judicial, que esses valores se vão manter inalterados no futuro e muito menos durante alguns anos anos, como se o proprietário lesado estivesse imune à crise económica que grassa no país (e afecta, pour cause, o sector dos transportes…).
O recurso à facturação e ao lucro médio anterior para determinar os lucros cessantes subsequentes assenta, afinal, numa ficção: a de que o volume de negócios, da facturação e dos custos se mantêm inalterados, que a economia não evolui, etc…
O que, todavia, e como se disse, não significa que devam, sem mais, ser desconsiderados; só que, agora – quer dizer, na imposição normativa da fixação do quantum indemnizatório e na impossibilidade reconhecida de o determinar de modo preciso - com cautelas acrescidas prevenindo as insuficiências da prova e a solução que, por via dessas mesmas insuficiências, decorreria dos critérios gerais e abstractos da norma jurídica, ou seja, a absolvição por falta de prova do montante dos danos, apesar da inquestionabilidade da existência destes.
Por isso prescreve o nº3 do art. 566º CC que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados”; por outras palavras, se não for possível determinar o valor exacto dos danos, o tribunal deve julgar segundo a equidade.
O julgamento segundo a equidade pressupõe uma atitude ética e um modo de decisão diferentes do do julgamento segundo a lei; assim, enquanto este, por força da generalidade e abstracção típicas da norma jurídica, se caracteriza por uma postura de indiferença às particularidades concretas do caso a decidir e susceptíveis de lhe conferir uma especial configuração merecedora de consideração normativa, o julgamento baseado na equidade, ao invés, atende aos aspectos particulares do caso que o diferenciam e individualizam perante outros.
Por isso, o julgamento segundo a equidade, valorizando as particularidades do caso concreto, é eminentemente subjectivo e emocional.
E quando o juiz valora equitativamente o dano, fá-lo no uso de um arbítrio discricionário, fixando discricionariamente a medida justa ressarcível; a equidade dirige e enforma essa discricionariedade. Para cumprir esta função, o juiz deve partir de todos os elementos que a prova lhe disponibilizou e de outros que seja possível deduzir da prova e suprir a lacuna da prova da certeza do quantum indemnizatório, estabelecendo ex bono et aequo a medida exacta do dano que o responsável deve satisfazer para o ressarcir (cfr, A. Cupis, El daño, p. 551).
Este quantum do dano a ressarcir não constitui um facto nem o resultado de um julgamento de facto; representa, antes, o resultado de um julgamento jurídico, logo, em função de critérios jurídicos coerentes com as exigências previstas no ordenamento jurídico relativamente ao ressarcimento; a certeza do montante exacto dos danos fixado por equidade não corresponde a um julgamento de facto mas sim a um julgamento de direito (cfr. A. Cupis, ob loc cit.),
Por isso é que a fixação dos danos segundo juízos de equidade constitui matéria de direito sujeita à censura do tribunal de revista (cfr. Ac STJ 22-05-1979, BMJ 287, p.289-290).
Ora, ponderando o valor da facturação total do veiculo durante o ano de 2004 até à data do acidente - € 74.458,00 euros – com o valor total das despesas e encargos suportados nesse mesmo período com a viatura - € 38.376,26 euros – encontramos um “lucro” de € 36.091,74 euros, ou seja, cerca de € 4.000 euros mensais em média.
É claro que não pode ter-se por certo nem seguro a pressuposição, após o acidente e até 23-04-2009 – data do pagamento da indemnização correspondente ao dano da perda total do veículo – da inalterabilidade dos valores a partir dos quais aquele foi encontrado; desde logo, basta atentar na subida do preço dos combustíveis para não referir outros custos bem como os reflexos ao nível da actividade empresarial da situação económica nacional…
E, por isso, é que no acórdão recorrido se escreveu:

“…o cálculo de danos futuros é operação difícil, sendo extremamente delicado fixar com justeza a correspondente indemnização.

Isto porque obriga a ter em conta a situação hipotética em que o lesado estaria se não fosse a lesão, o que implica uma previsão pouco segura sobre danos verificáveis no futuro.

A ideia geral que importa reter é que, se por um lado, o montante indemnizatório relativo a danos futuros deve ser fixado por forma a que não seja de tal modo escasso que torne a reparação meramente simbólica; por outro lado, ele não deve ser tão elevado que possa encarar-se como um autêntico enriquecimento sem causa do lesado”.

Para encontrar um ponto de equilíbrio entre estes extremos, a equidade  considerará as especificidades do caso concreto.
Ora, como supra se referiu, a exploração do veículo sinistrado proporcionou à Autora um lucro mensal médio de cerca de € 4.000,00 euros no período de Janeiro a Setembro de 2004.
As instâncias, porém, a partir da ponderação de elementos fiscais e da incerteza da evolução da situação económica, desconsideraram esse valor e, louvando-se na equidade, fixaram-no em € 1.000,00 euros mensais, ponderando, por um lado, a incerteza da evolução económica que comprometia a rentabilidade que o veículo proporcionava (ou proporcionou de Janeiro a Setembro de 2004) e, por outro, a incompatibilidade ou desconformidade entre a invocada rentabilidade e os resultados do exame pericial e as declarações fiscais da Requerente.
Sobre esta última questão, para além do que já referimos supra, apenas acrescentaremos que não tem sentido questionar a veracidade de factos anteriormente considerados provados – como são os valores da facturação bruta da exploração de um determinado veículo e os dos encargos a deduzir aos mesmos a partir das declarações fiscais, a menos que se pretenda sustentar a falta de conformidade da escrita e da contabilidade à realidade…mas, neste caso, tal deve ser dito clara e expressamente.
Por conseguinte, este argumentário não nos convence.
Já o mesmo não acontece com o relacionado com a incerteza da evolução económica posterior a 2004/2005, pois face à crise económica que se instalou, as empresas de transportes foram das mais afectadas (quer pela diminuição de serviços, quer pelo aumento de encargos, v.g. combustíveis, etc), o que, só por si, comprometia a manutenção da invocada média de facturação no período de 2004 a 2009.
Sendo, por isso, impossível determinar com exactidão o valor dos lucros cessantes futuros, o recurso à equidade para suprir essa impossibilidade, implica, todavia, algumas reflexões adicionais.
Por via de regra, os veículos automóveis utilizados na exploração (lucrativa) da actividade de transportes terrestres são substituídos, em condições normais, decorridos alguns anos de serviço depois de percorrerem algumas centenas de milhares de quilómetros.
Em condições não normais ou excepcionais (v.g., acidente), a inutilização definitiva e irrecuperável de um deles antes de decorrido aquele prazo ou de percorrer aquela quilometragem implica a antecipação da sua substituição, a menos que se aproveite o ensejo para reduzir a frota, adequando-a ao volume de negócios e à conjuntura económica; por conseguinte, a antecipação da substituição motivada pela destruição ou inutilização da viatura em acidente, independentemente da imputação da respectiva responsabilidade civil, é um “risco normal” assumido pelo respectivo proprietário.
E, se, em caso de acidente imputável a terceiro de que resultou a inutilização e perda total do veículo, o domo deste tem direito, não só à substituição do veículo ou, como no caso vertente acontece, à indemnização pelo respectivo valor, mas também a ser indemnizado pelo uso de que foi privado no período compreendido entre o acidente e a data da entrega de veículo de substituição ou de pagamento daquela indemnização – pois, como refere o acórdão do STJ, “o facto de ter ocorrido a perda total da viatura não implica que a ré fique dispensada de ressarcir os prejuízos decorrentes da privação do uso da mesma, até ter diligenciado ou criado condições para a sua substituição” – isso não legitima a inércia e total passividade do lesado perante os danos sobretudo nos casos de estes estarem sujeitos a evolução expansiva, como é o do dano da privação de uso de veículo danificado ou inutilizado que vai aumentando com o tempo até à entrega do veículo reparado ou de veículo de substituição ou de disponibilidades monetárias adequadas para a aquisição de outro equivalente (no caso de perda total do veículo); o dano da privação do uso é tipicamente sujeito a agravamento.
Não falta quem, neste caso de dano evolutivo, defenda que o princípio normativo da boa fé – que deve estar subjacente a toda a ordem jurídica e às relações sociais juridicamente relevantes (quer contratuais, quer extracontratuais), impõe certas obrigações aos que nelas participam (como é, in casu, o lesado), uma das quais é o chamado dever de mitigar e de diminuir os danos (the duty to mitigante the loss) ou, pelo menos, de conter o seu agravamento.
Assim, uma vez acontecido um acidente de circulação, o lesado teria o dever de mitigar ou de diminuir na medida do possível o dano sofrido, existindo culpa ou negligência imputável a ele se não tomou as medidas oportunas para o efeito. Esta questão da minoração do resultado danoso não se coloca no plano da concorrência causal na produção do acidente, antes é posterior ao mesmo e daí que se deva ter em conta o princípio da boa fé que se fundamenta na consideração moral da atitude do sujeito perante um facto consumado quanto à sua existência mas em evolução expansiva quanto aos seus efeitos, tendo-se já ido ao ponto de  de defender, em homenagem à boa fé, que ele tem o dever v.g., de contrair um empréstimo para compensar temporariamente as consequências do dano na sua esfera jurídica, reparar a viatura ou mitigar as consequências da paralisação do veículo (cfr. Casado, Esther Monterroso, Responsabilidad Civil por Accidentes de Circulación, Aranzadi, 2001, p, 166 e nota 60).  

A lei portuguesa, porém, não vai tão longe na imposição concreta de um dever com tal extensão; o que, todavia, não significa que ao Direito seja indiferente a atitude ética do lesado que, perante um dano em evolução gradativa e progressiva, não adopta medidas para deter o seu crescimento.

Porque, excluindo os casos em que uma atitude activa do lesado causa um novo dano ou aumenta o existente, perante um dano evolutivo, duas são as atitudes possíveis da vítima: non facere, isto é, total passividade e inércia, como mero espectador (a chamada “gestão inerte do dano evolutivo”) ou facere, visando inverter o sentido evolutivo do dano, seja adoptando medidas para o eliminar ou reduzir, seja para conter o seu agravamento.

Caberá à doutrina qualificar estas possíveis atitudes do lesado, ao intervir no processo causal do dano, como dever jurídico ou ónus jurídico, mas a verdade é que dificilmente qualquer destas possíveis soluções encontrará abrigo na ordem jurídica portuguesa a propósito do dano evolutivo (cfr. Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, 1997, p.659 e segs).

Mais curial e adequada se nos afigura a ponderação do problema a partir do conceito da chamada relação obrigacional complexa fundada em responsabilidade civil extracontratual, pois que, muito embora tal noção se manifeste com maior nitidez no domínio contratual (podendo aí ser chamada relação contratual), “também …na responsabilidade civil… ela se autonomiza do dever singular de prestação, ou seja, da obrigação singular” (cfr. Direito das Obrigações, Sumários das lições do Prof. Mota Pinto ao 3º ano jurídico de 1971-1972, p. 29-30).

 Por conseguinte, a relação entre os sujeitos da responsabilidade civil extracontratual (lesante e lesado) não se esgota apenas numa relação de prestação principal peticionada (a de efectuar o pagamento da indemnização, esta mesma, aliás, já sucedâneo de outra prestação – de reconstituição natural); para além do vínculo principal “há toda uma série de vínculos singulares de diferente natureza (deveres acessórios do dever principal, deveres laterais de adopção de outros comportamentos, direitos potestativos, sujeições, expectativas, ónus, etc, todos colocados ao serviço do fim visado com a prestação principal e que resultam directamente de norma legal expressa, da cláusula geral de boa fé,… etc” (cfr. Mota Pinto, ob loc cit.).

O conceito de relação obrigacional complexa abrange, portanto, deveres principais de prestação (e correlativos direitos), também deveres secundários de prestação (autónomos da prestação principal, seja sucedâneos do dever primário de prestação principal – v.g., obrigação de indemnização – seja coexistentes com a obrigação principal – v.g. indemnização moratória), deveres secundários, acessórios da prestação principal (que visam auxiliar e estão ao serviço do cumprimento desta) e ainda deveres laterais e de protecção, estes funcionalmente dirigidos a auxiliar a realização e satisfação plena dos interesses globais da relação obrigacional complexa incluindo a prevenção e não verificação de danos concomitantes.

Estes deveres laterais concretizam-se em deveres de consideração, cuidado e protecção da pessoa e do património da outra parte, cooperação, de aviso e de informação, de lealdade e fundamentam-se na cláusula geral de boa fé; trata-se de deveres de conduta e de comportamento, de confiança, de protecção cuja função é auxilia a realização do fim da obrigação (in casu, da de indemnização), matriz da sua determinação e impedir resultados secundários indesejados; estes deveres laterais não tendem a realizar a prestação principal mas a tutelar outros interesses da contraparte, abrangidos no fim visado com a obrigação; trata-se, em suma, de deveres de comportamento ligados ao crédito indemnizatório, impostos pela boa fé, em harmonia com o fim da indemnização e que podem ser violadas, quer pelo credor, quer pelo devedor (cfr. Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, p. 264 e segs).

Ora, a atitude passiva do lesado que, perante um dano em evolução expansiva e cuja medida indemnizatória espera ser contabilizada em função do tempo (como é o tempo de privação do uso do veículo) permanece inerte aguardando o termo final da espera para depois reclamar a indemnização calculada naqueles sobreditos termos (a chamada gestão inerte do dano), não pode deixar de ser contrária à razoabilidade e à boa fé, sobretudo nos casos em que a responsabilidade civil permanecia controvertida.

Por maioria de razão, sendo o lesado uma empresa transportadora e estando o veículo sinistrado afecto à exploração comercial em que a adopção de medidas para a redução do dano evidencia sensatez e razoabilidade, como é o caso da substituição do veículo, “caso dele careça com urgência e não seja preciso dispender muito dinheiro” ou do aluguer de veículo de substituição, “se o desembolso for tolerável, tendo em conta as perdas imediatas da empresa”.

Se é verdade que a reparação ou substituição da viatura danificada compete ao lesante, não é menos certo que, ainda que o lesado desencadeie nos tribunais a acção com vista ao reconhecimento do respectivo direito a indemnização e sendo este controvertido pelo demandado, não está ele desonerado da obrigação de, até no seu próprio interesse, providenciar no sentido de conter a evolução crescente e negativa do dano da privação do uso, seguramente enquanto a responsabilidade civil não é definida; os deveres de lealdade e de consideração pelo património da outra parte, assim susceptível de ser atingido com uma indemnização calculada, conforme pedido, em função exclusiva do tempo (tipo taxímetro) se impelem o lesado a suscitar judicialmente a definição da responsabilidade, também o devem impelir a adoptar aquele tipo de providências, substituindo (se dela carece) a viatura sinistrada (através de aquisição ou de aluguer), se bem que sem prejuízo de reclamar do lesante o que, com isso suportou e não suportaria se não ocorressse a lesão…

Escreve Brandão Proença:

“…se numa correcta ponderação de interesses, a atitude individual do lesado, que não se mostre objectivamente justificada ou cuja justificação subjectiva pertença ao puro foro das convicções ideológicas, não pode levar ao agravamento da responsabilidade do lesante, também a deficiente “gestão do dano sofrido, a indiferença do lesado perante o seu próprio prejuízo, a omissão em conter, sem grandes custos, as sequelas danosas de uma lesão, a que certamente não se mostraria indiferente no caso de ser causada solitariamente, e a irrazoabilidade da sua passividade, contrária ao padrão de uma normalidade interventora (sobretudo na zona dos danos patrimoniais), permitem (na maioria dos casos) considerar «culposa» a inércia do lesado e defender uma auto-responsabilidade que, sendo actuada pela ponderação das duas condutas e pela consequente repartição do dano global, só logrará atingir o seu significado se o lesado vier a receber uma indemnização nunca superior àquela que receberia caso tivesse contido o dano” (cfr. ob cit., p. 669).

E é aqui que entra em cena a equidade, chamada para definir o quantum dos danos decorrentes da privação do uso do veículo e não para proporcionar ao lesado um benefício à custa do lesante (atribuindo-lhe uma indemnização excessiva relativamente ao valor real do bem cuja indisponibilidade material o determinou) nem para beneficiar o lesante à custa do lesado (onerando aquele com uma indemnização inferior ao valor real do dano).
Porém, a menos que, por razões objectivas do mercado de transportes, a Autora estivesse interessada na redução da sua frota automóvel (e nada nos autos aponta neste sentido), seja por necessidades da sua própria actividade, incompatíveis com a “espera” da indemnização, seja pela ponderação do referido dever lateral de boa-fé, não é verosímil que se mantivesse privada de um veículo durante mais de quatro anos até receber indemnização que lhe permitisse adquirir outro para substituir o sinistrado; a menos que se verificasse impossibilidade económica para esta aquisição, aquela atitude representaria uma gestão empresarial insensata.
De todo o exposto, pode concluir-se que a pretensão de definir a medida da indemnização pela privação de uso de uma viatura, apenas e tão só, através da ficção da manutenção de uma rentabilidade baseada no lucro médio proporcionado pela sua exploração durante alguns meses, projectando essa mesma rentabilidade num período de vários anos após o acidente, como se a situação económica que todos sabem ser crítica – quer a nacional, quer a do sector específico dos transportes - se mantivesse inalterada e inalterável não pode ser acolhida.
Com o que não ocorre qualquer violação do acórdão do STJ, como sustenta a recorrente; como flui do texto daquele, aludiu-se aí, a título meramente exemplificativo, à facturação média do veículo como elemento a considerar para um juízo de equidade (como, aliás, se aludiu a outros dados de facto - v.g, dias de utilização média, tipos de serviços nacional ou internacional, que deixou de efectuar, etc - e relativamente aos quais nada foi alegado.
 Pelo exposto, a revista não pode deixar de ser negada.

ACÓRDÃO
Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa e STJ, 11 de Dezembro de 2012
Os Conselheiros

Fernando Bento (Relator)
João Trindade
Tavares de Paiva