CULPA
INIMPUTABILIDADE
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
RECURSO DE REVISÃO
Sumário

I - Factos novos para efeitos de permissão de revisão são aqueles que eram desconhecidos do tribunal, intraprocessualmente ignorados na decisão transitada, porque eram desconhecidos do recorrente ou porque este esteve impossibilitado de os apresentar.
II - Esta exigência é a que melhor serve o valor do caso julgado, a que evita que o recurso se banalize e a que estimula a cooperação e a lealdade processuais.
III - Admitir que o requerente da revisão apresentasse os factos como novos, não obstante ter inteiro conhecimento da sua existência no momento do julgamento, faria depender a revisão da sentença de um juízo de oportunidade do requerente, formulado à revelia de princípios fundamentais, como é o caso da verdade material ou da lealdade processual.
IV - Se se aceita que o arguido conhecia ser portador de HIV antes do julgamento, por ser conhecimento acessível ao cidadão comum, já não se tem como ponto assente que conhecesse a sua inimputabilidade penal, que foi sedimentada em prova pericial posterior à sua condenação, escapando-lhe essa consequência da doença.
V - A apresentação de relatórios periciais psiquiátricos e sobre a personalidade, posteriormente ao julgamento, apontando para uma situação de diminuto sentido crítico e de falta de capacidade, justifica que se questione a justiça da decisão condenatória.
VI -A inimputabilidade não apaga o facto ilícito, mas exclui os elementos do tipo subjectivo do ilícito e da culpa, constituindo uma causa de exclusão da culpa, pelo que, sendo o agente insusceptível de ser censurado, não pode ser sancionado.
VII - Como tudo aponta para uma grave, mais do que razoável, dúvida sobre a justiça da condenação, por falta de capacidade do requerente para compreender o sentido e o alcance dos seus actos e para se determinar livremente de acordo com essa valoração, autoriza-se a pretendida revisão de sentença.



Texto Integral




Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

AA , condenado como autor material de um crime de roubo , p . e p . pelo art.º 210.º n.º 1 , do CP , praticado em 20 /7/2010 , na pena de 2 anos de prisão , por acórdão transitado de 17.5.2011, proferido na 3.ª Vara Criminal de Lisboa , no P.º n.º 127/10.OS 3LSB , veio interpor recurso extraordinário de revisão , com o fundamento de que na data dos factos , em 20 de Julho de 2010 , era portador de demência psíquica grave e notória , designadamente complexo demencial grave associado ao HIV , estando a sua capacidade de autocrítica claramente diminuída , com episódios de disfunção cognitiva , alucinações e ideias delirantes , não sendo capaz de distinguir o bem do mal , sem determinação por vontade própria , incapacitando-o da obrigatoriedade de se apresentar no tribunal nas datas das respectivas convocatórias ou , pelo menos justificar a sua ausência ou presença,  nem capaz de fazer chegar ao tribunal a incapacidade de que sofre .

A história dos seus antecedentes criminais é uma consequência da degradação mental de que padece .

Tudo a ser conhecido do Tribunal na data da condenação levaria a que fosse declarada a sua inimputabilidade e a concluir-se pela sua absolvição , pelo que deve o ora recorrente ser absolvido ou determinar-se o processo para novo julgamento .

Foi  junto aos o relatório da perícia psiquiátrica elaborado pelo INML-Delegação de Lisboa , a que foi submetido depois da condenação , já na pendência do presente recurso de revisão, com data de 28 de Junho de 2012 , do exame psicológico e relatório complementar do exame psiquiátrico .

O Exm.º Magistrado do M.º P.º em 1.ª instância mostrou-se favorável à revisão daquela sentença condenatória , mas já o M.º Juiz sufragou entendimento diverso , com o fundamento de que não está demonstrado nos autos que o estado de saúde o impedia de livremente se determinar nos momentos do crime , nunca se suscitando nas sessões de julgamento efectuado nestes autos ou mesmo no P.º n.º 365/11.9PULSB-A , da 5.ª Vara Criminal de Lisboa ,onde a pena aplicada nos presentes autos foi englobada em cúmulo jurídico , cominando-se-lhe a pena de 2 anos e 8 meses de prisão , a questão da inimputabilidade, constando , de resto , a fls . 68 , do relatório do IML , que “ No contexto não se pode excluir eventual simulação “ .

Neste STJ a EXm.ª Procuradora Geral-Adjunta opôs-se à revisão com a alegação de que:

“ 1.1 Certamente por ter sido a última condenação, o arguido já interpôs recurso extraordinário de revisão com o fundamento de “à data da prática dos factos acusatórios ser já portador de demência psíquica grave e notória …” e por ser portador de diversas patologias, estado clínico e de saúde, para poder vir a ser inimputável à data da condenação.

            1.1.2 Juntou a informação clínica de 4/7/2008 e 30/3/2009, os mesmos que apresentou no actual recurso extraordinário, outra de Outubro de 2011 do Hospital de S. João de Deus: Houve ainda outro pedido de exames, já durante a instrução do recurso, que foram efectuados em 30/1/2012, elaboradas pelo médico assistente também do Hospital S. João de Deus, onde o arguido se encontrava (e encontra).

            1.2 Em 11 de Abril de 2012 foi proferido o Acórdão do S.T.J. que julgou improcedente o recurso interposto denegando a pretendida revisão e por não se estar “perante qualquer facto ou qualquer outro meio de prova novo, porque o arguido obviamente já conhecia a sua situação clinica retratada nas informações de 4/7/2008 e 30/3/2009 (fls. 162 vº).

            2- Em 5 de Janeiro de 2012 vem interpôr novo recurso extraordinário de revisão com os mesmíssimos fundamentos “o arguido à data da prática dos factos acusatórios era já portador de demência grave e notória … associado ao VIH” e outras doenças, apresentando exactamente os mesmos documentos médicos.

            2.1 Os factos que deram origem à condenação neste processo em que foi interposto agora o recurso extraordinário, ocorreram em 20 de Julho 2010 pelas 00H55 m e os factos novos que pretende apresentar mas que não são novos, reportam-se a esta data pretendendo demonstrar que um actual relatório de um médico psiquiátrico faz prova nova sobre a sua inimputabilidade nesse dia e ano.

            No entanto o relatório psicológico complementar de um perito também do Instituto Nacional de Medicina Legal apreciando os factos à data em que foi efectuado o exame não o declarou inimputável nem nessa data nem em 20/7/2010.

            3- É certo que o arguido AA foi condenado em processos autónomos mas por crimes da mesma espécie – roubo, cometidos em datas diferentes, no entanto o fundamento apresentado para a interposição do recurso de revisão é o mesmo – inimputabilidade nos momentos em que cometeu os crimes.

        O artº 465 do CPP dispõe que “tendo sido negada a revisão ou mantida a decisão revista, não pode haver nova revisão com o mesmo fundamento”.

            Tendo sido proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a julgar improcedente o recurso denegando a revisão, continua a ser válida a condenação do arguido AA por autoria do crime de roubo cometido em 24/2/2011, e a ser considerado imputável nessa data.

            No novo pedido de revisão interposto, segundo nos parece, deverá ser considerado que o arguido AA não tem legitimidade para interpôr tal recurso – artº 465º do CPP.

            Se o contrário pudesse vir acontecer ao ser concedido provimento ao segundo recurso extraordinário, uma contradição poder-se-ia vir a verificar - o arguido AA em 20/7/2010 ser considerado inimputável mas sete meses depois em 24/2/2011, o mesmo já era considerado imputável.

            4- A situação clínica do arguido AA a qualquer nível, designadamente psicológico e psiquiatra poderá ter evoluído negativamente e actualmente já se encontrar num estado muito avançado o que poderá levar, em sede própria e não em recurso de revisão, a ser considerada uma anomalia psíquica posterior às condenações.

E neste caso caberá ao TEP não só averiguar mas também tomar as decisões compatíveis e que não têm efeitos retroactivos (artº 483º do CPP e 138º nº 2 al. n) do CEPMPL), ficando o arguido/recorrente devidamente protegido.

            Assim somos de parecer que não se verificando qualquer fundamento diferente para o recurso de revisão, será de indeferir, por falta de legitimidade do arguido AA a interposição de novo recurso extraordinário (artº 465º do CPP) “

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

A estabilidade das decisões judiciais é apanágio dos Estados de direito , diferentemente dos Estados totalitários , mas , ainda assim , naqueles,  o princípio do respeito absoluto pelo caso julgado não é um dogma inultrapassável , sobretudo em situações de decisões clamorosamente injustas , apresentando-se o instituto da revisão como válvula de segurança do sistema , elevado , pela sua teleologia , à dignidade constitucional no art.º 29.º n.º 6  .º, da CRP.

O instituto de revisão serve o interesse privado , “ pro reo “ , mas também o interesse público , “ pro societate “  , da defesa dos direitos interesses legalmente protegidos dos cidadãos , de reprimir a violação da legalidade democrática , que uma condenação penal  –art.º 202.º n.º 2 , da CRP –pode encerrar .

O caso julgado formado sobre as decisões , assegurando  a certeza e a segurança daquelas , é no caso de revisão sacrificado a um grau elevado , degradado a um estado só por razões excepcionais consentido , mas ainda compatível com a filosofia do Estado de direito , sempre que se mostrem graves dúvidas sobre a justiça da condenação ,que não seria razoável manter em nome de um exacerbado respeito por aquele valor .

A  abstracta  superioridade do Estado na relação punitiva não pode , pois , prevalecer  à custa do clamoroso sacrifício do condenado , vítima de um erro judiciário,  comunitariamente intolerável; em situações de clamorosa ofensa ,  de ostensiva  lesividade  do sentimento de justiça reinante  no tecido social  , reclamando atenuação  da eficácia da decisão a coberto do trânsito  em julgado , o que é reconhecido ma generalidade das legislações .

O Estado não pode conseguir uma condenação a todo o custo , mas tem de manter uma superioridade ética , que exprime a diferença  , o espaço visível  entre o simples “ animus puniendi “  e o princípio da  menor compressão dos direitos fundamentais-art.º 18.º , da CRP , sob o signo da menor intromissão na esfera de tais direitos , que uma condenação com maior ou menor amplitude sempre traduz .  

O recurso  abre caminho  a uma reponderação do julgado pelo  STJ na fase rescindente , a que se segue , se for disso caso , a fase rescisória , iniciada com a baixa do processo à 1.ª instância e termina com um novo julgamento .

O recurso não pode , pois , reduzir-se a uma forma disfarçada de apelação , só circunstâncias substantivas e imperiosas ( cfr. Comentário do Código de Processo Penal , pág. 1207 , de Paulo Pinto de Albuquerque ) , o autorizando , elencadas taxativamente na lei , e entre elas a superveniência de factos novos que façam crer que a decisão foi clamorosamente injusta

Factos novos para o efeito de permissão da revisão , pressuposto invocado pelo recorrente , são aqueles  que são efectivamente desconhecidos do tribunal , intraprocessualmente ignorados na decisão transitada , porque eram desconhecidos do recorrente ou este esteve impossibilitado de apresentar –cfr., ainda , op.cit. , pág. 1207 , bem como Luís Osório , in comentário ao art.º 673 .º , do CPP, 1934 , 416 -, sendo também assim que o art.º 771.º , al c) , do CPC , é interpretado .

Quer isto significar que os factos devem ser novo para quem os apresenta , por ele ignorados ao tempo do julgamento , não bastando que sejam desconhecidos no processo , assim o entendendo , também  , Germano Marques da Silva , in Curso de Processo Penal , Verbo , III , 388 e Eduardo Correia , Separata da RDES , 6/381

E essa exigência é aquela que melhor serve o valor do caso julgado evitando que a definitividade da decisão se eternize , o recurso se banalize , estimulando a cooperação e a lealdade processuais , não obstante o poder dever de investigação da verdade material que sobre o  Tribunal impende , mas também este limitado pelo conhecimento de factos que só ao condenado são acessíveis  e cujo benefício está dependente da respectiva alegação em juízo .

Consubstanciaria uma afronta do princípio da lealdade processual admitir que o requerente da revisão apresentasse os factos como novos não obstante ter inteiro conhecimento no momento do julgamento da sua existência. Tal entendimento  faria depender a revisão de sentença de “ um juízo de oportunidade do requerente, formulado à revelia de princípios fundamentais como é o caso da verdade material ou da referida lealdade “, decidiu-se no Ac. deste STJ , de 21-03-2012, in Proc. n.º 1197/07.4GBAMT-A.S1 - 3.ª Secção, , com tradução nos de 09-11-2011, Proc. n.º 61/07.4PJSNT.L1.S1 - 3.ª Secção, 21-03-2012,Proc. n.º 561/06.0PBMTS-A.S1 - 3.ª Secção, 08-3.2012 , Proc. n.º 30/10.4TBACN-A.S1 - 5.ª Secção,15-03-2012, Proc. n.º 439/07.0PUPRT-A.S1 - 5.ª Secção e de 29-03-2012 ,Proc. n.º 1896/02.7PAVNG-A.P1-B.S1 - 5.ª Secção

Esta a interpretação que melhor se ajusta “ à natureza excepcional do remédio da revisão e , portanto , aos princípios constitucionais da segurança jurídica , da lealdade processual e da protecção do caso julgado “ , expressou –se , mais recentemente , Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo Penal , 2007 , ao art.º 449.º , nota 12 , pág. 1212

Em sentido mais amplo , fundando a revisão , o simples motivo de os factos não serem conhecidos endoprocessualmente , independentemente de serem ou não conhecidos pelo arguido , é o entendimento que Maia Gonçalves sustenta , in Código de Processo  Penal anotado , 16.º Ed, 2007 , Almedina , pág. 1062 , mas minoritário , como se pode posicionar nesse mesmo plano a orientação jurisprudencial deste STJ , que se fez eco no passado , perdeu , como já resulta do antecedente , actualmente  dominância , como dá nota , em extensa enumeração  de jurisprudência  , o Ac . deste STJ de 11.4.2012 , proferido no Rec.º n.º 365/11.9PULSB.A.S1 , desta Secção .

O STJ tem vindo , pois , a fazer passar por um crivo apertado em termos de exigência a revisão das sentenças , conferindo ao pressuposto de revisão enunciado no art.º 449.º al . d) , do CPP , de que se lança mão , o descrito alcance .

E assim tudo está em indagar se o concorrem factos novos ou meios de prova novos que , de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo , suscitem graves dúvidas sobre a justiça da decisão condenatória do arguido , para funcionamento do pressuposto previsto no art.º 449.º n.º1 d) , do CPP

A Exm.ª Procuradora Geral-Adjunta neste STJ suscita a ilegitimidade do arguido para requerer a revisão , invocando o disposto no art.º465.º , do CPP,  este proibindo que , se for negada a revisão ou mantida a decisão revista , se possa desencadear novo recurso  , na redacção da Lei n.º 48/2007 , de 29/8 , diversamente da redacção vigente do antecedente em que a nova revisão dependia de autorização do PGR , segmento legal restritivo  que o TC acabaria por declarar inconstitucional pelo seu AC. n.º 301/2006 , DR II Série , de 23/6 2006 .

Na verdade, o arguido , ora recorrente , no P.º n.º 365/11.9PULSB-A.S1 , da 5 Vara Criminal de Lisboa , foi condenado,  por factos de 24.2.2011 , em 13 de Julho 2011 , transitando o acórdão em julgado em 3 de Outubro de 2011 , pela prática de crime de roubo , em forma tentada , p . e p . pelos art.º 22.º , n.ºs 1 e 2 b) , 23.º , n.ºs 1 e 2 , 73.º n.º 1 a) e b) e 210.º n.º 1 , do CP, em 2 anos de prisão .

E , posteriormente , -mas antes , ainda , do presente recurso - interpõs nesse processo recurso extraordinário de revisão , alegando ser portador na data dos factos de “ um quadro demencial associado ao HIV “ , de encefalopatia causada por infecção por HIV e dos vírus da hepatite B e C (…) , tudo conforme informações clínicas constantes dos documentos 1 , 2 e 3 “ .

Mais disse que se encontrava , ainda , em “ estado de toxicodependência e alcoolismo “ . e que “ O seu estado de saúde não lhe permitia , entre outras coisas , interiorizar a obrigatoriedade de se apresentar no tribunal nas datas das respectivas convocatórias , ou pelo menos , justificar a sua falta ou ausência “ , “ não sendo mesmo capaz de distinguir correctamente o bem do mal “ . por a sua capacidade de autocrítica  estar “ claramente diminuída “ .

O Exm.º Magistrado do M.º P.º , em 1.ª instância , contramotivando em tal processo , disse , a dado ponto , que “ …os documentos juntos que constituiriam os “ novos elementos de prova “ não evidenciam /demonstram um estado de inimputabilidade a quando da prática dos factos . Dão nota da evolução de um estado demencial por encefalopatia do HIV “ com cerca de três anos “ , ou seja iniciado em 2008 , com variações de graduação consoante seguia ou abandonava os tratamentos , anotando-se tendo tido”  alta clinicamente melhorado “ em 4 de Julho de 2008 “

Este STJ , decidindo o recurso extraordinário interposto , no já citado acórdão de 11.4. 2012 , negou a revisão , em tal processo n.º 365/11.9PULSB , da 5 .º Vara Criminal de Lisboa , afirmando que os três documentos juntos , dois deles anteriores ao julgamento e um posteriormente , datados de 4.7.2008, 30.3.2009 e 19.11.2011 , são meras informações clínicas , não autorizando a conclusão de que se está perante qualquer meio de prova ou facto novo , pois a sua situação clínica está retratada nos autos naquelas informações de 4.7.2008 e 30.3.2009 , anteriores ao julgamento , onde a questão da falta de integridade mental não foi suscitada pelo arguido , nem mesmo ao ser interrogado , em inquérito, em 25.2.2011 .

A proibição de repetição do recurso extraordinário , restringindo-se ao mesmo processo , há-de repousar no mesmo fundamento, exigência que deve ser entendida em sentido estrito , de modo a evitar um eventual conflito com o art.º 29.º n.º 6 , da CRP , só o novo pedido de revisão alicerçado nos mesmos factos e provas , impede a revisão,  não já aquele que é alicerçado nos mesmos factos mas em novos meios de prova , como se decidiu no AC. deste STJ , de 12.3.2009 , in CJ , Acs. deste STJ , XVII , I , 227 .

A  questão da imputabilidade/inimputabilidade penal ou imputabilidade diminuída tem de ser averiguada em cada caso concreto , nada impedindo que seja suscitada em outro processo , não se impondo que a inimputabilidade penal declarada num processo não possa ser contrariada noutro mercê de evolução favorável da patologia psiquiátrica ,sob pena de condenação da pessoa a um estigma perene , ou vice versa , além de  que se pode ser imputável para certo tipo de crimes e inimputável ou imputável diminuído para outros

A inimputabilidade reporta-se ao ”  momento histórico da prática do facto e a cada concreto facto típico” , no dizer de Paulo Pinto de Albuquerque , Comentário do Código Penal , págs . 109 e  127 .

Especificando  o teor dos três  documentos juntos pelo recorrente com a petição de recurso de revisão naquele processo n.º 365/11.9PULSB , da 5 .º Vara Criminal de Lisboa , diremos que um deles , datado de 4/7/2008 , oriundo do Serviço 3 , de Medicina Interna , do Hospital dos Capuchos–Desterro, informa  que o arguido melhorou progressivamente, após o internamento e teve alta clinicamente melhorado , um outro , de 30.3.2009 , emanado da Consulta de Medicina-Imunideficiência , daquele Hospital ,  esclarece que o recorrente registou melhoria clínica , ao nível cognitivo , carecendo, contudo ,  de terapia psiquiátrica e acompanhamento familiar , e um outro , de 14.11.2011 , subscrito por clínica do Hospital dos Capuchos,  indica que o recorrente   teve uma recaída , por abandono de tratamento , evoluindo a sua patologia para um quadro demencial grave , associado a HIV , com infecção crónica por HCV , toxicodependência por opiáceos e etilismo , mas o M.º P.º em 1.ª instância , na sua resposta ao recurso extraordinário , extraiu , ainda assim , a ilação de que se não podia concluir , ante este quadro nosológico que não possuísse a consciência ou tivesse uma consciência diminuída sobre o desvalor da sua conduta

Mas o  requerente , foi , depois , submetido a perícia psiquiátrica , no decurso do presente recurso de revisão , por ordem do tribunal , ao abrigo dos art.ºs 453.º n.º 1 , 151 .º , 152 .º , 154.º , 156.º , 157 .º e 159.º n.º 7 , do CPP , no INML-Delegação de Lisboa,  perícia essa cuja efectivação na fase de recurso de revisão é plenamente permitida pelo art.º 453.º , do CPP , seu n.º 1 , em ordem à descoberta da verdade ,  e que , claramente , se assume como prova diversa da respeitante àquele complexo informativo daqueles  três supracitados documentos, suplantando –os em termos de força probatória como prova pericial que é , com toda a força vinculante no processo , para o qual foi solicitada, e sem qualquer restrição poder ser utilizada , bem  distinta da prova de que se lançou mão no processo de revisão antes instaurado , pelo que é de afirmar a legitimidade, que se pretende ver negada, do recorrente para intentar o presente recurso invocando o quadro patológico ao nível psiquiátrico de que é portador .

A perícia psiquiátrica é uma modalidade das provas previstas no CPP , e tem lugar porque a apreciação do estado de saúde mental do arguido  não dispensa especiais conhecimentos técnicos e científicos , por isso foi delegada à credenciada entidade especializada que é o INML /Lisboa , por o tribunal daqueles conhecimentos não dispor , ultrapassada como se mostra a fase positivista , que fazia do julgador um ser de saber enciclopedista e universal .

Donde a prova de tal natureza se presumir subtraída à livre apreciação do julgador ; o art.º 127 .º , do CPP , sofre , aqui , uma evidente limitação por se tratar de prova vinculada ou tarifada , podendo o julgador discordar do resultado pericial , mas devendo fundamentar a divergência , naturalmente que , não com recurso a ciência própria , privada , mas pelo recurso a uma fundamentação pericial de sinal contrário , sob pena de evidente subversão da teleologia do preceito e da restrição .

Na fundamentação da divergência o juiz argumenta no mesmo campo do perito e do consultor técnico ( Paolo Tonini , Processo Penal , 2007 , 249) .

A perícia psiquiátrica , complementada , de resto , pela perícia psicológica e por esclarecimentos , nos termos do art.º 158.º , do CPP , concluiu que “ …em relação aos factos descritos nos autos que o examinando não apresenta capacidade para avaliar o grau de ilicitude desses actos e de se determinar por esta avaliação pelo que reúne os critérios médico-legais de inimputabilidade “ , e no esclarecimento prestado com vista a clarificar o tribunal , pela subsistência de dúvidas , se entre o momento da prática do factos ( 20.7.2007 ) e o da condenação por acórdão de 15.5.2011 , estava privado das suas faculdades mentais , o INML esclareceu , a fls . 125 , além do mais , que “ apresenta síndrome demencial grave, necessitando cuidados continuados para a sua sobrevivência “( sofre de incontinência fecal e urinária , tendo que usar fraldas ) e que com “ relação aos factos descritos nos autos se encontrava incapaz de avaliar o grau de ilicitude dos seus comportamentos e de se determinar por esta avaliação , preenchendo os critérios médico-legais de inimputabilidade.

E mais se acentuou que “ A sua perigosidade pode ser considerada elevada “ ( …) tendo indicação para ser colocado em hospital de retaguarda ou lar residencial “-fls .70 .

A perícia sobre a personalidade , realizada no INML-Delegação do Sul ( Lisboa ) em 19.6.2012 , que se propõe nos termos do art.º 160.º , n.º 1 , do CPP , a avaliação das suas características psíquicas , independentemente de causas patológicas ( própria da perícia psiquiátrica ) , relevante , além do mais , para definição da culpa do agente , conclui , em sentido aproximado , que  o recorrente é portador de um “ discurso incoerente e confuso em algumas ocasiões “ e de dificuldades ao “ nível da compreensão , resolução de problemas , memória a curto prazo , concentração , organização perceptiva , estruturação espacial , pensamento associativo e lógico , capacidade de estabelecer relações de causa –efeito e compreensão de responsabilidades sociais “

O art.º 20º n.º 1 , do CP , define inimputabilidade pelo recurso a um critério , a um substrato biopsicológico , no aspecto de presença de uma anomalia psíquica,  e a um efeito normativo , que se analisa na incapacidade no momento do acto de avaliar a sua ilicitude e se determinar de acordo com essa avaliação , e que  na esteira de Mezger , seguida pelo Prof Figueiredo Dias , in Pressupostos da Punição , Jornadas de Direito Penal , CEJ , I , pág. 76 , se traduz praticamente na “ destruição da conexão objectiva do sentido do comportamento do agente , de tal modo que um tal comportamento pode ser causalmente explicado , mas não espiritualmente compreendido e imputado à personalidade do agente “ .

É do conhecimento do arguido que sofre , há 25 anos , de infecção provocada por VIH 1, este não é um facto novo , mas o síndrome  demencial grave associado ao HIV e a decorrência da incapacidade de avaliar a ilicitude do seus actos e de se determinar em função dela , exprimem um juízo científico , alicerçado naquela patologia , adquirido à luz de prova obtida depois do julgamento , em fase de revisão de sentença , que preenchem o pressuposto de nova prova , para fins do art.º 449.º , n.º 1 , d) , do CPP .

Se se aceita que o arguido conhecia ser portador de HIV antes do julgamento , por ser conhecimento acessível ao cidadão comum , já não temos como ponto minimamente assente que conhecesse a sua inimputabilidade penal , esta  sedimentada ou obtida em prova pericial depois da sua condenação , naturalmente que escapando ao recorrente  essa consequência da doença , com amplas implicações mesmo ao nível penal , podendo , inclusive , conduzir ao seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança , nos termos do art.º 91.º n.º 1 , do CP .

A  argumentação do M.º Juiz para recusar a revisão , em discordância do M.º P.º , em 1.ª instância ,  apresenta-se-nos não reunir consistência bastante , desde logo quando alega nunca ter sido suscitada antes , muito particularmente no julgamento , não levando em conta que não compareceu a ele , bem podendo a psicopatologia de que padece , inibindo-o de tomar consciência dos seus actos e de se autodeterminar ,  ser a causa da ausência ao julgamento e da sua indiferença pelo desenrolar do processo ,  gerando-se , até , um estado de dúvida de que não pode deixar de beneficiar , pois o princípio “ in dubio pro reo “ é extensivo às causas de exclusão da culpa , ilicitude , condições objectivas de punibilidade , circunstâncias que atenuem a medida da pena ou mesmo a excluam .

Por outro lado a hipotética e invocada simulação que convoca no aspecto em que diz “ ouvir vozes “  é advinda por insinuada pela perícia médico-legal , apenas , no capítulo do exame médico, sob a epígrafe  “ observação psicopatológica actual “ , onde , apesar de tudo , é bem explícito,  no restante  , o seu “ juízo crítico diminuído”

Aquela eventual simulação não tem qualquer virtualidade, como é óbvio , e a perícia implicitamente o considera , para contaminar a validade no restante do exame e o aspecto conclusivo da inimputabilidade , que para ser superado exigiria nos termos do art.º 163.º n.º 2 , do CPP , um juízo científico de sinal contrário em exame a que no tribunal recorrido se não procedeu , havendo que submeter-se ao realizado no INML .

Nestes termos a apresentação de relatórios periciais psiquiátricos e sobre a personalidade , posteriormente ao julgamento,  apontando para uma situação de diminuto sentido crítico e de falta de capacidade e para “ estabelecer relações causa-efeito e compreensão das responsabilidades sociais “ ( Fls .69 do exame pericial ) enfraquecendo , de resto , a afirmação na sentença de que a ausência voluntária ao julgamento foi dominada para se furtar à acção da justiça , justifica que se questione a justiça da decisão condenatória .

A inimputabilidade não apaga o  “ facto ilícito , material , histórico , mas exclui os elementos do tipo subjectivo do ilícito e da culpa “, constituindo “ uma causa de exclusão ( ou obstáculo à comprovação da culpa ) ,da culpa “  , no dizer de Paulo Pinto de Albuquerque ,op. e loc . cit., pelo que , sendo o agente insusceptível de ser censurado a título de culpa , não pode ser sancionado .

Na verdade é princípio da maior relevância na dogmática e na política criminais o princípio da culpa , ou seja o de que em caso algum pode haver pena sem culpa , nos termos dos art.ºs 1.º , 20.º n.º 2 e  40.º n.º2 , do CP ,  arrancando essa valoração não de uma qualquer ideia retributiva da pena , mas do princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal , na esteira do Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português , As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 73 .

Convergem , em nosso ver , face aos elementos documentais agora reunidos , razões para duvidar da justiça da decisão , atingindo fortemente as bases do julgado , sobretudo a validade da acção que a sentença teve como comprovadamente livre e consciente , apontando diferentemente para uma grave , mais do que razoável , dúvida sobre a justiça da condenação –cfr. Acs. deste STJ , de 18.10.2000 , SASTJ , 44, 74 e de 27.10.2010 , CJ ; STJ , I , Ano XVIII , 2003 , bem como Conde Correia , 563 , nota 1084 , in O Mito do Caso Julgado-, por falta de capacidade de culpa , capacidade para compreender  o sentido e alcance dos seus actos e se determinar livremente de acordo com essa valoração

Nestes termos se autoriza a revisão , reenviando-se , oportunamente , o processo , na forma que se prevê no art.º 457 .º n.º 1 , do CPP .

Nos precisos termos do art.º 457.º n.º 2 , do CPP , achando-se o recorrente a cumprir pena à ordem do P.º n.º 365/ 11.9PULSB-A , da 5.ª Vara Criminal de Lisboa,  suspende-se a execução da condenação .

A libertação do recorrente deverá ser oportunamente considerada tendo em atenção  a eventual necessidade de desencadear os mecanismos legais de internamento compulsivo , como previsto na Lei de Saúde Mental ( n.º 36/98 , de 24/7) , atenta a perigosidade de que padece .

Sem tributação .

Armindo Monteiro (Relator)
Santos Cabral
Pereira Madeira