I - Tanto a jurisprudência, como a mais abalizada doutrina da especialidade, apontam decisivamente no sentido de que só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada.
II - A ratio de tal solução é muito simples: é que, até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota.
III - É pela partilha (extrajudicial ou judicial e, neste caso, através do processo de inventário-divisório) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas.
Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 04-02-1997 supra citado: «A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai obre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará».
IV - O Ilustre Professor de Coimbra, Doutor Rabindranath Capelo de Sousa assim ensina nas sua Lições de Direito das Sucessões: «Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário» ( Lições de Direito das Sucessões, pg. 185).
V - Por sua vez, outro Professor de Coimbra, o Doutor Pereira Coelho, assim escreveu nas sua obra de Direito das Sucessões: «Não se trata uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens concretos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesma considerada» (Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 2ª ed. 1966-1967).
Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
RELATÓRIO
AA e BB, nos autos identificadas, instauraram contra CC e Outros, melhor identificados na petição inicial, a presente acção especial de divisão de coisa comum, pedindo que os autos sigam os termos previstos nos artºs. 1053° e ss. do C.P.C., alegando, em suma, serem as requerentes e os requeridos, titulares, em comum, dos vários prédios identificados na petição inicial, pretendendo as primeiras pôr termo à indivisão, através da instauração da presente acção.
Os Requeridos contestaram, por excepção, invocando que a presente acção não constitui o meio processual próprio para pôr termo à indivisão porque os prédios ainda não foram partilhados, sendo titularidade de heranças ilíquidas e indivisas.
Findos os articulados, foi proferida decisão declarando que a acção de divisão de coisa comum não constitui o meio processual próprio para pôr termo à indivisão, afigurando-se que, no caso concreto, o meio processual próprio é o processo de inventário e, constatando a existência de erro na forma de processo, declarou que tal erro é uma excepção dilatória, cuja procedência, determinando a nulidade de todo o processo, importa a absolvição dos requeridos da instância, nos termos do disposto nos artºs. 199°; 203°; 204° n° 1; 288° n° l, al. b); 487° n° 2, T parte; 493° n° 2 e 494° do C.P.C, absolvendo os Réus da instância e ordenando o arquivamento dos autos nos termos das sobreditas disposições legais.
Inconformadas, interpuseram as Autoras recurso de tal decisão para o Tribunal da Relação de Évora que, concedendo provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida, por entender que «não obsta a que concorram à acção de divisão de coisa comum tantos os comproprietários de partes definidas do bem a dividir, como os titulares de uma herança indivisa – que a divisão não interferirá, por definição, com a partilha».
Foi a vez de os Requeridos, DD e Outros, assim como CC, todos inconformados com o Acórdão da Relação, virem interpor recurso de Revista, do mesmo, para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:
CONCLUSÕES:
Dos Recorrentes DD e Outros:
A. Os prédios referidos no ponto 31 desta peça, não podem, ao invés do que afirma o Tribunal da Relação de Évora, ser objeto da ação de divisão de coisa comum, pela simples razão que fazem parte integrante do património autónomo, sendo que o meio idóneo para a divisão e partilha desse mesmo património autónomo, não é esta ação, mas sim a ação de inventário.
B. Todo o acórdão agora recorrido parte de um suposto manifestamente errado, segundo o qual todas as coisas são divisíveis quer juridicamente, quer fisicamente, o que não corresponde à verdade porque no caso das coisas móveis, há coisas que a sua divisão em partes iguais levariam à sua inutilização, como por exemplo, o caso de uma cadeira. Uma cadeira não é divisível fisicamente, porque a sua divisão mediante o corte ao meio impossibilita o fim da própria coisa, porquanto, ninguém se consegue sentar numa cadeira dividida ao meio. Ora, o acórdão recorrido na sua fundamentação parte de um pressuposto errado que tudo é divisível.
C. Ora, existem bens imóveis que podem ou não ser divisíveis consoante a lei a permita, por exemplo, uma fração autónoma de um prédio não pode ser objeto de divisão sem que haja previamente alteração à propriedade horizontal, porquanto se trata de um requisito prévio.
D. No caso dos prédios rústicos os mesmos são insustíveis de divisão por impossibilidade legal, sempre que da divisão resulte que a dimensão do prédio, objeto da divisão, seja inferior a uma unidade de cultura.
E. As situações como as previstas nos presentes autos, devem ser resolvidas nos exatos termos previstos no art.° 1052º do CPC, ou seja, primeiro há lugar à ação de inventário, e como apenso a esta pode eventualmente haver lugar à ação de divisão de coisa comum.
F. Ora, esta disposição legal diz-nos que primeiro partilha-se, depois divide-se. A forma como o n° 2 do art.° 1052 do CPC se encontra redigida, responde na plenitude à questão suscitada nos presentes autos.
G. Ora, o que esta disposição refere é que no caso dos patrimónios autónomos, primeiro há lugar à partilha, e posteriormente, correndo por apenso, há lugar à ação de divisão de coisa comum.
H. No caso dos presentes autos, o acórdão recorrido não responde às questões que uma eventual divisão de coisa comum, de coisa não partilhada, levanta como seja o caso, na eventualidade de se concluir pela indivisibilidade da coisa, haver lugar nos termos do disposto no art.º 1056 à conferência de interessados quem é que representa o património autónomo neste ato.
I. Como referimos anteriormente e sendo os poderes no cabeça de casal limitados a atos de mera administração, nos quais aliás, o mesmo tem de prestar contas, não poderia ser seguramente este o representante do património autónomo.
J. Por outro lado, o acórdão agora recorrido também não responde, como verificamos anteriormente, às situações em que existem dívidas sobre o património autónomo devidamente reconhecidas por todos os interessados.
K. Conforme decorre da jurisprudência supra transcrita, o meio idóneo para pôr termo aos patrimónios autónomos, é a ação de inventário.
L. Conforme tivemos o cuidado de referir no ponto 31 desta peça, as coisas imóveis cuja divisão se requer, ou seja, são partes integrantes de patrimónios autónomos, não sendo este o meio adequado para por termo à referida indivisão.
Da Recorrente CC:
A) Ao contrário do acórdão recorrido, a sentença de 1ª Instância, e bem, tinha considerado que sendo os bens de comunhão hereditária, o que é diverso da compropriedade plena, embora de várias heranças, haveria que primeiro partilhar tais bens noutra sede, absolvendo por isso os RR.
B) Todos os bens em causa são de comunhão hereditária com excepção de pequeníssimas parcelas de 2 bens onde um dos herdeiros já fez a venda dos seus direitos, e de um bem de que uma pequeníssima parcela foi adquirida por alguns herdeiros em hasta pública em execução. Relativamente a todos eles há depois a doação de uma das herdeiras da nua propriedade da sua parcela a outra herdeira - facto que foi judicialmente impugnado e que corre termos, como alegado.
C) Ora, as Requerentes e requeridos (AA. e RR) surgem aqui como titulares de uma comunhão hereditária e não como verdadeiros comproprietários que pretendem dividir o que já é seu, sem que os bens tenham sido partilhados.
D) No acervo das heranças em causa ( que são várias) constam muitos mais bens, daí que é óbvio que interessa conhecer essa situação, pois a partilha, embora possa ser parcial, tem que ser feita com o acordo de todos e deve ser vista em relação a todos os bens, que são muitos mais do que os em causa e que são provenientes de várias heranças: e isto é tanto mais importante quanto é certo que só pela partilha é que se irão definir os titulares de este ou aquele bem, se em comum ou se individualmente, correspondendo então a acção de coisa comum para aqueles que adquiridos em partilha não queiram manter a indivisibilidade e tal seja juridicamente possível.
E) Porém, o que foi admitido no Acórdão recorrido foi precisamente o inverso: divida-se já independentemente do facto de estar pendente de inventário e depois fica em comum até à partilha! Não pode ser: tal corresponde a inverter totalmente o sentido dos dois institutos!
F) O Acórdão "a quo" parte logo de um princípio errado: os bens não estão divididos em 1/3 para um, 1/3 para outro e 1/3 para a herança indivisa: todos os 1/3 são heranças indivisas, só que são heranças diferentes embora grande parte dos herdeiros seja comum.
G) Daí que a ideia do acórdão de "autonomizar o que se comunga" como solução a encontrar(!) (p.6) podendo considerar-se partes independentes dos bens entre si: nada mais errado pois os bens não são independentes nem as partes podem ser consideradas independentes: basta atentar que se está perante bens agrícolas que só fazem sentido em conjunto, sob pena de se tornarem totalmente inviáveis...
H) É que não é possível sequer fazer divisões dos prédios sem bulir com o resultado de qualquer partilha: forçosamente tal sucederá e é isso que as AA. procuram. Por via da divisão inviabilizarem a partilha com a criação de uma mancha agrícola que torne desprezíveis as divisões resultantes da partilha!
I) Não procede finalmente o argumento "ad terrorem": se houver mistura de interessados não há possibilidade da divisão: mas os interessados são todos herdeiros: não há proprietários que não sejam herdeiros, o que houve foi cedência pontuais de quinhões hereditários ou por via de compra ou por via de doação impugnada: o tribunal "a quo" acaba por admitir que possa existir uma deficiência de instrução. O que certamente se verifica e em particular quanto à possibilidade de divisão por se tratar de prédios rústicos: mas tal deverá sempre ser relegado para as instâncias.
J) O Acórdão "a quo" vem em desespero de causa invocar um acórdão da Relação de Coimbra (de que não cita a origem e que não foi possível encontrar) que em nada corresponde ao citado pelas então apelantes. O Acórdão da Rel. de Coimbra citado é de 13.01.1987 diz o seguinte: «A acção de divisão de coisa comum tem como pressuposto e causa de pedir a compropriedade. Os co-herdeiros de herança ainda não partilhada não são comproprietários..."
K) Bem pelo contrario o Acórdão do STJ de 10-12.1987 citado (in BMJ n° 372 p 403 e em www.dgsi.pt) é bem peremptório: "I- Os herdeiros, por meio de acção de divisão de coisa comum, só podem dividir os bens da herança de que já sejam comproprietários, isto é, que lhes tenham já sido atribuídos em partilha previamente realizada. II- A existência ou inexistência de partilha prévia é, um facto que tem imperiosamente de ser apurado pelas instâncias quando aquela acção tenha por objecto bens da herança."
L) No mesmo sentido veja-se os Acórdãos desse Supremo Tribunal de 1972/01/14 (in RT ano 90 p 68) e de 1984/04/17 (in BMJ n° 296, 298).
M) Aplicou, assim o acórdão "a quo" erradamente o disposto nos artigos 1412°,1413°,2101° e 2102º do Código Civil, 1052° do C.P.C e Lei n° 29/2009, de 29 de Junho ( regime Jurídico do Processo de Inventário) bem como a doutrina e jurisprudência na matéria
Foram apresentadas contra-alegações, pelas Requerentes/Recorridas, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.
FUNDAMENTOS
Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:
1) Em 29 de Setembro de 2011 (a data de entrada está a fls. 87), AA e BB instauraram a presente acção, com processo especial, para divisão de coisa comum, contra CC, EE e marido, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e esposa, PP, QQ, RR e esposa, SS, TT e esposa, UU, VV e XX, para divisão dos 60 (ou 61) prédios que melhor identificam ao longo das setenta folhas que constituem o artigo 2º da sua douta petição inicial, e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2) Os prédios estão simultaneamente inscritos, em diferentes proporções, a favor das Autoras/Requerentes e dos Réus/Requeridos, quer em usufruto, quer em nua propriedade, quer “em comum e partes iguais”, quer “em comum e sem determinação de parte ou direito”, quer por compra (nalgumas, com reserva de usufruto), quer por compra em processo executivo, quer por doação (nalgumas, com reserva de usufruto), quer por sucessão hereditária ou testamentária (ainda não objecto de partilhas), quer por partilha em inventário (e nesses, também, “em comum e sem determinação de parte ou direito”), quer por aquisição de quinhão hereditário, quer por dissolução da comunhão conjugal, com registo de servidão administrativa, ónus de não fraccionamento, e, alguns, com registo de penhoras (vide as certidões da descrição e inscrições registrais de fls. 88 a 152, 156 a 214, 218 a 287, 291 a 357 e 361 a 367 dos autos, bem como das escrituras de habilitação, abertura de testamento, cessão de quinhão hereditário, de doação e contrato-promessa de partilha que constituem fls. 368 a 412 dos autos, todos aqui também dados por integralmente reproduzidos).
3) Entretanto, por douto despacho proferido a 01 de Abril de 2012, foram os Réus/Requeridos absolvidos da instância e ordenado o arquivamento destes autos, por se ter entendido que o processo correcto e mais adequado ao vertente caso seria o de Inventário e não o de Divisão de Coisa Comum (vide tal douto despacho a fls. 505 a 508 dos autos, aqui dado por reproduzido na íntegra).
Não restam dúvidas de que os Recorrentes têm inteira razão, como se passa a demonstrar.
Tanto a jurisprudência, como a mais abalizada doutrina da especialidade, apontam decisivamente no sentido de que só se pode dividir os bens da herança de que se seja proprietário, ou seja, que tenham sido atribuídos aos herdeiros em partilha previamente realizada.
Neste exacto sentido, podem ver-se, entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10-12-1987, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Almeida Ribeiro assim sumariado:
I - Os herdeiros, por meio de acção de divisão de coisa comum, só podem dividir os bens da herança de que já sejam proprietários, isto é, que lhes tenham já sido atribuídos em partilha previamente realizada.
II - A existência ou inexistência de partilha previa é pois, um facto que tem imperiosamente de ser apurado pelas instancias quando aquela acção tenha por objecto bens da herança.
Igualmente, se pode apontar, in hoc sensu, o Acórdão do STJ de 4-02-1997, relatado pelo Exmº Conselheiro Silva Paixão, assim sumariado na parte que ora interessa:
II - A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará.
III - Os herdeiros do comproprietário não podem usar de acção de divisão de coisa comum (nem podem nela ser demandados), sem que, previamente, se tenham habilitado e procedido à partilha.
A nível doutrinal, assim se pronuncia o Ilustre Magistrado, Dr. Luís Filipe Pires de Sousa, na sua obra de referência «Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas», apoiado em largo acervo jurisprudencial aí indicado:
«No caso de comunhão hereditária a mesma cessa pela partilha de uma generalidade de bens entre os interessados, por forma a ficar determinado quais os patrimónios individuais em que tais bens passarão a estar integrados.
Até à partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados .
Enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõem.
Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar acção de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança .
Só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum.
Dito de outro modo, os herdeiros do comproprietário não podem instaurar acção de divisão de coisa comum sem que, previamente, tenham procedido à partilha. Só após a individualização de um direito de propriedade sobre uma quota do prédio é que se torna viável a divisão de coisa comum.»[1].
A ratio de tal solução é muito simples.
É que, ao contrário do que supõem as Recorridas autoras, até à partilha os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota.
É pela partilha ( extrajudicial ou judicial e, neste caso, através do processo de inventário-divisório) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas.
Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 4-02-1997 supra citado: «A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai obre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará».
O Ilustre Professor de Coimbra, Doutor Rabindranath Capelo de Sousa assim ensina nas sua Lições de Direito das Sucessões:
«Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário»[2]
Por sua vez, outro Professor de Coimbra, o Doutor Pereira Coelho, assim escreveu no seu Direito das Sucessões:
«Não se trata uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens concretos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesma considerada»[3]
Já num acórdão deste Supremo Tribunal de 1980, brilhantemente relatado pelo emérito e saudoso Juiz Conselheiro Octávio Dias Garcia, que chegou a ser Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, é patente a adesão dos Ilustres Juízes Conselheiros que o subscreveram, a tais ensinamentos.
Após o quadro legal, doutrinal e jurisprudencial sobre tal questão, que aqui deixámos esboçado, é tempo de reverter agora ao caso sub judicio, tendo para tanto bem presente o que se lê na douta decisão da 1ª Instância sobre o suporte factual do presente processo:
«No caso dos autos, na falta dos títulos aquisitivos dos prédios identificados na petição inicial, em relação às requerentes e aos requeridos, foram juntas, pelas primeiras, certidões prediais dos vários prédios em discussão, analisadas as quais, se constata que os titulares inscritos, ora são uns requeridos, ora são outros requeridos (juntamente com as requerentes ), sendo a causa da aquisição a dissolução da comunhão conjugal e a sucessão hereditária e, também, em alguns casos a sucessão testamentária.
Sucede que, em alguns ( bastantes ) casos, surge, também, no registo que a aquisição se encontra em comum e sem determinação de parte ou direito, o que revela, inequivocamente, que o prédio ainda não foi partilhado entre os herdeiros, sendo o seu titular uma herança ilíquida e indivisa ( assim acontece com os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Constância com os n°s 508/19940117 e 648/19940117, da freguesia de Constância, apenas referidos a título de exemplo, porque há mais prédios nestas condições registais, sendo certo que não constam dos autos os títulos aquisitivos, ou seja, os testamentos ou as escrituras de partilha ).
Pelo exposto, a presente acção de divisão de coisa comum, como o mencionaram os requeridos que a contestaram não é meio processual próprio para proceder à divisão dos prédios identificados na petição inicial».
Aliás, as próprias Recorridas que propuseram a presente acção de divisão de coisa comum, reconhecem no corpo das suas contra- alegações – fls. 782 – que:
«Aceita-se que a titularidade do património que se pretende ver dividido, não deriva apenas de uma única aquisição, assim como a parte de dois dos titulares originários, pertence hoje a heranças indivisas.
Não obstante, as requerentes são comproprietárias dos prédios em causa, como consta das certidões prediais juntas aos autos.
Sendo certo que as pessoas não são obrigadas a permanecer na indivisão.
Conforme resulta dos autos, os prédios identificados no requerimento inicial pertencem a vários titulares ou comproprietários, sendo dois deles heranças indivisas, devidamente representadas pelos seus herdeiros, todos requeridos nesta ação.
A propriedade em comum surgiu com a aquisição, por compra (vd. requerimento inicial, artigo 2.°, prédios 1 a 11), legado em sucessão testamentária (vd. requerimento inicial, artigo 2.°, prédios 12 a 51), partilha em inventario (vd. requerimento inicial, artigo 2.°, prédios 52 a 59), doação vd. requerimento inicial, artigo 2º, prédios 60 e 61)»
Porém, como se colhe do facto provado nº 1, «Os prédios estão simultaneamente inscritos, em diferentes proporções, a favor das Autoras/Requerentes e dos Réus/Requeridos, quer em usufruto, quer em nua propriedade, quer “em comum e partes iguais”, quer “em comum e sem determinação de parte ou direito”, quer por compra (nalgumas, com reserva de usufruto), quer por compra em processo executivo, quer por doação (nalgumas, com reserva de usufruto), quer por sucessão hereditária ou testamentária (ainda não objecto de partilhas), quer por partilha em inventário (e nesses, também, “em comum e sem determinação de parte ou direito”), quer por aquisição de quinhão hereditário, quer por dissolução da comunhão conjugal, com registo de servidão administrativa, ónus de não fraccionamento, e, alguns, com registo de penhoras (vide as certidões da descrição e inscrições registrais de fls. 88 a 152, 156 a 214, 218 a 287, 291 a 357 e 361 a 367 dos autos, bem como das escrituras de habilitação, abertura de testamento, cessão de quinhão hereditário, de doação e contrato-promessa de partilha que constituem fls. 368 a 412 dos autos, todos aqui também dados por integralmente reproduzidos)», o que vale por dizer que se trata de património comum, emergente de heranças e aquisições que carece de ser partilhado, por forma a se determinar, antes do mais, qual a parte que está em comum, como compropriedade e a parte que corresponde a quinhão hereditário, como bem salienta a Recorrente II na conclusão 3ª da sua douta minuta recursória.
É inteiramente certo que o nº 1 do artº 1412º do Código Civil estatui que «nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa».
Trata-se da consagração legal do vetusto brocardo romano «in communione vel societate nemo compelitur invitus detineri».
Todavia, o direito de exigir a divisão a que se refere o citado inciso legal e que é adjectivado pela acção de divisão de coisa comum, tem pressupostos, e um deles é que os herdeiros do autor da sucessão não dispõem sobre os bens que integram acervo hereditário um direito real, maxime, o direito de propriedade, carecem de efectuar a partilha antes de pretender a divisão de coisa comum.
Não há, porém, salvo o devido respeito, que confundir compropriedade com contitularidade do direito à herança, como fazem as Recorridas.
Aliás, são as próprias Recorridas que, nas suas contra-alegações, reconhecem que parte desse património, que era dos dois primitivos titulares, pertence hoje a heranças indivisas.
No que se estribam as Recorridas ( sempre segundo as suas contra-alegações) é no argumento de que tendo falecido HH e, depois, D.JJ, a parte de cada um passou a integrar as suas heranças, pelo que «a compropriedade surgiu com a aquisição ( primitiva), por compra, legado em sucessão testamentária, partilha em inventário e doação, dos mencionados prédios».
Têm parcialmente razão, na medida em que o direito de propriedade daqueles falecidos donos, há-de transmitir-se aos seus herdeiros que aceitarem a herança.
Tal só ocorrerá, porém, após a partilha que é «o acto pelo qual se põe termo à indivisão de um património» «(Nuno Espinosa G. Silva, Direito das Sucessões, 1980, 110), visto que, até lá, são apenas contitulares do direito à universalidade dos bens que integram o acervo hereditário.
Partilhados os bens, a benefício de inventário ou extrajudicialmente (nesta modalidade só se houver consenso de todos), então as quotas hereditárias serão, em concreto, preenchidas e, só então, os herdeiros serão proprietários dos bens que integrarem as respectivas quotas ou quinhões.
Como judiciosamente escreve Lopes Cardoso, «aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade.
Do facto de serem chamados à sucessão não se segue, necessariamente, que se lhes radique desde logo a qualidade de sucessores, pois é mister que a aceitem, retroagindo neste caso os efeitos da aceitação ao momento inicial de abertura ( artº 2050º, nºs 1 e 2 do C. Civil)[4].
O que vale dizer que a transmissão jurídica e a transmissão real da posse da herança se reportam a momentos que não coincidem, pois enquanto o primeiro corresponde à morte do seu autor, o segundo tem início com a aceitação por parte do que lhe sucede».
Mais adiante, o Ilustre Autor escreve:
«A exigência da aceitação tem a sua razão de ser, por isso que na universalidade que a herança constitui se compreendem direitos e obrigações e bem podem estas sobrelevar àqueles».
É, no entanto, imprescindível frisar bem que da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos herdeiros o direito a uma quota hereditária[5], não a titularidade no direito de propriedade dos respectivos bens que lhes advirá pela partilha.
É tempo de terminar, recordando um aresto deste Supremo Tribunal, cronologicamente antigo, mas pleno de actualidade, que é o Acórdão de 14 de Janeiro de 1972, que assim sentenciou:
« A herança, antes da partilha, é uma universitatis juris, com conteúdo próprio, fixado na lei ( cfr. artigos 2064º, nº 2, 2068º, 2070º, 2074º, nº 3, 2079º, 2088º, 2089º, 2091º, 2098º e outros do Código Civil).
Os herdeiros são titulares de um direito indivisível, enquanto se não fizer a partilha. Até à partilha tal direito recai, assim, sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados dela. Logo, não pode atribuir-se ao co-herdeiro, antes da partilha, a qualidade de proprietário de qualquer bem da herança»[6].
Pelo exposto, há que reconhecer que bem havia decidido a 1ª Instância ao sentenciar que só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à acção de divisão de coisa comum.
Tudo visto e ponderado, sem necessidade de considerandos mais desenvolvidos, procedem as conclusões das doutas minutas de todos os Recorrentes, o que inexoravelmente conduz à revogação do Acórdão recorrido, com repristinação da decisão da 1ª Instância, tendo em consideração os fundamentos ora enunciados.
DECISÃO
Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder as Revistas, revogando o Acórdão da Relação recorrido e repristinando a decisão da 1ª Instância, tendo ainda em conta com os fundamentos que ora expostos se deixam.
Custas pelas Recorridas, por força da sua sucumbência.
Processado e revisto pelo Relator.
Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Janeiro de 2013
Álvaro Rodrigues (Relator)
Fernando Bento
João Trindade
____________________
[1] Luís Filipe Pires de Sousa, «Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas»,
[2] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, pg. 185.
[3] Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 2ª ed. 1966-1967.
[4] J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judicias, vol 1, pgs. 3 e 4.
[5] R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 3ª edição.
[6] Ac. STJ, de 14 de Janeiro de 1972, in Rev. Tribunais, ano 90º, pg. 69.