I - O art. 222.°, n.° 2, do CPP, prevê a concessão de habeas corpus em três situações: incompetência da entidade que ordenou a prisão – al. a); ser a prisão motivada por facto que não a admite – al. b); e excesso dos prazos, legais ou judiciais – al. c). É este último o fundamento invocado pelo requerente. Considera ele que se encontra excedido o prazo previsto no art. 219.°, n.° 1, do CPP.
II - O referido art. 219.°, n°. 1, do CPP, prevê um prazo específico para o julgamento dos recursos interpostos de decisões que apliquem, substituam ou mantenham medidas de coação, prazo fixado em 30 dias, a contar do momento em que os autos forem recebidos no tribunal superior.
III -Os prazos legais a que se refere essa norma só podem ser, quando está em causa a prisão preventiva, os prazos de duração máxima dessa medida de coação, fixados no art. 215.° do CPP, e não quaisquer outros prazos que corram durante a prisão preventiva, como é o caso do prazo para o seu reexame periódico, previsto no art. 213.° do CPP, ou eventualmente o referido prazo previsto no art. 219.°, n.º 1, do CPP. Estes prazos não estabelecem novos limites àquela medida de coação, não encurtam a sua duração máxima. Ao estabelecerem dilações próprias para a prática de certos atos (reexame dos pressupostos da medida, decisão do recurso que a impugna), não afetam nem alteram os prazos do art. 215.° do CPP. O não cumprimento daqueles prazos não determina a ilegalidade da prisão.
IV -É completamente abusivo fixar um prazo geral e único para conhecimento de recurso interposto de decisão que aplique prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, à luz do art. 5.°, § 4, da CEDH. Com efeito, a CEDH não impõe um prazo limite certo e determinado. A fixação do prazo para a decisão do recurso depende do critério do legislador, que, no caso português, também não está vinculado a um limite determinado pela CRP (somente o habeas corpus tem essa determinação constitucional: 8 dias, por força do art. 31.° da CRP). Só se houvesse esvaziamento da garantia do recurso (por falta de prazo ou fixação de um prazo excessivamente longo para a decisão), o que não é claramente o caso, seria possível arguir de inconstitucional o prazo fixado naquele art. 219.°, n.º 1, do CPP, por violação do art. 27.°, n.º 1, da CRP.
V -Desta forma, nunca a ultrapassagem daquele prazo poderia determinar a ilegalidade da prisão, mas apenas servir eventualmente de fundamento para a aceleração do processo.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. RELATÓRIO
AA, com os sinais dos autos, preso preventivamente à ordem do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, vem requerer a providência de habeas corpus, ao abrigo do art. 222º, nº 2, c), do Código de Processo Penal (CPP), nos seguintes termos:
1.º O arguido foi detido preventivamente no dia 18 de Dezembro de 2012 à ordem do processo n.° 684/12.7GAFLG que corre termos nos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras.
2.° No dia seguinte, 19 de Dezembro foi ouvido pela Meritíssima Juíza de Instrução criminal Tribunal da comarca de Felgueiras no âmbito do processo mencionado, distribuído ao 3.° Juízo do mesmo Tribunal para esse efeito. - cfr. doc. n.° 1.
3.º Tendo-lhe nesse dia sido determinada a prisão preventiva do arguido. - cfr. doc. n.° 1.
4.° Não concordando com tal decisão, da mesma, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, o que fez, em 4 de Janeiro de 2013 - cfr. doc. n.° 2. Isto posto,
5.º No dia de hoje - 8 de Fevereiro de 2013 - foi o arguido notificado de uma verdadeira «trapalhada» na tramitação do processo, da qual resulta, que só no dia 7 de Fevereiro de 2013 e por ordem verbal da Srª Juíza, o processo lhe foi concluso.
6.° Ou seja, foi necessária, a Meritíssima Juíza pedir à secção de processos - 50 dias depois da detenção do arguido e 34 dias depois da interposição do recurso - que o processo lhe fosse concluso para determinar a admissão do recurso, o que apenas, nesse dia, foi feito, cfr. doc. 3.
7.° Em face do exposto, resulta que, desde a apresentação do recurso que visa impugnar a decisão que determinou a medida cautelar de prisão preventiva do arguido até ao despacho que determinou a admissão do mesmo passaram já mais de 30 dias.
8.º E só agora - 8 de Fevereiro de 2013 - o processo subirá ao Tribunal da Relação de Guimarães, onde o processo será distribuído e tramitado, o que implicará, o normal decurso de período de tempo.
9.° Precisando os Senhores Juízes Conselheiros do, natural, tempo, para analisar o assunto e decidi-lo.
10.° Ou seja, decorrerão, na melhor das hipóteses, mais algumas semanas, se não meses.
11.° É certo que, que nem a Senhora Juíza de Instrução Criminal, nem os Senhores Juízes Desembargadores, terão no período de tempo que decorreu qualquer responsabilidade.
12.° Mas não pode o arguido ser prejudicado pela incompetência ou incúria dos serviços e por via disso, ser-lhe negada a possibilidade de ver o seu recurso apreciado no tempo, legalmente, previsto.
13.° Estabelece o art.° 219º, n° 1 do CPP: "Da decisão que aplicar, substituir ou mantiver medidas previstas no presente titulo, cabe recurso a interpor pelo arguido ou pelo Ministério Público, a julgar no prazo máximo de 30 dias a contar do momento em que os autos forem recebidos".
14.° O recurso foi apresentado em 4 de Janeiro de 2013 e recebido nesse dia nos serviços do Tribunal de Felgueiras.
15.° Desconhece-se a data em que o mesmo foi notificado ao MP, nem a data em que o Senhor Procurador respondeu ao mesmo, pois, numa atitude de clara falta de respeito pelo arguido, nem sequer lhe foi dada cópia carimbada de tal peça.
16.° Sendo certo que tal resposta se encontra datada de 1-2-2013 - página 16 da resposta.
17.° Não fosse o cuidado da Senhora Juíza de Instrução, o processo continua a arrastar-se no Tribunal de Felgueiras, vedando ao arguido o direito de ver o seu recurso apreciado.
18.º A demora na apreciação do recurso, atento o prazo já decorrido, nos termos supra expostos, constitui prisão ilegal, nos termos do art.° 222° do CPP.
19.° Na verdade e como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in CPP/Anotado, 2ª Edição, pág. 608, Anotação 18: "Consequentemente, também se impõe uma interpretação do artigo 222.°, n° 2 al. c), do CPP conjugado com o artigo 225º, nº1, al. a) conforme o artigo 5º, § 4º, da CEDH, nos termos do qual a demora no conhecimento do recurso interposto da decisão que aplicou a prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação para além do prazo de 23 dias constitui prisão ilegal (rectius, inconstitucional), para os efeitos do dito artigo 222, n.° 2, al. c) e justifica a interposição imediata do habeas corpus, com a concomitante responsabilidade civil do Estado, nos termos do artigo 225.°, n.°1, al. a)".
20.° Tendo em conta tudo o exposto, encontram-se ultrapassados os prazos legais máximos para a prisão preventiva, nos termos do art° 219°, n.° 4, 222°, n.° 2, al. c) conjugado com o art.° 225°, n.° 1, al. a) do CPP, bem como do artº 5, 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
21.° Isto posto, requer a V. Exª se digne conceder-lhe a providência de habeas corpus, ordenando a imediata libertação do arguido do Estabelecimento Prisional de Braga, onde se encontra detido.
A sra. Juíza titular do processo prestou a seguinte informação, ao abrigo do art. 223º, nº 1, do CPP:
O arguido AA foi detido no dia 18 de dezembro de 2012, pelas 10,30 horas, conforme informação da GNR de fls. 105 e na sequência de mandados de detenção emitidos por ordem da Exma. Senhora Procuradora Adjunta, conforme despacho por si proferido a fls. 67 a 79 e respetivo mandado de detenção de fls. 120.
Tendo sido presente à Exma. Senhora Juiz de instrução criminal que se encontrava de turno, em 19 de dezembro de 2012, pelas 09,30 horas, para Interrogatório Judicial, foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, por se encontrar fortemente indiciado pela prática de um crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n° 1, alínea a), n.° 2, 4 e 5, do Código Penal, a que corresponde uma moldura penal de 2 a 5 anos de prisão, dois crimes de coação, previstos e punidos pelo artigo 154.°, n° 1, do Código Penal, a que corresponde uma moldura penal de até 3 anos de prisão, e um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.°, n.° 1, do Código Penal, a que corresponde uma moldura penal de até um ano de prisão.
Fundamentou-se a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido no despacho então proferido, além do mais, na prática de crime doloso que corresponde a criminalidade violenta, nos termos previstos no artigo 202.°, n.° 2, alínea b), do Código de Processo Penal, conforme despacho proferido no Auto de Interrogatório de fls. 146 a 170, com a correção ordenada no despacho proferido a fls. 212.
Não se conformando com a medida de coação que lhe foi aplicada, o arguido interpôs recurso, em 4 de janeiro de 2013, conforme requerimento e respetivas alegações de recurso de fls. 225 a 251.
Tendo o Ministério Público sido notificado, em 15 de janeiro de 2013, das alegações de recurso do arguido, cfr. fls. 269, - após ter sido proferido o despacho de fls. 257 e 258 - respondeu ao recurso do arguido, conforme alegações de recurso, apresentadas em 1 de fevereiro de 2013, conforme fls. 333 a 349.
Por despacho proferido a fls. 356 a 358, em 7 de fevereiro de 2013, cuja conclusão foi ordenada por ordem verbal, foi admitido o recurso apresentado pelo arguido, em separado, tendo sido instruído com a certidão e as peças determinadas nesse despacho e, no mesmo dia, remetido ao Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação.
Assim, o arguido encontra-se privado da liberdade desde 18 de dezembro de 2012, não tendo decorrido o prazo máximo de prisão preventiva nem estando esgotado o prazo máximo para revisão da medida, nos termos fixados nos artigos 213.° e 215.°, ambos do Código de Processo Penal.
Realizada a audiência de julgamento, nos termos legais, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Com base na precedente informação e na certidão das peças processuais junta aos autos, consideram-se apurados os seguintes factos:
O requerente foi detido em 18.12.2012, tendo sido apresentado para interrogatório judicial no dia imediato, na sequência do qual, sendo indiciado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a), 2, 4 e 5, dois crimes de coação, p. e p. pelo art. 154º, nº 1, e um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, todos do Código Penal, foi sujeito a prisão preventiva ao abrigo do art. 202º, nº 1, b), do CPP.
Não se conformando com essa decisão, o ora requerente interpôs recurso da mesma para o Tribunal da Relação de Guimarães em 4.1.2013.
Tendo o Ministério Público sido notificado da interposição do recurso em 15.1.2013, apresentou a sua resposta em 1.2.2013.
Por despacho de 7.2.2013, foi admitido o recurso e remetido nesse mesmo dia para o tribunal superior.
2. O habeas corpus constitui uma providência excecional, com assento constitucional (art. 31º da Constituição), destinada a garantir a liberdade individual contra os abusos de poder derivados de prisão ilegal. Não constitui um recurso da decisão judicial que decretou a privação da liberdade. Destina-se, sim, a indagar da legalidade da prisão, de forma a pôr termo às situações de ilegalidade manifesta, diretamente identificáveis a partir dos elementos de facto contidos nos autos.
O art. 222º, nº 2, do CPP prevê a concessão de habeas corpus em três situações: incompetência da entidade que ordenou a prisão – al. a); ser a prisão motivada por facto que não a admite – al. b); e excesso dos prazos, legais ou judiciais – al. c).
É este último o fundamento invocado pelo requerente. Considera ele que se encontra excedido o prazo previsto no art. 219º, nº 1, do CPP, que estabelece:
Da decisão que aplicar, substituir ou mantiver medidas previstas no presente título, cabe recurso a interpor pelo arguido ou pelo Ministério Público, a julgar no prazo máximo de 30 dias a contar do momento em que os autos forem recebidos.
Prevê, assim, a lei um prazo específico para o julgamento dos recursos interpostos de decisões que apliquem, substituam ou mantenham medidas de coação, prazo fixado em 30 dias, a contar do momento em que os autos forem recebidos no tribunal superior.[1]
Será, porém, que a referida al. c) contempla o excesso desse prazo?
A resposta é decididamente negativa. Na verdade, os prazos legais a que se refere essa norma só podem ser, quando está em causa a prisão preventiva, os prazos de duração máxima dessa medida de coação, fixados no art. 215º do CPP, e não quaisquer outros prazos que corram durante a prisão preventiva, como é o caso do prazo para o seu reexame periódico, previsto no art. 213º do CPP, ou eventualmente o referido prazo previsto no art. 219º, nº 1, do CPP.[2] Estes prazos não estabelecem novos limites àquela medida de coação, não encurtam a sua duração máxima. Ao estabelecerem dilações próprias para a prática de certos atos (reexame dos pressupostos da medida, decisão do recurso que a impugna), não afetam nem alteram os prazos do art. 215º. O não cumprimento daqueles prazos não determina a ilegalidade da prisão.
3. Rejeita-se assim frontalmente a tese defendida por Paulo Albuquerque, que pretende que “a demora no conhecimento do recurso interposto de decisão que aplicou a prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação para além de 23 dias constitui prisão ilegal (rectius, inconstitucional), para os efeitos do art. 222º, nº 2, c), e justifica a interposição imediata de habeas corpus…”.[3]
Esta tese funda-se em duas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH)[4] que consideraram que a decisão, por um tribunal superior, do recurso interposto de decisão de aplicação de prisão preventiva em prazo superior a 23 dias, num caso, a 26, 29 e 36 dias, no outro, violavam o disposto no art. 5º, § 4,[5] da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), por ter sido ultrapassado o limite da “brevidade” imposto por esse preceito.
Essas decisões devem ser lidas e interpretadas no contexto factual em que foram proferidas, que denotam a preocupação do TEDH de pôr termo a situações de reclusão inquietantes. A jurisprudência do TEDH é antes no sentido de que a apreciação do “curto espaço de tempo” deve ser ponderada à luz das circunstâncias de cada caso, sendo pois insuscetível de estabelecimento de um prazo fixado genericamente.[6]
É, pois, completamente abusivo, fixar um prazo geral e único à luz do citado art. 5º, § 4, da CEDH. Por outras palavras, a CEDH não impõe um prazo limite certo e determinado (aliás, porquê 23 dias, e não 22 ou 20, por exemplo?). A fixação do prazo para a decisão do recurso depende do critério do legislador, que, no caso português, também não está vinculado a um limite determinado pela Constituição (somente o habeas corpus tem essa determinação constitucional: 8 dias, por força do art. 31º). Só se houvesse esvaziamento da garantia do recurso (por falta de prazo ou fixação de um prazo excessivamente longo para a decisão), o que não é claramente o caso, seria possível arguir de inconstitucional o prazo fixado naquele art. 219º, nº 1, do CPP, por violação do art. 27º, nº 1, da Constituição.
Desta forma, nunca a ultrapassagem do prazo poderia determinar a ilegalidade da prisão, pelas razões atrás apontadas, mas apenas servir eventualmente de fundamento para a aceleração do processo.
4. Sendo assim, há somente que indagar se já se esgotou o prazo de prisão preventiva aplicável à situação dos autos. É evidente que não. Com efeito, o prazo máximo da prisão preventiva aplicável é de 6 meses, por força do art. 215º, nºs 1, a), e 2, do CPP, prazo esse que não decorreu ainda.
Carece, pois, de fundamento o pedido de habeas corpus.
III. DECISÃO
Com base no exposto, indefere-se a providência de habeas corpus.
Vai o requerente condenado em 2 (duas) UC de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013
Maia Costa (Relator)
Pires da Graça
Pereira Madeira
_________________________
[1] Assim, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17ª ed., p. 531.
[2] Neste sentido, ver os acórdãos deste Supremo Tribunal de 16.3.2011 (proc. nº 155/10.6JBLSB-C.S1, Cons. Santos Carvalho), e de 8.3.2012 (proc. nº 61/10.4TAACN-B.S1, Cons. Souto de Moura).
[3] Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., p. 632.
[4] Decisões de 28.11.2000 (caso Rehbock v/ Eslovénia) e de 1.6.2006 (caso Mamedova v/ Rússia).
[5] Cujo texto é o seguinte:
“Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto espaço de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.”
[6] Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2ª ed., pp. 111-112.