HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
PROVA DA QUALIDADE DE HERDEIRO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
VALOR PROBATÓRIO
Sumário


I- Não basta que qualquer pessoa compareça num cartório notarial ou de outro oficial dotado de fé pública e com poderes para lavrar escritura pública ou documento equivalente, munida de procurações de terceiros, e declare que os seus representados são os únicos herdeiros de determinado falecido, afirmando, naquele acto, que aliena a outrem bens imóveis do defunto ou a totalidade da sua herança, para que os referidos representados possam ser considerados herdeiros e se considere válida a referida alienação.
II- Qualquer ordenamento jurídico dos Estados de Direito impõe cautelas mínimas para a demonstração da qualidade de herdeiros e para a alienação de bens imóveis, fazendo constar da escritura essa verificação ou, pelo menos, a menção de arquivo de documentos demonstrativos das invocados estatutos.
III - Como sempre ensinou o saudoso Mestre que foi o Prof. Castro Mendes, «a habilitação é a prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade dum direito ou complexo de direitos, ou doutra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas» ( Direito Processual Civil, 1980, 2º, 234), o que bem atesta o indiscutível relevo de tal habilitação.
Também o eminente processualista que foi Alberto dos Reis, escreveu que a habilitação «propõe-se certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava» (C. P. anotado, 1º vol. 1980, 2º-234).
IV- Estas brevíssimas citações demonstram à saciedade que a habilitação de herdeiros não se identifica nem se confunde com qualquer declaração feita pelos próprios interessados, por si ou por intermédio do seu procurador, afirmando serem herdeiros únicos de um falecido ou ausente, ainda que através de um mandatário.
Tal não constitui nem substitui qualquer habilitação de herdeiros, mas simples declaração da qualidade de herdeiros efectuada pelos interessados ou pelo seu mandatário, cujos efeitos se repercutem na esfera jurídica dos mandantes (art.º 258º do C. Civil), uma verdadeira auto-proclamação da qualidade de herdeiros sem alicerce em documentação ou prova relevante.
V- Como escrevem F. Ferreirinha e Zulmira Lino da Silva, referindo-se ao direito notarial português, «assumindo estas  declarações  grande importância, como se compreende, a lei rodeou a sua admissibilidade de particulares cautelas: ou intervêm três pessoas, que o notário considere dignas de crédito e que não estejam impedidas de ser testemunhas instrumentárias, nem sejam parentes sucessíveis dos habilitandos, nem cônjuge de qualquer deles, ou, sendo a declaração prestada pelo cabeça de casal, terá de lhe ser, feita a advertência de que incorre nas  penas aplicáveis ao crime de falsas declarações, se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestar declarações falsas ­– cfr. artºs. 84.° e 83.°, nº 2 (do C. Notariado)»  [Manual de Direito Notarial (Teoria e Prática), 2008, 4ª edição, pg. 458 ].
VI- Contra o que ora se deixa expresso, não colhe a simples invocação de que a escritura celebrada é um documento autêntico, pelo que a qualidade dos herdeiros, que nele é mencionada, faz prova plena.
Os documentos autênticos só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos neles atestados com base nas percepções da entidade documentadora (quorum notitiam et scientiam habet propriis sensibus, visus et auditus) e, no caso dos autos, a qualidade de herdeiros não foi percepcionada pelo oficial dotado de fé pública, mas tão simplesmente declarada pelo procurador dos interessados, além de não haver documentação atinente àquela qualidade nem qualquer relação de bens que integravam a herança.

Texto Integral

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

 AA, por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de BB, veio intentar a presente acção com processo comum, na forma ordinária, contra CC, DD e mulher EE, FF, GG e marido HH, II e marido JJ, KK, LL e mulher MM, NN e mulher OO, PP e QQ, todos em nome próprio e na qualidade de herdeiros e interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de RR, onde conclui pedindo a condenação dos réus a:

– Reconhecerem que a autora é herdeira e interessada na herança ilíquida e indivisa por óbito de BB;

– Reconhecerem que os prédios identificados no artigo 14.º da petição inicial fazem parte do acervo dessa herança, sendo, por isso, a autora e essa herança legítimas proprietárias desses prédios;

– Restituírem os prédios em causa à autora e à citada herança no mesmo estado em que se encontravam antes de serem por eles ocupados;

– Absterem-se da prática de qualquer acto lesivo dos direitos de propriedade da autora e da referida herança, nomeadamente abstendo-se de ocupar, fruir ou cultivar tais prédios.

–Pedem ainda se ordene o cancelamento de quaisquer registos efectuados em contrário do peticionado.

A autora fundamenta as suas pretensões no facto de o seu falecido marido, BB, ter adquirido os prédios identificados no artigo 14.º alíneas a) a e) da petição inicial, por compra aos herdeiros de SS, sendo que, de qualquer modo, sempre os teria adquirido por usucapião, sucedendo que o réu CC e a sua falecida esposa, RR, passaram a arrogar-se titulares de 11/40 da propriedade dos prédios em questão e ocupam esses prédios, recusando a sua entrega à autora e à herança que esta representa.

Os Réus contestaram, arguindo a sua ilegitimidade, uma vez que a acção não foi proposta contra todos os herdeiros da falecida RR, tendo sido preterida a sua filha TT, bem como a ilegitimidade passiva das rés FF e KK, defendendo que as mesmas, mulheres dos filhos pré-falecidos do réu CC e de RR, não são herdeiras por direito de representação da herança aberta por óbito da referida RR, invocando a ineficácia jurídica do documento junto com a petição inicial para transmitir a propriedade e posse que o dito SS tivesse tido sobre os bens imóveis situados em Portugal, acrescentado que o casal formado pela autora e pelo seu falecido marido nunca exerceu quaisquer actos de posse sobre o prédio misto constituído pelos prédios identificados nas alíneas a) e c) do artigo 14.º da petição inicial, e por impugnação, negando parcialmente os factos alegados pela autora, e deduziram reconvenção, pedindo:

a) A condenação da autora/reconvinda a reconhecer que os réus/reconvintes são donos e legítimos possuidores do prédio misto identificado no artigo 10.º da contestação;

b) Para a hipótese de lhes ser reconhecido o direito de propriedade apenas sobre 11/40 indivisos de tal prédio, procedendo a acção quanto aos restantes 29/40 indivisos, a condenação da autora/reconvinda a pagar-lhes a quantia de €14.537,63 pela quota parte (29/40) que lhe cabe nas despesas feitas com as benfeitorias identificadas nos artºs. 38º, 39º, 40º e 42º da contestação, declarando-se, ainda, que gozam de direito de retenção relativamente à dita fracção de 29/40 do dito prédio misto enquanto não lhes for satisfeito esse seu crédito.

Fundamentaram a pretensão referida em a) na aquisição derivada, por via de compra, quanto a 11/40 do referido prédio, encontrando-se essa aquisição registada a favor do réu CC, e na aquisição originária, por usucapião, quanto à totalidade desse mesmo prédio, argumentando, em síntese, que, para além das 11/40 partes indivisas adquiridas por compra, que o réu CC registou a seu favor, a partir de 1964, ou seja, decorridos cerca de 20 anos sobre a data da morte de SS, sem que nunca ninguém se tivesse habilitado como herdeiro ou reclamado a herança dos bens existentes em Portugal, tendo constado que teriam falecido, sem deixar descendência, todos os seus filhos, o réu CC e mulher passaram a comportar-se como se fossem donos de todo o prédio, usando e fruindo os restante 29/40 em nome próprio, em oposição a quaisquer herdeiros do falecido SS, o que foi do conhecimento do público em geral, do genro dele e dos seus sobrinhos, entre eles a autora.

Sustentaram a pretensão referida em b) no facto de o casal formado pelo réu CC e mulher ter efectuado obras de reconstrução da casa existente no prédio misto e ter construído um anexo para vacaria, no que esse casal despendeu a quantia de 4.000.000$00.

A autora replicou, arguindo a prescrição do direito de crédito invocado pelos réus/reconvintes, pugnando pela improcedência da reconvenção e deduzindo o incidente de intervenção principal provocada de TT, filha do réu CC e da falecida RR.

Os réus treplicaram, concluindo como na contestação.

O incidente de intervenção principal provocada deduzido pela autora foi admitido e a interveniente, citada, declarou fazer seus os articulados dos réus/reconvintes.

Foi elaborado despacho saneador, onde se decidiu ser a ré FF parte ilegítima, sendo relegada a apreciação da ilegitimidade da ré KK para sentença final, onde se decidiu ser a mesma parte ilegítima.

Realizou-se julgamento e foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção e a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência, o Tribunal:

- declarou que a autora é herdeira e interessada na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, condenando os réus a reconhecerem esse estatuto da autora;

- declarou que o casal formado pela autora e pelo referido BB adquiriu o direito de propriedade sobre os prédios rústicos inscritos na respectiva matriz predial sob os artºs. 438º, 2224º e 865º, melhor identificados nas alíneas j), l) e m) dos factos provados, e que, dissolvido esse casamento por óbito do cônjuge marido, a autora tem o direito a participar na metade do activo da comunhão, encontrando-se o direito à restante metade atribuído à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, condenando os réus a reconhecerem esse direito da autora e da referida herança;

- declarou que o casal formado pelo réu CC e por RR adquiriu o direito de propriedade sobre 11/40 dos prédios (o urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 130 e o rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 839.º, melhor identificados nas alíneas n) e o) dos factos provados) que formam a unidade predial referida na alínea u) dos factos provados e que, dissolvido esse casamento por óbito da cônjuge mulher, o réu CC (entretanto falecido e substituído na causa pelos co-réus e interveniente identificados no apenso A) tem o direito a participar na metade do activo da comunhão, encontrando-se o direito à restante metade atribuído à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de RR, condenando a autora/reconvinda a reconhecer esse direito do réu e da referida herança;

- absolveu os Réus do demais peticionado pela autora;

- absolveu a Autora/reconvinda do demais peticionado pelos réus/reconvintes.

 Inconformada com a decisão, veio a autora AA interpor, sem sucesso, recurso de Apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães que, negando procedência ao mesmo, confirmou integralmente a douta decisão recorrida.

Ainda inconformada, a mesma veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

A) A Recorrente/Autora entende que a escritura de cessão de direitos hereditários melhor descrita na alínea q.) dos Factos Assentes, lhe permite suceder na posse dos seus anteriores proprietários/possuidores transmitentes, designadamente do falecido SS, também conhecido por SS e respectivos herdeiros, senão vejamos.

B) Os prédios aqui em questão encontram-se inscritos na matriz predial sob os artºs. 130° (urbano) e 839° (rústico), nos termos melhor descritos nos itens n) e o), u) e v) dos Factos Provados

C) Dos itens u) e v) dos Factos Provados, resulta que os Réus são proprietários de apenas 11/40 dos prédios em questão (artºs. 130°- urbano e 839°- rústico).

D) Na presente acção, os Réus invocaram também ter adquirido por usucapião a propriedade sobre as restantes 29/40 partes indivisas desses mesmos prédios aqui em questão, não tendo o Tribunal lhes reconhecido tal direito, por considerar que os mesmos não lograram inverter o título da sua posse, não possibilitando esta a aquisição, por usucapião, da propriedade exclusiva sobre o dito prédio misto.

E)  Tal significa, juntamente com as alíneas z) e aa) dos Factos Provados, que os restantes 29/40 desses mesmos prédios (artºs. 130°- urbano e 839°- rústico) eram propriedade do falecido SS. Aliás, são os próprios Réus que reconhecem expressamente isso nos artºs. 10° e 11° da sua Contestação, a fls. ... dos autos, facto
que também foi reconhecido pela douta sentença proferida em 1ª Instância quando refere: "(-) Ou seja, nenhuma das partes põe em causa esse direito do falecido SS sobre tais prédios....

Dito isto, resultou provado que a herança de SS era constituída, além do mais, por 29/40 partes indivisas da unidade predial formada pelo prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 130 e pelo prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 839. (...)"

E mais à frente, a mesma sentença conclui "Resulta dos factos provados que, aquando da inscrição no registo da aquisição do direito de propriedade sobre 11/40 do prédio misto em causa a favor do réu CC, o referido SS (ou melhor dizendo a sua herança) era titular de 29/40 do direito de propriedade sobre esse prédio."

F)        Ora, pela escritura mencionada no item q) dos Factos Provados, outorgada no Brasil e de acordo com a lei brasileira, foi concretizada a habilitação dos herdeiros de SS e, nessa qualidade de seus únicos herdeiros, cederam todos os bens situados em Portugal, transferindo todos os direitos, acção e posse que até essa data
tinham e exerciam sobre esses imóveis, a BB (marido da aqui
Autora), neles se incluindo obviamente os 29/40 dos prédios aqui em questão.

G) Assim, se esse título for considerado válido em Portugal, a Autora pode invocar, por via da figura da acessão (art.1256°/1 do Cód. Civii), a posse que o referido SS e respectivos herdeiros exerceram sobre os prédios aqui em questão, juntando à sua a posse dos seus antecessores.

H) Sendo certo que, nos termos do art. 1264°/1 e 2 do Cód. Civil, se o titular do direito real, ainda que a coisa esteja a ser detida por um terceiro, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que por qualquer causa, o terceiro continue a deter a coisa.

I) No mesmo sentido importa ainda salientar o disposto no art. 1255° do Código Civil, segundo o qual "Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa."

J) Ora, não tendo os Réus conseguido inverter o título da sua posse, parece-nos óbvio que a mesma continuou nos sucessores de SS (art. 1255° do Cód. civil) e transferiu-se para o falecido marido da Autora por via das regras do constituto possessório (art. 1264° do Código Civil) e da acessão (art. 1256°/1 do Código Civil).

K) Deste modo, teríamos de considerar que a Autora e o referido BB e, após a morte deste a respectiva herança, por si, antepossuidores e anteproprietários, estão na posse pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé dos referidos prédios (na proporção de 29/40), posse essa que dura há mais de 1, 10, 15, 20, 25, 30 e mais anos, com "animus domini", agindo como seus donos e na convicção de terem essa qualidade e de não lesarem direito alheio, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém. Logo também a teriam adquirido por usucapião.

L) Tendo em conta este raciocínio parece-nos que, ao contrário do que refere o douto Acórdão recorrido, é essencial para a boa decisão da causa saber se a escritura mencionada na alínea q) dos Factos Provados, por ter sido outorgada no Brasil e de acordo com a lei brasileira, constitui um título válido em Portugal. Sendo certo que, no nosso entendimento, parece-nos que a resposta tem de ser positiva.

M) Analisando o caso concreto constata-se que o negócio mencionado na alínea q) dos Factos Provados foi outorgado no Brasil, país da residência quer do falecido SS, quer dos seus herdeiros outorgantes cedentes na dita escritura, tendo a respectiva assinatura sido expressamente reconhecida pelo agente diplomático ou consular português no Brasil nos termos previstos no art. 540° do CPC, mais concretamente foi validada no Consulado Português do Rio de Janeiro

N) Ora, como foi explanado na motivação do presente recurso, do cotejo dos n°s 1 e 2 do artº. 31° do C.C. resulta que, no que se refere às situações jurídicas compreendidas na esfera do estatuto pessoal (e constituídas no estrangeiro), são declaradas competentes, em alternativa, a lei da nacionalidade do indivíduo e a da sua residência habitual quando esta se considere competente.

O) Acrescentando o art. 3671 do Cód. Civil que a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à substância do negócio; é porém suficiente a observância da lei em vigor no local em que é feita a declaração,

P) Daí que, da aplicação conjunta desses preceitos legais, não nos parece que seja exigível que a venda de bens ou direitos de uma herança outorgada no Brasil (país de residência dos respectivos intervenientes: falecidos e seus herdeiros) seja realizada de acordo com a tramitação e as regras notariais portuguesas, pois, de acordo com o referido art. 31° do Cód. Civil, a lei pessoal pode ser a lei da residência habitual do indivíduo, se esta se considerar competente.

Q) Assim, tendo esse negócio/declaração sido celebrado no Brasil de acordo com a lei local que se considerou competente e até posteriormente validado pela autoridade portuguesa com poderes para o acto, consideramos que o mesmo tem de ser reconhecido em Portugal nos termos previstos nos artºs. 3172 e 3671 do Cód. Civil.

R) Acresce que, por aplicação conjunta dos artºs. 365° e 371° ambos do Código Civil e 540° do CPC, os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova plena, como fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal, dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.

S) Ora, consta claramente no texto desse documento autêntico que os outorgantes cedentes em causa "... são os únicos herdeiros dos bens de SS ou SS ..., como também de herdeiros de UU e seu marido VV." Tal configura uma verdadeira habilitação de herdeiros. Consequentemente, atendendo às supra citadas disposições legais, entendemos que a dita escritura tem de fazer prova plena desse facto em Portugal.

T) De qualquer modo, mesmo que assim não se venha a entender, o certo é que os Réus também não conseguiram provar que os requisitos legais exigidos pela lei portuguesa (nomeadamente a demonstração da qualidade de herdeiros por parte dos outorgantes cedentes constantes nessa escritura) não tenham sido cumpridos aquando da outorga dessa escritura.

U) Note-se que a certidão da escritura em causa não é uma fotocópia autenticada/certificada do original, mas sim uma transcrição do original efectuada por oficial público,  realizada segundo o direito brasileiro. Veja-se que não contém as assinaturas originais.

V) No entanto, sendo tal escritura um documento autêntico e com poder de prova plena dos factos que referem, emanado por uma autoridade competente brasileira e validada pelo agente diplomático ou consular português no Brasil, tem de beneficiar de presunção de legalidade/autenticidade , competindo aos Réus fazer prova do contrário, o que estes nunca fizeram (cfr. artºs. 347°, 370°, 371° e 372°, todos do Cód. Civil).

W) Aliás, muito peio contrário, pois são os próprios Réus que nos artºs. 15°, 16° e 18° (primeira parte) da sua contestação vêm dar força e credibilidade à dita escritura, pois demonstram conhecer o modo como se processou a sucessão de XX em tudo correspondente com o teor desse documento autêntico outorgado em 21.06.1993.

X) Consequentemente, também por esses motivos deve ser aceite e reconhecida em Portugal a habilitação de herdeiros efectuada na dita escritura.

Y) Mas, para além dessa habilitação de herdeiros, a escritura em causa faz ainda prova plena da cedência por parte dos referidos herdeiros de XX de todos os bens situados em Portugal, transferindo todos os direitos, acção e posse que até essa data tinham e exerciam sobre esses imóveis, a BB neles assim se incluindo os 29/40 dos prédios em causa nos presentes autos.

Z) Face ao exposto, no nosso entendimento, a escritura mencionada no item q. dos Factos Provados constitui título válido para comprovar a transmissão da propriedade dos 29/40 dos prédios aqui em questão para a titularidade da Autora e herança de seu falecido marido

AA) Como tal, entendemos que a Autora pode invocar, por via das figuras da acessão e do constituto possessório (art. 125671 e art. 126471 e 2 do Cód. Civil), a posse que o referido SS e respectivos herdeiros exerceram sobre os prédios aqui em questão, juntando à sua a posse dos seus antecessores, ainda que os prédios em causa estivessem a ser detidos por terceiros (aqui Réus).

BB) Aliás, como se referiu supra, nos termos do art. 1255° do Código Civil, por morte do referido SS a posse continuou nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.

CC) Tanto mais que, como reconheceu a sentença da 1a instância, os Réus não conseguiram inverter o título da sua posse, pelo que a mesma continuou nos sucessores de SS (art. 1255° do Cód. civil) e transferiu-se para o falecido marido da Autora por via das regras do constituto possessório (art. 1264° do Código Civil) e da acessão (art. 125671 do Código Civil).

DD) Deste modo, temos de considerar que a Autora e o referido BB e, após a morte deste a respectiva herança, por si, antepossuidores e anteproprietários, estão na posse pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé dos referidos prédios (na proporção de 29/40), há mais de 1, 10, 15, 20, 25, 30 e mais anos, com "animus domini", agindo como seus donos e na convicção de terem essa qualidade e de não lesarem direito alheio, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pelo que sempre teriam adquirido o direito de propriedade sobre os mesmos (29/40) por usucapião.

Foram apresentadas contra-alegações pela parte contrária no sentido da improcedência do recurso e manutenção do decidido.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

a) Em 13.04.03, faleceu BB (alínea A) dos factos assentes);

b) BB faleceu no estado de casado com a autora, no regime da comunhão de adquiridos (alínea B) dos factos assentes);

c) Em 06.02.05 faleceu RR (alínea C) dos factos assentes);

d) RR faleceu no estado de casada com o réu CC, no regime da comunhão geral de bens (alínea D) dos factos assentes);

e) Do casamento a que se alude em d) nasceram os seguintes filhos: o réu DD, casado com a ré EE; ZZ e AAA (alínea E) dos factos assentes);

f) ZZ faleceu em 05.12.95, no estado de casado com KK (alínea FF) dos factos assentes);

g) O réu LL, casado com a ré MM, o réu NN, casado com a ré OO, o réu PP e a ré QQ, são filhos de ZZ e da ré KK (alínea H) dos factos assentes);

h) AAA faleceu em 18.08.75. no estado de casado com a ré FF, no regime da comunhão de adquiridos (alínea F) dos factos assentes);

i) Do casamento a que se alude em h) nasceram os seguintes filhos: a ré GG, casada com o réu HH, no regime da comunhão de adquiridos; e a ré II, casada com o réu JJ, no regime da comunhão de adquiridos (alínea G) dos factos assentes);

j) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o art. 438 o prédio descrito como "P..............", com a área de "0,0200 hectares", sito no Lugar ........, freguesia de Palme, do concelho de Barcelos, a confrontar do "Norte: caminho Sul: BBB Nascente: CC Poente: CCC" (alínea J) dos factos assentes);

l) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o art. 2224 o prédio descrito como "Co......., pinhal e mato", com a área de "0,0800 hectares", sito no Lugar do .... freguesia de Palme, concelho de Barcelos, a confrontar do "Norte: DDD: EEE Nascente: FFF Poente: GGG" (alínea M) dos factos assentes);

m) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o art. 865 o prédio descrito como "B............., pinhal", com a área de "0,1420 hectares", sito no Lugar do Sião, freguesia de Feitos, do concelho de Barcelos, a confrontar do "Norte: HHH Sul: caminho Nascente: III Poente: JJJ" (alínea N) dos factos assentes);

n) Encontra-se inscrita na matriz predial urbana sob o art. 130 a "Casa ......", com a "S.C. 1 00 m2", sita no Lugar do Outeiro, freguesia de Palme, concelho de Barcelos, a confrontar "Norte: caminho Sul: possuidor Nascente: KKK: possuidor" (alínea I) dos factos assentes);

o) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica sob o art. 839 o prédio descrito como "Outeiro, cultura, videiras em ramada e 1 castanheiro", com a área de "0,1400 hectares", sito no Lugar do Outeiro, freguesia de Palme, concelho de Barcelos, a confrontar do "Norte: Caminho Sul: LLL Nascente: Urbano do próprio Poente: Caminho" (alínea L) dos factos assentes);

p) Por procuração outorgada em 21.06.93, no 22° Ofício de Notas do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, a fls. 000, Acto 000- TC, Livro 670, MMM e mulher NNN, OOO, PPP e mulher QQQ, RRR, SSS e mulher TTT, declararam nomear e constituir seu bastante procurador o Sr. MMM, "( ... ) a quem concedem poderes amplos, gerais e ilimitados para representá-los na República Portuguesa, e em todo o Território Nacional, podendo vender e/ou ceder Direitos e Haveres (bens imóveis, terras), em Portugal, ajustando preços, cláusulas e condições de pagamentos, receber preço total, sinal, parcelas, dar quitação; transmitir posse, domínio, direito e acção, responder pela evicção de direito, assinando as necessárias escrituras de compra e venda, cessão, re-ratificação e/ou aditamento, inclusive promessas particulares e outros documentos, descrever e caracterizar tais bens, dar limites, divisas, pagar taxas, impostos, pagar e receber tornas e sisas; representá-los nas Repartições de Finanças, Conservatórias do Registo Predial, Repartições Públicas em Geral, Notários, Registradores, tudo assinar, requerer e promover, juntar e retirar documentos, recorrer, alegar, cumprir exigências, dar entrada em guias e documentos; podendo ainda, nomear advogados com poderes de cláusula "ad-judicia", para o foro em geral, Instâncias e Tribunais, propor e variar de acções, acordar, concordar ou discordar com cálculos, avaliações e partilhas, enfim, praticar todos os demais actos necessários aos direitos e interesses dos outorgantes, inclusive substabelecer no todo ou em parte. (…)" (alínea S) dos factos assentes);

q) Por escritura de "cessão de direitos hereditários" outorgada em 21.06.93, na sede do 20° Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, a fls. 068 do Livro 2.665, MMM e mulher NNN, OOO, PPP e mulher QQQ, RRR, SSS e mulher TTT, UUU, VVV casada com XXX, ZZZ e marido AAAA, todos representados por BBBB (conforme procurações que ficaram arquivadas no Cartório), declararam ser os únicos herdeiros dos bens de SS ou SS, situados na freguesia de Palme, Barcelos, Portugal, e um bem na freguesia dos Feitos, Barcelos, Portugal, como também herdeiros de UU e marido VV; mais declararam ceder todos os bens situados em Portugal, transferindo todos os direitos, acção e posse que até essa data tinham e exerciam sobre esses imóveis, a BB, o qual declarou aceitar a escritura (alínea O) dos factos assentes e documento de fls. 27 a 31);

r) Por "substabelecimento de procuração" outorgada em 21.06.93, no 20° Ofício de Notas do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, a fls. 057, Acto 056, do Livro 406, BBBB declarou substabelecer na pessoa de BB, os poderes que lhe foram conferidos por MMM e mulher NNN, OOO, PPP e mulher QQQ, RRR, SSS e mulher TTT [conforme procuração a que se alude em p)], UUU (conforme procuração lavrada no Cartório Distrital do Passo Fundo/RS, livro 62, fls. 136), VVV casada com XXX (conforme procuração lavrada no 18° Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro, Livre 5030, fls. 134, Ato 93), e ZZZ e marido AAAA (conforme procuração lavrada no 22° Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro, Livro 0000 fls. 169, ato 166) (alínea T) dos factos assentes);

s) Em 18.11.93 o BB pagou o imposto de Sisa (resposta ao número 7 da base instrutória);

t) Há mais de 30 anos a autora e BB e, após a morte deste, a respectiva herança, por si e antecessores, fizeram, por si ou por quem autorizaram, obras e melhoramentos nos prédios a que se alude em j), l) e m), ocupando-os, arroteando os terrenos, usufruindo de frutos e rendimentos, agricultando-os, fazendo suas as respectivas colheitas e pagando as contribuições devidas, agindo na convicção de serem seus donos e de não lesarem direito alheio, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém (alínea X) dos factos assentes);

u) Mediante escritura pública outorgada no dia 19.04.1956 na Secretaria Notarial do Concelho de Barcelos, a fls., 97v. a 99v. do Livro de Notas n." 527, XX e mulher DDDD, CCCC e EEEE, declararam vender ao Réu CC, o qual declarou aceitar a venda, o direito e acção que em comum têm a 11/40 partes do prédio "Casa térrea e e................, sito no ....., freguesia dita de Palme, inscrito na matriz urbana no artigo cento e trinta e na rústica no artigo mil oitocentos e oitenta e oito, que confronta do nascente com FFF, do sul com XX , do poente com caminho de servidão e do norte com caminho público ( ... )", omisso na Conservatória do Registo Predial (alínea Q) dos factos assentes);

v) O réu CC e a sua falecida esposa passaram a arrogar-se titulares de 11/40 da propriedade sobre os prédios referidos em n) e o), os quais formam a unidade predial referida em u) (alínea Z) dos factos assentes);

x) A aquisição, por compra, de 11/40 do direito real de propriedade sobre o prédio misto, situado no lugar de Outeiro, Rua ....., descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o nº 00000, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 000 e na matriz predial rústica sob o art. 839, encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, desde 26.03.1956, a favor do réu CC (documento de fls. 360 a 362);

z) SS, também conhecido por SS, faleceu a 10.05.1944, no Brasil (alínea R) dos factos assentes);

aa) Quer enquanto SS foi vivo, quer depois da sua morte e até 1960, quem administrou os bens dele ou da sua herança, entre os quais 29/40 partes indivisas do prédio referido em u), foi um irmão dele, XX (resposta ao número 12 da base instrutória);

bb) A partir de 1960, foi o réu CC e mulher quem passou a usufruir de todo o prédio mencionado em u) (resposta ao número 13 da base instrutória);

cc) Depois de 1963/1964, há mais de 40 anos, o réu CC e mulher continuaram a usufruir de todo o prédio mencionado em u), utilizando a parte urbana para guarda de lenhas e utensílios agrícolas e a afrutar e desafrutar a parte rústica, tirando dela todas as utilidades de que é susceptível, à vista de toda a gente residente no local, designadamente os sobrinhos do SS, entre os quais, a autora, sem oposição de ninguém até Julho de 1985, sem qualquer interrupção temporal, na convicção de quem exerce um direito próprio (resposta aos números 14, 15, 16, 17, 18 e 19 da base instrutória);

dd) Em 22 de Julho de 1985, a aqui autora AA, casada com BB, GGGG e HHHH intentaram acção especial para justificação de ausência de SS, que correu termos, sob o nº 0000, pelo 3° juízo, 2ª secção, deste tribunal (documento de fls. 507 a 512);

ee) Nessa acção, a aqui autora e as aí demais autoras alegaram, na petição inicial, além do mais, que eram interessadas na justificação da ausência do seu tio SS, visto serem seus herdeiros, no caso de se confirmar o seu falecimento, da mulher e das filhas, acrescendo que, para além delas, eram também sobrinhas e herdeiras do ausente: IIII, residente na freguesia de Palme, Barcelos, JJJJ, KKKK e LLLL, estas últimas ausentes em parte incerta (documento de fls. 507 a 512);

ff) Nessa acção, a aqui autora e as aí demais autoras alegaram, na petição inicial, além do mais, que o prédio constituído por 29/40 partes da casa com logradouro inscrito no art. 130 urbano e e................ inscrito no art. 1888 encontrava-se há mais de 28 anos na posse do réu CC (documento de fls. 507 a 512);

gg) Nessa acção, a aqui autora e as aí demais autoras terminaram a petição inicial pedindo a citação do aqui réu CC e mulher RR, como detentores dos bens do ausente, do Ministério Público e, por éditos, do ausente e de quaisquer interessados incertos para contestarem (documento de fls. 507 a 512);

hh) O aqui réu CC e RR contestaram, em 15.04.1986, a acção referida em dd), alegando, além do mais, que as autoras eram partes ilegítimas para essa acção, uma vez que do casamento do ausente tinham nascido duas filhas e um filho, sendo que, apesar de uma das filhas ter falecido, a outra tinha falecido no estado de casada e, de qualquer forma, não havia notícia do falecimento do filho varão do ausente, acrescendo que o ausente teve cinco irmãos, todos já falecidos, tendo os quatro últimos deixado filhos a suceder-lhes, cujos nomes as autoras conhecem, pelo que deveriam ter requerido a sua citação (documento de fls. 520 a 526);

ii) O aqui réu CC e RR alegaram, ainda, na contestação referida em hh) que o prédio constituído por 29/40 partes da casa com logradouro inscrito no art. 130 urbano e e................ inscrito no art. 1888 era sua propriedade exclusiva, por o terem adquirido por usucapião (documento de fls. 520 a 526);

jj) A aqui autora e as demais autoras na acção identificada em dd) responderam, em 10.10.1986, à contestação referida em hh), argumentando, além do mais, que só a partir de 1960 os réus CC e mulher passaram a deter todo o prédio, ou seja, as 11/40 partes que haviam comprado e as 29/40 partes pertencentes ao ausente, sendo que os próprios diziam a toda a gente que parte daquele prédio era do SS, acrescendo que só há dois ou três anos, quando os réus fizeram obras na parte urbana do prédio, passando então a usufruí-la, os mesmos vêm propalando que todo o prédio lhes pertence (documento de fls. 507 a 512);

ll) Por decisão de 21.09.89, transitada em julgado em 14.07.90, proferida na acção referida em dd), foi declarada justificada a ausência de SS (documento de fls. 520 a 527);

mm) Correu termos pelo 3º juízo, 2ª secção, deste tribunal, com o n." 75-A/85, o processo de inventário para deferimento de curadoria e entrega de bens do ausente SS, no qual exerceu o cargo de cabeça de casal a aqui autora (alínea U) dos factos assentes);

nn) No processo a que se alude em mm), a cabeça de casal, aqui autora, em 16.12.1991, descreveu sob a verba nº 2 do "Termo de Descrição de Bens", o "Prédio misto: de casa de um pavimento com a superfície coberta de 100 m2 e E................ com a área de 1.400 m2, sito no lugar de Outeiro, da freguesia de Palme, concelho de Barcelos, a confrontar no Norte com caminho público, do Sul com LLL e outros, do Nascente com Herdeiros de KKK e CC e do Poente com caminho, não descrito na Conservatória do Registo Predial e inscrito na Matriz Urbana sob o Artigo 130 (29/40) e na Matriz Rústica sob o Artigo 839 (29/40), ambas da freguesia de Palme" (alínea V) dos factos assentes);

oo) Por decisão de 29.06.99, proferida no processo de inventário referido em mm), foi declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, aí se referindo que a “curadoria ainda não foi estabelecida e os bens ainda não foram entregues” (documento de fls. 142 a 180);

pp) A presente acção deu entrada na secretaria judicial deste tribunal no dia 24.11.2005 (documento de fls. 2);

qq) O prédio a que se alude em o) encontra-se inscrito na matriz predial rústica em nome do réu CC (11/40) e de BB (29/40) (alínea P) dos factos assentes);

rr) Os réus ocupam os prédios a que se alude em n) e o) e, depois do referido em q), recusam a sua entrega à autora e à herança que esta representa (resposta ao número 10 da base instrutória);

ss) As obras que o réu CC e mulher efectuaram na casa a que se alude em u), a qual se achava em ruínas, consistiram em endireitar e completar as paredes com blocos de cimento, pôr um telhado novo, colocando traves, barrotes e telha (resposta ao número 20 da base instrutória);

tt) As obras que o réu CC e mulher efectuaram no prédio a que se alude em u) foram, também, de construção de um anexo para vacaria, em blocos de cimento, com cobertura em lusalite, e de uma fossa, com doze metros de comprimento, três metros de largura e dois metros de profundidade (resposta ao número 21 da base instrutória);

uu) As obras referidas em ss) foram efectuadas entre 1983 e 1984 e as referidas em tt) cerca de 10 anos depois (resposta ao número 22 da base instrutória);

vv) As obras referidas em ss) e tt) foram custeadas pelo casal formado pelo réu CC e pela sua falecida mulher, RR, no que despenderam quantia não concretamente apurada (resposta ao número 23 da base instrutória);

xx) As obras de reconstrução da casa eram indispensáveis para evitar a sua perda, destruição ou deterioração (resposta ao número 26 da base instrutória).

Pede a Recorrente AA a este Supremo Tribunal , em sede do presente recurso de Revista, as seguintes providências:

a)  Declare que o casal formado pela Autora e pelo seu marido BB adquiriu o direito de propriedade sobre 29/40 dos prédios inscritos na matriz predial sob os arts. 130° (urbano) e 839° (rústico), melhor identificados nos itens n), o), u) e v) dos Factos Provados constantes na douta sentença (correspondentes às alíneas l e L da Matéria Assente), e que, dissolvido esse casamento por óbito do cônjuge marido, a Autora tem o direito a participar na metade do activo da comunhão, encontrando-se o direito à restante metade atribuído à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, condenando os Réus a reconhecerem esse direito da Autora e da referida herança;

b) Condene os Réus a absterem-se da prática de qualquer acto lesivo dos direitos de propriedade e posse da Autora e da herança que ela representa referidos na alínea anterior;

        

No Tribunal da 1ª Instância foi a presente ação julgada procedente quanto aos pedidos referidos no Relatório do presente acórdão, mas assim não foi decidido quanto às pretensões que a Recorrente pretende agora ver triunfar.

Vejamos se lhe assiste razão!

Para tanto, comecemos por recordar que a 1ª Instância, em decisão que veio a ser confirmada pela Relação, considerou o que a seguir se transcreve, pese embora a sua extensão:        

Desta facticidade decorre, pois, que o procurador - BBBB - das pessoas identificadas na escritura de 21.06.93, denominada de "cessão de direitos hereditários", declarou, em representação daquelas, que as mesmas eram os únicos herdeiros de SS, de UU e marido VV e que cedia, em nome dos seus representados, ao falecido marido da autora todos os bens que tinham situados em Portugal.

Sucede, porém, que não está demonstrado que os representados [MMM e mulher NNN, OOO, PPP e mulher QQQ, RRR, SSS e mulher TTT, UUU, VVV casada com XXX, ZZZ e marido AAAAi] tivessem o estatuto que, naquela escritura, lhes foi atribuído pelo identificado procurador, ou seja, o de únicos herdeiros de SS, de UU e marido VV.

De facto, não basta, sem mais, afirmar que se é herdeiro de determinada pessoa para que essa qualidade se tenha como demonstrada.

É necessário alegar e provar os actos constitutivos da sucessão universal ou "mortis causa", o que pode ser feito, nomeadamente, através de habilitação notarial, justificando-se, por essa via, que se tem a qualidade de herdeiro do falecido para fins, entre outras, patrimoniais gerais.

"In casu", verifica-se que a referida escritura de 21.06.93 não foi precedida de habilitação notarial, certo que da leitura dessa escritura decorre que não foram juntos quaisquer documentos comprovativos do estatuto que nela é atribuído às pessoas aí representadas pelo procurador BBBB.

Argumenta, no entanto, a autora que não é de exigir que a venda de bens ou direitos de uma herança outorgada no Brasil seja realizada de acordo com a tramitação e as regras notariais portuguesas, nomeadamente com uma habilitação seguida de uma venda.

A nosso ver este argumento não colhe.

É que o problema da lei aplicável o acto de transmissão consubstanciado na referido escritura de "cessão de direitos hereditários" de 21,06.93, outorgada no Brasil, só se põe depois de averiguado que os cedentes [MMM e mulher NNN, OOO, PPP e mulher QQQ, RRR, SSS e mulher TTT, UUU, VVV e marido XXX, ZZZ e marido AAAA] eram titulares dos direitos que, através daquele acto, declaram, através de procurador, ceder para o falecido marido da autora.

Para justificar essa titularidade a autora invocou que os cedentes tinham o estatuto de únicos herdeiros de SS, de UU e marido VV.

Assim, o existência desse estatuto é uma questão prévia relativamente à questão do conflito de leis.

Ora, o referido SS era um cidadão de nacionalidade portuguesa que faleceu no Brasil.

As sucessões por morte são reguladas pela lei da nacionalidade do autor do sucessão, ao tempo do falecimento deste – cfr. arts. 25°, 31°, n° l, e 62° do CC.

Logo, à sucessão aberta pelo óbito do referido SS aplicam-se os comandos da lei portuguesa.

Ao estatuto da sucessão por morte cabe, em geral, regular todas as questões relativas à abertura da sucessão, aceitação da herança, devolução, repúdio, transmissão e partilha desta. Compete-lhe, ainda, definir o âmbito da sucessão (por exemplo, concretizar o que se transmite aos herdeiros) e a capacidade para adquirir por via sucessório. Cumpre, também, à lei da sucessão definir a composição e hierarquia dos sucessíveis e os respectivos direitos.

Daí que seja de trazer à colação o disposto nos arts. 2024°, 2030°, n° 1, 2131° a  2155° e 2156° a 2107°.

O primeiro diz-nos que a sucessão é o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e o consequente devolução dos bens que a esta pertenciam. O segundo estabelece que os sucessores são herdeiros ou legatários. Por sua vez, os arts. 2131° a 2155° regem sobre o sucessão legítima e os arts. 2156° a 2167° dispõem sobre o sucessão legitimária.

E, como ensina o Prof. J. de Castro Mendes, a prova da aquisição, por sucessão, da titularidade dum direito ou complexo de direitos, ou doutra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas, faz-se através da habilitação.

Desta feita, não tendo sido feita prova de que os cedentes identificados na escritura de 21.06.93 se encontravam habilitados, face à lei portuguesa, como os únicos herdeiros de SS, o invocado estatuto de únicos herdeiros deste último não pode ter qualquer eficácia jurídica.

Consequentemente, sendo esse estatuto o suporte dos direitos que aqueles declararam ceder ao falecido marido da autora através da escritura denominada de "cessão de direitos hereditários", é manifesto que, inexistindo prova desse estatuto à foce da lei portuguesa, não se pode ter por demonstrado que o falecido marido da autora lenha, através daquela escritura, adquirido quaisquer direitos, pois, como repetidamente ]á dissemos, "nemo plus júris In aliam transfere potest quam ipse habet...".

Ou seja, com base naquela "aquisição" - aquisição derivada -, a pretensão da autora não pode proceder.

Seguidamente, o Tribunal da 1ª Instância chama a atenção para o seguinte:

«Note-se que a próprio autora reconheceu, no processo de inventário para deferimento de curadoria e entrega de bens do ausente SS, o insuficiência do titulo que aqui invoca como fundamento para o pretendido reconhecimento do direito de propriedade, na medida em que nesse processo alegou (veja-se fls. 34 do documento de fls. 142 a 180) que o marido, tendo adquirido os bens por escritura outorgada no Brasil, procurou registar a compra "para o que se tornava necessário munir-se das certidões de nascimento, casamento e óbito dos sucessíveis herdeiros do ausente que lhe possibilitasse fazer a escritura de habilitação dos vendedores como herdeiros".

É certo que a autora defende, na réplica, que os réus afirmam, na contestação, que o SS faleceu solteiro e deixou três filhos, sendo dois deles (P............) solteiros e já falecidos, sem descendentes, e o terceiro (UU] casada e igualmente já falecida, pelo que, conjugando essas afirmações com o teor da escritura, vê-se que os outorgantes alienantes intervêm por serem herdeiros dessa UU e do SS.

Todavia, mesmo admitindo-se que os réus reconhecem ("constou na freguesia" é esse o sentido da alegação dos réus) que o SS faleceu solteiro e deixou três filhos, dois deles solteiros e já falecidos, sem descendentes, e o terceiro (UU) casada e igualmente já falecida, dessa factualidade, conjugado com o teor da escritura, não intervêm por serem herdeiros dessa UU e do SS.

Todavia, mesmo admitindo-se que os réus reconhecem ("constou na freguesia" é esse o sentido da alegação dos réus) que o SS faleceu solteiro e deixou três filhos, dois deles solteiros e já falecidos, sem descendentes, e o terceiro (UU) casada e igualmente já falecida, dessa factualidade, conjugado com o teor da escritura, não se alcança que as pessoas identificadas nessa escritura são os únicos herdeiros daquela filha de SS e deste último, pois que em tal escritura nada consta que nos permita chegar a tal conclusão».

O Tribunal da Relação, por sua vez, doutamente assim ponderou e decidiu:

«No que se refere à validade da aquisição derivada, considera a apelante que a escritura mencionada no item q) dos seus Factos Provados (correspondente ao Facto Assente O) do despacho de selecção da matéria de facto) constitui título válido para comprovar a transmissão da propriedade dos prédios aqui em questão para a titularidade da autora e herança de seu falecido marido.

Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/07/2010, proferido na revista n.º 122/05.1TBPNC.C1.S1, disponível na Base de Dados do Ministério da Justiça em www.dgsi.pt, “no que tange à prova da propriedade, para efeitos da procedência da acção, há que dizer, na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed. Rev. e Act., p. 115, que «se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito.

Mas, se a aquisição é derivada (compra e venda, sucessão ou doação), não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa, que esta lhe foi transmitida por herança ou que a mesma lhe foi doada.

«Nem a compra e venda, nem a doação, nem a sucessão se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas ape­nas translativas desse direito (nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet).

Torna-se necessário, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir: probatio diabólica como diziam os antigos.

Daí que, não raras vezes, haja que convocar, como elemento decisivo, as presunções legais resultantes da posse (se ela puder ser oposta ao detentor).

Designadamente, e para efeitos da usucapião, se houver necessidade de invo­car este título de aquisição originária, têm também o maior interesse as regras sobre sucessão e acessão da posse (artºs. 1255.º e 1256.º do CC e as presunções dos artºs 1254.º e 1255.º, n.º 2, todos do CC, quer as presunções resultantes do registo predial (artºs. 1268.º do CC e 7.º e ss do CReg.Pred.)».

De resto, e tal como se considerou, v. g. no acórdão do Supremo Tribunal de 7-7-99, in CJSTJ, Tomo II/99, p. 164, a exigência da prova - a fazer pelo autor em acção de reivindicação (art.º 1311.º do CC) - de se haver operado uma aquisição originária do direito de propriedade ou uma ou várias aquisições derivadas que formem uma cadeia ininterrupta a desembocar numa aquisição originária do mesmo direito, «vale também para os casos em que o proprietário se limita a pedir a declaração de que é dono».

E - ainda na peugada do mesmo aresto - a conciliação ou «articulação entre esta exigência de prova de uma aquisição originária a fundamentar a existência do direito de propriedade invocado, por um lado, e a força da presunção resultante da inscrição registral da aquisição por outro, faz-se no sentido de que tal inscrição dispensa o seu titular de provar a aquisição originária, bem como a eventual cadeia de aquisições derivadas anteriores à aquisição que conseguiu fazer inscrever».

Assim sendo, impendia, pois sobre a autora e apelante a prova de que o direito por si invocado já existia na esfera jurídica pessoal do transmitente (prova da aquisição originária do invocado direito de propriedade por banda do autor ou autores das heranças de que se arrogavam titulares).

Isto porque, face ao preceituado no art.º 350.º do CC, uma presunção legal, embora ilidível, dispensa quem dela beneficia de provar o facto a que ela conduz (facto desconhecido).

Ademais, derivando do registo a presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito, e se o mesmo assumir natureza obrigatória, só produz efeitos contra terceiros após a data da respectiva realização (artºs 5.º, n.º 1 e 7.º do CRPred).

Portanto, independentemente da determinação da lei aplicável à apreciação jurídica da escritura de cessão de direitos hereditários celebrada no Brasil, a que acima fizemos referência e que consta da alínea q) dos factos provados, há que notar que a apelante pretende valer-se da aquisição derivada para legitimar a sua pretensão e, tendo em conta que não está em causa a aquisição originária do direito de que se arroga e que não beneficia da presunção do registo, pelos fundamentos que acabam de se expor, terá de improceder a sua pretensão.

Por último, quanto à invocada usucapião, face à não prova da matéria dos quesitos 1.º a 6.º, resulta não haver lugar à aquisição do direito por usucapião.

Do exposto resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, confirmar-se o decidido na douta sentença recorrida».  

Pela leitura atenta do que transcrito se deixou, fácil é de concluir que o que está em causa no presente processo e que ditou a sorte do mesmo nas decisões anteriores, não é a consideração de a escritura realizada no Rio de Janeiro padecer de vício que diminua o seu valor probatório ou de falta de requisitos formais para constituir documento autêntico, como parece inferir a Recorrente nas sua minuta recursória condensada nas respectivas conclusões, designadamente as constantes das alíneas M), N),O), P),R), U),V).

Não estão em causa normas de direito registral ou notarial e nem, tão pouco, normas reguladoras da forma ou eficácia probatória dos actos jurídicos constantes de tal documento, nem tão pouco a diferença entre tais documentos emitidos em Portugal e os emitidos no Brasil.

A questão no presente recurso no que concerne ao documento de fls. 28 (1º volume) é totalmente diversa!

O que está em causa e foi objecto de análise e apreciação criteriosa  pelas Instâncias, relativamente ao documento intitulado «escritura de cessão de direitos hereditários» é, em primeiro lugar, a questão da legitimidade dos cedentes para efectuarem a transmissão do acervo hereditário de SS e o valor jurídico (ex substantia) das declarações constantes do mesmo documento para efeito de alienação de tais imóveis.

Em suma, não se trata da validade intrínseca da escritura de cessão de direitos hereditários qua tale, mas do valor jurídico da declaração do procurador BBBB, constante daquela escritura, relativamente ao status de herdeiros únicos atribuído aos mandatários do declarante e subsequente cedência de bens do de cujus a um terceiro, o ora falecido marido da Recorrente, BB.

 Equacionada assim a questão, procedamos à sua apreciação com o exigível detalhe.

Alega a Recorrente que o falado documento constitui, além do mais, uma habilitação de herdeiros, como se colhe da conclusão F) onde afirma:

F)        Ora, pela escritura mencionada no item q) dos Factos Provados, outorgada no Brasil e
de acordo com a lei brasileira, foi concretizada a habilitação dos herdeiros de SS e, nessa qualidade de seus únicos herdeiros, cederam todos os bens
situados em Portugal, transferindo todos os direitos, acção e posse que até essa data
tinham e exerciam sobre esses imóveis, a BB (marido da aqui
Autora), neles se incluindo obviamente os 29/40 dos prédios aqui em questão (destaque e sublinhado nossos).

        

         Porém, como bem observou a 1ª Instância, em decisão confirmada pela Relação, não consta qualquer habilitação de herdeiros no referido documento notarial.

Desde logo, por em parte alguma da referida escritura se referir tal termo jurídico ou um seu equivalente.

         Depois, porque a habilitação de herdeiros não resulta, sem mais, de uma simples declaração feita pelo procurador dos próprios interessados, dizendo que estes são os únicos herdeiros do de cujus!

Na verdade, não basta que qualquer pessoa compareça num cartório notarial, munida de procurações de terceiros, declare que os seus representados são os únicos herdeiros de determinado falecido e proceda, naquele acto, à alienação a terceiro dos bens imóveis do defunto ou a totalidade da sua herança, para que os referidos representados possam ser considerados herdeiros e se considere válida a referida alienação.

Qualquer ordenamento jurídico impõe cautelas mínimas para a demonstração da qualidade de herdeiros e para a alienação de bens imóveis, fazendo constar da escritura essa verificação ou menção de arquivo de documentos demonstrativos das invocados estatutos.

         Como sempre ensinou o saudoso Mestre que foi o Prof. Castro Mendes, «a habilitação é a prova da aquisição, por sucessão ou transmissão, da titularidade dum direito ou complexo de direitos, ou doutra situação jurídica ou complexo de situações jurídicas» ( Direito Processual Civil, 1980, 2º, 234), o que bem atesta o indiscutível relevo de tal habilitação.

         Também o eminente processualista que foi Alberto dos Reis, escreveu que a habilitação «propõe-se certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava» (C. P. anotado, 1º Vol. 1980, 2º-234).

Estas brevíssimas citações demonstram à saciedade que a habilitação de herdeiros não se identifica nem se confunde com qualquer declaração feita pelos próprios interessados, por si ou por intermédio do seu procurador, afirmando serem herdeiros únicos de um falecido ou ausente, ainda que através de um mandatário, como é o caso do documento em referência.

Tal não constitui qualquer habilitação de herdeiros, mas simples declaração da qualidade de herdeiros efectuada pelo mandatário dos interessados, BBBB, cujos efeitos se repercutem na esfera jurídica dos mandantes (artº 258º do C. Civil), uma verdadeira auto-proclamação da qualidade de herdeiros sem alicerce em documentação ou prova relevante.

Como escrevem F. Ferreirinha e Zulmira Lino da Silva, referindo-se ao direito notarial português, «assumindo estas  declarações  grande importância, como se compreende, a lei rodeou a sua admissibilidade de particulares cautelas: ou intervêm três pessoas, que o notário considere dignas de crédito e que não estejam impedidas de ser testemunhas instrumentárias, nem sejam parentes sucessíveis dos habilitandos, nem cônjuge de qualquer deles, ou, sendo a declaração prestada pelo cabeça de casal, terá de lhe ser, feita a advertência de que incorre nas  penas aplicáveis ao crime de falsas declarações, se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestar declarações falsas ­– cfr. arts. 84.° e 83.°, n° 2 (do C. Notariado)»  [Manual de Direito Notarial (Teoria e Prática), 2008, 4ª edição, pg. 458 ].

Na verdade, ainda que as formalidades no ordenamento notarial brasileiro possam não ser exactamente as mesmas do português, a verdade é que, nem no Brasil, nem em qualquer outro Estado de Direito, a prova da qualidade de herdeiros únicos se resume às declarações do próprio interessado, sem qualquer documento comprovativo do óbito ou morte presumida do autor da sucessão e do parentesco dos que arrogam a posição de herdeiros , preterindo destarte as particulares cautelas  a que se referem os autores que vimos de citar.

Para se aquilatar da relevância desses documentos instrutórios da habilitação, basta consultar o disposto nos artºs 85º/1 e 86º do Código de Notariado português.

Assim sendo, ao contrário do que alega a Recorrente na sua minuta recursória e na conclusão F), atrás transcrita, não se mostra na referida escritura nenhuma habilitação de herdeiros, nem foi feita qualquer demonstração de que os mandantes do dito procurador que fez a declaração ( BBBB) fossem os herdeiros únicos de SS, de UU e marido VV.

Por isso, bem decidiu a 1ª Instância em sentença confirmada pelo Tribunal da Relação, que «de facto, não basta, sem mais, afirmar que se é herdeiro de determinada pessoa para que essa qualidade se tenha como demonstrada.

É necessário alegar e provar os actos constitutivos da sucessão universal ou "mortis causa", o que pode ser feito, nomeadamente, através de habilitação notarial, justificando-se, por essa via, que se tem a qualidade de herdeiro do falecido para fins, entre outras, patrimoniais gerais.

"In casu", verifica-se que a referida escritura de 21.06.93 não foi precedida de habilitação notarial, certo que da leitura dessa escritura decorre que não foram juntos quaisquer documentos comprovativos do estatuto que nela é atribuído às pessoas aí representadas pelo procurador BBBB».

        

Vejamos agora qual foi o objecto da transmissão que a Recorrente entende ter sido efectuada através da citada escritura.

 A Recorrente alega, ainda na conclusão F), relativamente aos que considera habilitados herdeiros do referido Sá Mouco, na dita escritura realizada no Brasil, o seguinte:

« ... nessa qualidade de seus únicos herdeiros, cederam todos os bens situados em Portugal, transferindo todos os direitos, acção e posse que até essa data tinham e exerciam sobre esses imóveis, a BB (marido da aqui Autora), neles se incluindo obviamente os 29/40 dos prédios aqui em questão»

             

Não é assim, porque os herdeiros de um acervo hereditário não podem transmitir o direito de propriedade sobre os bens que o integram, na medida em que não são comproprietários dos mesmos enquanto a herança se mantiver indivisa.

Na verdade, ninguém pode transmitir a outrem aquilo que não tem, realidade que se  exprime no vetusto brocardo latino «nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet»!

É que, ao contrário do que supõe a Recorrente autora, até à partilha os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito à herança que incide sobre uma quota ideal ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheçam quais os bens concretos que preenchem tal quota.

É pela partilha [extrajudicial ou judicial (através do processo de inventário-divisório)] que serão adjudicados os bens dessa universalidade (universitas juris) que é a herança, os quais preencherão aquelas quotas ou fracções.

Por isso, assim se ponderou no aresto deste Supremo Tribunal, de 4-02-1997 supra citado: «A compropriedade pressupõe um direito de propriedade comum sobre uma coisa ou bem concreto e individualizado, ao invés do que sucede na contitularidade do direito à herança que recai obre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará».

O Ilustre Professor de Coimbra, Doutor Rabindranath Capelo de Sousa assim ensina nas sua Lições de Direito das Sucessões:

«Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário»

Por sua vez, outro Professor de Coimbra, o Doutor Pereira Coelho, assim escreveu no seu Direito das Sucessões:

«Não se trata uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens concretos e determinados. Pelo contrário, contitularidade do direito à herança significa tanto como um direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si mesma considerada»

            Em abono de posição «ex adverso», poderá argumentar-se que como os alienantes eram os únicos herdeiros do ausente Sá Mouco, ao cederem os direitos sobre a totalidade dos bens do mesmo em Portugal, sem necessidade de prévia partilha determinante dos bens que caberiam a cada um, cederam implicitamente todos os bens que integravam o mesmo acervo hereditário.

Tal raciocínio seria adequado à realidade se tivesse havido comprovação de que os alienantes, representados pelo dito BBBB, eram, na verdade, herdeiros universais do autor da herança, que transmitiam assim a globalidade do acervo hereditário, o que, como ficou exuberantemente demonstrado, não ocorreu.

Por isso, com lauta e douta argumentação e arrimando-se a um estudo de Vaz Serra, publicado na RLJ, onde o insigne autor escreveu: «o acto de disposição efectuado por um dos consortes é, em relação aos outros, «res inter alios acta», não carecendo eles, por conseguinte, de propor uma acção de anulação para retirar ao acto os seus efeitos, o que não seria razoável, por os forçar aos incómodos e despesas de uma acção de anulação de um acto em que não consentiram e que lesa os seus direitos. Só entre os contraentes (v.g. o vendedor e o comprador de coisa alheia) é que seria nulo ou anulável; relativamente ao verdadeiro proprietário, a alienação não produz efeitos», o Tribunal da 1ª Instância concluiu que, por via da invocada causa de pedir assente na aquisição translativa derivada, a acção teria de improceder, na medida em que a «a invocada aquisição derivada não prova o direito de propriedade que a Autora pretende ver reconhecido por via desta acção».

Nem se diga que, em face da lei brasileira, a escritura celebrada em 21-06-1993, na cidade do Rio de Janeiro com a designação de «Escritura de Cessão de Direitos Hereditários» faz prova suficiente da veracidade dos factos necessários para o êxito das pretensões da Recorrente.

Como a Recorrente não desconhece, na medida em que está devidamente patrocinada, o referido SS era um cidadão de nacionalidade portuguesa que faleceu no Brasil.

As sucessões por morte são reguladas pela lei da nacionalidade do autor do sucessão, ao tempo do falecimento deste – cfr. arts. 25°, 31°, n° l, e 62° do CC.

No que tange a este último preceito legal, Pires de Lima e Antunes Varela assim escreveram:

«Com base na primeira parte deste artigo, à lei pessoal do autor da sucessão cabe regular não só a vocação sucessória e a devolução da herança, como tudo o que diz respeito ao fenómeno sucessório» e, mais adiante, acrescentam: « estas são pois as disposições aplicáveis aos portugueses, mesmo que residam ou faleçam em país estrangeiro, e mesmo em relação aos bens sitos no estrangeiro» (Código Civil anotado, vol I, pg. 99).

Importa notar que o fenómeno sucessório não é um negócio jurídico, nem se confunde com o denominado negócio jurídico mortis causa[1] pelo que não tem aqui aplicação o disposto no nº 2 do artº 30º do C.Civil, para efeitos do reconhecimento da qualidade de herdeiros únicos aos cedentes dos bens do falecido S......., sem a competente habilitação de herdeiros ou documento equivalente.

Logo, à sucessão aberta pelo óbito do referido SS e relativamente aos seus bens em Portugal, aplicam-se os comandos da lei portuguesa, como bem decidiram as Instâncias.

 Por outro lado, ao contrário do que alega a Recorrente ( conclusões V a Z), as declarações do procurador dos cedentes, constantes daquele documento, não resolvem os problemas expostos no presente acórdão, pelo facto de tal documento ser autêntico.

Como é sabido os documentos autênticos só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos neles atestados com base nas percepções da entidade documentadora (quorum notitiam et scientiam habet propriis sensibus, visus et auditus) e, no caso vertente, a qualidade de herdeiros não foi percepcionada pelo oficial dotado de fé pública, mas tão simplesmente declarada pelo procurador dos interessados, além de não haver documentação atinente àquela qualidade nem qualquer relação de bens que integravam a herança.

A autenticidade do referido documento só faz prova plena, no caso em apreço, de que o falado procurador BBBB prestou as declarações consignadas no mesmo, não de que os seus representados tivessem efectivamente a  qualidade invocada.

Claudicam, consequentemente as aludidas conclusões.

Porém, a Recorrente estribou-se ainda, embora sem sucesso, na invocação da usucapião, relativamente aos prédios inscritos na matriz predial urbana sob o artº 130º e o prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artº 839, tendo sido julgada improcedente tal invocação na medida em que não foram provados factos susceptíveis de integrar a posse sobre tais prédios, ou seja, não resultou demonstrado o pressuposto de tal forma de aquisição originária da propriedade.

A 1ª Instância assim decidiu quanto a esta questão:

Não se mostram, pois, verificados os pressupostos necessários ao reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade do referido casal, já dissolvido por óbito de BB, o cônjuge marido, quanto aos dois identificados prédios (o urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 130 e o rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o art. 839).

Em sede de Apelação, o Tribunal da Relação, depois de analisar o argumentário da Recorrente, confirmou o  entendimento da decisão recorrida ao sentenciar que «impendia, pois sobre a autora e apelante a prova de que o direito por si invocado já existia na esfera jurídica pessoal do transmitente (prova da aquisição originária do invocado direito de propriedade por banda do autor ou autores das heranças de que se arrogavam titulares).

Isto porque, face ao preceituado no art.º 350.º do CC, uma presunção legal, embora ilidível, dispensa quem dela beneficia de provar o facto a que ela conduz (facto desconhecido).

Ademais, derivando do registo a presunção de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito, e se o mesmo assumir natureza obrigatória, só produz efeitos contra terceiros após a data da respectiva realização (artºs 5.º, n.º 1 e 7.º do CRPred).

Portanto, independentemente da determinação da lei aplicável à apreciação jurídica da escritura de cessão de direitos hereditários celebrada no Brasil, a que acima fizemos referência e que consta da alínea q) dos factos provados, há que notar que a apelante pretende valer-se da aquisição derivada para legitimar a sua pretensão e, tendo em conta que não está em causa a aquisição originária do direito de que se arroga e que não beneficia da presunção do registo, pelos fundamentos que acabam de se expor, terá de improceder a sua pretensão.

Por último, quanto à invocada usucapião, face à não prova da matéria dos quesitos 1.º a 6.º, resulta não haver lugar à aquisição do direito por usucapião».

As questões levantadas pela Recorrente nas conclusões AA) e segs. não podem ter solução favorável à sua pretensão, pois elas [acessão da posse (artº 1256º do CC) e constituto possessório (artº 1264º)] assentam no pressuposto da posse do transmitente e de uma transmissão válida de tal posse, o que a Recorrente não logrou provar, através de factualidade que integre tais institutos, sendo certo que lhe incumbia tal ónus de prova, como factos constitutivos do direito invocado, como criteriosamente decidiram as Instâncias.

 

Improcedem, destarte, as conclusões da alegação da Recorrente, o que determina inexoravelmente a improcedência do presente recurso.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista.

Custas pela Recorrente, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Maio de 2013

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade

 ________________________  


[1] Na definição do saudoso Prof. Castro Mendes, negócios jurídicos mortis causa são os que se destinam a produzir efeitos só desde a morte do autor do negócio. A morte funciona como termo suspensivo ( Teoria Geral do D. Civil, 1979,III- 719)