I - Em face de uma situação jurídico-privada internacional, que põe em contacto duas ordens jurídicas diversas, há que aplicar as normas de conflitos de leis, de acordo com os princípios do Direito Internacional Privado (DIP) português, a fim de indagar, designadamente, qual a lei aplicável para decidir a questão da validade de um testamento feito por uma cidadã portuguesa, residente em Portugal, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, referente ao seu património sito neste país.
II - O legislador português manda aplicar à sucessão por morte a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste – cf. arts. 25.º e 62.º do CC –, sendo essa lei pessoal, segundo o art. 31.º, n.º 1, do CC, a lei da nacionalidade do indivíduo.
III - A lei nacional do autor da sucessão regula tudo o que respeita ao fenómeno sucessório, incluindo a vocação dos sucessíveis e a devolução da herança.
IV - Considerando, em concreto, que a mãe da 1.ª autora e da ré tinha, ao tempo do seu decesso, exclusivamente a nacionalidade portuguesa, é a lei portuguesa a aplicável ao envolvente fenómeno sucessório dele derivado, designadamente no que se reporta à validade formal do testamento – cf. arts. 25.º, 31.º, n.º 1, 62.º e 65.º do CC.
V - O art. 65.º, n.º 1, do CC contempla uma pluralidade de leis substantivas potencialmente aplicáveis à forma das disposições por morte – incluindo aquelas que são objecto de testamento –, sob a motivação de favorecimento da sua validade formal. O n.º 2 do mesmo preceito prevê um limite à referida pluralidade, no caso de a lei pessoal do autor da herança exigir, em relação às disposições mortis causa, determinada forma, ainda que elas ocorram no estrangeiro, sob pena de nulidade.
VI - O art. 2223.º do CC refere-se à forma externa exigida para o testamento lavrado por cidadão português em país estrangeiro, adoptando uma solução que respeita o princípio de que é a lei do lugar onde o acto se realiza que compete regular a sua forma externa (locus regit actum), não prescindindo que o testamento revista o carácter solene que a lei portuguesa exige.
VII - Num testamento em que ficou exarado: “(…) respeitando o disposto no Artigo 1846 do Código Civil Brasileiro, ou seja, a parte legítima de suas filhas, e, podendo, portanto, dispor da metade de seu património, a chamada parte disponível, pelo presente testamento, a Outorgante Testadora, quer e determina que após o seu falecimento a parte disponível do seu património no Brasil (…) fiquem para sua filha (…)”, é por demais evidente que a falecida/testadora procurou sujeitar o seu património – e futuro acervo hereditário – existente no Brasil, às disposições do direito interno brasileiro.
VIII - O facto da testadora ter elaborado três testamentos, em momentos temporais distintos, é, em abstracto, perfeitamente legal, uma vez que o testador, até ao último momento da sua vida, é livre de o revogar, e, assim, afastar quaisquer sucessíveis nele designados, nada impedindo na lei que uma pessoa faça vários testamentos, podendo revogar ou não expressamente o(s) anterior(es) se e na medida em que com aquele(s) for incompatível.
IX - A fraude à lei (em DIP) pode distinguir-se, por um lado, na manipulação do elemento de conexão e, por outro lado, na internacionalização fictícia de uma situação interna: no primeiro caso, para afastar a lei normalmente competente, o agente da fraude vai modelar o conteúdo do elemento de conexão; no segundo caso, para afastar o Direito material vigente na ordem jurídica interna, que é o exclusivamente aplicável a uma situação interna, estabelece-se uma conexão com um Estado estrangeiro, por forma a desencadear a aplicação do Direito estrangeiro.
X - Os elementos da fraude à lei (em DIP) são dois: um elemento objectivo e um elemento subjectivo. O primeiro (elemento objectivo) traduz-se na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna; o segundo (elemento subjectivo) consiste na vontade dolosa de afastar a aplicação de uma norma imperativa que seria normalmente aplicável, incidindo o dolo sobre a modelação do conteúdo concreto do elemento de conexão ou sobre a internacionalização fictícia da situação interna.
XI - Um cidadão português, residente em Portugal, que se desloque a um país estrangeiro ou a um consulado de um país estrangeiro em Portugal, para aí lavrar testamento segundo a lei desse Estado (in casu, o direito material brasileiro), com essa atitude afronta directamente com a sua lei pessoal, a portuguesa, que é a reguladora da sua sucessão por morte.
XII - Ao recorrer a essa via, a testadora conseguiria efectuar uma deixa testamentária correspondente a ½ do seu património existente no Brasil a favor de uma das suas filhas, à luz do art. 1846.º do CCB, ludibriando a sua lei pessoal, a portuguesa, em que a quota disponível é, neste caso, de 1/3, uma vez que a legítima equivale a 2/3 da herança, sendo essa a porção intangível de que o testador jamais pode dispor, por estar legalmente destinada aos seus herdeiros legitimários, ex vi dos arts. 2159.º, n.º 2, e 2156.º ambos do CC, que constituem normas imperativas.
XIII - A fraude, in casu, traduziu-se na circunstância de a falecida, conhecedora da lei aplicável à sua sucessão em Portugal, e do facto da sua quota disponível, nessa eventualidade, ser inferior à que a lei brasileira lhe permitia dispor – por força da legítima prevista num e noutro ordenamento jurídico –, ter-se deslocado resolutamente ao Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, para aí, submetendo-se à lei brasileira, procurar eximir-se ao regime legal da sucessão legitimária mais rigoroso do Estado português.
XIV - Não é o facto da lei brasileira contemplar uma legítima de ½ dos bens da herança, enquanto que a lei portuguesa, in casu, contempla uma legítima de 2/3, que converte a situação num caso de violação da ordem pública internacional, susceptível de cair na alçada do art. 22.º do CC.
Recurso de Revista nº 832/07.9TBVVD.L2.S2[1]
AA e marido BB, residentes na ..., ..., ..., intentaram a presente acção declarativa com processo comum ordinário demandando CC, residente na Rua ..., nº … – ….º ….º, Lisboa, peticionando a condenação desta a ver declarada a anulação ou a nulidade formal do testamento que a falecida mãe de ambas, DD, efectuou no Consulado-Geral do Brasil em Lisboa, em 23/06/2005
Alegaram, para tanto, em síntese, que a 1.ª autora é a filha mais velha, sendo ela e a ré as únicas filhas da falecida, e que o referido testamento é nulo e inválido porquanto a mãe era cidadã exclusivamente portuguesa, sempre residiu em Portugal, e nunca foi ao Brasil.
A lei aplicável à sucessão por morte é a lei pessoal do autor da sucessão que no caso é a portuguesa (arts. 62.º e 31.º, n.º 1, ambos do Código Civil – CC). No testamento brasileiro a mãe das autora e ré, deixou 1/2 dos bens sitos no Brasil à ré, aproveitando a quota disponível de 1/2 da lei brasileira (art. 1789.º do Código Civil Brasileiro, Lei 10.406 de 10/01/2002 – CCB), o que contraria a legítima de 2/3 da lei portuguesa.
Por força do princípio da universalidade da herança, os tribunais portugueses são competentes para a partilha de bens de portugueses mesmo que situados no estrangeiro.
A falecida só podia fazer testamento de forma válida num cartório notarial português, a não ser que se encontrasse acidentalmente num país estrangeiro, caso em que poderia fazer o testamento num consulado português (art. 4.º, n.º 2, al a), do Código do Notariado – CN).
Em matéria de forma das disposições por morte rege o art. 65.º, n.º 1, do CC, que estabelece uma conexão alternativa, mas ela não é aplicável ao caso; a lei brasileira não permite que um consulado brasileiro lavre testamentos de portugueses residentes em Portugal.
A lei brasileira (art. 1785.º do CCB) diz que a sucessão se abre no lugar do último domicílio do falecido; a admitir-se a validade do testamento brasileiro, estar-se-ia perante dois testamentos e duas disposições de quotas disponíveis, uma eficaz num inventário a realizar em Portugal para os bens portugueses e a outra a utilizar num inventário a realizar no Brasil para os bens brasileiros.
Contestou a ré, excepcionando a ilegitimidade da autora enquanto cabeça-de-casal da herança e a incompetência territorial do tribunal e, por obscuro nos termos em que foi formulado, pediu que tudo o que consta do pedido para além do que acima foi consignado seja considerado como não escrito.
Por outro lado, impugnou os factos alegados pelos autores e os efeitos que eles querem retirar dos não impugnados, entendendo que: não há qualquer violação do disposto nos arts. 62.º do CC, e 4.º, n.º 2, al. a), do CN; nem incompetência do consulado brasileiro para a celebração do testamento; nem violação da legítima; nem ocorre competência exclusiva dos tribunais portugueses para a acção do inventário.
A ré acrescenta que aceita que é a lei portuguesa a competente para o cálculo da legítima e que considera que a deixa testamentária só em concreto é que poderá vir a ser tida como inoficiosa, o que se terá de apurar em sede de inventário.
Os autores replicaram, defendendo a improcedência das excepções deduzidas (cf. fls. 110 a 117).
Foi decidida a incompetência territorial do Tribunal de ... no sentido defendido pela ré, passando a acção a ser tramitada pelas Varas Cíveis de Lisboa (cf. fls. 125 e verso).
Depois de ultrapassados alguns incidentes, no despacho saneador a ré foi absolvida da instância por ineptidão da petição inicial (cf. fls. 188 a 190), decisão revogada por acórdão da Relação de Lisboa datado de 22/04/10 que ordenou o prosseguimento dos autos (cf. fls. 235 a 245), e após uma audiência preliminar, considerando-se que o processo o permitia sem necessidade de mais provas, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, declarando-se ineficaz o testamento efectuado pela falecida DD, elaborado em 23/06/2005 no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, e condenando-se a ré no reconhecimento dessa ineficácia (cf. fls. 277 a 289).
Inconformada, apelou a ré, e a Relação de Lisboa acordou, por maioria, em 23/11/11, em julgar o tribunal português internacionalmente incompetente para conhecer do pleito, absolvendo a ré da instância (cf. fls. 362 a 374), decisão que acabou por ser revogada por Acórdão deste STJ, de 19/06/12 (cf. fls. 454 a 460), declarando a competência do tribunal português e determinando a baixa do processo à Relação para conhecimento da apelação.
Nesta sequência foi proferido o acórdão da Relação sob recurso, de 25/10/12, que, por unanimidade, julgou procedente a apelação revogando a sentença do tribunal de 1.ª Instância e, em sua substituição, julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido (cf. fls. 474 a 482).
Mantendo a sua discordância, os autores interpõem, agora, recurso de revista, para este Supremo Tribunal, concluindo, assim, as suas alegações (cf. fls. 493 a 498 verso):
1.ª - A cidadãos (exclusivamente) portugueses, como é o caso dos presentes autos, e estando o testador em Portugal, só e exclusivamente os Notários portugueses são capazes de fazer e/ou de celebrar os seus testamentos.
2.ª - O Acórdão recorrido fundamentou-se, maxime, na validade e na eficácia do “testamento brasileiro”, ora em apreço, da Mãe de A. e R. nestes autos, remetendo para o Inventário a questão de saber se a disposição testamentária é inoficiosa ou não... Ora,
3.ª - A inoficiosidade de um testamento (e até, antes dessa "questão", a "validade" de um testamento e, depois desta, a sua "eficácia"...) não é definida nem tratada, como é consabido pacificamente, na prova “sumária” de um processo de Inventário; mas, antes, num processo autónomo (e até, sempre que possível, "prévio" ao Inventário)!...
4.ª - Como é que, num "vulgar" Inventário, se vai tratar de uma hipotética inoficiosidade, "ainda por cima" adveniente de um testamento brasileiro, "espertamente" celebrado, contra a lei portuguesa, por uma cidadã exclusivamente portuguesa, residente no Porto, e que, nem como simples "turista", havia sequer, alguma vez, ido ao Brasil?! ...
5.ª - Do entendimento, expresso no Acórdão recorrido, discordamos total e frontalmente, pois que viola as disposições da lei portuguesa quer quanto às "sucessões", quer quanto à "forma" e quer quanto à "substância" (do testamento). Entretanto,
6.ª - Desde já, em 1.° lugar e por mera economia processual, dá-se aqui, como inteiramente reproduzido tudo o que até à presente data foi por nós alegado e apresentado nos autos, mormente a p.i. bem como todos os documentos juntos, nomeadamente o "Manual Consular Brasileiro", bem como todos os Acórdãos, a que se fez referência nos vários articulados...
7.ª – Efectivamente, dispõe a alínea a), do art. 64.°, do Cód. Civil, que cabe à lei pessoal do autor da Herança ao tempo da declaração, ou seja, ao tempo da realização do testamento regular, a saber: a) - a interpretação das respectivas cláusulas e disposições, salvo se houver referência expressa ou implícita a outra lei; Ora,
8.ª - O testamento da finada D. DD, mãe da A. e da R., faz referência ao artigo 1846.° do Cód. Civil brasileiro, no qual se dispõe que a legítima é de metade dos bens do de cujus; e tal disposição é contrária ao disposto no art. 2159.º, do nosso Cód. Civil, que considera a legítima dos filhos em 2/3 (dois-terços) da Herança do de cujus
9.ª - O texto do "testamento brasileiro" da finada D. DD, feito no Consulado-Geral do Brasil, em Lisboa, diz expressamente que ...."podendo, portanto, dispor da metade do seu património, a chamada parte disponível..." Assim, temos, concretamente, a vontade da testadora de se submeter à lei brasileira, ou seja, usufruir da quota disponível da lei brasileira que, como vimos, é superior à quota disponível existente no Código Civil Português. Ora, ao querer, como quis, submeter-se à lei brasileira, a testadora pretendeu fugir ao imperativo da lei portuguesa e remeter-se para a lei brasileira, que poderia dar mais valores à Ré, ora e aqui Recorrida, como, de facto, o fez !
Daí que,
10.ª - O testamento em apreço retrata uma “fraude à lei”, prevista pelo art. 21.° do Cód. Civil, pois que a Finada, ao querer que o seu testamento fosse regido pelo art. 1846.°, do Cód. Civil brasileiro, quis criar uma situação de direito fraudulenta – a menção àquele preceito brasileiro –, para "fugir" à aplicação da sua lei pessoal – a lei portuguesa.
11.ª - Fez, assim, a douta Sentença da 1." Instância, uma aplicação correcta da Lei à situação de facto, ao contrário do douto Acórdão agora em recurso.
12.ª - Aliás, muito se admiram e estranham as “contas aritméticas”, que o Sr. Desembargador-Relator a quo se deu ao trabalho de fazer, e às conclusões a que chegou, pois que se tivesse lido bem a relação de bens, doados à R., ora Recorrida, teria compreendido que esta está mais que beneficiada, mesmo sem o testamento ora em análise.
13.ª - Como consta dos autos e do “Manual Consular Brasileiro”, os consulados do Brasil no Exterior, será melhor dizer-se “no estrangeiro” — aliás, como os consulados portugueses “no estrangeiro” –, só podem exercer funções de Notário para os cidadãos brasileiros (para os seus cidadãos que se encontrem no estrangeiro...) e nunca para os estrangeiros, nomeadamente para os portugueses residentes em Portugal, como era o caso da testadora (falecida mãe de A. e R.).
Efectivamente,
14.ª - Por muitas “contas de matemática” que se possam fazer, ½ (metade) de uma unidade é sempre superior a 1/3 (um-terço) da mesma unidade — e temos de realizar que a Herança da finada é uma única "unidade"!... E é matéria assente, pacificamente, que a falecida testadora, D. DD, era cidadã exclusivamente portuguesa, residente em Portugal (e que, aliás, nunca tinha ido ao Brasil, mesmo como simples "turista"...) e que a lei que regula a sua sucessão é a lei portuguesa; e é a esta última que têm de se submeter os seus herdeiros (a A. e a R.), as quais, por sua vez, também são cidadãs exclusivamente portuguesas.
Aliás,
15.ª - Se a referida Finada não quisesse valer-se da quota disponível brasileira, não havia razão para ela não ter usado a faculdade de deixar à R., aqui Recorrida, tudo o que pretendia no seu testamento (português) de 19 de Maio de 2005, em que, ao contrário, até "soube" retirar a pessoa do seu Marido... Honni soit qui mal y pense !
16.ª - A douta Sentença da 1.ª Instância analisou muito bem o testamento "brasileiro" ora em crise e verificou precisamente esta "anomalia", no comportamento da testadora, anomalia essa que é facilmente comprovada pela “duplicação” de testamentos... num lapso de tempo de (apenas...) cerca de 1 (um) mês !... Também, é de estranhar que a finada testadora teve de ir, “já velha”, do Porto, onde residia normalmente (há décadas...), para Lisboa (para a “casa” da R., ora Recorrida), para poder fazer tal testamento “brasileiro”, tendo até se identificado, neste último, como “residente” na casa da R., aqui Recorrida, quando a referida finada sempre residiu até morrer na cidade do Porto... Tal comportamento da Finada faz constatar uma vontade deliberada dela “fugir” às disposições legais portuguesas, em matéria de sucessões, e querer reger a sua sucessão por uma outra Lei, que, como já se viu, consignava uma quota disponível de valor superior à da lei portuguesa.
17.ª - No nosso “direito de conflitos” o instituto da “fraude à lei” constitui um instrumento de justiça da conexão e um limite ético colocado à autonomia privada na modelação do conteúdo concreto dos elementos de conexão”, como ensina Luís de Lima Pinheiro, in "Direito Internacional Privado"- vol. I - pgs. 385. Efectivamente, a aludida testadora não conseguiu a final “defraudar” a lei portuguesa, porque o seu decesso foi muito próximo à tentativa de “defraudação”: — o testamento é de 23 de Junho/2005 e o decesso é de 13 de Setembro/2005...
18.ª - Outro aspecto, muito importante de referir e que foi “afastado” pelo douto Acórdão recorrido, é a defesa da legítima de um filho. Como bem analisou e estudou a douta Sentença da 1.ª Instância (que ora e aqui se pretende fazer “revigorar”, para todos os devidos e legais efeitos...) e como os AA., ora e aqui Recorrentes, articularam na sua p.i., de Fls., o fim da presente acção foi, e é, a defesa da legítima da signatária, a qual, com tantos e tantos testamentos de sua Mãe, é injusta e seriamente afectada. Na verdade,
19.ª - Se vamos atender aos testamentos, a R., ora Recorrida, teria uma quota disponível pelo testamento de 19 de Maio de 2005 e outra quota disponível pelo “testamento brasileiro”, o feito no Consulado-Geral do Brasil, em Lisboa, ora em crise, ou seja, haveria uma deixa testamentária de ¾ (três-quartas) partes da Herança da finada Mãe (de A. e R.)... E, se esta situação não consubstancia uma descarada “fraude à lei” e uma ofensa da “ordem pública internacional”, então não se sabe que “situação…” consubstanciará uma violação de ordem pública internacional...
20.ª - E, não se diga que a referida testadora quis “revogar” os seus testamentos anteriores (portugueses), pois que o que a testadora quis dizer é que revogava os testamentos anteriormente feitos para os bens do Brasil — efectivamente, a mesma testadora já havia feito testamento para os bens do Brasil em que deixava a sua quota disponível aos seus 4 (quatro) netos... Ora, a R., ora e aqui Recorrida, só perante a presente acção é que veio “dizer” que apenas queria a quota disponível portuguesa, pois que, anteriormente e em família, sempre disse que tinha direito às duas e, como tal, queria proceder. E, por fim, o douto Acórdão recorrido violou frontalmente o disposto nos Arts. 21.º, 22.º, 64.°, 65.°, 2159.° e 2186.°, todos do nosso Código Civil.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São as seguintes as questões que importa apreciar e decidir, indelevelmente imbrincadas, e que serão tratadas em conjunto:
a) Validade (ou invalidade) formal do testamento público realizado pela falecida mãe da 1.ª autora e da ré, em 23/06/2005, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa.
b) Verificação da eventual ocorrência de fraude à lei e/ou de violação da ordem pública na feitura daquele testamento.
DE FACTO
Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
I. Autora e ré são as únicas filhas de EE e DD (1).
II. DD apenas teve a nacionalidade portuguesa e sempre residiu em Portugal, tendo nascido em …/…/19… na freguesia e concelho de …, sendo filha de FF e HH (5).
III. E veio a casar em …/…/19… com EE (falecido em …/…/20…), tendo falecido em ../…/20…, tendo residência habitual há décadas na Rua ..., n.° …, na freguesia de …, no Porto (6).
IV. A falecida efectuou em 09/03/1994, no extinto 6.º Cartório Notarial do Porto, o “testamento” cuja certidão se encontra a fls. 178 a 181 dos autos e nos exactos termos em que aí consta, que são, entre o mais, o seguinte:
“Institui herdeiro da quota disponível aquele seu marido [...]; se, porém, este lhe não sobreviver, então institui herdeira da mesma quota disponível sua filha CC [...]” (2).
V. Efectuou igualmente em 17/05/2005, no 4.º Cartório Notarial do Porto, o “testamento” cuja certidão se encontra a fls. 182 a 184 dos autos e nos exactos termos em que aí consta, que são, entre o mais, o seguinte:
“Institui herdeiro da quota disponível da sua herança, sua filha, CC [...]” (3).
VI. Efectuou ainda em 23/06/2005, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, o “testamento público” cuja cópia certificada se encontra a fls. 185/186 dos autos e nos exactos termos em que aí consta, que são, entre o mais, o seguinte:
“[...] perante mim [...] Cônsul-Geral, compareceu como outorgante testadora, DD [...]. E [...] pela outorgante [...] me foi dito, [...] que de sua livre e espontânea vontade, decide fazer o seu testamento e disposição de última vontade, revogatória de qualquer outro anterior feito, como de facto, pela presente escritura e na melhor forma de direito, ora o faz, declarando o seguinte: [...] que de acordo com o acima exposto e respeitando o disposto no art. 1846 do CCB, ou seja, a parte legítima de suas filhas, e, podendo, portanto, dispor da metade do seu património, a chamada parte disponível, pelo presente testamento, a outorgante testadora quer e determina que após o seu falecimento a parte disponível de seu património no Brasil, ou seja, 1/3 (hum terço) dos prédios e respectivos terrenos situados na Rua … n° … e …, bem como todos e quaisquer bens móveis, imóveis, semoventes, conta-correntes, poupanças, aplicações financeiras, acções e outros, fiquem para a sua filha CC [...]. Assim o disse na presença das [duas] testemunhas, do que dou fé [...]. Certifico e dou fé, por haverem sido fielmente observadas todas as solenidades e formalidades especificadas no art. 1864 do CCB. Em fé do que escrevi e assino em público com a outorgante testadora, e as testemunhas, e faço selar com o selo de armas deste Consulado-Geral do Brasil em Lisboa” (4).
VII. No Manual de Serviço Consular e Jurídico, da Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior do Ministério das Relações Exteriores do Brasil consta, nomeadamente:
Capitulo 2.°, Secção l.ª, 2.1.7, “As funções consulares são: [...] e) prestar ajuda e assistência aos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas do Estado que envia; f) agir na qualidade de notário e oficial de registro civil e exercer funções similares, assim como outras de caráter administrativo, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor” (7).
VIII. Consta ainda no Capitulo 4.°, Secção l.ª, 4.1.5, “Somente os brasileiros e os portadores de carteira Registro Nacional de Estrangeiros – RNE válida podem valer-se dos serviços de natureza notarial e de registro civil prestados pelas Repartições Consulares brasileiras, com exceção do reconhecimento de firmas de tabeliões estrangeiros, de portadores de carteira Registro Nacional de Estrangeiros-RNE válida e da autenticação de documentos expedidos por órgãos oficiais na jurisdição do Posto” (8).
DE DIREITO
A) Validade (ou invalidade) formal do testamento público realizado pela falecida mãe da 1.ª autora e da ré, em 23/06/2005, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa.
O pedido da presente acção – e que, ao cabo e ao resto, motiva a interposição deste recurso de revista, ponderando a solução suportada pelo acórdão recorrido –, consiste, essencialmente, na obtenção da anulação ou declaração de nulidade do testamento que DD, a falecida mãe da 1.ª autora e da ré, efectuou no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, em 23/06/2005, nomeadamente por ter sido lavrado contra a lei e em fraude à lei ao pretender dispor do valor de duas diferentes quotas disponíveis: a portuguesa e a brasileira.
As instâncias decidiram em sentidos diametralmente opostos, como facilmente se alcança da leitura das respectivas decisões.
Para a 1.ª Instância, a situação descrita configura um caso de ineficácia daquele testamento (e não de nulidade ou de anulabilidade), na ordem jurídica portuguesa, quer por conformar, por um lado, uma situação de fraude à lei – art. 21.º do CC –, quer por se traduzir, por outro lado, na violação das normas de protecção conferidas aos herdeiros legitimários nacionais – cf. arts. 2159.º, n.º 2, e 2156.º, ambos do CC –, as quais plasmam um princípio de ordem pública internacional – art. 22.º do CC (cf. fls. 277 a 289).
Para a Relação, diversamente, não sendo aquele testamento nulo por qualquer vício formal, nem ocorrendo obstáculos formais à sua eficácia em Portugal, igualmente não se regista qualquer situação de violação dos dispositivos insertos nos arts. 21.º e/ou 22.º do CC, sendo certo que a lei substantiva aplicável à sucessão da falecida mãe das 1.ª autora e da ré é a lei portuguesa – seja segundo as normas de conflitos portuguesas – arts. 25.º, 31.º, n.º 1, e 62.º, todos do CC –, como de acordo com as normas de conflitos brasileiras – art. 10.º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 04/09/1942 – Lei de Introdução às normas de Direito Brasileiro.
Refere-se no acórdão recorrido, além do mais, a propósito da (eventual) ofensa à legítima (segundo a lei portuguesa), que “(…) quer os tribunais do Brasil (em eventual inventário que lá seja instaurado), quer o tribunal português (no inventário que já está instaurado), vão aplicar, quanto à legítima, as regras das sucessões do direito português, o qual dispõe, neste caso de existência de duas filhas, não sobrevivendo cônjuge à testadora, que a legítima é de dois terços (art. 2159 do CC)”.
E, mais adiante: “Qual a consequência de a testadora ter feito uma disposição que faz referência à lei brasileira, em que a parte indisponível é de apenas ½? (Art. 1.845 do CCB: São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Art. 1.846 do CCB: Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima).
A consequência é apenas a de, se tal deixa se concretizar numa ofensa à legítima, ou seja, numa liberalidade inoficiosa, ela ter de ser reduzida, se o outro herdeiro o requerer, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (arts. 2168 a 2170, ambos do CC – e o direito brasileiro tem disposições paralelas nos arts. 1.966 a 1.968 do CCB)” (cf. fls. 478 verso, pág. 10 do acórdão).
Em consonância considerou-se que “(…) não há razão para, neste momento (neste processo), se falar de um testamento que ofende a legítima.
Caso se apure, em inventário – cuja relação terá de englobar todos os bens da herança (inclusive os situados no Brasil, ao menos para se calcular a legítima) – que o testamento se traduz numa liberalidade inoficiosa (numa ofensa à legítima) então, a requerimento da filha prejudicada, ter-se-á de proceder à redução da liberalidade” (cf. fls. 479, pág. 11 do acórdão).
A seguir, a propósito do art. 21.º do CC (“Fraude à lei”), refere-se no acórdão sob recurso, “(…) a situação dos autos não se subsume [a]o art. 21 do CC porque com o facto de a falecida ter ido testar no Consulado do Brasil não criou nenhuma situação de facto que evitasse a aplicação da lei portuguesa. O que resulta claramente do que já se disse atrás, pois que a lei aplicável (à sucessão) continua a ser a lei portuguesa”.
(…) “O art. 21 do CC aplicar-se-ia, sim, se a falecida se tivesse tornado brasileira para poder ter uma quota disponível maior. Aí sim, ela teria criado uma situação que levaria ao afastamento da lei portuguesa que, se não o tivesse feito, seria a lei aplicável” (idem, fls. 479).
Por fim, em breve alusão ao art. 22.º do CC (“Ordem pública”) afastou a aplicação da norma em apreço, sem se alongar em grandes considerações, rechaçando, basicamente, a invocação, por banda da recorrente, e da própria sentença, de algumas decisões de tribunais superiores (cf. fls. 480 e verso, págs. 13 e 14 do acórdão).
Por tudo isso, decidiu o acórdão recorrido, a final: “(…) julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida e em sua substituição julga-se a acção improcedente e absolve-se a ré do pedido” (cf. fls. 482, pág. 17 do acórdão).
Com o devido respeito, o acórdão recorrido afigura-se-nos algo complexo na sua formulação, estrutura e desenvolvimento, e a solução final a que chega não se antolha, de todo, a mais adequada e conforme à legislação aplicável, como se irá demonstrar subsequentemente.
Sempre se adianta que o caso apreciado tem contornos assaz curiosos e não muito debatidos nos tribunais superiores: deparamo-nos com uma situação em que foram outorgados, sucessivamente, por uma mesma pessoa, de nacionalidade portuguesa e residente em Portugal, três testamentos, os dois primeiros em Cartórios Notariais portugueses – concretamente em 09/03/1994 e 17/05/2005 – e o terceiro, e último, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, sito em Lisboa, transcorrido pouco mais de um mês relativamente ao segundo testamento – especificamente em 23/06/2005 – atinente aos bens da testadora sitos naquele país e com referência à lei brasileira.
Situamo-nos, pois, perante uma situação jurídico-privada internacional, que põe em contacto duas ordens jurídicas diversas – a portuguesa e a brasileira –, havendo que aplicar as normas de conflitos de leis, de acordo com os princípios do Direito Internacional Privado (DIP) português, a fim de indagar qual a lei aplicável para decidir, desde logo, a questão da validade do último testamento feito por DD (falecida mãe da 1.ª autora e da ré), no Consulado-Geral do Brasil, em Lisboa.
Recorda-se, antes de avançar, que o STJ não está vinculado por qualquer qualificação jurídica antes operada pelas instâncias, sendo livre nessa tarefa, ex vi do estatuído no art. 664.º do CPC, tratando-se a questão decidenda de matéria de carácter eminentemente de direito.
Em termos gerais, no âmbito do direito interno material, a qualificação jurídica é a operação pela qual se procura definir o tipo ou categoria jurídica que a norma contempla, consistindo em procurar determinar, de entre as várias normas, qual é aquela que estabelece o regime ou disciplina jurídica adequada à situação factual apresentada para resolver.
No âmbito do DIP, por seu turno, a qualificação assume uma dupla acepção: a) numa acepção lata, resolve os problemas de interpretação e aplicação da norma de conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico-jurídicos utilizados na sua previsão; b) numa acepção restrita, a qualificação, por sua vez, “é tradicionalmente concebida como a operação pela qual se subsume uma situação da vida, ou um seu aspecto, no conceito técnico-jurídico utilizado para delimitar o objecto da remissão”.[3]
A qualificação em DIP tem de ter em conta dois níveis – o do Direito material e o do Direito de Conflitos – e a pluralidade de ordens jurídicas em presença.[4]
In casu, cumpre proceder à determinação da lei aplicável, perante as normas de conflitos do ordenamento jurídico português, às sucessões por morte e, mais especificamente, à sucessão testamentária.
De acordo com Baptista Machado: “Pelo que respeita à determinação do estatuto sucessório básico ou estatuto sucessório tout court, deve partir-se da consideração que hoje prevalece por quase toda a parte, no plano do direito material, a ideia de que a devolução de todos os elementos da herança deve ser submetida às mesmas regras, de acordo com a noção romanista de que a sucessão opera a transmissão de uma universalidade jurídica. Mas nem sempre assim foi: nos direitos germânicos e no direito anglo-americano a sucessão nos móveis era submetida a regras diferentes daquelas que presidiam à sucessão nos imóveis, mesmo no plano do direito material. E é isto que ainda hoje sucede em alguns dos Estados que compõem os USA”.[5]
Na mesma linha, Luís de Lima Pinheiro explicita: “A tradição estatutária, apesar de algumas hesitações, saldou-se por um fracionamento da sucessão por morte entre sucessão imobiliária, submetida à lex rei sitae, e sucessão mobiliária, regida pela lei do domicílio do autor da sucessão. Estas soluções são ainda hoje seguidas por vários sistemas nacionais, como é o caso do francês, inglês e dos EUA. Diferentemente, Savigny defendeu a unidade da lei aplicável à sucessão, mediante a aplicação da lei pessoal do autor da sucessão, que era na sua construção a lei do domicílio. Esta concepção evita as dificuldades do fracionamento quanto à repartição do passivo da herança e traduz, ao nível do Direito de Conflitos, o princípio romanístico da universalidade da sucessão. A aplicação da lei pessoal ao conjunto da sucessão também corresponde à proeminência dos interesses do autor da sucessão e da respectiva família nesta matéria”.[6]
Vasco Taborda Ferreira sustentava, também, que: “A lei competente – a lei nacional do de cujus – é aplicável, em princípio, a todas as fases do fenómeno sucessório. Admitimos, com a melhor doutrina, que o direito português consagra o princípio da unidade e universalidade da herança”.[7]
Coerentemente, o legislador português seguiu, nos arts. 25.º e 62.º do CC, esta concepção, mandando aplicar à sucessão por morte a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, sendo essa lei pessoal, segundo o art. 31.º, n.º 1, do CC, a lei da nacionalidade do indivíduo.
Seguindo, novamente, Luís de Lima Pinheiro: “Esta regra é aplicável tanto à sucessão legal, legítima ou legitimária, como à sucessão voluntária, em que os herdeiros podem ser instituídos por testamento ou por pacto sucessório”.[8]
É sabido que a sucessão mortis causa distingue-se em sucessão legal e sucessão voluntária, conforme o título ou fonte da vocação seja a lei ou o negócio jurídico – cf. art. 2026.º do CC.[9] Especificamente, da conjugação da morte do autor da sucessão com um facto designativo não negocial – certas situações jurídicas a que a lei atribui relevância, como o vínculo do casamento ou de parentesco – ou com um facto designativo negocial – a própria vontade expressa pelo autor da sucessão, dentro dos limites legais, num testamento ou contrato –, resulta, para determinadas pessoas, a atribuição do direito potestativo de aceitar ou repudiar a sucessão (ius delationis) nos direitos e obrigações do de cuius que não se extinguem por morte deste – art. 2025.º do CC.
Detendo-nos na sucessão voluntária esta compreende duas espécies, a sucessão testamentária – arts. 2179.º e segs. – e a sucessão contratual – art. 2028.º -, consoante a declaração de vontade é unilateral ou bilateral, sendo certo que o testamento – negócio jurídico unilateral pelo qual uma pessoa dispõe dos seus bens para depois da sua morte –, é a modalidade que maior relevância assume na sucessão voluntária.
Na situação analisada, o testamento, cuja invalidade é pedida nestes autos, foi celebrado, como já antes se frisou, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, havendo que atentar no que dispõe, desde logo, o DL n.º 48295, de 27/03/68, que aprovou para adesão a Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18/04/61.
“Os postos consulares são serviços de natureza administrativa de um Estado instalados noutro, através dos quais são realizadas tarefas que “no essencial visam a protecção dos interesses do Estado que envia e dos seus nacionais””. Um Consulado forma, por conseguinte, uma representação de um Estado estrangeiro, constituindo os actos que ele pratica, quer se insiram no ius imperii, quer no plano do direito privado, actos do próprio Estado representado. [10]
Segundo o regulamentado pelo art. 5.º, al. a), da Convenção sobre Relações Consulares, concluída em Viena em 24/04/63, aprovada, para adesão, pelo DL n.º 183/72, de 30/05, as funções consulares consistem (no que aqui releva considerar) em: “a) Proteger no Estado receptor os interesses do Estado que envia e dos seus nacionais, pessoas singulares ou colectivas, dentro dos limites permitidos pelo direito internacional”; “f) Agir na qualidade de notário de conservador do registo civil e exercer funções similares, assim como certas funções de carácter administrativo, desde que não contrariem as leis e os regulamentos do Estado receptor”; e “g) Salvaguardar os interesses dos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, do Estado que envia, nos casos de sucessão verificados no território do Estado receptor, de acordo com as leis e os regulamentos do Estado receptor”.[11]
De resto, como resulta do elenco dos factos provados, no Manual de Serviço Consular e Jurídico, da Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, consta, nomeadamente: Capitulo 2.°, Secção l.ª, 2.1.7, “As funções consulares são: [...] e) prestar ajuda e assistência aos nacionais, pessoas físicas ou jurídicas do Estado que envia; f) agir na qualidade de notário e oficial de registro civil e exercer funções similares, assim como outras de caráter administrativo, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do Estado receptor”. Mais constando, no Capitulo 4.°, Secção l.ª, 4.1.5, que: “Somente os brasileiros e os portadores de carteira Registro Nacional de Estrangeiros – RNE válida podem valer-se dos serviços de natureza notarial e de registro civil prestados pelas Repartições Consulares brasileiras, com exceção do reconhecimento de firmas de tabeliões estrangeiros, de portadores de carteira Registro Nacional de Estrangeiros-RNE válida e da autenticação de documentos expedidos por órgãos oficiais na jurisdição do Posto”.
Acresce, de outra banda, que segundo o art. 4.º, n.º 2, al. a), do Código do Notariado português – aprovado pelo DL n.º 207/95, de 14/08 – compete ao notário, em especial, lavrar testamentos públicos, instrumentos de aprovação, depósito e abertura de testamentos cerrados e de testamentos internacionais. [12]
É assim altamente duvidoso que o Cônsul brasileiro tivesse competência para praticar o acto que praticou, embora esse aspecto não venha questionado, directamente, nas conclusões desta revista, não nos cabendo imiscuir em tal conspecto, sendo correctas as considerações da sentença da 1.ª Instância ao exarar que “apenas poderemos apreciar a eficácia do acto para efeitos da sua aplicabilidade no nosso país e não a sua validade intrínseca absoluta (nulidade ou anulabilidade), o que caberá aos órgãos jurisdicionais do Estado onde foi praticado o mesmo” (fls. 286).[13]
Fechado este parêntesis, acentua-se que “em matéria de sucessão voluntária – como explica Baptista Machado –, e tendo em conta a possível mudança da lei pessoal do autor da sucessão, temos que considerar dois estatutos: o estatuto sucessório primário, a que chamaremos simplesmente «estatuto da sucessão», e o outro, pelo qual se regem certas questões relativas à validade das disposições por morte a que chamaremos brevitatis causa, «estatuto da disposição».” E, continua o mesmo autor, reportando-se ao testamento, que “formalmente, o testamento se apresenta como negócio jurídico completo logo após a sua celebração. Substancialmente, porém, ele só se torna tal com a morte do testador: só neste momento ele se torna juridicamente eficiente, só neste momento as disposições nele contidas se tornam como que juridicamente relevantes.”[14] Isto mesmo é corroborado por Luís de Lima Pinheiro: “Relativamente à validade substancial das disposições por morte trata-se de um estatuto suspenso, visto que pode mudar a lei pessoal entre a celebração do acto e a morte. Só à data da abertura da sucessão se pode determinar a lei aplicável e saber ao certo se a disposição por morte é ou não válida. Naturalmente será irrelevante a mudança da lei pessoal caso se verifiquem os pressupostos da fraude à lei”.[15]
Por conseguinte, a questão do estabelecimento da lei (substantiva) aplicável à validade ou invalidade do testamento, tratando-se de uma situação que põe em contacto as ordens jurídicas portuguesa e a brasileira ter-se-á de resolver, à míngua da existência de qualquer convenção internacional em contrário, vinculativa da República Portuguesa, no quadro das normas de DIP do ordenamento jurídico português que antes se indicaram.
Ou seja, a lei nacional do autor da sucessão regula tudo o que respeita ao fenómeno sucessório, incluindo a vocação dos sucessíveis e a devolução da herança.[16]
Do art. 64.º do CC – atinente à interpretação das disposições testamentárias; falta e vícios da vontade – deflui que é a lei pessoal do autor da herança ao tempo da declaração que regula: “a) A interpretação das respectivas cláusulas e disposições, salvo se houver referência expressa ou implícita a outra lei; b) A falta e vícios da vontade; c) A admissibilidade de testamentos de mão comum ou de pactos sucessórios, sem prejuízo, quanto a estes, do disposto no art. 53.º ”.[17]
No que tange à forma das disposições por morte, expressa o art. 65.º do CC, que essas disposições, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local (n.º 1). Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada (n.º 2).
A lei prevê, neste preceito legal, uma pluralidade de leis substantivas potencialmente aplicáveis à forma das disposições por morte, incluindo aquelas que são objecto de testamento, sob a motivação de favorecimento da sua validade formal. O limite à referida pluralidade ocorre no caso de a lei pessoal do autor da herança exigir, em relação às disposições mortis causa, ainda que elas ocorram no estrangeiro, sob pena de nulidade, determinada forma.[18]
Acerca deste normativo, Marques dos Santos escreveu: “Em matéria de forma das disposições por morte, o artigo 65.º, n.º 1, do Código Civil Português estabelece assim uma conexão alternativa, nos termos da qual o testamento será formalmente válido se corresponder às prescrições de uma qualquer das quatro leis aí indicadas: a) lei do lugar onde o acto for celebrado; b) lei pessoal do autor da herança no momento da declaração c) lei pessoal do autor da herança no momento da morte; d) lei para que remeta a norma de conflitos da lei local, isto é, da lei indicada em a), se, por hipótese, ela se não considerar competente.
Há aqui, consabidamente uma nítida preocupação de justiça material, uma ideia de favor negotii (aqui favor testamenti), na acepção de favor validitatis, tendente a favorecer a validade formal das disposições por morte, segundo o princípio ut res magis valeant quam pereant”.[19]
Ora, como a mãe das 1.ª autora e da ré, DD, tinha, ao tempo do seu decesso, exclusivamente a nacionalidade portuguesa, é a lei portuguesa a aplicável ao envolvente fenómeno sucessório dele derivado, tal como já antes ficou demonstrado, designadamente no que se reporta à validade formal do testamento – cf., arts. 25.º, 31.º, n.º 1, 62.º e 65.º do CC.
O art. 65.º, n.º 1, do CC, como se vê, salvaguarda a aplicação, no que concerne a matéria de forma e de formalidades, da lei da nacionalidade do autor da sucessão – aqui, evidentemente, a lei portuguesa –, constituindo o testamento o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da (sua) morte, de todos os seus bens ou de parte deles – art. 2179.º, n.º 1, do CC.
Quanto à forma exigida, a lei portuguesa estabelece, por um lado, que o testamento é público ou cerrado, o primeiro escrito pelo notário no seu livro de notas, e o último o escrito e assinado pelo testador ou por outra pessoa a seu rogo (ou escrito por outra pessoa a rogo do testador e por este assinado), e, por outro, que o testamento cerrado deve ser aprovado por notário nos termos da lei do notariado, sob pena de nulidade – art. 2206.º, n.º 1, do CC. Por fim, o testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido respeitada uma forma solene na sua feitura ou aprovação – art. 2223.º do CC.
Dimana do narrado que existem exigências de forma que não se confundem com os requisitos de índole substantiva – atinentes ao “conteúdo do testamento”- conducentes, designadamente, à afirmação dos concretos direitos dos interessados no processo de inventário, e que, estando em causa um testamento lavrado no estrangeiro, tais exigências e requisitos devem igualmente verificar-se.[20] Assim, os testamentos feitos por portugueses no estrangeiro só produzem efeitos em Portugal se tiver sido observada a forma solene na sua feitura ou aprovação, como antes afirmámos. Esse carácter solene, que a lei exige do acto testamentário, traduz-se na intervenção da entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposição de última vontade, seja na aprovação por mera delibação das disposições lavradas pelo declarante – é, por conseguinte, a intervenção do oficial público com funções notariais que constitui a “marca de água” de autenticidade e solenidade exigida nos arts. 65.º e 2223.º do CC.[21]
De resto – e embora tal referência não seja necessária perante o DIP português aplicável[22] –, é de acentuar que a própria norma de conflitos do direito brasileiro milita inequivocamente pela aplicação da lei portuguesa, tal qual decorre do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 04/09/1942 – Lei de Introdução às normas de Direito Brasileiro –, que contempla a regra geral de que a lei competente para regular as sucessões por morte é a lei do domicílio que a pessoa tinha ao falecer, a qual se aplica aos seus bens qualquer que seja a sua natureza e situação.[23]
Como se disse já, o art. 2223.º do CC português refere-se à forma externa exigida para o testamento lavrado por cidadão português em país estrangeiro. A solução adoptada no preceito respeita o velho princípio de que é a lei do lugar onde o acto se realiza que compete regular a sua forma externa (locus regit actum). Assim, como requisito mínimo de obediência às leis do país onde o testamento se destina a produzir efeitos, não se prescindiu da necessidade dele respeitar o carácter solene que a lei portuguesa exige.
Por conseguinte, à luz do art. 65.º, n.º 1, do CC, que remete, pois, para a lei portuguesa, o testamento analisado é, em princípio, válido, quanto à forma, por corresponder a uma das modalidades formais de celebração previstas no direito português: o testamento público (art. 2205.º do CC).[24]/[25]
Por fim, de harmonia com Guilherme de Oliveira, de cuja posição nos aproximamos, “ainda não se encontrou uma solução inequívoca para a questão de saber quais são as exigências formais que a lei impõe aos cidadãos portugueses que queiram fazer testamento no estrangeiro, de acordo com a lei local”.
E, continua: “O Código de 1966 ocupou-se do problema nos arts. 65.º e 2223.º, mas sem ter logrado terminar toda a discussão. O art. 2223.º condiciona a eficácia do testamento feito por um português no estrangeiro, e de acordo com a lei estrangeira, à circunstância de «ter sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação»”.
Acabando por concluir: “Inclino-me para pensar que o legislador ditou o art. 2223.º não apenas para evitar a eficácia de algum raro testamento oral, mas sim para impor sistematicamente a exigência portuguesa da utilização de forma escrita com a intervenção de um notário ou oficial equivalente”.[26]
Destarte, porque o testamento em apreço teve intervenção de entidade dotada de fé pública (sem prejuízo do que se assinalou supra), não padece de qualquer invalidade formal, perante o estatuído no art. 2223.º do CC.
B) Verificação da eventual ocorrência de fraude à lei e/ou de violação da ordem pública na feitura daquele testamento.
Questão diversa, porém, é a da eficácia daquele testamento no ordenamento jurídico português, ponderando o seu conteúdo substancial.
A interpretação do testamento, de acordo com as normas de conflitos aqui invocáveis, deve fazer-se segundo a regra de direito português aplicável – cf. art. 64.º, al. a) (e, também, art. 35.º, n.º 1), do CC –, dispondo o art. 2187.º, n.º 1: “Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento”.
Assim, ao interpretar-se um testamento deve procurar-se, em primeira linha, o apuramento da vontade real e contemporânea do testador, de harmonia com o texto ou contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que puder obter-se desde que o resultado encontre no contexto do testamento analisado um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, proibindo o n.º 2 daquele preceito legal que, com o recurso a prova complementar do testamento, se ultrapasse o processo de interpretação, para operar o que seria verdadeira alteração ou modificação informal do próprio testamento.
Isto dito, é por demais evidente que a falecida, ao outorgar o testamento que aqui se debate, procurou sujeitar o seu património – e futuro acervo hereditário – existente no Brasil às disposições do direito interno brasileiro. É isso que emerge, sem margem para quaisquer dúvidas, do segmento principal daquele testamento, onde ficou consignado: “(…) respeitando o disposto no Artigo 1846 do Código Civil Brasileiro, ou seja, a parte legítima de suas filhas, e, podendo, portanto, dispor da metade de seu património, a chamada parte disponível, pelo presente testamento, a Outorgante Testadora, quer e determina que após o seu falecimento a parte disponível do seu património no Brasil, ou seja, 1/3 (hum terço) dos prédios e respectivos terrenos situados na Rua ... n.º … e .., bem como todos e quaisquer bens móveis, imoveis, semoventes, conta-correntes, poupanças, aplicações financeiras, acções e outros, fiquem para sua filha CC (…)”.
Cumpre clarificar que o facto da testadora ter elaborado três testamentos, em momentos temporais distintos, é, em abstracto, perfeitamente legal; na verdade, “o testador, até ao último momento da sua vida, é livre de revogar o testamento e, assim, afastar quaisquer sucessíveis nele designados”.[27]
Nestes termos, nada impede na lei que uma pessoa faça vários testamentos, podendo revogar ou não expressamente o(s) anterior(es) se e na medida em que com aquele for incompatível – cf., em especial, os arts. 2311.º, 2312.º e 2313.º, n.º 1, do CC.
Contudo, importa atentar na circunstância da testadora, que sempre foi de nacionalidade portuguesa, não tendo qualquer relação com o Brasil – a não ser a circunstância de ser proprietária de alguns bens sitos naquele país –, ter-se deslocado deliberadamente ao Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, para exarar o testamento de 23/06/2005, pretendendo com aquele testamento que fosse aplicada a lei brasileira, quanto aos bens ali situados, de modo a dispor de uma maior quota disponível do que seria permitida pela sua lei pessoal, aqui aplicável – cf. os já citados arts. 25.º, 62.º e 31.º, n.º 1, do CC.
Com efeito, e como se viu aprofundadamente, da primeira parte do art. 62.º decorre que é à lei pessoal do autor da sucessão que cabe regular não só a vocação sucessória e a devolução da herança, como tudo o que diz respeito ao fenómeno sucessório (só pelo que respeita à capacidade de disposição, à interpretação, falta e vícios da vontade e forma dos testamentos, os artigos seguintes estabelecem alguns esclarecimentos ou aditamentos).[28]
Na sentença da 1.ª Instância aduziu-se que a situação em análise é subsumível à figura da fraude à lei, proclamada no art. 21.º do CC; diversamente, no Acórdão sob recurso afastou-se a sua ocorrência.
Para a doutrina clássica, de acordo com as palavras de Ferrer Correia, a hipótese de fraude à lei consiste em “para se furtar a determinada proibição ou prescrição da lei competente, um indivíduo faz surgir a situação de facto ou de direito que torna automaticamente aplicável outra lei”.[29]
Enuncia o mesmo autor que “tanto o instrumento da fraude, como o objecto da fraude são normas de conflitos de leis. O objecto da fraude é a norma de DIP (ou a parte da norma, já que as regras de conflitos designam a respectiva consequência jurídica por forma genérica) que designava como competente a lei de que o interessado pretendeu evadir-se. O instrumento da fraude, a norma ou a parte da norma de DIP que passou a designar como aplicável outra lei: a lei que o interessado pretendeu acolher-se”.[30]
Concretiza Luís de Lima Pinheiro: “No Direito de Conflitos Internacional Privado [a fraude à lei] trata-se geralmente de alcançar o resultado que a norma proibitiva visa evitar, mas a manobra defraudatória consiste no afastamento da lei que contém essa norma proibitiva, na «fuga de uma ordem jurídica para outra»”.
Por outro, lado, continua, “quanto à tipologia da fraude à Lei em Direito de Conflitos podemos distinguir a manipulação do elemento de conexão e a internacionalização fictícia de uma situação interna. No primeiro caso, para afastar a lei normalmente competente, o agente da fraude vai modelar o conteúdo do elemento de conexão. (…) No segundo caso, para afastar o Direito material vigente na ordem jurídica interna, que é o exclusivamente aplicável a uma situação interna, estabelece-se uma conexão com um Estado estrangeiro, por forma a desencadear a aplicação do Direito estrangeiro”.[31]
Os elementos da fraude à lei são, consequentemente, dois: um elemento objectivo e um elemento subjectivo.
O elemento objectivo “consiste na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna”; o elemento subjectivo (ou volitivo), “consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma imperativa que seria normalmente aplicável. É necessário dolo, não há fraude por negligência. O dolo incide sobre a modelação do conteúdo concreto do elemento de conexão ou sobre a internacionalização fictícia da situação interna”.[32]
Concorda-se, por isso, com a decisão da 1.ª Instância, ao apelar à aplicação do instituto da fraude à lei, plasmado no art. 21.º do CC (cf. fls. 288), pois não se pode deixar de considerar que foi esta a situação que se analisa, uma vez que a testadora nenhuma relação tinha com o Brasil, a não ser possuir aí alguns bens, o que não assume relevância de conexão que justifique qualquer excepção à aplicação da lei portuguesa, mormente por via do n.º 2 do art. 31.º do CC.
Com efeito, é inaceitável que um cidadão português, residente em Portugal, se desloque a um país estrangeiro ou a um consulado de um país estrangeiro em Portugal, para aí lavrar testamento segundo a lei desse Estado (elemento objectivo), porquanto essa atitude voluntária e intencional (elemento subjectivo) afronta directamente com a sua lei pessoal, a portuguesa, que é a reguladora da sua sucessão por morte.[33]
Na verdade, ao recorrer a esta via, a testadora conseguiria dispor de uma deixa testamentária correspondente a ½ do seu património existente no Brasil, a favor da aqui ré, à luz do art. 1846.º do CCB[34], ludibriando a sua lei pessoal, a portuguesa, em que a quota disponível é, no caso vertente, de 1/3, uma vez que a legítima equivale a 2/3 da herança, sendo essa a porção intangível de que o testador jamais pode dispor, por estar legalmente destinada aos seus herdeiros legitimários, ex vi dos arts. 2159.º, n.º 2, e 2156.º ambos do CC.
Aduz Jorge Duarte Pinheiro: “A legítima é uma quota da herança, como resulta dos arts. 2158.º a 2161.º (o legitimário tem o direito a dois terços, metade ou um terço da herança). E é uma quota da herança automaticamente deferida por lei no momento da morte do de cuius, como decorre do art. 2178.º - o legitimário é chamado à herança antes da propositura da acção de redução – e da existência de uma vocação legitimária autónoma. O legitimário é, enquanto tal, chamado à herança independentemente da vontade do autor da sucessão. Se este deixa àquele em testamento uma quota da herança, imputável na legítima, não lhe atribui a legítima; a legítima é atribuída por lei. O de cuius concede-lhe algo mais: a possibilidade de adquirir a qualidade de herdeiro testamentário. O sucessível legitimário pode vir a deter simultaneamente dois títulos – o de herdeiro legitimário e o de herdeiro testamentário”. [35]
Distanciamo-nos, por conseguinte, da posição sufragada no acórdão recorrido, maxime quando aí se fez exarar que “a situação dos autos não se subsume no art. 21.º do CC porque com o facto de a falecida ter ido testar no Consulado do Brasil não criou nenhuma situação de facto que evitasse a aplicação da lei portuguesa. O que resulta claramente do que já se disse atrás, pois que a lei aplicável (à sucessão) continua ser a lei portuguesa (…).
O art. 21.º do CC aplicar-se-ia, sim, se a falecida se tivesse tornado brasileira para poder ter uma quota disponível maior. Aí sim, ela teria criado uma situação que levaria ao afastamento da lei portuguesa que, se não o tivesse feito, seria aplicável” (fls. 479).
Salvo o devido respeito, esta solução não é a correcta.
Como se sublinhou anteriormente, a fraude, in casu, traduziu-se na circunstância de a falecida, conhecedora da lei aplicável à sua sucessão em Portugal, e do facto da sua quota disponível, nessa eventualidade, ser inferior à que a lei brasileira lhe permitia dispor – por força da legítima prevista num e noutro ordenamento jurídico –, ter-se deslocado resolutamente ao Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, para aí, submetendo-se à lei brasileira, procurar escapar ao regime legal da sucessão legitimária mais rigoroso do Estado português (em comparação com o do CC Brasileiro).
É nisso que se manifesta a fraude à lei, a qual, notoriamente, se registou na situação estimada, estando preenchidos os elementos objectivo e subjectivo que a caracterizam.
Por seu turno, a consequência da fraude à lei, em DIP, consiste em não se tomar conhecimento da conexão fraudulentamente criada, sendo, então, aplicados os preceitos materiais a que o interessado se pretendia “evadir”.[36] Por conseguinte, “sendo irrelevante a manipulação do elemento de conexão ou a internacionalização fictícia com intuito fraudulento a sanção da fraude consiste em aplicar a lei normalmente aplicável “.
Ou seja, na prática, a sanção da fraude consiste na aplicação da lei portuguesa, que obriga à redução da deixa testamentária, aos limites ali aclamados – cf. o já mencionado art. 2159.º, n.º 2, do CC: “Não havendo cônjuge sobrevivo, a legítima dos filhos é de metade ou dois terços da herança, conforme exista um só filho ou existam dois ou mais” – vigorando o testamento no demais que ali se exarou.[37]
Acresce que não é correcto dizer-se, como indicado no acórdão recorrido, que “não há razão para, neste momento (neste processo), se falar de um testamento que ofende a legítima” (fls. 479).[38]
Com efeito, uma coisa é o cálculo da legítima, a efectuar, em concreto, de acordo com a regra constante do art. 2162.º, n.º 1, do CC – “Para o cálculo da legítima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança” –, e coisa diversa é definir-se num testamento, em abstracto, o valor de uma quota disponível que contende com o valor da legítima, nos moldes que antes se enunciaram: o que releva, em síntese, é que, à face da lei portuguesa, que constitui norma absolutamente imperativa, a testadora jamais poderia dispor, naquele testamento, de ½ do seu património existente no Brasil, porquanto aquela quota afronta o regime jurídico vigente no ordenamento jurídico português e infringe, em concreto, o estatuído no art. 2159.º, n.º 2, do CC (não sendo de recorrer ao preceituado no art. 1846.º do CCB, por inaplicável).
Por último, como se começou por escrever neste acórdão, e já antes sustentámos no nosso Acórdão de 16/10/12[39], há um princípio de unidade e universalidade da herança que impõe que todos os bens dela constantes, situados em território nacional ou no estrangeiro, devem ser considerados na partilha a efectuar, por forma a que possam ser cumpridas as regras da sucessão.
Isso implica, evidentemente, em sede de inventário, a relacionação de todos os bens da herança, seja qual for o local onde eles se encontrem – no país ou no estrangeiro –, ou a sua natureza. Como, então, escrevemos: “O respeito pelos princípios da unidade e da universalidade beneficiam os interessados, só ele assegura o princípio igualitário que deve presidir à partilha, e não se justifica que os mesmos devam ceder perante as razões invocadas de hipotéticas dificuldades de eficácia da partilha efectuada em tribunal português, eventuais demoras no cumprimento das cartas rogatórias ou diferentes critérios de avaliação dos imóveis nos dois países em causa”.[40]
Aliás, esta orientação foi abertamente amparada por Antunes Varela, em anotação ao Acórdão do STJ, de 21/03/85, ao apontar: “Sabendo-se (…) que a lei substantiva aplicável à sucessão do finado, de acordo com a opção do direito português, é a sua lei nacional (arts. 62.º e 31.º, n.º 1, do Código Civil) e não se ignorando, além disso, que o art. 2162.º do Código Civil, ao regular o cálculo da legítima, manda atender, logo à cabeça, em perfeita coerência com a ratio do seu instituto, ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte (onde quer que eles se encontrem situados), não há dúvida nenhuma de que, na determinação da quota disponível, bem como do correlativo apuramento da legítima da única descendente do de cuius, o tribunal necessita de ter em conta o valor dos bens integradores da herança existentes no Brasil”.[41]
Destarte, seria totalmente ilógico admitir a existência de um testamento em que se contempla, em expressa alusão ao art. 1846.º do CC Brasileiro, uma quota disponível de ½ dos bens do de cuius existentes no Brasil (ao lado de um testamento que subsiste em Portugal – lavrado um mês antes, concretamente em 17/05/2005, no 4.º Cartório Notarial do Porto – fazendo alusão à quota disponível (de 1/3) sobre os bens existentes em território nacional), porquanto tal disposição testamentária contraria frontalmente o prescrito no art. 2159.º do CC, ao prever que a legítima dos filhos é de 2/3 da herança, com o argumento arrevesado de que só em sede de inventário se irá calcular (em concreto) o valor da legítima para efeito de eventual redução de inoficiosidades.
A terminar, umas brevíssimas palavras a respeito da ordem pública internacional.[42]
A ordem pública internacional do Estado português é um dos princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações. E nesse princípio, seguramente, se encontra aquele que quer salvaguardar para os filhos, ao menos, uma parte da herança de seus pais.
Decorre do art. 22.º, n.º 1, do CC, que não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa de princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português. Isto é, não serão empregáveis normativos da lei estrangeira que sejam contrários àquele “conjunto de princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”.[43]
“O que interessa, para saber se houve ou não violação da ordem pública internacional, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto”.[44]
In casu, não se antoja que ocorra qualquer violação de princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português que imponha o recurso à norma preconizada no art. 22.º, n.º 1, do CC.
Desde logo, a circunstância da legítima não ter fundamento constitucional constitui um indício relevante no sentido de que não constitui um princípio fundamental da ordem jurídica portuguesa.
Após debater a polémica entre o direito à legítima e a liberdade de testar, Oliveira Ascensão, focando-se no Direito português, tece as seguintes considerações:
“Na hipótese normal, de coexistência dos dois sistemas, o campo reservado a cada um pode variar em limites amplíssimos.
Se se puser todo o realce na realização de finalidades próprias do autor da herança, a protecção dos membros do agregado familiar pode descer até um direito a alimentos à custa da herança ou do herdeiro.
Se pelo contrário se acentuarem os fins familiares, a realização de outros fins pode ficar muito restringida. Pode nomeadamente, num ponto de vista técnico, tornar-se obrigatória a forma do legado para a prossecução destes objectivos, só podendo ser herdeiros aqueles que estejam ligados ao autor da sucessão por vínculos familiares.
À luz da ordem constitucional portuguesa praticamente todas as opções são possíveis. Não é difícil retirar do artigo 61.º, n.º 1, uma garantia constitucional da sucessão voluntária. Mas ressalvados estes limites, ficam abertas ao legislador ordinário as vias mais díspares de solução.
De todo o modo, realiza-se através do sistema sucessório a protecção da família. Havendo legítima, como entre nós se verifica, ela é destinada a essa finalidade.
Mesmo não havendo legítima, ou na parte que pela legítima não é abrangida, não se deve pensar que as considerações familiares se tornam indiferentes. A garantia de uma continuidade familiar continua a ser uma das motivações mais fortes que se põe ao legislador. Pensou-se, porém, ser mais conveniente atribuir ao de cuius a escolha definitiva; deixando-se ainda o esquema supletivo da sucessão legítima, como que a lembrar a ordem que ao legislador pareceu a mais adequada.
O Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, é marcado pela hostilidade à família de sangue. Muitas das alterações traduzem-se portanto no agravamento da situação desta. Deixa de haver também qualquer protecção sucessória da família legítima. E leva-se para além de toda a razoabilidade a tutela sucessória do cônjuge sobrevivo”.[45]
Louvando-nos nestes ensinamentos, apenas acrescentaremos que, nessa medida, não é o facto da lei brasileira contemplar uma legítima de 1/2 dos bens da herança, enquanto que a lei portuguesa, in casu, contempla uma legítima de 2/3, que converte a situação num caso de violação da ordem pública internacional, susceptível de cair na alçada do art. 22.º do CC.
Por conseguinte, o recurso irá proceder, mas apenas e tão só, por se considerar que ocorre, na situação vertente, um episódio de fraude à lei, nos precisos termos a que antes aludimos.
- Em face de uma situação jurídico-privada internacional, que põe em contacto duas ordens jurídicas diversas, há que aplicar as normas de conflitos de leis, de acordo com os princípios do Direito Internacional Privado (DIP) português, a fim de indagar, designadamente, qual a lei aplicável para decidir a questão da validade de um testamento feito por uma cidadã portuguesa, residente em Portugal, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, referente ao seu património sito neste país.
- O legislador português manda aplicar à sucessão por morte a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste – cf. arts. 25.º e 62.º do CC –, sendo essa lei pessoal, segundo o art. 31.º, n.º 1, do CC, a lei da nacionalidade do indivíduo.
- A lei nacional do autor da sucessão regula tudo o que respeita ao fenómeno sucessório, incluindo a vocação dos sucessíveis e a devolução da herança.
- Considerando, em concreto, que a mãe da 1.ª autora e da ré tinha, ao tempo do seu decesso, exclusivamente a nacionalidade portuguesa, é a lei portuguesa a aplicável ao envolvente fenómeno sucessório dele derivado, designadamente no que se reporta à validade formal do testamento – cf. arts. 25.º, 31.º, n.º 1, 62.º e 65.º do CC.
- O art. 65.º, n.º 1, do CC contempla uma pluralidade de leis substantivas potencialmente aplicáveis à forma das disposições por morte – incluindo aquelas que são objecto de testamento –, sob a motivação de favorecimento da sua validade formal. O n.º 2 do mesmo preceito prevê um limite à referida pluralidade, no caso de a lei pessoal do autor da herança exigir, em relação às disposições mortis causa, determinada forma, ainda que elas ocorram no estrangeiro, sob pena de nulidade.
- O art. 2223.º do CC refere-se à forma externa exigida para o testamento lavrado por cidadão português em país estrangeiro, adoptando uma solução que respeita o princípio de que é a lei do lugar onde o acto se realiza que compete regular a sua forma externa (locus regit actum), não prescindindo que o testamento revista o carácter solene que a lei portuguesa exige.
- Num testamento em que ficou exarado: “(…) respeitando o disposto no Artigo 1846 do Código Civil Brasileiro, ou seja, a parte legítima de suas filhas, e, podendo, portanto, dispor da metade de seu património, a chamada parte disponível, pelo presente testamento, a Outorgante Testadora, quer e determina que após o seu falecimento a parte disponível do seu património no Brasil (…) fiquem para sua filha (…), é por demais evidente que a falecida/testadora procurou sujeitar o seu património – e futuro acervo hereditário – existente no Brasil, às disposições do direito interno brasileiro.
- O facto da testadora ter elaborado três testamentos, em momentos temporais distintos, é, em abstracto, perfeitamente legal, uma vez que o testador, até ao último momento da sua vida, é livre de o revogar, e, assim, afastar quaisquer sucessíveis nele designados, nada impedindo na lei que uma pessoa faça vários testamentos, podendo revogar ou não expressamente o(s) anterior(es) se e na medida em que com aquele(s) for incompatível.
- A fraude à lei (em DIP) pode distinguir-se, por um lado, na manipulação do elemento de conexão e, por outro lado, na internacionalização fictícia de uma situação interna: no primeiro caso, para afastar a lei normalmente competente, o agente da fraude vai modelar o conteúdo do elemento de conexão; no segundo caso, para afastar o Direito material vigente na ordem jurídica interna, que é o exclusivamente aplicável a uma situação interna, estabelece-se uma conexão com um Estado estrangeiro, por forma a desencadear a aplicação do Direito estrangeiro.
- Os elementos da fraude à lei (em DIP) são dois: um elemento objectivo e um elemento subjectivo. O primeiro (elemento objectivo) traduz-se na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na internacionalização fictícia de uma situação interna; o segundo (elemento subjectivo) consiste na vontade dolosa de afastar a aplicação de uma norma imperativa que seria normalmente aplicável, incidindo o dolo sobre a modelação do conteúdo concreto do elemento de conexão ou sobre a internacionalização fictícia da situação interna.
- Um cidadão português, residente em Portugal, que se desloque a um país estrangeiro ou a um consulado de um país estrangeiro em Portugal, para aí lavrar testamento segundo a lei desse Estado (in casu, o direito material brasileiro), com essa atitude afronta directamente a sua lei pessoal, a portuguesa, que é a reguladora da sua sucessão por morte.
- Ao recorrer a essa via, a testadora conseguiria efectuar uma deixa testamentária correspondente a 1/2 do seu património existente no Brasil a favor de uma das suas filhas, à luz do art. 1846.º do CCB, ludibriando a sua lei pessoal, a portuguesa, em que a quota disponível é, neste caso, de 1/3, uma vez que a legítima equivale a 2/3 da herança, sendo essa a porção intangível de que o testador jamais pode dispor, por estar legalmente destinada aos seus herdeiros legitimários, ex vi dos arts. 2159.º, n.º 2, e 2156.º ambos do CC, que constituem normas imperativas.
- A fraude, in casu, traduziu-se na circunstância de a falecida, conhecedora da lei aplicável à sua sucessão em Portugal, e do facto da sua quota disponível, nessa eventualidade, ser inferior à que a lei brasileira lhe permitia dispor – por força da legítima prevista num e noutro ordenamento jurídico –, ter-se deslocado resolutamente ao Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, para aí, submetendo-se à lei brasileira, procurar eximir-se ao regime legal da sucessão legitimária mais rigoroso do Estado português.
- Não é o facto da lei brasileira contemplar uma legítima de 1/2 dos bens da herança, enquanto que a lei portuguesa, in casu, contempla uma legítima de 2/3, que converte a situação num caso de violação da ordem pública internacional, susceptível de cair na alçada do art. 22.º do CC.
Pelos motivos, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em conceder revista, revogar o acórdão recorrido, e declarar a ineficácia parcial do testamento efectuado pela falecida DD, em 23/06/2005, no Consulado-Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, na parte em que dispôs de 1/2 do seu património no Brasil, reduzindo aquela quota disponível a 1/3 daquele património.
As custas, nas instâncias e no recurso, a cargo da ré.
Lisboa, 18 de Junho de 2013
Gregório Silva Jesus (Relator)
Martins de Sousa
Gabriel Catarino
________________________
[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] Considerando que a acção foi intentada em 6/07/07, ao recurso é aplicável o regime processual anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (arts 11º e 12º deste diploma) a que pertencerão igualmente os normativos por diante citados.
[3] Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. I, 2008, 2.ª ed., pág. 506. Como clarifica o mesmo autor, o “objecto da remissão são situações da vida ou aspectos de situações da vida transnacional”. Esse objecto é delimitado pelos conceitos de “estado”, “capacidade”, “relações de família”, “sucessões por morte”, “obrigações contratuais”, “direitos reais”, etc.
[4] Idem, Luís de Lima Pinheiro, op. cit., loc. cit..
[5] Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed., 1995, pág. 434.
[6] Direito Internacional Privado – Direito de Conflitos – Parte Especial, Volume II, 3.ª edição refundida, 2009 págs. 545/546.
[7] Sistema do Direito Internacional Privado segundo a Lei e a Jurisprudência, 1957, pág. 130.
[8] Op. cit. (nota 6), pág. 546.
[9] A sucessão legal – cf. art. 2027.º do CC – distingue-se, ainda, em sucessão legítima – arts. 2131.º e segs. – e sucessão legitimária – arts. 2156.º e segs. –, consoante é deferida por uma norma supletiva ou por uma norma imperativa, isto é, com a possibilidade de ser ou não afastada por vontade do falecido.
[10] A questão da feitura do testamento público de 23/06/2005, como se vê, bule, em parte, com o designado Direito Diplomático, que corresponde, em traços gerais, “ao exercício de um dos atributos essenciais da soberania e da independência das nações – o direito de legação – que grosso modo consiste na faculdade de se fazer representar no exterior por agentes diplomáticos e consulares”, e com o Direito Consular, que se traduz no “conjunto de normas jurídicas, qualquer que seja a sua fonte, que regulam as relações consulares, e, em particular, a instituição consular e seus agentes” – cf. Margarida d’Oliveira Martins, Direito Diplomático e Consular, “Tratado de Direito Administrativo Especial”, Volume V, pág. 219. A mesma autora expende que “o Direito Diplomático e Consular intersectam pois com o Direito Administrativo, na medida em que integra normas jurídicas que se aplicam à organização da administração pública estadual directa central periférica, no domínio externo, bem com a actividade administrativa exercida no plano externo e ainda aos funcionários e agentes destacados para o exercício de funções externas do Estado” (pág. 223).
[11] Como é sabido, o Direito Internacional Público comum (consuetudinário) contempla imunidades de jurisdição civil em relação aos Estados estrangeiros, às organizações internacionais e aos agentes diplomáticos, enquanto ao serviço de um Estado estrangeiro (não em relação às missões diplomáticas). A imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros constitui um corolário do princípio da igualdade soberana, em virtude do qual, em princípio, nenhum Estado pode julgar os actos de um outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, maxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento deste – Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, volume II, 2004, pág. 141. Para maiores desenvolvimentos, cf. o Acórdão do STJ, de 29/05/2012, Proc. n.º 137/06.2TVLSB.L1.S1, disponível no ITIJ.
[12] Resulta do art. 56.º do DL n.º 71/2009, de 31/03, que aprova o “Regulamento Consular” (Português), que os titulares de postos consulares, os cônsules-gerais-adjuntos e cônsules-adjuntos por aqueles expressamente autorizados têm competência para a prática de actos notariais relativos a portugueses que se encontrem no estrangeiro ou que devam produzir os seus efeitos em Portugal. Por sua vez, o art. 55.º clarifica que os titulares dos postos consulares e os encarregados das secções consulares são órgãos especiais da função notarial.
[13] São assim absolutamente inócuas as considerações feitas a este propósito no acórdão recorrido, a págs. 6 a 8, correspondentes às fls. 476 verso a 477 verso, referentes à questão da nulidade do testamento brasileiro.
[14] Op. cit., págs. 438/439.
[15] Op. cit. (nota 6), pág. 546.
[16] Estando em contacto a ordem jurídica nacional com uma ordem jurídica estrangeira, segundo as normas de conflitos consagradas no nosso Código Civil, emerge dos arts. 62.° a 65.° que é a lei portuguesa que regula a sucessão por morte, designadamente quanto às classes sucessíveis – arts. 62.° e 2133.° -, quanto à capacidade de disposição por morte – arts. 63.° e 2188.° e segs. –, quanto à interpretação das disposições mortis causa e à falta e vícios da vontade – arts. 64.°, 2188.°, 2199.° e segs. –, e quanto à forma daquelas disposições – arts. 65.° e 2204.º e segs..
[17] Acompanhando Rodrigues Bastos, em anotação a este preceito: “Teve-se em conta que quanto à falta e vícios de vontade tais disposições são formuladas para protecção da pessoa do disponente, e daí que seja aplicável a sua lei pessoal. Quanto à interpretação do testamento adoptou-se a mesma solução, agora com o fundamento de que os critérios a seguir para a investigação da vontade testatória não poderão ser outros senão os da legislação a que o testador estava sujeito – e pelos quais provavelmente se guiou – no momento em que fez a disposição” – cf. Notas ao Código Civil, Vol. I, 1987, pág. 102.
[18] Cf., no mesmo sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 12/10/06, Proc. n.º 06B3254, no ITIJ.
[19] Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ, 1995, Tomo II, págs. 6-10.
[20] “Estão assim banidas da ordem jurídica portuguesa formas históricas de testamento, que por vezes ainda surgem em ordens jurídicas estrangeiras. É o caso do testamento nuncupativo, ou seja, do testamento verbal, baseado no mero consentimento do autor da sucessão. É ainda, e sobretudo, o caso do testamento hológrafo, ou seja, do testamento escrito, e porventura datado e assinado, pelo testador, sem observância de qualquer outra formalidade” – cf. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 4.ª ed., 1989, pág. 80.
[21] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., pág. 101, e Vol. VI, 1998, pág. 356, e Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões - Noções Fundamentais, 6.ª ed., 1996, págs. 332/333.
[22] De acordo com o preceituado no art. 16.º do CC, a referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei. Da análise deste artigo parece poder concluir-se que nele se optou por um sistema de simples referência material. Ou seja, trata-se de “uma pura designação (vocação) do direito material da lei estrangeira - como pura referência material ou Sachnormverweisung”– cf. Ferrer Correia, Direito Internacional Privado - Alguns Problemas, 2.ª reimpressão, Coimbra, 1991, pág. 203. Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 27/09/1994 – cf. Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Ano II, Tomo III, págs. 71 a 73 – a referência feita pela norma de conflitos à lei estrangeira tem apenas em vista as normas materiais deste, e não também as suas normas de conflitos. Assim se evita uma situação de “jogo de espelhos” ou circulus inextricabilis, se todos os sistemas jurídicos em presença adoptassem a referência global ao direito estrangeiro.
[23] Dispõe aquela norma de direito brasileiro: “A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.
§ 1.º A sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus.
§ 2.º A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder”– diploma acedido em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm.
[24] Como diz Luís Carvalho Fernandes: “A modalidade mais corrente de testamento, na realidade das relações sociais, é o testamento público. Caracteriza-se este, como decorre do art. 2205.º, por ser escrito pelo notário, em livro próprio, muito embora esse funcionário público deva seguir, na elaboração do testamento, a vontade que, no acto, lhe seja manifestada pelo testador” – cf. Lições de Direito das Sucessões, 1999, pág. 414.
[25] Citando, uma vez mais, Marques dos Santos: “Esta norma [art. 2205.º do CC], bem como as demais normas do Código do Notariado, relativas ao testamento público, são aplicáveis por força do art. 65.º, n.º 1, do Código Civil Português, pois elas «integram o regime do instituto visado na regra de conflitos» que atribui competência à lei portuguesa (cf. art. 15.º do Código Civil Português) – isto é, por se tratar de normas relativas à forma das disposições por morte e por a lei portuguesa ser competente para regular esta questão jurídica por força do art. 65.º, nº 1 do Código Civil Português”- op. cit., pág. 7.
[26] Cf. Temas de Direito da Família, “Testamento Ológrafo – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 1992 (Anotação)”, 1999, págs. 180/182, e Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 125.º, págs. 309/316.
[27] Luís Carvalho Fernandes, op. cit., pág. 401.
[28] Cf. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed,, pág. 99.
[29] Lições de Direito Internacional Privado, 1973, pág. 581.
[30] Op. cit., pág. 582.
[31] Direito Internacional Privado – Introdução e Direito de Conflitos (Parte Geral), 2.ª ed., 2008, págs. 498 e 499.
[32] Cf., novamente, Luís de Lima Pinheiro, op. cit., págs. 500 e 501.
[33] Em sentido análogo, embora a situação de facto tenha algumas variações, cf. o Acórdão do STJ, de 12/05/92, mencionado na nota 26.
[34] Recorda-se que resulta do CCB: “Art. 1.845 – São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Art. 1.846. – Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.
[35] Legado em Substituição da Legítima, 1996, pág. 230.
[36] Ferrer Correia, op. cit., pág. 587.
[37] A quota indisponível, segundo o regime consagrado nos arts. 2158.º a 2161.º do CC, vai de 1/3 a 2/3 da herança: é de 1/3 quando os herdeiros legitimários chamados sejam apenas ascendentes do segundo grau e seguintes; é de 1/2 quando ao autor da sucessão sobrevivam só os progenitores, apenas um deles, um único filho ou somente o cônjuge; será de 2/3 nas demais hipóteses – existência de vários filhos, concurso de cônjuge com parentes na linha recta.
[38] Continuando depois o acórdão que: “Caso se apure, em inventário – cuja relação de bens terá de englobar todos os bens da herança (inclusive os situados no Brasil, ao menos para se calcular a legítima) – que o testamento se traduz numa liberalidade inoficiosa (numa ofensa à legítima) então, a requerimento da filha prejudicada, ter-se-á de proceder à redução da liberalidade”.
[39] Proc. n.º 991/10.3TBTVD-B.L1.S1, disponível no ITIJ. No sentido da solução aí pugnada, cf., igualmente, o Acórdão do STJ de 23/10/08, Proc. n.º 07B4545.
[40] Esta é, de resto, a posição unânime da melhor doutrina nacional, de que se citam, a título de exemplo, Luís de Lima Pinheiro, op. cit (nota 6), pág. 547; Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais (Teoria e Prática), 4.ª ed., 1990, págs. 461 a 463; Domingos Carvalho de Sá, Do Inventário – Descrever, Avaliar e Partir, 3.ª ed., 1998, págs. 93 a 95.
[41] Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 123.º, págs. 122 a 128, e 144 a 148 (a citação é das págs. 146/147).
[42] Explanou-se no Acórdão do STJ de 19/02/2008, Proc. n.º 07A4790, no ITIJ: “São de ordem pública as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respectiva relação jurídica, as quais devem ser leis rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. E os interesses que estão aqui em causa são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa”.
[43] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 551.
[44] Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., Vol. I, pág. 69.
[45] Direito Civil – Sucessões, 4.ª ed., 1989, págs. 28 e 29.