ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
CRIME SEXUAL
Sumário

I) Para a acusação se considerar manifestamente infundada nos termos da alínea d) do nº 3 do artº 311º do CPP, é necessário que os factos, manifestamente, não constituam crime, nem o que é imputado nem qualquer outro. No caso dos factos constituírem crime diverso do que é imputado na acusação, proceder-se-á como determinam os artºs 358º e 359º do CPP.
II) Por isso, não é de rejeitar a acusação que imputa ao recorrente a prática do crime de coacção sexual do artº 163º, do CP, por se haver considerado que os factos imputados ao arguido não constituíam crime, por não integrarem o conceito de acto sexual de relevo.
III) É que, ainda que não se considere que os actos praticados pelo recorrido são de molde a integrar a prática de um acto sexual de relevo, sempre se teria que ponderar se tais factos não integram o cometimento de um crime de importunação sexual do artº 170º, do CP, nos termos do citado artº 358º do CPP.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito da processo comum (singular) com o nº 1099/15.0JABRG que corre termos na Secção Criminal (J1) da Inst. Local de Ponte da Barca, Comarca de Viana do Castelo, na sequência de despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz que rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público, e ordenou o arquivamento dos autos,
veio este interpor o presente recurso pedindo que se revogue o despacho recorrido, e seja este substituído por decisão que receba a acusação pública e designe data para a realização da audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 312º e 313º do Cód. Proc. Penal.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1. O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido pela prática de (1) crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º nº 1 do Código Penal.
2. Por despacho datado de 29 de Abril de 2016, com o qual não podemos concordar, o Mmo. Juiz rejeitou a acusação pública deduzida contra o arguido, nos termos do nº 2, aI. a) e nº 3, al. d) do artigo 311º, do Código de Processo Penal, por considerar a acusação manifestamente infundada, já que os factos imputados ao arguido não constituem crime, pois não integram o conceito de acto sexual de relevo, determinando o oportuno arquivamento dos autos.
3. Entende o Mmo. Juiz a quo que o ato de beijar uma vez na boca a ofendida (mulher adulta) não preenche esse conceito de ato sexual de relevo, mas sim um ato socialmente inaceitável (pois foi feito com violência e sem o consentimento da vítima), mas não subsumível ao crime de coacção sexual, entendimento com o qual não concordamos.
4. Ora, por acto sexual entende-se todo aquele acto que, de um ponto de vista objectivo, assume uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aí, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica, independentemente da motivação do agente (neste sentido, vide Comentário ao Código Penal Conimbricense, Tomo I, p. 227 e ss).
5. A doutrina e a jurisprudência coincidem no entendimento de que acto sexual de relevo será o acto dotado de conotação sexual objectiva identificável por um observador externo, que seja abstractamente idóneo à satisfação de instintos sexuais e que seja apto a ofender a liberdade e determinação sexual.
6. Ultrapassando a dificuldade de delimitação do conceito aderimos à tentativa de definição avançada por Sénio Alves, Crimes Sexuais, 1995, pág. 11 e segs., que defende que o acto sexual de relevo é todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais, mesmo que não envolva os órgãos genitais de qualquer dos intervenientes, que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas.
7. A relevância ou irrelevância derivará do sentir geral da comunidade, dependendo de se considerar que ofende com gravidade, ou não, o sentimento de vergonha e timidez relacionado com o instinto sexual da generalidade das pessoas.
8. Ora, encontrámos pois, quer na doutrina quer na jurisprudência, autores que consideram o acto de beijar na boca integrador do acto sexual de relevo.
9. Como bem se exemplifica no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 05-06-2013, acto sexual de relevo, será todo aquele que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, como é manifestamente o caso de acariciar ou apalpar os seios, nádegas, coxas e boca (proc. 204/10.8TASEI.C1 Maria Pilar de Oliveira, in www.dgsi.pt).
10. Para Paulo Pinto de Albuquerque este autor, acto sexual de relevo inclui a cópula vulvar e o toque, com objectos ou partes do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca – Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 163, ponto 8.
11. O conceito indeterminado confere ao aplicador uma certa margem de manobra, cobrindo, na sua plástica moldura penal abstracta, as hipóteses de actos graves e daqueles que, muito menos graves, não deixem de atentar contra a auto-determinação sexual do ofendido, o bem jurídico protegido: a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente aquela liberdade.
12. Ora, agarrar uma jovem que contava com 20 anos, dar-lhe um beijo junto à boca, e perante a sua oposição, agarrá-la com mais força, e voltar a dar-lhe um beijo, desta vez na boca, e perante a sua recusa e demonstração do seu descontentamento, continuar a pressioná-la sobre o seu corpo e passar as mãos pelo cabelo, integra, no nosso entender, o crime de coacção sexual.
13. E será dentro da ampla moldura penal abstractamente prevista para este ilícito que o legislador encontrará a pena que mais se adequará a situação reportada nos autos, tendo em conta a culpa do agente, as finalidades da pena e a gravidade dos factos.
14. Entendemos pois, que os factos descritos na acusação pública integram o conceito de acto sexual de relevo.
15. Contudo, mesmo que assim não se entendesse sempre diríamos que os factos descritos na acusação constituíram o crime de importunação sexual, pois caso se considerasse que o acto de beijar na boca não assume gravidade suficiente para o preenchimento do conceito de acto sexual de relevo, dúvidas não existem que integra a noção de contacto de natureza sexual exigido no art. 170º do CPP.
16. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à Iuz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, págs. 468-469), «o contacto de natureza sexual é a ação com conotação sexual realizada na vítima, que não tem a gravidade do ato sexual de relevo. O contacto de natureza sexual pode incluir o toque (com objetos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima (...)“.
17. Ora, no libelo acusatório encontram-se descritos todos os elementos objectivos e subjectivos de que depende a punibilidade deste ilícito (importunação sexual), pelo que, e tratando-se de um crime menos grave, sempre poderia e deveria o Mmo. Juiz a quo, depois de produzida a prova, caso assim o entendesse, proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, integrando-os no crime de importunação sexual.
18. Não podemos por isso concordar com o arquivamento dos autos conforme determinado pelo Mmo. Juiz, uma vez que entendemos que os factos constituem crime e que a acusação não é manifestamente infundada.
19. Com efeito, a acusação deduzida nos presentes autos não se enquadra na previsão da alínea d) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
20. A acusação apenas será manifestamente infundada, na definição legal, se o entendimento sobre a irrelevância penal dos factos nela narrados for pacífico, indiscutível, aceite como válido sem objeções na doutrina e na jurisprudência - situação em que o julgamento, como nas demais alíneas daquele nº 3, é previsivelmente inútil face à manifesta inviabilidade ou improcedência da acusação.
21. A alínea d), do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal não visa dar guarida a um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório - o tribunal é sempre livre de aplicar o direito (princípio da livre aplicação do direito), mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-Ia quando esta for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
22. Este fundamento pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa” , insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal.
23. Ou seja, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada, o que não é o caso.
24. É necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
25. Ora, como vimos a integração do conceito de acto sexual de relevo é passível de divergências doutrinais e jurisprudenciais, pelo que não poderia a acusação ser considerada manifestamente infundada.
26. Até porque, conforme já referimos, mesmo que se entenda que os factos não integram o conceito de acto sexual de relevo, e uma vez que o libelo acusatório contém todos os elementos objectivos e subjectivos de que depende a punição por um outro crime menos gravoso - importunação sexual - que já não exige que estejamos perante um acto sexual de relevo, mas um simples contacto de natureza sexual, sempre teria o Mmo. Juiz que receber a acusação e submetê-la a julgamento, não podendo rejeitar a acusação nem proceder nesta fase a uma alteração da qualificação jurídica dos factos.
27. O sentido da jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/2013, datado de 12 de Junho de 2013 vai no sentido de a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da interpretação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º, nº s 1 e 3 do Código de Processo Penal.
28. Neste sentido encontramos ainda o recente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães datado de 22 de Junho de 2015 onde se lê que: “Numa estrutura processual acusatória, em que a repartição das funções de investigação, de acusação e de julgamento é feita entre magistraturas distintas e autónomas, a acusação delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal. Por isso, não pode o juiz de julgamento, em sede de saneamento do processo, proceder à alteração da qualificação jurídica constante da acusação por reapreciação dos indícios recolhidos na fase preliminar dos autos.
29. Assim, e uma vez que os factos descritos no Iibelo acusatório constituem crime, e mesmo que o Mmo. Juiz divergisse da qualificação jurídica dada pelo MP, sempre teria que receber a acusação, designar dia para a realização da audiência de julgamento, produzir prova, e após, na prolação da sentença tomar posição quanto aos factos e ao seu enquadramento jurídico.
30. Em síntese, entendemos pois que violou o Exmo. Juiz o disposto no artigo 163º, nº 1 do Código Penal e o art. 311º, nº 2 alínea a) e nº 3º d) do Código de Processo Penal.
31. Deve o despacho recorrido ser substituído por outro, que receba a acusação, sujeitando-a ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se oportunamente, e livremente, a questão de facto e a questão de direito, na sentença.
*

Não houve contra-alegações.

Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da procedência do recurso.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
* * *

Fundamentação

A decisão sob recurso é a seguinte:
(…)
Estabelece o artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal, que “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.”
A questão reconduz-se, pois, em saber se a conduta do arguido, no momento considerado, constitui um ato sexual de relevo a que se reporta esse normativo.
Se é certo que, de acordo com os factos descritos na acusação, se mostra preenchido o requisito legal de violência, já o mesmo não se pode dizer do requisito legal de ato sexual de relevo.
Cremos que, sem grande esforço, se chegará a um consenso que o ato de “beijo na face, muito próximo da boca”, referido no artigo 6.º da acusação de fls. 50 e segs., não corresponde a um ato sexual e muito menos a um ato sexual de relevo como a lei exige.
No artigo 8.º da acusação está exarado que “o arguido reagiu, apertando A... ainda com mais força, causando-lhe dores no corpo, mais concretamente no tronco e braços, segurando-a contra si altura em que lhe deu um beijo na boca, contra a sua vontade e sem a sua autorização.”
Será o mencionado ato de “um beijo na boca” um “ato sexual de relevo” como a lei exige e pune com pena gravosa de prisão de 1 a 8 anos (sem admitir multa como pena principal)? Entendemos que não.
Note-se, desde logo, que tanto arguido como ofendida são pessoas com mais de 18 anos, sem relação hierárquica, sem relação familiar e sem dependência económica mútua.
Não nos dá o Código Penal uma densificação do conceito de acto sexual de relevo, nem nos fornece uma extensa casuística exemplificativa.
Como Simas Santos e Leal-Henriques (Código Penal, II, pág. 368-369) referem: “Quer isto dizer que não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. Estão nesta situação, por exemplo, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., parecendo-nos que também se deve incluir no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente.”
Figueiredo Dias acentua que é de excluir do acto sexual de relevo não apenas os actos “insignificantes ou bagatelares”, mas também aqueles que não representem “entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima” (v.g. “actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima”, in Comentário, I, pág. 449”.
Tal como referido pelo Ac. do STJ de 12/07/2005, proc. 05P2442, in www.dgsi.pt, “Pondera a propósito Sénio Alves (Crimes Sexuais, 8 e ss.): «Em bom rigor, a dificuldade começa logo na definição de acto sexual (para efeitos penais, entenda-se). Um beijo é um acto sexual? O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? E ainda em caso afirmativo será razoável punir do mesmo modo quem por meio de violência constrange a vítima a praticar consigo coito... (inter femural ou inter-axilar, que me parecem poder integrar, sem grandes objecções, o conceito de acto sexual de relevo) e aquele que, também por meio de violência, consegue acariciar os seios da sua vítima?
Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidos (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual». E conclui:
«O acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas», sendo certo, assim, que «a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade”, a qual «considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas».”
O STJ já considerou o ato de beijar na boa um ato sexual de relevo (cfr. Ac. do STJ de 30/01/1997, proc. 96P712, in www.dgsi.pt), quando feito por um homem adulto numa criança de 9 anos de idade e acompanhado de mais atos muito graves (“I - Para o Código de 1995 - artigo 172 - não podem deixar de ser considerados actos sexuais de relevo beijar na boca uma menor de 9 anos e passar-lhe a mão pelas pernas e pelos órgãos sexuais, com fins libidinosos. II - Os actos de encosto do pénis à vulva da menor de 9 anos, com posterior emissão de sémen sobre a mesma vulva e sobre o corpo da ofendida, integram a autoria do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, do artigo 165 do mesmo Código. III - De acordo com uma longa tradição jurisprudencial, deve entender-se que, embora se trate de violações múltiplas de direitos fundamentais de uma mesma ofendida, verifica-se a prática de um só crime, consubstanciado pela comissão de um conjunto, complexo e prolongado no tempo, de actos destinados a satisfazer a licenciosidade do pedófilo, que deve ser punido como uma unidade, como abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.”).
Também o TRC já considerou o ato de beijar no pescoço um ato sexual de relevo (Ac. do TRC de 02/04/2014, proc. n.º 347/08.8JACBR.C1, in www.dgsi.pt) quando feito por um homem adulto numa criança de 14 anos de idade e acompanhado de mais atos muito graves (“1. Pratica ato sexual de relevo, e assim o crime de abuso sexual de crianças, o arguido que: - de forma repetida e continuada, acariciou as costas do menor de 14 anos de idade, passando a sua mão no sentido descendente e ascendente até ao pescoço, a cabeça e as coxas, deslocando a extremidade dos dedos da mão para o interior das mesmas;- durante cerca de uma hora, enquanto a criança estava sentada no meio dos bancos da frente do veiculo, com uma perna esticada para a frente em cima da consola central do mesmo, e a outra para trás, e parcialmente virado na direção do arguido, este acariciou o corpo da referida criança, designadamente no pescoço, nos braços e nas pernas, dava-lhe beijos no pescoço e metia a mão do menor no interior da sua camisa, ao nível do peito e com ela ia acariciando-se; - introduzindo parte do seu corpo, através de uma janela da porta traseira do veículo onde se encontrava o menor, durante cerca de 10 minutos acaricia o corpo deste no peito e na parte inferior do tronco; - no hipermercado, abraça e acaricia o corpo do menor, fazendo-lhe festas no rosto, agarrando-o pela cintura, ou puxando-lhe o corpo contra o dele.”)
Igualmente o TRP já considerou o ato de beijar na boca um ato sexual de relevo (Ac. do TRP de 13/03/2013, proc. n.º 1159/11.7JAPRT.P1, in www.dgsi.pt) quando feito por um homem adulto numa criança de 12 anos de idade e acompanhado de mais atos muito graves (“I. Acto sexual é o comportamento que objectivamente assume um conteúdo ou significado reportado ao domínio da sexualidade da vítima, podendo estar presente um intuito libidinoso do agente, conquanto a incriminação persista sem esse intuito. II. Considera-se acto sexual de relevo o comportamento pelo qual um homem adulto dá beijos na boca, mexe nos seios, mexe na vagina de uma menor de doze anos, ainda que por sobre a roupa, e lhe exibe o pénis, perguntando-lhe se gostava do que tinha visto.”).
Ora, nenhuma dessas situações, ou semelhante, se trata no caso concreto.
Sendo o ato sexual de relevo um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das concepções reinantes e da própria evolução dos costumes, mas não deixa de cobrir as hipóteses de atos graves, nomeadamente aqueles que atentam com os normais sentimentos de pudor dos ofendidos, intoleráveis numa sociedade civilizada.
Ora, o ato de beijar uma vez na boca a ofendida (mulher adulta) não preenche esse conceito de ato sexual de relevo, mas sim um ato socialmente inaceitável (pois foi feito com violência e sem o consentimento da vítima), mas não subsumível ao crime de coação sexual.
Tal como se refere no Ac. do STJ de 12/07/2005, proc. 05P2442, in www.dgsi.pt, “Para justificar a expressão "de relevo" terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o "relevo" tem de recortar-se”. No caso concreto o ato de um único beijo na boca entre homem e mulher adultos, mesmo que se considere (com alguma extensão do conceito) ato sexual, não pode ser considerado ato sexual de relevo.
Nestes termos, constata-se que a acusação não contém factos que integrem o mencionado ilícito-típico criminal, devendo como tal ser rejeitada, nos termos do n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do artigo 311.º, do Código de Processo Penal.
O vício que ora se aponta, pode ser oficiosamente conhecido, conforme previsão do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, decido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J..., pela alegada prática do crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163.º, n.º 1 do Código Penal, por a mesma ser manifestamente infundada, já que os factos imputados ao arguido não constituem o referido crime, pelo que determino o oportuno arquivamento dos autos.
* * *

Apreciando…

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, cumpre averiguar se a acusação deduzida é manifestamente infundada.

Nos termos do nº 1 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer”.
E nos termos da alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.
Ora a acusação considera-se manifestamente infundada quando, para além do mais, os factos não constituírem crime (alínea d) do nº 3 do mesmo art. 311º). Trata-se de uma falta grave (como, aliás todas as outras faltas que constituem as várias alíneas do nº 3 do art. 311º) susceptível de comprometer o êxito da acusação e que obsta a uma apreciação de mérito, justificando a rejeição liminar.
Ou seja, a acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os “vícios estruturais graves” enunciados no nº 3 do citado art. 311º (assim Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, 2009, p. 816), se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves – no mesmo sentido Maia Gonçalves (Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pág. 605), defende que a acusação só pode ser rejeitada quando padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”.
Com efeito, e considerando que a Lei 65/98 de 25.08, ao introduzir o nº 3 ao art. 311º excluiu a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária (fazendo caducar o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/93) este fundamento “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa” (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. citada, pág. 816), seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente é penalmente irrelevante.
Mais, como se pode ler no Acórdão do T.R.P. de 11.07.2012 (proc. nº 1087/11.6PCMTS.P1) – e aqui subscrevemos – “é, no entanto, necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência”.
Sublinhe-se que este juízo (de manifesta improcedência) tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja” (Acórdão do T.R.C. de 12.07.2011, proc. nº 66/11.8GAACB.C1) – no mesmo sentido veja-se ainda o recente Acórdão do T.R.P. de 21.10.2015 (proc. nº 658/14.3GAVFR.P1).
Também na doutrina, Vinício Ribeiro (Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644), afirma que o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do n.º 3 se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.
Assim, para a acusação se considerar manifestamente infundada nos termos da alínea d) do nº 3 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, é necessário que os factos, manifestamente, não constituam crime, nem o que é imputado nem qualquer outro. Podendo, obviamente, constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determinam os arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal.

No caso concreto, decidiu-se no despacho recorrido “rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J..., pela alegada prática do crime de coacção sexual, p. e p. pelo artigo 163º nº 1 do Código Penal, por a mesma ser manifestamente infundada, já que os factos imputados ao arguido não constituem o referido crime”, mais tendo sido ordenado o oportuno arquivamento dos autos.
A acusação imputa ao arguido a prática de um crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º nº 1 do Cód. Penal, porquanto:
1- Na data dos factos descritos infra (ponto4) o arguido J..., funcionário da Câmara Municipal …, exercia as funções de …, sitas no lugar de ….
2- Por sua vez, A..., nascida a ….1994 para além de ser estudante na Universidade do Minho, pólo de Gualtar, desde o ano de 2012 até, pelo menos ao Verão de 2015, reforçava o pessoal adstrito à … e exercia as funções de ….
3- Com efeito, A... frequentava … para exercer as funções de …; para aí tomar banho e trocar de roupa quando regressava das suas funções de … e ainda para lanchar.
4- No dia 27 de Julho de 2015, por volta das 17:00/17:30 horas A... fazendo uso de uma porta secundária acedeu ao interior das instalações das….
5- Encontrando-se no corredor de acesso aos … que aí prestam serviço, surgiu o arguido que caminhava em sentido contrário e na direcção de A... que, ao avistá-la logo abriu os braços e disse: “Oh A…”.
6- Acto contínuo, e encontrando-se de frente para A... o arguido abraçou-a, colocando as mãos dele por detrás do tronco daquela, apertando-a, ao mesmo tempo que lhe deu um beijo na face, muito próximo da boca.
7- Constrangida com o comportamento indesejado do arguido, a ofendida tentou-se libertar-se contorcendo-se e fazendo força com as mãos em sentido contrario à força exercida pelo arguido por forma a afastá-lo.
8- Contudo, o arguido reagiu, apertando A... ainda com mais força, causando-lhe dores no corpo, mais concretamente no tronco e braços, segurando-a contra si altura em que lhe deu um beijo na boca, contra a sua vontade e sem a sua autorização.
9- Agarrada e impedida de se libertar do arguido, a ofendida tentava afastar a cara da cara do arguido momento em que este questionou-a sobre se tinha ficado zangada com o que tinha acabado de fazer, ao que aquela, nervosa e a tremer respondeu que sim.
10- De seguida, o arguido, mantendo a ofendida segura contra si prendendo-lhe o corpo com os braços, libertou uma das mãos e com a mesma começou a passar a mão pelo cabelo de A..., ao mesmo tempo que lhe dizia Ah, tá bem, ficaste zangada.
11- Encontrando-se nestas circunstâncias, o arguido, apercebendo-se da aproximação do colega de trabalho L… libertou a ofendida mantendo com esta uma conversa trivial por forma a que este não desconfiasse do sucedido.
12- O arguido, ao agir pelo modo descrito, quis e conseguiu satisfazer os seus instintos libidinosos, usando para com a A... a força física para a imobilizar, causando-lhe dores na zona atingida, e desta forma levá-la a suportar a sua conduta sem e contra a sua vontade, adoptando actos que, quando não desejados por quem os recebe, como era o caso, são idóneos a afectar o sentimento de recato sexual de qualquer cidadão médio e da ofendida, como afectou, fins que representou, quis e logrou alcançar.
13- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Como se refere no despacho recorrido, estabelece o nº 1 do art. 163º do Cód. Penal, que “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos”. E mais se afirma no despacho recorrido que “Se é certo que, de acordo com os factos descritos na acusação, se mostra preenchido o requisito legal de violência, já o mesmo não se pode dizer do requisito legal de ato sexual de relevo”. Concluindo-se no mesmo despacho que “Sendo o ato sexual de relevo um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das concepções reinantes e da própria evolução dos costumes, mas não deixa de cobrir as hipóteses de atos graves, nomeadamente aqueles que atentam com os normais sentimentos de pudor dos ofendidos, intoleráveis numa sociedade civilizada. Ora, o ato de beijar uma vez na boca a ofendida (mulher adulta) não preenche esse conceito de ato sexual de relevo, mas sim um ato socialmente inaceitável (pois foi feito com violência e sem o consentimento da vítima), mas não subsumível ao crime de coação sexual.”
Ora como bem diz o despacho recorrido, o Código Penal não define o conceito de acto sexual de relevo, nem nos fornece uma casuística exemplificativa do que se possa entender como tal.
Na tentativa dessa definição, Sénio Alves (Crimes Sexuais, p. 8 e ss.) afirma que «em bom rigor, a dificuldade começa logo na definição de acto sexual (para efeitos penais, entenda-se). Um beijo é um acto sexual? O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? E ainda em caso afirmativo será razoável punir do mesmo modo quem por meio de violência constrange a vítima a praticar consigo coito... (inter femural ou inter-axilar, que me parecem poder integrar, sem grandes objecções, o conceito de acto sexual de relevo) e aquele que, também por meio de violência, consegue acariciar os seios da sua vítima?
Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidos (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual (…) O acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas (…) a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (…) (que) considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas».
Simas Santos e Leal-Henriques (Código Penal, II, pág. 368-369) avançam que «não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. Estão nesta situação, por exemplo, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., parecendo-nos que também se deve incluir no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente».
O que se acabou de transcrever é sinónimo de que o conceito de acto sexual de relevo não é objectivo nem está definido, carecendo de ser analisado perante o caso concreto. Aliás, tal como se pode ler no Acórdão do STJ de 12.07.2005 (proc. 05P2442) «Para justificar a expressão "de relevo" terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o "relevo" tem de recortar-se».
Ora não sendo a definição de acto sexual de relevo pacífica e incontroversa, não podia o Sr. Juiz a quo ter rejeitado a acusação por manifestamente infundada nos termos da alínea a) do nº 2 e da alínea d) do nº 3 do art. 311º, do Cód. Proc. Penal.
Acresce que, como bem alega o recorrente, ainda que não se considere que os actos praticados pelo recorrido são de molde a integrar a prática de um acto sexual de relevo, sempre se teria que ponderar se tais factos não integram a prática de um crime de importunação sexual p. e p. pelo art. 170º do Cód. Penal (considerando que a prática deste crime apenas exige que o agente constranja a vítima a contacto de natureza sexual) – ponderação a ser feita necessariamente em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos do art. 358º do Cód. Proc. Penal (cfr. a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/2013, de 12.07.2013).
Assim, não podia a acusação deixar de ser recebida.
* * *

Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, ordenando o prosseguimento dos autos, receba a acusação e designe data para audiência de julgamento.
Sem custas.

Guimarães, 9.01.2017
(processado e revisto pela relatora)
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(Alda Tomé Casimiro)
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(Paula Maria Roberto)