1. A “compensação” é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dela, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor; quando o devedor é também credor do seu credor opera-se a circunstância jurídico-substantiva da “compensação”, através deste fenómeno jurídico se consentindo que o devedor se desonere do seu débito a expensas deste seu consubstanciado crédito.
2. A iliquidez não impede a compensação (artigo 847º, n.º 3, do C.Civil); e a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra (art.º 848, n.º 1, do Civil).
3. Todavia, a compensação só pode operar-se no caso de o autor da compensação comprovar a exigibilidade do seu crédito; e um crédito só se torna exigível quando está judicialmente reconhecido, desiderato este que pode ocorrer na fase declarativa do litígio.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
“AA, L.da”, intentou acção, com processo ordinário, contra BB, alegando que lhe emprestou a quantia de € 125.000, que este não reembolsou na data aprazada e pedindo a condenação do réu pagar-lhe tal quantia, acrescida de juros.
O réu contestou, alegando que tal quantia foi estipulada no âmbito de um negócio de compra e venda pelo qual a autora lhe não pagou ainda os seus honorários, pelo que o pedido de condenação traduz-se na figura do abuso de direito, devendo pois a acção improceder.
Instruído e julgado o processo, foi proferida sentença a julgar procedente a acção.
Em apelação deduzida pelo réu, a Relação de Lisboa negou total provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.
Interposto recurso de revista, por este Supremo Tribunal de Justiça foi determinada a devolução do processo à Relação, a fim de este superior tribunal se pronunciar sobre a detectada omissão de pronúncia referente à eventual matéria conclusiva e de direito contida no art.º 56.º contestação.
Abordando esta questão, a Relação de Lisboa entendeu que, na verdade, o quesito em análise correspondente a tal matéria envolve matéria de direito e por isso, em vez de “não provado”, nos termos do art.° 646.°, n.º 4, do Código de Processo Civil, considerou como não escrita a resposta formulada sobre tal matéria; e, ponderando que este a análise assim efectivada não interferia no julgamento já antes realizado, ajuizou improcedente a apelação e confirmou na totalidade a sentença recorrida.
Continuando irresignado, recorre novamente para este Supremo Tribunal o réu BB, apresentando as seguintes conclusões:
1. Não cabendo a este Supremo Tribunal conhecer da matéria de facto e alterar o fixado pelas instâncias nesse âmbito, pode, no entanto, pronunciar-se sobre se o uso dessa competência pela Relação foi feito de forma adequada, impondo-lhe, se for o caso, a sua reapreciação e mesmo, se necessário, a repetição do julgamento pela 1.ª Instância.
2. Chama-se, aliás, à atenção de que há respostas a determinados pontos da BI. que excedem o âmbito das respectivas perguntas e de que noutros casos, não terá sido dada resposta a toda a matéria cuja indagação neles se continha.
3. O Acórdão da Relação de 2008-06-11 enfermava de nulidade por omissão de pronúncia (n.º l, da alínea d) do art° 668.º do C.P.Civil), porquanto levantou-se a questão do ponto da BI. que integrou o art° 56.º da contestação conter matéria conclusiva e de direito e dever dar-se por não escrita a resposta dada àquele quesito, não se tendo o (então) Acórdão recorrido pronunciado a tal respeito, que é essencial, não se percebendo como se pode quesitar se há abuso de direito, e não os factos de onde tal se possa concluir, sendo que o S.T.J., de fls., de 16-12-2010, ordenou a baixa dos autos para suprir aquela omissão.
4. O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 13-12-2012 supriu a omissão em causa e alterou a resposta ao ponto da B.I. correspondente ao art° 56° da contestação, mas manteve, no entanto, o entendimento de que não ocorria abuso de direito, o que não corresponde aos factos provados.
5. Não se pronunciou, igualmente, o Acórdão de 2008-06-11 sobre as consequências da falta de interpelação prévia do R., por parte da A., (já que ficou provado que a interpelação ocorre com esta acção), enfermando, também a este título, de nulidade por omissão de pronúncia.
6. Ficou provado que a CC, Lda. foi disponibilizada pelo R. e seus familiares para melhor propiciar concretização do negócio, e não apenas para facilitar os compradores.
7. Provado ficou também que o documento que consubstanciaria, formalmente, um mútuo (doc. 1 junto com a p.i.) ficaria sem efeito com o acerto final de contas entre A. e R. e seus familiares, havendo da parte do R. a convicção de que a A. pagaria as despesas e trabalho por ele despendido, com total sucesso.
8. E, num segundo momento, dado o tempo decorrido, o R. criou a legítima e definitiva convicção de que a A. considerara (embora em prejuízo do R.), o assunto encerrado, através da verba que vem agora reclamar.
9. Como ficou provado que o prazo de 12 dias referido no doc. 1 junto com a p.i., era o prazo que se reportava à data em que a A. recebesse o preço, confirmando-se, assim, em definitivo, a integral concretização do negócio.
10. Igualmente, o ponto da BI. - art.° 43°da contestação - ficou provado, que o trabalho despendido era superior aos 125.000,00 €, já que os valores referidos pelas testemunhas era a acrescer ao já recebido, bem como ainda que tal se deveu também ao facto de não haver certeza quanto à concretização do negócio.
11. O R. foi vítima da colaboração que deu ao AA para ocultar os adiantamentos que aquele fazia à D. DD, sem conhecimento dos demais sócios e irmãos, o que fez para não comprometer o negócio.
12.O R., aliás, deu um novo cheque para substituir o anterior, na convicção de que a escritura ainda não havia sido celebrada, facto que a A. lhe havia ocultado, o que revela bem a má fé da sua actuação. (V. ponto 17° da contestação).
13. A má fé da A. foi ao ponto de só apresentar a desconto o cheque decorrido o prazo de prescrição dos honorários do R..
14. É imoral que o R. tenha despendido tanto trabalho e efectuado despesas compensá-lo, ao menos, com a quantia que lhe havia adiantado, que, de facto, mais não era do que uma mera provisão de honorários.
15. Há, pois, manifesto abuso de direito, o que o Tribunal só não admitiu ocorrer por estar amarrado à resposta ao ponto da B.I. (art° 56° da contestação) resposta que tem de ser dada por não escrita, atento o facto de se tratar de matéria de direito e conclusiva.
16. Salvo melhor opinião, o douto Acórdão recorrido enferma de erro quando refere que a regra, nos negócios imobiliários, é correrem as despesas por conta do comprador.
17. Na verdade, na intermediação, diligências e apoio jurídico à venda quem paga o trabalho prestado (e até a comissão) é o vendedor.
18. Igualmente enferma de erro o Acórdão recorrido, ao decidir que só era possível a compensação, se a obrigação fosse líquida, o que contraria o disposto no n.º 3., do art° 847° do C.Civil, que violou, nem se opondo a isso, sequer, qualquer eventual prescrição do crédito (art° 850° do C.Civil).
19. O Acórdão recorrido reconheceu que o R. e os seus familiares trabalharam e tiveram despesas em favor da A., criticando o R. por, a pedido do Pai, não ter intentado acção de honorários, pela consideração pessoal que tinha para com o AA.
20. Mas, a este gesto de boa vontade e de consideração do R. e dos seus familiares, de se abster de intentar acção de honorários, a A., depois de servida, responde com a presente acção, seis anos passados e depois de criada a legítima ideia de que se dava por compensada, e, mesmo assim, não há abuso de direito!?
21.O Acórdão de 2012-12-13 decidiu mal, face à matéria provada, o abuso de direito, que raramente se registará, de forma tão patente, como no presente caso.
Termina pedindo que seja revogado o acórdão recorrido.
Contra-alegou a recorrida “AA & Irmãos, L.da” pedindo a manutenção do julgado.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As instâncias consideraram provados os relevantes factos seguintes:
Da petição inicial.
1. Em 15-9-2003 foi celebrada escritura de compra e venda,
celebrada a 15-9-2003, entre a ora A., como vendedora, e CC,
…., …., Limitada,
como compradora, tendo como objecto um lote de terreno para construção,
com a área de 725m2, sito na Rua ... e Rua …, freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na 5.a
Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.° … daquela freguesia, com registo de aquisição a favor da vendedora, pelo preço de €
6.983.170,56 - 1o, 2o, 3o, 4o e 5o;
2. Tendo o R. entregue à A., em 3-10-2003, o cheque n.° …, no montante de € 125.000,00, com data de emissão de 24-10-2003, sacado sobre o B..., em substituição do cheque id. no artigo 3o da P. I. (junto a fls. 14) - 7o;
3. A A. apresentou o novo cheque a pagamento em 17-2-2006, o qual, contudo, em 21-2-2006, foi devolvido em virtude de ter sido apresentado fora do prazo;
4. O montante titulado pelo cheque encontra-se por pagar - 10° (redacção da A. Preliminar);
Da contestação.
5. Chegaram finalmente as negociações a concluir-se com EE, casado, natural de Espanha, residente em ..., n.° …, ..., ..., Espanha, sócio de uma imobiliária espanhola, com sede em Réus - 6o (parte);
6. A A. celebrou o contrato promessa de compra e venda do terreno da Rua ..., com a CC, L.da, representada pelo seu, à data, sócio-gerente Dr. FF, em 8-4-2003 - 9o;
7. E a A. recebeu nessa data, por cheque pessoal do Dr. FF, a quantia do sinal, parte do preço estabelecido, e actuando aí em representação dos compradores, que lhe habilitaram a conta para tal efeito -10°;
8. São (absolutamente) verdadeiros os documentos que a A. juntou com a Petição Inicial são - 22° (parte);
9. Os termos da declaração anexa ao cheque de 30-7-2003, sacado para 30-9-2003, são aceites pelo R. como podendo estabelecer um mútuo - 23° (parte - redacção da A. Preliminar);
10. A A., por intermédio de AA, seu sócio-gerente,
contactou o pai do R., no sentido de este, em conjunto com seus dois filhos,
todos advogados, conseguirem comprador para o terreno da Rua …, destinado a hotel - 4o;
11. O R., seu pai e irmão, contactaram com espanhóis, no sentido de
promoverem aquela venda - 5o;
12. Em consequência desses contactos, vieram as negociações,
entretanto entabuladas com EE, casado, natural de
Espanha, residente em ..., …, …, ...,
Espanha, a resultar em acordo para aquisição daquele terreno - 6o;
13. A escritura de compra e venda veio a ser outorgada a 15-9-2003, após várias diligências junto da Câmara Municipal de Lisboa, com reformulação do projecto de arquitectura existente para o terreno, nas quais intervieram o R., seu pai e irmão, além de vários contactos entre as partes, promovidos pelos mesmos advogados - 7o, 8o, 12° e 15°;
14. A CC, L.da, que interveio como compradora do terreno, fora constituída pelo R. e seus mencionados familiares - 14°;
15. A escritura só veio a ser celebrada a 15-9-2003, e nem a A. nem os novos sócios da CC, L.da, deram notícia ao R. ou aos seus familiares de que a escritura havia sido celebrada - 17°;
16. Nem a vendedora, nem a compradora pagaram ao R., a seu pai ou seu irmão, as despesas de constituição de CC, Lda. - 19°;
17. A A., pela mencionada venda, recebeu € 6.983.170,56, nada tendo pago ao R., seu pai ou irmão – 20.º;
18. O R., seu pai e irmão, pela intervenção tida, consideram-se credores da A. - 22°;
19. O constante da "declaração" que integra o doe. 1 da P. L, que é a seguinte:
"O cheque a que corresponde a presente fotocópia só será apresentado a pagamento uma vez decorrido um mínimo de doze dias sobre a data da escritura de compra e venda que tem por objecto o terreno sito na Rua ..., destinado a Hotel, de que é promitente compradora CC, L.da, e promitente vendedora a AA & Irmãos, Lda. O referido cheque corresponde ao pagamento do empréstimo que a AA & Irmãos, L.da, me fez na presente data, e a que correspondem os cheques da mesma sociedade, sacados sobre a conta n.° … do …, S.A., com os números …, … e …", está datado de 30 de Julho de 2003, está assinado pelo R. e contém, ainda, as palavras "De acordo" - 23°;
20. Quem veio a comprar estava representado por advogado diferente do R., seu pai e irmão - 27°;
21. O R. escreveu e assinou as declarações constantes dos docs. 1 a 3 da P. I. - 29°;
22. O pai do R., quando director do contencioso do B…, conheceu AA e, desde então, sempre tiveram boas relações - 36°;
1. Apurar se estão verificados os pressupostos da compensação relativamente ao invocado crédito do réu em relação à sociedade autora; e
2. Indagar se há abuso de direito;
Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito libertando-se do seu débito, por uma espécie de acção directa.[1]
Para que a extinção da dívida por compensação possa ser aposta ao notificado, exige-se a verificação dos requisitos enunciados no art. 837° do C. Civil e assim pontificados por Menezes Cordeiro: [2]
a) a existência de dois créditos recíprocos;
b) a exigibilidade do crédito do autor da compensação;
c) que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade;
d) a não exclusão da compensação por lei;
e) a declaração de vontade de compensar.
Nos termos do n.º 1 do art. 848° do C.Civil a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra.
Deste modo podemos deduzir, como o faz o Prof. Almeida Costa[3], que a compensação não opera "ipso jure", isto é, automaticamente; é necessária a manifestação de vontade de um dos credores/devedores no sentido da extinção dos dois créditos recíprocos
A compensação reveste a configuração de um direito potestativo que se exercita por meio de um negócio unilateral; e a importância desta declaração é decisiva, porquanto prescreve o art. 854.º do C. Civil que "feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos desde o momento em que se tornarem compensáveis".
Quer isto dizer que, verificando-se os demais requisitos da compensação, é a partir do momento da ocorrência da declaração de compensação que se opera a mútua extinção dos créditos.
A importância desta proposição é assim posta em evidência por Antunes Varela: é que... a extinção recíproca dos créditos depende da declaração de com compensação, embora esta possa ser emitida, na generalidade dos casos por um ou outro dos interessados. Isto significa, além do mais, que, enquanto não houver a declaração compensatória, cada um dos créditos continua a poder ser validamente satisfeito ou extinto por qualquer dos outros modos de extinção das obrigações (cumprimento, dação em cumprimento, consignação em depósito, execução forçada, etc.[4]
E, a declaração compensatória é, pelo próprio teor e espírito do n.º 1 do referido art. 848.º, uma declaração receptícia, ou seja, uma declaração que carece de ser dada a conhecer ao destinatário[5] (art. 224.º do C. Civil), que tanto pode ser feita por via judicial, como extrajudicialmente.
No primeiro caso, pode ser efectuado por meio de notificação judicial avulsa (art. 261° do C. P. Civil), exclusivamente destinada a levar ao conhecimento da outra parte a intenção do compensante, ou por via de acção judicial, seja através da petição inicial, seja através da contestação.[6] Quando a compensação é invocada na acção judicial pelo réu, ela pode ser aposta por via de excepção ou como reconvenção.
Quando o devedor é também credor do seu credor opera-se a circunstância jurídico-substantiva da “compensação”, através deste fenómeno jurídico se consentindo que o devedor se desonere do seu débito a expensas deste seu consubstanciado crédito, tudo porque se ajuíza de evidente desnecessidade a injustificada abertura de um posterior debate destinado a exigir uma prestação que pode, desde já, ser devidamente praticada e acautelada.
A iliquidez de qualquer delas não impede a compensação (artigo 847º, n.º 3, do C.Civil) [7] e a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra (art.º 848, n.º 1, do Civil).
Todavia, como dissemos atrás e agora relembramos, a compensação só pode operar-se no caso de o autor da compensação comprovar a exigibilidade do seu crédito; e, “para efeitos de compensação, um crédito só se torna exigível quando está reconhecido judicialmente; este reconhecimento pode ocorrer em simultâneo na fase declarativa do litígio, contrapondo o réu o seu crédito, como forma de operar a compensação” (Ac. STJ de 18.01.2007).[8]
Ora, como comprovado está, o identificado crédito do recorrente/réu - os seus honorários de advogado - está longe de estar judicialmente confirmado; e a autora não o aprova na acção.
Deste modo, sendo esta compensação insusceptível de se poder fazer valer na acção, também o recorrente se não pode dela aproveitar.
II. Argumenta o réu/recorrente no sentido de que o pedido da acção constitui manifesto abuso de direito: tendo sido pactuado que ficaria sem efeito o documento que continha o acordado mútuo logo após o acerto final de contas entre a autora e o réu e seus familiares, convenceu-se o demandado de que a sociedade demandante é quem pagaria as despesas e trabalho por ele despendido e que o assunto ficava encerrado através da verba que vem agora reclamar; é imoral que o trabalho consumido e as despesas efectuadas pelo réu não sejam compensados, ao menos, com a quantia que lhe havia adiantado, o que mais não era do que uma mera provisão de honorários, conclui o recorrente.
Vejamos se o recorrente tem razão.
A figura do abuso do direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima "perde o direito quem dele abusa" e em oposição ao velho adágio romano "qui suo jure utitur neminem laedit".
O abuso do direito está consagrado na nossa lei - art.º 234.º do C.Civil que dispõe: - é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito - trata-se do exercício anormal do direito próprio. O exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica; para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" (Prof. A. Varela; Obrigações; I; pág. 514 /516).
Na fórmula "manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé" vêm a doutrina e a jurisprudência incluindo os casos denominados da chamada conduta contraditória ("venire contra factum proprium").
Arrazoa o recorrente que o procedimento da autora andou largamente distanciado da lisura dos princípios da boa-fé, circunscrevendo esta postura à exigência incontida da autora/recorrida em não querer contrabalançar o montante pedido na acção (€ 125.000) com o valor dos honorários de advogado que, no contexto desta relação, haveria de cobrar; e até se convenceu de que, até ao momento em que judicialmente esta quantia lhe foi pedida, isso mesmo havia sido aceite pela autora.
Ponderemos.
O que detectámos na análise da atitude da autora não é de molde a imputar-lhe alguma deslealdade, honestidade e/ou probidade por ela tida em relação ao réu, isto é, que se lhe possa imputar um juízo de reprobabilidade tal que se deva associar, ao seu porte, a rejeição dos princípios imanentes ao nosso ordenamento jurídico.
O réu, advogado de profissão, haveria de demonstrar na demanda os termos em que agiu no enquadramento dos seus deveres de legista contratado e revelar, outrossim, os direitos que nessa sua actividade liberal se incluíam, justificando-os e apresentando-os, para serem devidamente considerados.
Na falta destes elementos não poderá o tribunal convenientemente analisar as prerrogativas que roga e haverá, por isso, de desmerecer na argumentação que ora deduz em direcção a este seu objectivado rogo.
III. Questiona o recorrente que o acórdão de 2008-06-11 enferma de nulidade, por omissão de pronúncia sobre as consequências da falta de interpelação prévia do réu por parte da autora (já que ficou provado que a interpelação ocorre com esta acção).
Sem razão, todavia.
Na verdade, esta específica questão encontra-se já decidida pelo acórdão deste STJ proferido desde fls.604 a 611 e no sentido de que esta nulidade não ocorre (cfr. fls. 611) - já quanto à segunda nulidade arguida, (nulidade por omissão de pronúncia, por o Acórdão recorrido não se ter pronunciado sobre as consequências da falta de interpelação prévia do R., por parte da A.), constata-se das conclusões do apelante, a fls. 410-412, que a mesma não era objecto do recurso para a Relação, pelo que a mesma se inverifica.
IV. Pretexta o recorrente também que há respostas a determinados pontos da BI que excedem o âmbito das respectivas perguntas e de que noutros casos, não terá sido dada resposta a toda a matéria cuja indagação neles se continha e que o acórdão recorrido labora em erro quando assevera que a regra, nos negócios imobiliários, é correrem as despesas por conta do comprador.
Nesta sua argumentação induz o recorrente que a este STJ está cometida a reapreciação do julgamento desta discriminada matéria de facto e que propõe.
É evidente que esta alegação não colhe.
Funcionando como tribunal de revista e, por isso, excluído por regra da possibilidade de abordar questões de facto, o Supremo Tribunal de Justiça só nos particularizados termos admitidos pelo n.º 2 do art.º 722.º e 729.º lhe é permitida ingerência em matéria de facto, ou seja, neste domínio só é admissível a sua intervenção no campo da designada prova vinculada, isto é, quando a lei exige determinado tipo de prova para certas circunstâncias factuais ou quando atribui específica força probatória a determinado meio probatório.
Como tribunal de revista este Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado, não podendo alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre a matéria de facto, salvo o caso excepcional previsto no art. 722.º, n.º 2, ou seja, a não ser que exista disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Não se incluindo a pretensão do recorrente nesta apontada explicitação legal, também lhe não pode ser dada a razão que neste ponto requer.
Concluindo:
1. A compensação só pode operar-se no caso de o autor da compensação comprovar a exigibilidade do seu crédito, isto é, que esteja judicialmente reconhecido;
2. O réu, advogado de profissão, para se poder averiguar que autora agiu com manifesto abuso de direito, haveria de demonstrar na demanda os termos em que agiu no enquadramento dos seus deveres de legista contratado e revelar, outrossim, os direitos que nessa sua actividade liberal se incluíam, justificando-os e apresentando-os, para serem devidamente considerados; na falta destes elementos haverá o réu de desmerecer na argumentação que ora deduz em direcção a este seu objectivado rogo.
Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Setembro de 2013.
Pires da Rosa
Prazeres Beleza.
______________________
[1] Pires de Lima e A. Varela; Código Civil Anotado; II Volume; pág.130.
[2] In “Obrigações”, 2.º, pág. 211.
[3] In “Obrigações”, 4.º, pág.774.
[4] In A. Varela; Direito das Obrigações; II pág.223.
[5] Rui Alarcão, Confirmações, pág.180.rece de ser dada a conhecer ao destinat a aceite.
[6] A. Varela; Direito das Obrigações; II, pág. 213.
[7] É líquida, em princípio, a obrigação que pode determinar-se por simples cálculo aritmético, não requerendo, por conseguinte, averiguação sobre factos controvertidos (Anselmo de Castro; A acção Executiva Singular; pág.60). Quando tal não acontece, isto é, quando a obrigação tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não está ainda apurado, ou seja, relativamente àquela em cuja prestação é essencial uma “quantidade” (Castro Mendes; Acção Executiva; pág.15), então estamos perante uma obrigação “ilíquida”.
[8]www.dgsi.pt.