CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
DIREITO DE RETENÇÃO
VENDA EXECUTIVA
DIREITOS DE GARANTIA
CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I – No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma para habitação, o promitente comprador goza, nos termos gerais, de direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento definitivo do contrato pelo promitente vendedor.

II - Tal direito confere ao promitente comprador a faculdade de não abrir mão da coisa enquanto se não extinguir o seu crédito.

III - Prosseguindo a execução até à venda executiva, o direito de retenção, que é um direito real de garantia, caduca com esta venda nos termos da 1ª parte do nº2, do art. 824 do C.C.

IV - Quando ocorre a venda executiva, essa função de garantia transfere-se do bem vendido para o produto da venda, em conformidade com o nº3, do mesmo preceito, operando a garantia sobre o respectivo montante e não mais sobre o bem alienado.

V - Com efeito, o mencionado nº2, ao dispor sobre os efeitos da venda em execução e da sua repercussão sobre os direitos reais de garantia e sobre os direitos reais de gozo, distingue claramente a situação de uns e outros.

VI - No que respeita aos direitos reais de garantia (art. 824, nº2, 1ª parte) todos eles caducam com a venda executiva : os bens são sempre transmitidos livres de quaisquer direitos de garantia, sejam de constituição anterior ou posterior à penhora, tenham registo ou não tenham, tenha havido ou não reclamação na execução dos créditos que garantem.

VII – Tal interpretação não é inconstitucional.

A.R.

Texto Integral

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

         Em 18-12-2006, AA e mulher BB, residentes em ..., intentaram, no 6º Juízo Cível da Comarca de Matosinhos, acção ordinária contra os réus “CC – Investimentos Imobiliários, SA”, com sede na ... e DD e mulher EE, residentes em Matosinhos, pedindo:

A) – Se declare que a demandada “CC – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Lda. não cumpriu definitivamente o contrato promessa, identificado nestes autos, que celebrou com o autor, por sua culpa exclusiva;

B)- Se declare que o autor, por causa daquele incumprimento culposo da CC, tem o direito de exigir a esta o dobro da quantia que pagou à CC, no âmbito daquele contrato-promessa e em cumprimento das obrigações que, por essa via, contraiu, cujo montante é de €234 435,02;

C) – Como consequência dos pedidos formulados nas procedentes alíneas A) e B), se condenar-se a CC a pagar aos autores o dobro das quantias que estes lhe pagaram, naquele montante de €234.435,02, porque, por esta acção, exercem efectivamente o direito ao recebimento do dobro que pagaram à CC, em cumprimento das obrigações que assumiram no contrato-promessa ajuizado nesta petição;

D) – Se declare que os autores têm o direito de executar a fracção identificada nesta petição [maxime no art. 51 deste articulado, ou seja, fracção autónoma “R”, correspondente a habitação no 5º andar, direito, traseiras, com arrumo e lugar de garagem na cave, de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal], de modo a que o crédito aqui peticionado seja satisfeito com o produto da sua venda judicial, e que têm o direito real de a reter na sua posse até que o crédito que aqui peticionam seja satisfeito;

E) – Se condene os réus DD e mulher a reconhecer a validade e eficácia de todos os pedidos formulados na petição.

         Para tanto alegaram, em síntese, que o autor marido vendeu mercadorias do seu comércio à 1ª ré.

Por dificuldades financeiras para lhe pagar, esta, por sua proposta, prometeu vender àquele, e este prometeu comprar-lhe, uma fracção autónoma de certo prédio em construção, pelo preço de 117.217,51€.

Embora tenha sido declarado no contrato promessa (fls. 33 a 35) que o autor entregara à 1ª ré, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 52.373,78€ e que a restante parte do preço (64.843,73€) seria paga no acto da escritura, tal quantia não foi efectivamente entregue em dinheiro, antes foi levada em conta, por compensação, no crédito do autor marido.

Em 16-01-2003, a dívida, vencida, da 1ª ré ao autor, decorrente dos referidos fornecimentos, já depois daquele abatimento, era de 101.239,73€.

Então, o autor efectuou a compensação do remanescente do preço do contrato prometido com o seu crédito, ficando este pago e restando o crédito de 36.396,00€.

A 1ª ré obrigou-se a marcar a escritura até 30-09-2002, o que até hoje não cumpriu.

No ano de 2003, a 1ª ré estava em grandes dificuldades económicas, sem meios financeiros para concluir a edificação e, por isso, em Janeiro, entregou ao autor o apartamento, passando este a ocupá-lo como coisa sua, fazendo obras e instalando os serviços de abastecimento necessários, no que despendeu 15.000€, estando a habitá-lo um seu filho, o que tudo lhe confere a posse da fracção.

Até há 2 anos atrás, o autor várias vezes contactou a 1ª ré no sentido de realizarem a escritura, o que esta não quis ou não pode fazer, ficando a partir daí incontactável e em parte incerta.

         Sucedeu que a fracção foi vendida em processo de execução fiscal ao 2º réu, impossibilitando, por isso, o cumprimento da promessa da 1ª ré.

Porém, o autor tem o direito de retenção sobre a fracção enquanto não lhe for restituído o sinal em dobro e de para tal a executar e penhorar.

 Os 2ºs réus sabiam, quando se propuseram adquirir a fracção, que esta estava na posse do autor ou, pelo menos, que não estava na posse da 1ª ré, mas de outras pessoas.

         Apenas os 2ºs réus contestaram, impugnando toda a factualidade alegada pelos autores e refutando o pretenso direito de retenção.

Para tal, alegaram que adquiriram a fracção por compra efectivada por meio de propostas em carta fechada realizada em 10-03-2006, num processo de execução fiscal que correu contra a 1ª ré, nas Finanças de Matosinhos, por dívida de contribuição autárquica.

Tal fracção fora ali penhorada em 18-11-2005.

Em 20-01-2006, foi proferido despacho a determinar a citação dos credores (artº 239º, do CPPT) e a ordenar a venda por aquele meio.

Os credores foram citados (por afixação de editais, um na porta da Repartição de Finanças, outro na sede da Junta de Freguesia e outro na porta da fracção em causa) e foi publicitada a venda, por anúncios insertos nas edições de 1 e 2 de Fevereiro de 2006, no Jornal de Notícias.

         A terem direito de retenção, deviam os autores ter reclamado o seu crédito na execução fiscal, para ali ser graduado no lugar que lhe competisse e ser eventualmente satisfeito pelo produto da venda, produto este para o qual assim se transferiria o seu direito.

Como não reclamaram, não invocaram direito de retenção nem informaram nos autos estarem a ocupar a fracção, o seu crédito passou a ser comum e caducou o direito de retenção.

Nem no processo executivo, nem nos anúncios, nem no momento da abertura de propostas, constou ou alguém, incluindo o fiel depositário, prestou aos 2ºs réus qualquer informação sobre a ocupação da fracção pelos autores e seu eventual direito.

 Foram os 2ºs réus que comparticiparam nas obras de acabamento do prédio.

Nunca os autores se apresentaram perante o condomínio como detentores da fracção, nunca comparticiparam em quaisquer despesas comuns.

Assim, o eventual direito de retenção extinguiu-se com a venda.

         Os 2º réus pagaram o preço e os impostos devidos pela aquisição, foi-lhes adjudicada a propriedade da fracção, entregue o título de transmissão, procederam ao registo predial e, por isso, foram canceladas todas as inscrições relativas aos direitos que caducaram com a venda, estando a fracção registada a seu favor, livre de ónus ou encargos.

                  

         Replicando, os autores impugnaram, dizendo ignorar os factos alegados pelos contestantes relativos ao despacho que mandou citar os credores, ordenou a venda por propostas em carta fechada, fixou a sua data, bem como à citação dos credores por afixação dos editais e à publicação dos anúncios no jornal.

No mais, alegaram que o direito de retenção assenta na posse da coisa, sendo esta seu sinal público, daí a desnecessidade do seu registo predial.

                                                        *

         Por ordem do tribunal, os 2ºs réus juntaram, entretanto, certidão (fls. 146 e seguintes), extraída do processo de impugnação pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, constando além do mais, as seguintes peças do processo executivo:

         -auto de penhora da fracção “R”, realizada em 18-11-2005 na sede da executada (aqui 1ª ré), de nomeação de fiel depositário e entrega daquela a este;

         -despacho de 20-01-2006, a mandar citar os credores com garantia real, os credores desconhecidos e os sucessores dos credores preferentes e a designar data para a venda por meio de propostas em carta fechada, do qual se ordenou a notificação do executado, do fiel depositário, dos titulares do direito de preferência, a afixação de editais, publicação de anúncios e publicitação na Internet;

         -cópias de ofícios, dos quais consta terem sido remetidos sob registo postal com aviso de recepção, à executada, à credora reclamante Caixa Geral de Depósitos e ao depositário;

         -certidões, assinadas pelos respectivos funcionários, da afixação dos editais na Junta de Freguesia e nos “locais determinados por lei” (porta da Repartição de Finanças onde corre a execução fiscal e porta da fracção);

         -cópia dos anúncios publicados no “JN”.

         Mais se narra nessa certidão que dos autos de execução fiscal não consta qualquer reclamação, pelos autores, do seu crédito.

                                                        *

         Proferiu-se despacho saneador e, em face dos factos logo aí considerados assentes, foram conhecidos e decididos os pedidos formulados em D) e E), que foram julgados improcedentes. 

                                                        *

         Os autos prosseguiram para apreciação dos demais pedidos, com elaboração de base instrutória.

                                                        *

Os autores, inconformados, interpuseram recurso do saneador sentença,  na parte em que conheceu parcialmente do pedido, o qual foi admitido como de apelação, com subida diferida.

                                                        *

 

         Realizada a audiência de julgamento e decidida a questão-de-facto, foi proferida sentença final que, em suma, julgou incumprido definitivamente o contrato-promessa, entendeu como sinal prestado apenas o valor de 52.373,78€ e decidiu condenar a 1ª ré a pagar aos autores a quantia de 169.591,29€ (correspondente ao dobro daquele sinal prestado e ao restante crédito por fornecimentos, de 64.843,73€).

                                                        *

         Não tendo sido interposto recurso desta decisão, os 2ºs réus requereram e foi ordenada a subida do recurso ainda pendente, quanto ao saneador-sentença.

                                                        *

         A Relação do Porto, através do seu Acórdão de 4-4-2013, negou provimento à apelação e confirmou o saneador sentença que procedeu ao conhecimento parcial do pedido.  

                                                        *

         Continuando inconformados, os autores pedem revista, onde resumidamente concluem:

         1 – Como se colhe das quatro alíneas do sumário do Acórdão recorrido, este não atendeu à densidade das questões suscitadas e, no específico, ao facto do depositário não ter sido investido na posse da fracção, no processo executivo, e do alegado venire contra factum proprium dos demandados DD e mulher, o que constitui nulidade prevista nos arts 668, nº1, al. d) e 731 do C.P.C.

         2 – No Acórdão recorrido foi postergada a falta de investidura do depositário na posse da fracção e o desconhecimento da afixação do edital.

         3 – Se tivesse sido ponderada a omissão de investidura do depositário na posse da questionada fracção, logo o oficial tomava conhecimento da existência do direito de retenção e citava os recorrentes para os termos do concurso de credores – arts. 839, nº1, al. c) e 864, nº3, al. b) do C.P.C.    

         4 – Os recorrentes não podiam alegar a falsidade da afixação do edital na porta da fracção, porque, desconhecendo o facto, não podiam alegar a sua inexistência, que podia ter ocorrido, mas o papel desprender-se ou alguém o retirar, sem conhecimento deles.   

         5 – O Tribunal recorrido não podia dizer, como fez, que o caso dos autos não é subsumível à 2ª parte, do nº2, do art. 824 do C.C., mas à sua 1ª parte, pois a 1ª parte compreende os direitos de garantia sujeitos a registo, enquanto a 2ª parte acolhe os que produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, como é o caso do direito de retenção.

         6 – Um direito real de garantia não caduca sem que o respectivo titular saiba que está a decorrer o prazo para o exercer.

         7 – Se o interessado desconhecer o facto sem culpa, mas por culpa de quem não investiu o depositário na posse da fracção, não se pode aplicar a este caso o disposto no art. 864, nº10, do C.P.C., mas sim a 2ª parte, do nº2, do art. 824 do C.C.     

         8 – O tribunal não podia ter julgado provado que foi afixado o respectivo edital da penhora na porta do imóvel da casa, porque esse facto foi impugnado e dele não há prova.

         9 – A sentença recorrida também postergou claramente a relevância dos factos alegados nos artigos 46 a 50 da petição inicial, bem como os alegados nos arts 9 a 11 da réplica.

         10 – Da prova desses factos resultaria que os recorridos DD  e mulher agiram em situação de venire contra factum proprium, proibida pelo art. 334 do C.C

         11 – Quando a acção foi intentada, já o processo de execução fiscal estava extinto, sem qualquer possibilidade dos recorrentes aí reclamarem o seu crédito, pois os recorrentes não intervieram no processo de execução, nem dele colheram qualquer notícia.

         12 – O modo como as instâncias decidiram o caso dos autos, bastando-se com a aplicação da previsão do art. 824, nº2, 1ª parte do C.C., conduz a uma interpretação redutora da normatividade ético-jurídica.    

         13 – A posse do edifício ou fracção dele, por parte do promitente adquirente, é o sinal público, perante qualquer interessado na sua aquisição, de que existe o direito de retenção.

         14 – A referida venda executiva não pode produzir quaisquer efeitos contra os recorrentes, nomeadamente por força do disposto na 2ª parte, do nº2, do art. 824 do C.C., pois tal norma prescreve que não se aplica o regime da primeira proposição desse nº2, quando o direito se constitui em data anterior à venda em execução e sendo esse direito um direito que produz efeitos jurídicos independentemente do registo, como é o caso do direito de retenção, cuja constituição e existência não depende do registo.

         15 – Essa venda também não pode produzir efeitos contra os retentores, quando, como no caso aconteceu, não foi cumprido o preceituado nos art. 839, nº1. al. c), 840 e 864, nº3, os quais consagram a forma legal dos retentores terem conhecimento da execução e serem citados para os seus termos e para nela reclamarem o seu crédito.

         16 – Caso se entenda que a norma da primeira proposição do nº2, do art. 824 do C.C. também inclui o direito de retenção, então tal norma é inconstitucional, por violar os arts 1º, 2º, 13º, 18º, nº2, 20º, 65º e 202, nºs 1 e 2 da Constituição da República, bem como o princípio da segurança jurídica, pelo que não pode ser aplicada no caso concreto.        

                                                        *       

         Não houve contra-alegações.

                                                        *

         Corridos os vistos, cumpre decidir:

                                                        *

         A Relação considerou provados os factos seguintes:

A) - Encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto, sob o n.º 10199/98073, a sociedade “CC – Investimentos Imobiliários, Lda”.

B) - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o n.º1915/150295 – R, freguesia da ..., a fracção autónoma sita na Rua ..., e Rua ..., correspondente a habitação do 5º andar direito traseiras e, na cave, arrumo e lugar de garagem.

C) - A propriedade de tal prédio encontra-se inscrita em favor dos aqui réus DD e EE, através da inscrição G-um, apresentação 73/04042006, por compra em processo de execução fiscal movido contra a aqui ré sociedade.

D) - Por contrato promessa datada de 20 de Março de 2002, a aqui ré sociedade declarou prometer vender ao aqui autor a fracção autónoma descrita em B), o qual prometeu adquirir a mesma, conforme documento junto a fls. 33 a 35, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

E) - A compra referida em C) teve lugar no âmbito do processo de execução fiscal 1821-0371028790, que correu termos no Serviço de Finanças de Matosinhos, sendo executada a aqui 1ª ré, conforme certidão de fls. 146 e seguintes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

F) - No âmbito de tal execução foi penhorado, em 18 de Novembro de 2005, o imóvel descrito em B), tendo sido nomeado depositário FF.

G) - Tendo sido afixado o respectivo edital na porta do imóvel em causa.

                                                        *

         Vejamos agora o mérito do recurso.

         1.

         Conforme dispõe o art. 755, nº1, al. f) do C.C., o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442 do mesmo diploma.   

         O direito de retenção é uma garantia especial das obrigações.

Ele confere ao credor, em relação ao devedor e dono da coisa, a faculdade de a reter e de a não entregar enquanto não for pago – art. 754 do C.C.

Mas o credor não pode fazer sua a coisa retida - art. 694 e 759, nºs1e 3, do C.C.

Assim, exercendo a faculdade de a executar, para obter coercivamente a satisfação do seu crédito, sujeita-se ao respectivo processo, à competente penhora e ao subsequente concurso de credores – arts 817, 759, nº1, 601, 604 e 822 do C.C.

No âmbito do processo executivo, o retentor, em consequência da penhora, perde aquela posição, deixando de deter ou possuir a coisa em tal qualidade.

Na verdade, a penhora consiste na apreensão da coisa, incluindo a tomada de posse efectiva do imóvel pelo depositário.

Por isso, o direito de retenção nunca impede a penhora, nem o seu titular lhe pode deduzir embargos de terceiro.

Tal significa que o direito de reter a coisa é oponível ao devedor, seu dono, mas tal faculdade cessa com a penhora, realizada em processo executivo.

Relativamente a terceiros, o direito de retenção faculta ao seu titular o direito de ser pago com preferência aos demais credores do devedor – art. 759, nº1, do C.C.

É uma causa legítima de preferência no concurso de credores.

Na atribuição dessa preferência se manifesta o seu carácter de direito real de garantia.  

Para concretizar o seu direito e exercer tal preferência, o seu titular tem de reclamar o seu crédito, nos termos do art. 865 do C.P.C., a fim de ser verificado graduado e pago – arts 868 e 873, nº2, do C.P.C. (todas as disposições citadas ou a citar do Código do Processo Civil reportam-se à redacção vigente ao tempo dos factos).

 Apesar do art. 864 do Código de Processo Civil conter uma estrutura concebida para garantir a efectiva convocação de todos os credores titulares do direito real de garantia, o art. 864, nº10 do C.P.C. prevê a hipótese de falta de citação, determinando que a falta das citações prescritas tem o mesmo efeito que a falta de citação do réu, mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efectuados, dos quais o exequente não haja sido o exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada pelo exequente ou outro credor pago em vez dela, segundo as regras do enriquecimento sem causa, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos gerais, da pessoa a quem seja imputável a falta de citação.

O regime do processo tributário (CPPT) não difere significativamente do regime do processo civil, que é aplicável nos casos omissos, conforme a sua natureza (art. 2, al. e) e, especificamente, quanto à reclamação de créditos (art. 246).

Comparando-se as normas relativas à penhora, convocação de credores, verificação de créditos e venda, verifica-se que há semelhança entre elas, nos aspectos essenciais, sendo que o regime tributário ainda prevê a citação edital dos credores desconhecidos.

Quanto à venda em execução, o art. 824 do C.C. estabelece.

“1- A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

 2- Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reis que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.

 3 – Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”.   

Prosseguindo a execução até à venda executiva, o direito de retenção, que é um direito real de garantia, caduca com esta venda nos termos da 1ª parte do nº2, do citado art. 824 do C.C.

Quando ocorre a venda executiva, essa função de garantia transfere-se do bem vendido para o produto da venda, em conformidade com o nº3, do mesmo preceito, operando a garantia sobre o respectivo montante e não mais sobre o bem alienado.  

Com efeito, o mencionado nº2, ao dispor sobre os efeitos da venda em execução e da sua repercussão sobre os direitos reais de garantia e sobre os direitos reais de gozo, distingue claramente a situação de uns e de outros.

         Quanto aos direitos reais de gozo (art. 824,nº2, 2ª parte) há que considerar se a sua oponibilidade a terceiros depende ou não de registo.

         No primeiro caso, tais direitos só caducam se não tiverem registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, isto é, se o respectivo registo não for anterior à da mais antiga destas garantias.

         No segundo caso, em que estão em causa direitos reais de gozo que produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, tais direitos não caducam se tiverem sido constituídos anteriormente à mais antiga de qualquer uma daquelas mencionadas garantias.

         Por sua vez, no que respeita aos direitos reais de garantia (art. 824, nº2, 1ª parte), todos eles caducam com a venda executiva: os bens são sempre transmitidos livres de quaisquer direitos de garantia, sejam de constituição anterior ou posterior à penhora, tenham registo ou não tenham, tenha havido ou não reclamação na execução dos créditos que garantem.

         É este o entendimento largamente dominante na doutrina (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed, pág. 97 ; Castro Mendes, Direito Processual Civil (A Acção Executiva)- ed. da AAFDL, 1971, pág. 176 e segs ; Lebre de Freitas, A Acção Executiva , 2ª ed, pág. 274 ; Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 9ª ed, pág. 392 ; Salvador da Costa, Concurso de Credores, 3ª ed, pág. 232/233).

          No mesmo sentido vai a jurisprudência deste Supremo Tribunal (Ac. S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 118 ; Ac. S.T.J. de 25-11-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 3º, 118 ; Ac. S.T.J. de 13-9-2007, Proc. 07B2256, www.dgsi, pt ; Ac. S.T.J. de 12-3-2003, Proc. 1664/05.4TBCVL.C2.S1, www.dgsi.pt).

         Não se ignora que Menezes Cordeiro ( Da Retenção do Promitente na Venda Executiva, ROA, Ano 57 (1997), tomo II, pág. 547 e segs) defende posição contrária, que é a sustentada pelos recorrentes, alegando que o art. 824, nº2, do C.C. não permite concluir pela caducidade de todos os direitos de garantia.

         Na opinião deste ilustre Professor, a excepção da parte final do aludido preceito abrange também os direitos de garantia, pelo que não caducam os que, sendo anteriores à penhora, sejam oponíveis a terceiros, independentemente de registo, pois, na sua tese, o direito de retenção visa também assegurar o gozo da coisa.

         Salvo o devido respeito, afigura-se não ser de sufragar este entendimento, que não tem obtido o aplauso da jurisprudência.

A letra da lei dá mais forte apoio à tese maioritária da doutrina atrás expressa, confirmada por uma interpretação lógica e racional.         

Efectivamente, só a primeira parte do nº2, do art. 824 se refere aos direitos de garantia (os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem), dizendo respeito tudo o mais, incluindo a excepção, aos demais direitos reais, ou seja, aos direitos reais de gozo e apenas a estes.

O direito de retenção do promitente comprador existe para lhe garantir o crédito de indemnização por incumprimento do contrato promessa e não para lhe facultar o uso da coisa prometida vender.

Quando ocorre a venda executiva, essa função de garantia transfere-se do bem vendido para o produto da venda, operando a garantia sobre o respectivo montante, e não mais sobre o bem alienado.

Assim, a argumentação esgrimida pelos recorrentes, com o objectivo de defender o seu direito de retenção sobre a fracção em questão, para além da venda executiva fiscal, não pode proceder.

2.   

Os recorrentes invocam a inconstitucionalidade do art. 824º, nº 2, do CC, quando interpretado no sentido de que a primeira proposição do seu nº2 – “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem”- compreende o direito de retenção, na venda executiva a que se refere o nº 1,por considerarem que viola os artigos 1º, 2º, 13º, 18º, nº 2, 20º (acesso ao direito e à justiça), 65º e 202º, nºs 1 e 2, da Constituição da República, bem como o princípio geral da segurança jurídica, designadamente no caso de o titular do direito de retenção não ser citado no processo executivo para exercer os seus direitos.

Todavia, continuam a não apontar, de forma clara e precisa, qual a concreta dimensão normativa de cada um daqueles preceitos fundamentais que entendem violada pela referida interpretação da lei.

De qualquer modo, sempre se dirá que não vemos que exista qualquer inconstitucionalidade e que se mostrem violados o princípio da segurança jurídica ou os preceitos constitucionais invocados, pelas razões já expressas no seguinte passo do aliás douto Acórdão recorrido, com que se concorda e que se transcreve (fls 341/343):     

“Claro que, como já se reconheceu atrás, por via da circunstância de o direito de retenção não ser apresentado e inscrito no registo predial e por este publicitado, e em resultado de vicissitudes ligadas ao processo e à conduta dos sujeitos nele participantes, uma tal interpretação pode, na prática, conduzir a que, em execução, quiçá fortuitamente, o seu titular não seja chamado a exercer os seus direitos nem da sua pendência tome conhecimento atempado de modo a nela intervir espontaneamente e, com isso, ver diminuída a eficácia da protecção acrescida visada pela criação do regime que lho atribuiu, ou, no limite, reduzidas as hipóteses de satisfação do seu crédito e, nessa medida, ser prejudicado.

Trata-se como se viu de uma opção legislativa consciente que cabe nos poderes de conformação do legislador.

Além de contar com a espontânea e activa diligência razoável, imposta na situação ao próprio credor (perscrutando a existência de outros credores, indagando no registo predial a inscrição de outros direitos e pendência de outros processos, estando atento à notícia de tudo quanto se refira ao imóvel), ele curou de estabelecer procedimentos claramente destinados a potenciar o conhecimento no processo do direito de retenção (além de, no CPPT, se manter a citação dos credores desconhecidos por editais e anúncios, no CPC desenvolveram-se os mecanismos já referidos dos arts 831º, 839º, nº 1, c), 840º, 864º, nºs 3, b), 6 e 9, 865º, nº 3) e assim promover a efectivação participação do seu titular no concurso de credores.

Todavia, atento também à eficácia do processo executivo, à necessidade de não empecilhar a satisfação dos direitos dos demais credores e de garantir aos adquirentes que, com a venda, os bens lhe são transmitidos livres de outros direitos de garantia, não podia deixar de, harmonizando todos os interesses, prever solução para o caso de haver credores não chamados, mas que deviam tê-lo sido.

Assim, nos termos do artº 864º, nº 10, CPC, a falta de citação não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamentos já efectuados, mas fica salvo à pessoa que – como o titular do direito de retenção, vendo fugir-lhe o bem e o seu direito caducado – devia ter sido citada, o direito a ser indemnizada, pelo exequente ou outro credor pago em vez dela, segundo as regras do enriquecimento sem causa, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos gerais, da pessoa a quem seja imputável a falta de citação.

Nesta conjugação harmónica e equilibrada do regime adjectivo com o regime substantivo, não se vê como e em que medida possam resultar violadas as normas referidas pela interpretação e aplicação da norma em causa nos termos sobreditos, mormente perspectivadas sob o direito à justiça, à igualdade, à habitação e à segurança jurídica, afinal não inviabilizados, antes salvaguardados.

 Os fundamentos da República e do Estado de Direito (artºs 1º e 2º) não se mostram abalados.

A confiança e a segurança estão acauteladas em grau e de modo conforme aos desígnios fundamentais, nenhuma desigualdade intolerável e injustificada se verificando (artºs 13º e 18º).

 Está garantido o acesso à justiça e à tutela jurisdicional, bem como a defesa dos interesses legalmente protegidos, segundo procedimentos proporcionais e adequados à sua efectivação (artºs 20º e 202º), não estando a norma em causa no plano das especificamente vocacionadas para realizar o direito à habitação e, por isso, não colidindo com este a interpretação referida (artº 65º)”.

  3.

Dizem os recorrentes que as quatro alíneas do sumário que consta da parte final do Acórdão recorrido, elaborado pela Relação, não atendeu à densidade das questões suscitadas nas conclusões da apelação e, concretamente, ao facto do depositário não ter sido investido na posse da fracção, no processo executivo, o que conduz à nulidade do aresto impugnado, nos termos dos arts 668, nº1, al. D.) e 716, nº1, do C.P.C.

Mas sem razão.

         Não é através do sumário do Acórdão que se mostra elaborado pela Relação que se pode afirmar se ele conheceu ou não de todas as questões suscitadas nas conclusões da apelação.

         Tal conclusão só pode extrair-se da análise do corpo de toda a fundamentação do Acórdão.

         Ora, lendo-se todo o texto do aresto, constata-se que o mesmo se encontra exuberantemente fundamentado, tendo conhecido de todas as questões suscitadas nas conclusões da apelação.

         Os recorrentes discordam é do modo como tais questões foram solucionadas, o que não constitui qualquer nulidade, como é sobejamente conhecido.     

         Relativamente ao pretenso facto, invocado pelos recorrentes, do depositário da fracção nunca ter sido investido efectivamente na sua posse, há que referir que tal questão nem sequer foi alegada nos articulados, apresentando-se como uma questão nova, apenas suscitada em via de recurso.

         De todo o modo, importa aqui deixar consignado o seguinte:

         - consta da alínea F) dos factos provados que”no âmbito de tal execução, foi penhorado, em 18 de Novembro de 2005, o imóvel descrito em B), tendo sido nomeado depositário FF”;

         - da certidão do auto de penhora de fls 147 e 148 também consta que “fizemos penhora e efectiva apreensão” da fracção nela descrita e que “os bens assim penhorados foram entregues ao nomeado depositário infra indicado “.

         Tal nomeação do depositário não foi impugnada, nem o auto de penhora foi arguido de falso.

         Consequentemente, deverá ter-se por provado que o depositário da fracção penhorada foi efectivamente investido na sua posse.

            4.

         Referem também os recorrentes que a Relação não podia ter julgado provado que foi afixado o respectivo edital da penhora na porta da fracção em causa, tendo sido postergado o desconhecimento da afixação desse edital.

           Também aqui lhes falece razão.

         Na sua contestação, os recorridos DD e mulher alegaram que, no processo executivo em que foi vendida a fracção, se procedeu à citação dos credores e à publicitação da venda e que foram afixados editais, sendo um designadamente na porta da mesma fracção.

         Na réplica, sobre esta matéria, os recorrentes limitaram-se a afirmar que desconheciam tal facto.

         Ora, a fls 162 e 163 dos autos, consta uma cópia do edital/ anúncio emitido pela Repartição de Finanças de Matosinhos, sob a epígrafe de “citação de credores desconhecidos “ e “venda por propostas em carta fechada”, assinado pelo Chefe da Repartição e pelo Escrivão, seguindo-se uma folha com os seguintes dizeres:

         “Certidão de afixação – certifico que aos vinte e sete dias do mês de Fevereiro de 2006, afixei o presente edital nos locais determinados por lei. E para constar e por ser verdade, lavrei a presente certidão. O Funcionário”. Segue-se a assinatura.   

         Os “locais determinado por lei”, de acordo com o art. 249, nºs 1 e 3 do Código do Procedimento e Processo Tributário ( CPPT) são a porta da Junta de Freguesia, a porta da Repartição de Finanças onde corre a execução fiscal e, tratando-se de prédios urbanos, a porta de cada um deles.

         Constando de fls 161 a certidão de afixação na Junta de freguesia, a certidão de fls 164 reporta-se à porta da Repartição de Finanças e da fracção penhorada.

         Repetindo o que já consta do Acórdão recorrido, é óbvio que o acto da afixação foi praticado por um oficial público, no exercício das suas funções e competências.

         Por isso, estamos em presença de um documento autêntico que faz prova plena da afixação dos editais nos referidos locais, pois nem a autenticidade da certidão foi questionada, nem a sua força probatória foi abalada, mediante a arguição da falsidade daquele documento – arts 347, 369 a 372 e 383 do C.C.

         Daí que não mereça censura o facto de ter sido considerado provado que foi afixado o respectivo edital na porta do imóvel em causa.

         Por outro lado, não está provado que os recorrentes não tenham tomado conhecimento da sua citação edital e da venda executiva.

         Mas se tal aconteceu, podem socorrer-se do estipulado no art. 864, nº10, do C.P.C., ficando-lhes salvaguardado o direito de serem indemnizados pelo exequente ou outro credor pago em vez deles, segundo a regra do enriquecimento sem causa.

        

         5.   

         No Acórdão recorrido já foi decidido que não se justificava a ampliação da matéria de facto, para averiguar pretensa situação de abuso do direito imputada aos recorridos DD e mulher, na modalidade de venire contra factum proprium, proibida pelo art. 334 do C.C.

         Os recorrentes insistem ter sido postergada a relevância dos factos alegados nos artigos 46 a 50 da petição inicial e 9 a 11 da réplica.

         Todavia, perante a publicidade que foi dada à venda fiscal executiva da fracção e ao processo de citação, e face à solução jurídica da questão, decorrente da interpretação e aplicação dos arts 824, nº2, do C.C. e 864, nº10 do C.P.C., a referida factualidade não assume suficiente relevância para alterar o sentido da decisão, mesmo que tal factualidade viesse a ser considerada provada.

         Daí não haver que ordenar a ampliação da matéria de facto.

                                                        *

         Sumariando:

         1 – No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma para habitação, o promitente comprador goza, nos termos gerais, de direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento definitivo do contrato pelo promitente vendedor.

         2 – Tal direito confere ao promitente comprador a faculdade de não abrir mão da coisa enquanto se não extinguir o seu crédito.  

         3 - Prosseguindo a execução até à venda executiva, o direito de retenção, que é um direito real de garantia, caduca com esta venda nos termos da 1ª parte do nº2, do art. 824 do C.C.

         4 – Quando ocorre a venda executiva, essa função de garantia transfere-se do bem vendido para o produto da venda, em conformidade com o nº3, do mesmo preceito, operando a garantia sobre o respectivo montante e não mais sobre o bem alienado.

         5 – Com efeito, o mencionado nº2, ao dispor sobre os efeitos da venda em execução e da sua repercussão sobre os direitos reais de garantia e sobre os direitos reais de gozo, distingue claramente a situação de uns e outros.

         6 – No que respeita aos direitos reais de garantia (art. 824, nº2, 1ª parte) todos eles caducam com a venda executiva : os bens são sempre transmitidos livres de quaisquer direitos de garantia, sejam de constituição anterior ou posterior à penhora, tenham registo ou não tenham, tenha havido ou não reclamação na execução dos créditos que garantem.      

         7 – Tal interpretação não é inconstitucional.

                                               *

         Termos em que, na improcedência das conclusões do recurso, negam a revista.

         Custas pelos recorrentes.

                                                                           Lisboa, 8-10-2013