1. No tocante aos danos provocados por animais pode distinguir-se a diversidade de situações previstas nos arts 493.º (presunção de culpa do que tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, estando-se, então, em sede de responsabilidade delitual) e 502.º, ambos do CC (responsabilidade com base no risco daquele que, no seu próprio interesse, utilizar quaisquer animais desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.
2. O proprietário que tiver o poder de facto sobre o animal, a ele lhe incumbindo a respectiva vigilância, pode incorrer em responsabilidade delitual se caso disso for e se não se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam ainda verificado mesmo que não houvesse culpa sua.
3. O art. 493.º do CC tem em vista os animais que, por sua natureza, estão sujeitos à guarda e vigilância dos respectivos donos (ou de outrem sobre quem recaia tal obrigação). Presumindo-se que o seu guarda tem culpa no facto causador do dano, dado ter o animal sob a sua custódia, pelo que deve tomar as medidas necessárias para evitar aquele prejuízo.
4. O art. 502.º tem em vista aquele que utiliza os animais no seu próprio interesse, sendo, ainda necessário que o dano proceda do perigo especial que envolve a sua utilização. Assentando tal responsabilidade no risco que se cria, em relação a terceiro, com a utilização perigosa dos animais.
5. Podendo qualquer uma destas responsabilidades não excluir a outra.
6. Apurado o dano, mas não resultando da matéria de facto provada a sua quantificação, nem se concluindo que o respectivo e específico montante não possa, ainda, ser factualmente averiguado, não deve o Tribunal socorrer-se do preceituado no art. 566.º, nº 3 do CPC, mas antes do prescrito no art. 661.º, nº 2 do mesmo diploma legal. Sendo possível ao Tribunal condenar no que se liquidar, mesmo que o pedido em causa tenha sido formulado em quantia certa.
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, E. P., veio intentar a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, contra os réus AA e mulher BB, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe uma indemnização correspondente à quantia global de € 29.786,31, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia 2 de Abril de 2005 e até efectivo e integral pagamento.
Alegando, para tanto, e em suma:
No dia 23 de Julho de 2002, pelas 6 horas e 1 minuto, ao quilómetro 126,510 da Linha da Beira Alta, no sítio de S..., Mangualde, ocorreu um acidente, traduzido no embate entre o seu comboio nº ... e um animal de raça bovina, pertencente e à guarda do réu AA, e que andava à deriva em plena via-férrea.
Tal acidente ocorreu por culpa exclusiva do dito réu AA, que permitiu que o seu animal vagueasse sobre a via-férrea, causando danos, de índole patrimonial, e no montante global do pedido, à autora.
Responsáveis pelo ressarcimento de tais danos são ambos os réus, pois o animal em questão era utilizado no interesse e em proveito comum do casal, que assim deve suportar as consequências do respectivo risco.
Citados regularmente os réus, vieram contestar, tendo alegado, também em síntese:
O réu AA impugnou a factualidade alegada na petição, afirmando ser divorciado, e reconhecendo que o animal de raça bovina colhido pelo comboio era seu e da sua ex-esposa, mas alegando que estava prenhe, encontrando-se ainda recolhido numa propriedade vedada em toda a sua extensão, pelo que não poderia dela ter saído sem auxílio humano, mediante tentativa de furto. Assim, sustentando ter tomado todas as precauções e agido diligentemente, o réu considera não ser responsável pelos danos peticionados, que caracteriza como exagerados.
Concluindo, o réu solicita a sua absolvição do pedido.
Por seu turno, a ré BB começou por excepcionar a sua ilegitimidade, sustentando que o animal em causa pertencia exclusivamente ao seu ex-marido, de quem estava já separada há mais de um ano antes da ocorrência do acidente, inexistindo ainda qualquer proveito comum da respectiva utilização. Além disso, esta ré também impugnou a factualidade alegada pela autora na sua petição.
Replicou a autora, afirmando a legitimidade da ré.
Foi proferido despacho saneador, relegando-se para momento ulterior a apreciação da excepção de ilegitimidade invocada.
Seleccionaram-se os factos tidos por assentes e elaborou-se a base instrutória.
Entretanto, e na sequência de requerimento do réu AA, foi ordenada a apensação a esta acção da acção sumária nº 507/07.9TBMGL, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde.
Nessa acção, a aí autora “Rede Ferroviária Nacional – Refer, EP” demanda o réu AA, alegando a verificação do mesmo acidente discutido nos autos principais, imputando a responsabilidade pela sua produção ao dito réu.
Alega ainda esta autora que esse acidente lhe causou danos, mais concretamente na infra-estrutura ferroviária cuja gestão lhe está cometida, cuja reparação importou o dispêndio das quantias de € 13.288,56 e € 203,50.
Termina a autora peticionando a condenação do réu no pagamento da indemnização global de € 13.492,07, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia 20 de Julho de 2005.
Citado na acção apensa, o réu AA contestou, por via de excepção e de impugnação.
Invocou desde logo o réu a excepção de prescrição do direito de crédito peticionado pela autora, suscitando também, muito embora com dúvidas, a questão do abuso de direito de acção.
Impugnou ainda o réu a factualidade alegada na petição, reconhecendo ser proprietário do animal de raça bovina colhido pelo comboio, mas alegando que estava prenhe, encontrando-se ainda recolhido numa propriedade vedada em toda a sua extensão, pelo que não poderia dela ter saído sem auxílio humano, mediante tentativa de furto. Assim, sustentando ter tomado todas as precauções e agido diligentemente, o réu considera não ser responsável pelos danos peticionados, que caracteriza como exagerados.
Concluindo, o réu solicita a sua absolvição do pedido.
Respondeu a autora à contestação, negando a verificação das invocadas excepções, e concluindo como na petição.
Foi proferido despacho saneador, não se apreciando qualquer das excepções invocadas.
Seleccionaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.
Realizado o julgamento, abrangendo ambas as acções, julgou-se a matéria de facto da base instrutória.
Foi proferida a sentença que julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade, prescrição e de abuso de direito invocadas nas contestações, parcialmente procedente a acção principal, tendo-se, em consequência, condenado o réu AA no pagamento à autora “Caminhos de Ferro Portugueses, EP” das seguintes quantias:
a) Quantia de € 7.914,82 (sete mil e novecentos e catorze euros e oitenta e dois cêntimos), relativa a danos patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde o dia 19-07-2005 e até integral e efectivo pagamento, computados à taxa legal de 4 % ao ano;
b) Quantia de € 6.000 (seis mil euros), relativa a danos patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde a data da presente decisão e até integral e efectivo pagamento, computados à taxa legal de 4 % ao ano.
Tendo-se absolvido a ré BB do pedido contra si formulado pela autora “Caminhos de Ferro Portugueses, EP”.
Tendo-se, ainda, julgado parcialmente procedente a acção apensa, e, em conformidade, condenado o réu AA no pagamento à autora “Rede Ferroviária Nacional - Refer, EP” da quantia global de € 13.492,06 (treze mil e quatrocentos e noventa e dois euros e seis cêntimos), relativa a danos patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde o dia 22-07-2005 e até integral e efectivo pagamento, computados à taxa legal de 4 % ao ano.
Inconformado com a decisão, interpôs o R. AA recurso de apelação, pedindo a sua procedência, “com a consequente absolvição do recorrente atenta a ausência de qualquer conduta dolosa” e, “a não ser esse o entendimento de V/ Exas., sempre se entende que deverá ser reapreciada a prova gravada, nos moldes supra expostos e consequentemente ser o quantum indemnizatório atenuado.”
Também a CP – Caminhos de Ferro Portugueses, E.P., agora CP – COMBOIOS DE PORTUGAL – E.P.E., veio contra-alegar, pugnando pela improcedência da apelação do réu.
De igual modo inconformada com a decisão, a A. CP – Caminhos de Ferro Portugueses, E.P., agora CP – COMBOIOS DE PORTUGAL – E.P.E., interpôs recurso de apelação, pretendendo a sua parcial revogação e substituição por outra que, fazendo a rigorosa interpretação e aplicação da lei aos factos apurados, condene o recorrido no pedido por si deduzido.
O réu AA e a recorrida REFER, E.P.E., não responderam ao recurso interposto pela CP – Caminhos de Ferro Portugueses, E.P., agora CP – COMBOIOS DE PORTUGAL -E.P.E..
Na Relação, e por acórdão de fls 493 a 514, foram as apelações julgadas improcedentes, mantendo-se o decidido na 1ª instância.
Ainda irresignada veio a recorrente CP pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - Incorrectamente, o Tribunal a quo não considerou provado o concreto prejuízo sofrido pela Recorrente pela imobilização daquele seu veículo ferroviário, nem pelos atrasos, supressões e que computou em 12.024,30 €, em 2.864.16 € e 5.616,59 € e ainda em 1.382,26 €, respectivamente, num total de 21.887,31€;
2ª - Face á matéria de facto provada bem como aos documentos juntos com a Petição Inicial sob os números 4, 8, 9 e 10, ás respostas á Base Instrutória ínsitas nos números 12º e 13º a 16°, e aos depoimentos das testemunhas da Recorrente, mais concretamente o do Sr. … Dr. CC e Sr. DD, havia prova suficiente para que fosse dado como provado que na verdade, a Recorrente sofrera aqueles prejuízos, calculados de acordo com os critérios que utilizou e que se encontram espelhados naqueles mesmos documentos,
3ª - Ambos referiram que desde a data do acidente e até ao dia em que o comboio ficou totalmente apto para reentrar ao serviço, como reentrou, demorou 22 dias e 10 horas, esteve a Recorrente impossibilitada de o utilizar e dele usufruir no normal prosseguimento da sua actividade, como pretendia, o que lhe provocou um prejuízo patrimonial elevadíssimo.
4ª - O período de tempo durante o qual se viu privada do mesmo e que corresponde ao tempo gasto na sua reparação e testes - causou um prejuízo correspondente ao custo suportado pela Recorrente durante esse período, calculado com base no limite mínimo do custo de aquisição/amortização da locomotiva em causa, ou seja, corresponde ao custo de posse do referido material, constituído pelas seguintes parcelas: amortização do capital (preço do bem) e juro do investimento originado pela necessidade de recorrer a empréstimos para pagamento do capital ao fornecedor, tendo ainda em conta o número de anos de vida económica dos bens, o qual não foi possível compensar através da realização de receitas obtidas com a utilização do mesmo.
5ª - O prejuízo sofrido com o dano de imobilização durante os 22 dias e 10 H. ascendem a 21.887,31€ com base nos critérios que sucintamente se referem, e que por resultarem de facto ilícito, vencem juros de mora desde essa data, nos termos da al. b ) do n° 2 do art. 805º do C. Civil.
6ª - A indemnização global atribuída a título de imobilização, atrasos e supressões, a no valor de 6.000 € é manifestamente baixa, atendendo aos dias de imobilização, atrasos e supressões, aos elevados custos inerentes, atendendo ainda ao tipo de veículo envolvido (ferroviário) e ao serviço público de transportes prestado, pelo que tal indemnização deveria e deverá ser fixada no valor peticionado, em virtude da metodologia do cálculo efectuado, ou quando muito, sempre perto desse mesmo valor, agora em aplicação do Principio da Equidade.
7ª - O direito da A. tem sido reconhecido por diversas decisões judiciais entre estas as constantes dos - AC STJ de 22.04.1999 - Proc. 196/99 - Relator: Cons. Moura Cruz; AC STJ Proc. n° 2099/08.6; AC STJ de 28/11/2003; AC STJ de 09/02/2011; e o mais recente, AC STJ DE 03/12/2012 - AC TRC de 19.10.1999 - Proc. 1695/99; Ac. TRL, de 6 de Julho de 99 - Proc. n° 8207; AC TRC de 12/12/2001; AC TRC de 20/09/2011; AC TRL til' 16/09/2012;
- Sentença - Proc. n° 291/08.9TBMGL – 2.ºJuízo Tribunal Mangualde; Sentença Proc. 5680/10.6TBLRA - l° Juízo Cível de Leiria, Sentença – Proc. 1679/04.0TBPBL - Tribunal Judicial de Pombal;
8ª - A ressarcibilidade da imobilização da locomotiva, ou seja, a possibilidade de utilizar a todo o tempo e imediatamente um veículo, não deixará de constituir uma vantagem patrimonial. Como escreve Júlio Gomes (in O Dano da privação do uso, RDE, ano XII, pág. 234): «a essência e o significado do património não se esgotam na sua existência (e no mero "ter") mas há também que ter em conta as possibilidades nele incorporadas e que ele concede ao seu titular para a realização das suas necessidades vitais.»
9ª - A privação do gozo de uma coisa pelo titular do respectivo direito constitui um ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte autónoma da obrigação de indemnizar, pois que impede o respectivo proprietário de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza - arts. 483°-1 e 1305° C. Civil.
10ª- No caso dos comboios, como de quaisquer outros transportes públicos, a paralisação dos veículos causada por acidentes rodoviários permite revelar a ocorrência de encargos que, entre outras finalidades, foram assumidos também para assegurar o integral cumprimento de obrigações da empresa transportadora, impondo-se, por isso, por ser de inteira justiça, a pertinente e razoável compensação. (cfr. A. Geraldes. "Indemnização do dano da privação de uso", Almedina, p. 46).
11ª- Ou seja, a opção pelo valor de amortização do veículo, como critério para o cálculo do montante do dano de privação de uso do veículo, embora determinado por regras de natureza contabilística e fiscal, é um critério objectivo, e justifica-se ainda neste caso pois a Autora é uma empresa e como tal afere os seus custos exactamente por aquelas regras, e é usual recorrer-se ao mesmo, como aliás decorre do AC TRP de 11/05/2010.
12ª- Não se necessita de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, pois tudo isso estará abrangido pela privação do uso do veículo a ressarcir nos termos referidos ou, em última análise, se necessário, segundo critérios de equidade.
13ª- No caso das composições ferroviárias, pronunciou-se em idêntica situação o STJ no Acórdão de 25/1112003 (em sede de Recurso do TRE, inalterado) onde decidiu que "Para o cálculo do valor indemnizatório devido pela imobilização de tais transportes afigura-se que deve o tribunal socorrer-se dos poderes investigatórios que a lei lhe faculta e utilizar como critério da formação da convicção o que se ajustar às especificidades do caso. Assim, nada impede que o tribunal recorra, na formação da sua convicção, a instrumentos de natureza financeira, a tabelas de reintegrações e de amortizações previstas para efeitos contabilísticos, tal como no caso dos autos, as tabelas utilizadas pela apelada para determinação dos seus prejuízos dada a natureza dos danos em causa e dificuldade da sua prova directa (cfr. ob. cit. p. 51)." É na ponderação dos valores assim obtidos com a demais prova produzida e atendendo ainda às regras da experiência, que deve ser determinado o quantum indemnizatório devido.
14ª- Os critérios utilizados pela Recorrente para quantificar os prejuízos advindos da imobilização são objectivos, rigorosos e concretos e no uso dessa metodologia, concluindo-se que ascende a 21.887,31€ o montante total dos prejuízos sofridos pela Recorrente pelos quais é responsável o Réu, porquanto a indemnização pela sua reparação e imobilização deve pautar-se pelo Principio da Reparação Integral dos danos sofridos pelo lesado, e in casu, englobando os danos emergentes da imobilização daquele comboio, porquanto o património da Autora saiu lesado cm virtude daquele acidente, causado pelo veículo segurado pela Ré[1], atendendo a que aquele património engloba, obviamente, a utilização dos seus bens próprios ou seja, a fruição daquele bem, e que lhe foi retirada durante o lapso de tempo em que o mesmo esteve imobilizado.
15ª- Impõe-se considerar provado que a Recorrente sofreu um prejuízo patrimonial advinda da imobilização daquele comboio durante o período compreendido entre o dia do acidente e o dia em que o mesmo ficou apto a prosseguir a sua finalidade, no valor peticionado, de 21.887,31€.
16ª- Atendendo-se á Matéria de Facto assente pode-se facilmente concluir que o animal do Réu foi o único ou principal responsável pela eclosão do acidente, e consequentemente responsável pelos prejuízos causados devendo dessa forma ser considerado procedente o pedido da Recorrente.
17ª- O pedido da Recorrente devia ser julgada procedente pois logrou provar-se os factos necessários à integração dos respectivos requisitos (cfr. arts. 342º, nº 1, 483°, n.º 1 e 487°, nº 1, todos do C.C.).
18ª- Encontram-se assim preenchidos os pressupostos dos artigos 483.º e 563°, ambos do Código Civil, e, atendendo á matéria de facto assente sob os números 1°, 2°, 6°, 12°, 13°,14°,15°,16°,19°, será a este que deve ser imputada a responsabilidade pelo mesmo, e dai extraídas as devidas conclusões e consequências quanto á inerente obrigação de indemnizar a Recorrente CP.
19ª- O Tribunal a quo ao negar total provimento dos pedidos peticionados, violou por errada interpretação os artigos 483°, 562.º, 564.º e o nº 3 do artigo 566° do Código Civil.
O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
1. Por força do disposto no nº 2 do art. 2º do D.L. nº 104/97, de 29-04, compete à autora “Rede Ferroviária Nacional – Refer, EP” a gestão das infra-estruturas integrantes da rede ferroviária nacional;
2. Nos termos da alínea b) do art. 4º do mesmo diploma legal, entende-se por “gestão da infra-estrutura” a “gestão da capacidade, conservação e manutenção da infra-estrutura, bem como a gestão dos respectivos sistemas de regulação e segurança”;
3. Por força do disposto no nº 3 do art. 15º dos Estatutos da “Refer, EP” (Anexo I ao supracitado diploma), compete-lhe ainda a administração dos bens do domínio público ferroviário do Estado afectos às suas actividades;
4. No dia 23 de Julho de 2002, ao quilómetro 126,510 da Linha da Beira Alta, no sítio de S..., freguesia e comarca de Mangualde, às 6 horas e 1 minuto, o comboio nº ..., pertencente à autora “Caminhos de Ferro Portugueses, EP”, colheu um animal de raça bovina que andava à deriva em plena via-férrea – al. A) dos factos assentes;
5. A colhida ocorreu por o bovino se encontrar sobre a via-férrea, constituindo um obstáculo à circulação ferroviária e pondo em risco a mesma – resposta ao quesito 2.º;
6. O maquinista conduzia o comboio a 86 Km/h quando a velocidade permitida para aquele local era de 110 Km./h – resposta ao quesito 3.º;
7. O bovino foi avistado quando se encontrava a cerca de 200 metros de distância do comboio, tendo o maquinista frenado imediatamente a composição, mas apesar disso não conseguiu evitar a colisão – respostas aos quesitos 4.º e 5.º;
8. O bovino foi visto pela G.N.R. na E.N nº 234, tendo sido alertados pelo telefone por um desconhecido – resposta ao quesito 28.º;
9. Da colisão descrita, resultaram para a autora “Caminhos de Ferro Portugueses, EP” prejuízos com o facto de a colhida ter originado o descarrilamento de uma carruagem do comboio (nº …) – resposta ao quesito 6.º;
10. O facto referido no ponto anterior teve por consequência a utilização de um comboio socorro para carrilamento, preparação e acompanhamento da UTE (Unidade Tripla Eléctrica, vulgo automotora eléctrica) até ao local em que foi reparada – resposta ao quesito 7.º;
11. Os custos de manutenção do comboio socorro foram de € 170,91 – resposta ao quesito 8.º;
12. O carrilamento implicou um custo de € 2.072,05 – resposta ao quesito 9.º;
13. A preparação e acompanhamento da UTE para transporte para a oficina custou € 2.157,50 – resposta ao quesito 10.º;
14. Sofreu ainda a autora “Caminhos de Ferro Portugueses, EP” prejuízos com o conserto da automotora acidentada, UTE …, na qual foram realizadas reparações diversas, por ter descarrilado, que importaram em € 1.515,40, e na qual teve de ser aplicado um rodado novo, que importou em € 1.254,96 – resposta ao quesito 11.º;
15. Sofreu a autora “Caminhos de Ferro Portugueses, EP” prejuízos com a imobilização, os atrasos de comboios de longo curso, as supressões dos comboios de longo curso e o transbordo rodoviário – resposta ao quesito 12.º;
16. A autora “Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” sofreu prejuízos, cujo valor não foi possível apurar, em consequência da imobilização da automotora entre as 6 horas do dia 23-07-2002 e as 16 horas do dia 14-08-2002 – resposta ao quesito 13.º;
17. As circulações de passageiros da autora “Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” sofreram os seguintes atrasos – comboio nº 510 – 2 horas e 59 minutos; comboio nº 511 – 37 minutos; comboio nº 312 – 3 horas e 53 minutos; comboio nº 5400 – 3 horas e 14 minutos; comboio nº 5403 – 2 horas e 7 minutos; comboio nº ... – 1 hora e 52 minutos; comboio nº 5421 – 1 hora e 59 minutos; comboio nº 5423 – 1 hora e 5 minutos –, o que lhe causou um prejuízo global, em dispêndio de combustível e despesas de manutenção, cujo valor não foi possível apurar – resposta ao quesito 14.º;
18. As circulações de mercadorias da autora “Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” sofreram os seguintes atrasos – comboio nº 62347 – 12 minutos; comboio nº 64341 – 65 minutos; comboio nº 68041 – 50 minutos; comboio nº 68042 – 55 minutos; comboio nº 68043 – 26 minutos; comboio nº 68044 – 23 minutos; comboio nº 68045 – 33 minutos; comboio nº 72540 – 50 minutos; comboio nº 73130 – 2 minutos; comboio nº 75534 – 3 minutos; comboio nº 75732 – 10 minutos; comboio nº 83482 – 199 minutos; comboio nº 83845 – 228 minutos; comboio nº 84436 – 66 minutos –, o que lhe causou um prejuízo global, em dispêndio de combustível e despesas de manutenção, cujo valor não foi possível apurar – resposta ao quesito 15.º;
19. Tiveram de ser suprimidos os comboios da autora “Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” com os nº 75341, num percurso de 78 Km.; 77044, num percurso de 11 Km.; 77045, num percurso de 11 Km.; 77046, num percurso de 11 Km.; 77047, num percurso de 11 Km., o que lhe causou um prejuízo global cujo valor não foi possível apurar – resposta ao quesito 16.º;
20. Sofreu também a autora “Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” prejuízos com o transbordo rodoviário dos passageiros afectados pelo acidente e pelas impossibilidade de utilização da via, pois que, para tanto, recorreu ao aluguer de várias viaturas pesadas de passageiros para fazer a ligação Mangualde-Nelas-Mangualde, pelo que pagou as quantias de € 165, € 165, € 200, e € 200 – resposta ao quesito 17.º;
21. Perante alguns passageiros que circulavam no comboio descarrilado, teve ainda de suportar o custo do táxi chamado para os levar, que importou em € 14 – resposta ao quesito 18.º;
22. E foram provocados vários danos na infra-estrutura ferroviária, cuja reparação e desimpedimento da via, entre encargos com mão-de-obra que foi necessário disponibilizar, trabalhos executados e materiais substituídos, importou, para a autora “Refer, EP” uma despesa no valor de € 13.288,56 e de € 203,50 – respostas aos quesitos 2.º e 3.º;
23. O animal de raça bovina em questão, com o brinco PT…, pertencia aos réus AA e BB, e estava à guarda do réu AA – resposta ao quesito 21.º;
7.24. O animal encontrava-se recolhido numa propriedade dos réus AA e BB denominada Quintal ..., sita na freguesia de ... – respostas aos quesitos 22.º e 26.º;
25. No terreno referido no ponto anterior encontrava-se instalada uma vedação, com rede e arame farpado, numa altura de pelo menos um metro – resposta ao quesito 23.º;
26. A ré BB, no dia 23 de Julho de 2002, já não partilhava a habitação, leito, refeições e despesas com o réu AA – resposta ao quesito 29.º;
27. Os réus AA e BB divorciaram-se em 8 de Outubro de 2002;
28. Da relação de bens comuns, apresentada na sequência do divórcio, não constam quaisquer animais – resposta ao quesito 30.º;
29. O réu AA apresentou queixa por furto do animal, a qual se encontra certificada a fls. 55 dos autos principais, e que originou um processo de inquérito, que findou com o despacho de arquivamento cuja cópia consta de fls. 59 dos autos principais – resposta ao quesito 27.º;
30. Por Auto de Notícia lavrado em 2002-07-23, por funcionário da autora “Refer, EP”, devidamente ajuramentado, foi constatado que pelas 06.01 horas, ao Km. 126,510 da Linha da Beira Alta, no Lugar de S..., da freguesia e concelho de Mangualde, havia sido colhido, pelo comboio nº …-0, um animal de raça bovina, pertencente ao aqui réu, que andava à deriva em plena via férrea – al. E);
31. Foi requerida, em 21-07-2005, neste Tribunal, a notificação judicial avulsa do réu (Processo nº 487/05.5TBMGL, do 2º Juízo) -documento de fls. 95 – al. F);
32. Contudo, não obstante a referida notificação ter sido efectivada em 22-07-2005, até ao momento o réu AA nada fez para ressarcir a autora “Refer, EP”.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.
As quais se podem resumir à de saber se se deve arbitrar à autora CP, como correcta indemnização (i) pela privação do uso do seu veículo, durante 22 dias e 10H00, (ii) pelos atrasos nas circulações de passageiros, (iii) pelos atrasos nas circulações de mercadorias e (iv) pela supressão de diversas circulações, a quantia global de € 21 887,31 a tal título peticionada.
Correspondente (i) a € 12 024,30 pela imobilização propriamente dita, (ii) a € 2 864,16, pelo prejuízo decorrente dos atrasos dos comboios de passageiros de longo curso, (iii) a € 5 616,59, pelo prejuízo decorrente dos atrasos dos comboios de mercadorias de longo curso e (iv) a € 1 382,26 pelos prejuízos decorrentes da supressão de comboios de longo curso.
Provado tendo ficado, além do mais, que, por via do acidente, por culpa do réu, ficou a autora impossibilitada de utilizar o seu veículo e de dele usufruir no prosseguimento da sua actividade, durante 22 dias e 10H00, correspondente ao tempo gasto na sua reparação e em testes.
Sustentando a recorrente que o prejuízo decorrente da imobilização da automotora (€ 12 024,30), foi calculado com base no limite mínimo do seu custo de aquisição/amortização, sendo constituído pela amortização do capital (preço do bem) e juro do investimento originado pela necessidade de recorrer a empréstimos para pagamento do capital ao fornecedor, tendo ainda em conta o número de anos de visa económica dos bens, que não foi possível compensar através da realização de receitas obtidas com a sua utilização.
Sem necessidade de se provar o prejuízo efectivo, que estará abrangido pela privação do uso do veículo, nos termos que melhor defende, se necessário com recurso à equidade.
Sustenta, por seu turno, o recorrido a improcedência da pretensão da recorrente, já que, não tendo sido possível apurar o montante dos prejuízos, não pode a decisão final ser contrária à fundamentação e à decisão da matéria de facto.
O Tribunal da Relação, no seu acórdão recorrido, decidindo sobre a questão ora de novo suscitada, por com ela ainda a autora não se conformar, entendeu manter as respostas dadas aos quesitos 13.º a 16.º da base instrutória, na apelação também impugnadas.
Provado ficando, assim, tal como já vinha da 1ª instância, que, em consequência da imobilização da automotora, entre as 6H00 do dia 23/7/2002 e as 16H00 do dia 14/8/2002, a autora sofreu prejuízos de montante não apurado, ao invés do montante de € 12 024,30 expressamente perguntado – resposta ao quesito 13.º.
E que, se verificaram atrasos nas circulações de passageiros, com prejuízo global em dispêndio de combustível e despesas de manutenção, com valor não apurado, em vez do de € 2 864,16 perguntado – resposta ao quesito 14.º.
Tendo-se, também, verificado atrasos nas circulações de mercadorias da autora, o que lhe causou um prejuízo global, em dispêndio de combustível e despesas de manutenção, cujo valor não foi possível apurar, ao invés do montante de € 5 616,59 que vinha expressamente perguntado – resposta ao quesito 15.º.
E prejuízos para autora com a supressão de diversas circulações, em valor que não foi possível apurar, ao invés do de € 1 382,26 que vinha expressamente perguntado – resposta ao quesito 16.º.
Como é bem sabido, e a recorrente não coloca agora em causa a decisão da Relação sobre a impugnação da matéria de facto, também objecto do respectivo recurso de apelação, este Supremo Tribunal de Justiça não pode alterar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido sobre a matéria de facto, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - art. 729.º, nº 2 do CPC.
Pois, o Supremo Tribunal de Justiça, como Tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico que julga adequado, não conhecendo, como antes dito, em princípio de matéria de facto – citado art. 729.º, no seu nº 1. Cabendo-lhe, assim, aplicar ao julgamento de facto emitido, em regra, pela Relação, o regime jurídico que julgue adequado.
E, sendo, em princípio[2], definitivo o julgamento de facto efectuado pelo Tribunal da Relação, como instância que é, terá este STJ que examinar a questão ou questões de direito julgadas pela Relação[3], decidindo que tal Tribunal interpretou e aplicou correctamente a lei substantiva[4].
Apresentando-se, assim, a intervenção deste Tribunal, no julgamento da matéria de facto, como meramente residual, havendo apenas que averiguar da observância de direito probatório material ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (nº 3 do mesmo art. 729.º).
Não lhe competindo sopesar o valor que, segundo a consciência e a argucia do julgador das instâncias, for de atribuir aos diversos meios probatórios de livre apreciação, mas apenas assegurar que se respeite a lei, quando ela atribui a determinados meios probatórios um valor tabelado e insusceptível de ser contrariado por outros (arts 364.º e 371.º do CC[5]).
Não estando aqui em causa saber se da imobilização da locomotiva, se da privação do seu gozo, resultaram danos para a autora. Bem como se para a mesma, do acidente em apreço, resultaram prejuízos pelos atrasos em circulações e por supressões doutras.
Já que esses danos – em si mesmos – resultaram provados.
Se bem que em valor que as instâncias, no seu julgamento de facto, não conseguiram apurar.
Nessa medida resultando a discordância da recorrente/autora, já que pretende terem tais respectivos danos ficado apurados nos montantes que quantitativamente especificou. Mormente quanto ao dano resultante da comprovada – e que ninguém põe em causa – imobilização.
Mas, e sem se questionar que o método de avaliação de tais danos - os resultantes da imobilização e consequente privação do gozo da máquina - bem poderia ser o pela ora recorrente apontado, não se olvidando o serviço público que a mesma presta, que, desde logo, não se compadece com a privação do uso da locomotiva, o certo é que a Relação, com a palavra final, em princípio[6], sobre tal matéria, concluiu que os indicados e específicos valores a respeito fornecidos pela autora, foram calculados por estimativa, utilizando valores médios inscritos em tabelas elaboradas pelo seu Gabinete de Estudos e Planeamento, sem reflectirem valores em concreto apurados. Sem que se pudesse, assim, dar como provados os montantes a respeito especificados.
Quer dizer: provado está, tendo a autora, lesada, nessa medida, cumprido o ónus probatório que sobre si impende (art. 342.º, nº 1), que a mesma, por via de tais ocorrências – a da privação do gozo, a dos atrasos nas circulações e a das supressões de circulações – sofreu prejuízos. Não tendo sido possível, também no entender da Relação, sem possibilidade de censura nossa, apurar os seus montantes precisos.
Não se colocando aqui em causa os demais pressupostos da obrigação de indemnizar em apreço.
Ora, entendeu a Relação haver culpa presumida do réu, dono do animal que deu origem ao sinistro, nos temos do art. 493.º, nº 1. O qual, segundo a mesma, deve também ser responsabilizado com base no risco, por força do preceituado no art. 502.º do mesmo diploma legal.
Acrescentando que, não tendo os danos sofridos pela CP ficado provados no seu montante, e afigurando-se-lhe que “o grau de culpabilidade do ora réu (culpa leve, já que nunca suspeitou/desconfiou que o animal pudesse sair da propriedade que estava vedada com rede e arame farpado), a situação económica deste (já que não se alega e, portanto, não se prova, que seja pessoa que goza de boa saúde económica e financeira ou que seja pessoa de posses/bens/propriedades), sendo que, designadamente, não é titular de qualquer seguro pelo qual houvesse transferido a responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos/danos decorrentes de qualquer acidente com o referido animal, bem como a situação económica da lesada (que é uma das maiores e economicamente mais poderosas empresas de Portugal, mesmo que a sua situação económica possa não ser muito boa), justificam que, … , se faça uso do recurso à equidade”.
Concluindo que a quantia a respeito arbitrada pela 1ª instância se deve considerar razoável e justa.
Vejamos o que dizer, entrando-se agora na decisão de matéria de direito, que este STJ deve julgar, dentro dos limites da matéria alegada e dada como provada, sem estar sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664.º ex vi dos arts 713.º, nº 2 e 726.º, todos do CPC).
Tendo ficado provado, a propósito do bovino que, andando à deriva na via-férrea, foi colhido pelo comboio da autora/recorrente[7] - que então circulava à velocidade de 86 Km/h, sendo, no local, a velocidade permitida de 110 Km/h, avistando-o o maquinista a 200 m. de distância, tendo travado de imediato - que o mesmo pertencia ao réu e mulher, estando á guarda daquele, numa propriedade que a ambos pertencia e que estava vedada, com rede a arame farpado, numa altura de, pelo menos, um metro.
E, nada mais.
Não se tendo provado, além do mais, que o animal não podia ter transposto a vedação sem ajuda humana, quer porque esta era demasiado alta, quer porque o mesmo estava prenhe, nem que o réu tivesse tomado todas as precauções, vedando a sua propriedade com rede e arame farpado com a altura de 1,30 m – respostas aos quesitos 24.º, 25.º e 26.º da primeira base instrutória.
Nada se havendo provado, também, quanto à situação económica do réu.
Sabendo-se, quanto à autora (art. 514.º, nº 1 do CPC), que é uma (grande) empresa portuguesa de transporte ferroviário, que, em Junho de 2011 apresentava um prejuízo de 195 milhões de euros e uma dívida de 3.3 milhões de euros[8].
Ora, no tocante aos danos causados por animais cremos poder-se distinguir a diversidade de situações previstas nos arts 493.º (presunção de culpa do que tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, estando-se, então, em sede de responsabilidade delitual) e 502.º (responsabilidade com base no risco daquele que, no seu próprio interesse utilizar qualquer animal, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização[9]).
Referindo-se a primeira às pessoas que assumiram o encargo de vigilância dos animais (em princípio, depositário, mandatário, guardador, tratador, interessado na compra que experimenta o animal, etc[10]). E a segunda, àqueles que utilizam o animal no seu próprio interesse (proprietário, usufrutuário, possuidor, locatário, comodatário, etc[11]).
Tendo quanto a estas inteiro cabimento a ideia do risco, pois quem utiliza, no seu próprio interesse, os animais que, como irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, mais ou menos graves, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização.
Atingindo normalmente este fundamento da responsabilidade civil o proprietário ou similar, que tem um direito real do gozo sobre o animal.
Podendo até cumular-se as duas responsabilidades ora em apreço, caso, desde logo, o proprietário (ou similar) tenha incumbido outrem da vigilância do animal e se o facto danoso provier da culpa presumida deste. E se esta não existir, caberá a obrigação de indemnizar apenas sobre o proprietário (ou similar) com fundamento no risco[12].
Podendo, também, à partida, o proprietário que tiver o poder de facto sobre o animal, como in casu sucede, a ele lhe incumbindo, de igual modo, a respectiva vigilância[13], incorrer em responsabilidade delitual se caso disso for (e se não provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam verificado ainda que não houvesse culpa sua).
Podendo, de facto, entender-se que o mencionado art. 493.º tem em vista os animais domésticos que, por sua natureza, estão sujeitos à guarda e vigilância dos respectivos donos (ou de outrem sobre quem recaia tal obrigação). Presumindo-se que o seu guarda tem culpa no facto causador do dano, dado ter o animal sob a sua custódia, pelo que deve tomar as medidas necessárias para evitar aquele prejuízo.
E que o art. 502.º tem em vista aqueles que utilizam os animais no seu próprio interesse, necessário sendo, ainda, que o dano proceda do perigo especial que envolve a utilização do animal.
Assentando tal responsabilidade no risco que se cria, em relação a terceiros, com a utilização perigosa de animais.
Nada impedindo que uma responsabilidade não exclua a outra[14].
Sendo certo que a utilização de animais, seres irracionais, que reagem a estímulos e a instintos, implicando o aproveitamento das suas aptidões para satisfazer as necessidades de quem deles beneficia, podendo, desde logo, ser utilizados quer no trabalho, quer na alimentação, por quem sobre eles exerce o poder de facto, engloba riscos por via do seu comportamento, subtraindo-se á guarda e custódia a que estão sujeitos, causando danos a terceiros[15].
Sendo, com efeito, fácil de entender, - sempre se dirá ainda -, a imposição ao dono ou ao guarda do animal da responsabilidade pelos danos pelo mesmo causados, salvo provando, no que ora pode interessar, a falta de culpa.
Assim se presumindo que o seu guarda tem culpa na produção dos danos que foram causados, já que, tendo a sua custódia, deverá o mesmo tomar as medidas necessárias para evitar o dano, estando em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, pois, tendo o animal à sua disposição deve saber, como ninguém, se foi cauteloso na sua guarda.
Sendo o guarda todo aquele que possui a coisa, por si ou e nome de outrem, desde que sobre ela possa exercer um controlo físico, com a obrigação de a guardar, de a vigiar, de adoptar, enfim, as cautelas convenientes[16].
Ora, sabendo-se apenas que o animal causador do dano era de raça bovina, com certeza com porte considerável (art. 514.º do CPC), que estava à guarda do réu, seu dono, num terreno vedado com rede e arame farpado com altura de, pelo menos, um metro, concluir se deve àquele se poder imputar a responsabilidade pelo acidente, quer com base na sua culpa presumida (que cabe também ao vigilante do animal, que, como antes vimos, não conseguiu provar que não houvesse culpa sua), mas também com base no risco, por força do mencionado art. 502.º.
Tal como decidiram a propósito as instâncias.
O que nos leva, desde logo, a não poder limitar a sua responsabilidade, como fez a Relação, ao abrigo do disposto no art. 494.º.
Pois, mesmo que estivessem preenchidos os pressupostos para a aplicação do prescrito em tal preceito legal - o que não é líquido[17] - a responsabilidade do réu não se funda, desde logo, apenas na mera culpa.
Limitando-se a estes específicos casos a faculdade concedida aos Tribunais por este preceito.
Ficando a mesma excluída dos casos de responsabilidade pelo risco[18].
E, assim, o montante da indemnização por danos patrimoniais deve, antes, corresponder ao prejuízo causado – arts 564.º e 566.º.
Não se confundindo, também, este comando – o da limitação da indemnização equitativamente fixada – com o prescrito no art. 566.º, nº 3, que manda que o Tribunal julgue de acordo com a equidade, dentro dos limites que tiver por apurados, se não se puder averiguar o valor exacto dos danos.
Pressupondo o mesmo a alegação de factos que permitam ao Tribunal fixar, em juízo de equidade, o valor dos danos por não ser possível determinar o seu exacto valor.
Não se dispensando o lesado de alegar e provar os factos que revelem a existência de danos e permitam a sua avaliação segundo um juízo de equidade[19].
Aí se prevendo os casos em que exista impossibilidade de averiguar o valor exacto dos danos causados ao lesado, não quando haja apenas falta de elementos para a sua fixação. Desde que o dano, em si mesmo, fique, como ficou aqui, dado como provado.
E, assim, apurado o dano, mas não resultando da matéria de facto dada como provada a sua quantificação, nem sequer de forma aproximada, nem se concluindo, por seu turno, que o respectivo e específico montante não possa, ainda, ser factualmente averiguado, não deve o Tribunal socorrer-se do preceituado no nº 3 do art. 566.º. Mas antes do prescrito no art. 661.º, nº 2 do CPC.
Sendo possível ao Tribunal condenar no que se liquidar, mesmo que o pedido em causa tenha sido formulado em quantia certa.
Como in casu sucedeu.
Havendo, pois, quanto aos danos agora em causa – privação do gozo da locomotiva, atrasos nas circulações e supressão de circulações – peticionados pela autora no montante global de € 21 887,31, apurado que está, desde logo, terem aqueles se verificado, mas sem que tenha sido possível provar o seu valor, que condenar o réu no que vier a ser liquidado.
Custas por recorrente e recorrido, provisoriamente, na proporção de metade para cada um deles, deixando-se para final, após a liquidação, o seu rateio definitivo.
Lisboa, 14 de Novembro de 2013
Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Fernando Bento
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[1] Haverá lapso, por certo, com a menção de “acidente causado por veículo segurado na ré”.
[2] Cfr. excepções previstas no art. 722.º, nº 2 do CPC. Bem como o art. 712.º, nº 6 do mesmo diploma legal.
[3] Ou pela 1ª instância, nos recursos per saltum.
[4] Lebre de Freitas e outros autores, CPC Anotado, vol. 3.º, p. 135/136.
[5] Sendo deste diploma todas as disposições a seguir citadas sem outra menção.
[6] Não se vislumbrando razões que permitam a este STJ sindicar tal decisão de facto.
[7] Originando o acidente dos autos.
[8] Informação pública disponível em Wikipedia.
[9] É, assim, necessário que o dano esteja conexado com o perigo especial que deriva da utilização do animal.
[10] Sendo responsável aquele que detém, não o poder jurídico sobre o animal, mas o poder de facto, quele que o possui, por si, ou em nome de outrem – Vaz Serra, Bol. nº 55, p. 366.
[11] O primeiro elemento de que deriva esta responsabilidade consiste no poder jurídico de utilizar o animal no próprio interesse. Mantendo-se a mesma se o animal se tiver perdido, tiver fugido ou se tiver extraviado – António Pereira da Costa, Dos Animais (O Direito e os Direitos), p. 59.
[12][12] A. Varela, Direito das Obrigações, vol. I, p. 646 e ss, P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. I, p. 495, A. Costa, Direito das Obrigações, p. 409/410 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, p. 348.
[13] Rodrigues Bastos, Notas ao CC, vol. II, p. 291.
[14] Ac. do STJ de 19/6/2007 (Ribeiro de Almeida), Pº 1730/06.
[15] Ac. do STJ de 30/5/2013 (Fernando Bento), Pº 1445/08.3TBAMT.P1.S1.
[16] Vaz Serra, ob. cit., p. 365 e ss.
[17] Não se vê, salvo o devido respeito, onde possa ter ficado provado que o réu nunca suspeitou/desconfiou que o animal pudesse sair da propriedade que estava vedada com rede e arame farpado ou o que quer que seja quanto à sua situação económica. Não relevando, também a seu favor o facto de não ter celebrado qualquer seguro de responsabilidade civil para ressarcimento de terceiro dos danos eventualmente provocados pelo seu animal (ou animais). Não se encontrando, em suma, e salvo o devido respeito por outra opinião, preenchidos os pressupostos excepcionais da limitação da indemnização em caso de mera culpa. Mesmo que desta, in casu, apenas se tratasse.
[18] Ibidem, p. 293.
[19] P. Lima e A. Varela, ob. cit., p. 584.