CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
TRADIÇÃO DA COISA
PREÇO
PAGAMENTO
POSSE
MERA DETENÇÃO
INVERSÃO DO TÍTULO
Sumário


I. – Num contrato-promessa, com eficácia meramente obrigacional, em que não ocorreu o pagamento da totalidade do preço acordado para a venda de um andar prometido vender, embora tenha sucedido a tradição da coisa, o promitente-comprador não passa a possuir em nome próprio, excepto se tiver havido convenção negocial nesse sentido;
II. – Não sendo possuidor em nome próprio o modo de poder vir a adquirir a coisa que frui em nome de outrem, só será possível se inverter o título possessório;
III. – A inversão do título de posse apenas se pode efectivar se o possuidor em nome de outrem demonstrar, perante as pessoas que directamente tem interesse no direito em questão, a sua intenção de passar a possuir investido de uma qualidade uti dominus, ou seja como verdadeiro possuidor em nome próprio, vale dizer como proprietário directo e imediato sobre a coisa possuída.           

Texto Integral

Recorrente: AA,

Recorridos:  BB (falecido na pendência da causa) tendo sido habilitados CC, DD, EE, FF e GG e HH

2º II, residente na Rua ..., em Lisboa;

3º JJ (falecido), tendo sido habilitados a 4ª autora, bem como LL, MM, NN, OO, e PP, QQ (esta entretanto falecida tendo sido habilitados RR, menor representado pelo pai, SS) e TT (entretanto falecido), tendo sido habilitados, UU, VV, XX e YY, este representado pela mãe, a habilitada ZZ;

4º AAA, residente na Rua ..., em Lisboa;

5º BBB e CCC.

I.   RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., em Lisboa e DDD (falecida na pendência da acção e habilitada a 1ª autora), intentaram, em 24.01.1996, contra:

1º - BB (falecido na pendência da causa) tendo sido habilitados CC, DD, EE, FF e GG e HH;

2º II, residente na Rua ..., em Lisboa;

3º JJ (falecido), tendo sido habilitados a 4ª autora, bem como LL, MM, NN, OO, e PP, QQ (esta entretanto falecida tendo sido habilitados RR, menor representado pelo pai, SS) e TT (entretanto falecido), tendo sido habilitados, UU, VV, XX e YY, este representado pela mãe, a habilitada ZZ;

4º AAA, residente na Rua ..., em Lisboa,

5º BBB e CCC, ambos residentes na Rua ...., em Lisboa, acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário, em que pediram que seja declarado judicialmente adquirida a favor das autoras, por usucapião, a compropriedade sobre a quota ideal de 11,4% sobre o prédio sito na Rua ..., em Lisboa, ordenando-se o respectivo registo.

Fundamentaram as autoras, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de, em 26 de Maio de 1964, ter sido celebrado um contrato promessa de compra e venda, através do qual os réus, BB, JJ (ambos já falecidos) e BBB prometeram vender ao então marido da 1ª autora (já falecido) e pai da 2ª autora, e ele prometeu comprar-lhes, o 3º andar direito e uma arrecadação na cave do prédio identificado na petição inicial, pelo preço de Esc. 490.000$00 e, como sinal e princípio de pagamento, o então marido da 1ª autora e pai da 2ª autora, entregou àqueles réus a quantia de 100.000$00, na data da celebração do referido contrato-promessa, tendo, nos termos acordados, e constantes do contrato-promessa, sido entregue, em 21.10.1965, a quantia de 200.000$00, a título de reforço de sinal, devendo o remanescente ser pago aquando da celebração do contrato definitivo.

Mais invocaram as autoras que, na data de outorga do contrato-promessa (em 26.05.1964), os referidos réus entregaram aos promitentes-compradores o objecto do dito contrato e desde então sempre as autoras habitaram no andar, mesmo após o divórcio da 1ª autora. Sempre as autoras usaram e fruíram do andar, nele tendo instalado e organizado a sua vida familiar, social e doméstica.

A escritura pública nunca se celebrou, pese embora os réus tenham sido judicialmente notificados para o efeito, tendo eles invocado, em competente instrumento notarial lavrado em 15.12.1966, que tal se devia à não obtenção da licença de habitabilidade do prédio.

Desde então, os demandantes, não procederam a qualquer diligência para a obtenção da dita licença, tendo-se demitido das suas obrigações, sendo os promitentes-compradores dos diversos andares do prédio que têm vindo a fazer diligências nesse sentido.

As autoras desde que vivem no andar em questão sempre suportaram as despesas relativas aos consumos (água, luz, telefone), manutenção e reparação do mesmo (pinturas, impermeabilização de paredes, reparação e substituição de canalizações e de instalação eléctrica, janelas, persianas), bem como, juntamente com os demais habitantes do prédio, sempre participaram no pagamento das despesas relativas ao próprio prédio, como a conservação do imóvel, limpeza de chaminés, manutenção do elevador, arranjo da porta de entrada e substituição da respectiva fechadura, electricidade, salário da porteira, descontos desta para a segurança social e seguro, pagamento da contribuição autárquica e taxas camarárias.

Todos os descritos comportamentos das autoras, durante mais de 20 anos, foram feitos à vista de todos e sem oposição de ninguém, perante todos se afirmando e por todos sendo sempre reconhecidas e tratadas como proprietárias do andar.

Invocaram ainda as autoras que, em face da inexistência de propriedade horizontal, pretendem ver reconhecida a sua aquisição do direito de propriedade, por usucapião, sobre uma quota ideal de 11,4% do prédio, que corresponde à percentagem relativa ao andar que habitam.

Citados, os réus apresentaram a contestação, na qual arguíram a ineptidão da petição inicial, por alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir, e excepcionaram a ilegitimidade das autoras, por estarem na acção desacompanhadas dos “ocupantes” dos restantes andares do prédio. Impugnaram também a factualidade alegada pelas autoras, defendendo que os factos por elas articulados não são reveladores da actuação daquelas como donas do andar nem da sua intenção de considerarem o andar coisa sua, nunca tendo agido de molde a inverter o título de posse, não tendo, sequer, alegado factos nesse sentido.

Invocaram também, que a não regularização da situação do prédio e consequente ausência de celebração da escritura prometida se deveu ao facto de alguns promitentes-compradores, entre os quais as autoras, não terem procedido, atempadamente, ao reforço do sinal conduzindo a que os réus, promitentes vendedores, ficassem sem meios de solucionar alguns problemas técnicos que constituíam obstáculo à concessão da licença camarária. Por outro lado, os réus desentenderam-se uns com os outros e alguns com os respectivos cônjuges, o que dificultou as tentativas de resolução da situação, acontecendo que na partilha de bens entre eles, houve lugar a uma acção de divisão de coisa comum, em cujo âmbito se procedeu, por acordo devidamente homologado por sentença, à divisão das fracções do prédio dos autos, tendo o andar que as autoras ocupam sido atribuído à 2ª ré, II, a qual, em 25.07.1979, por notificação judicial avulsa, convidou as autoras para a outorga da escritura, ao que elas não responderam, circunstância de que sempre resultaria não ter decorrido o período de tempo suficiente para a aquisição por usucapião.

Os réus formularam ainda pedido reconvencional, argumentando, que do preço acordado para a venda do andar em 1964 – Esc. 490.000$00 - ficaram por pagar, Esc. 190.000$00, quantia que desde então as autoras devem à ré II.

E, considerando a desvalorização monetária desde 1964, e por simples aplicação da Portaria nº 107/96, de 10/04, à data da reconvenção aquele valor de Esc. 190.000$00 correspondia a Esc. 8.561.400$00, devendo considerar-se que é esse o valor que as autoras devem à ré II. Contudo, à data em que eventualmente vier a ocorrer o respectivo pagamento, deverá calcular-se o valor em função da Portaria da correcção monetária que então esteja em vigor, tudo por forma a evitar o locupletamento das autoras à custa da ré II.

Finalmente, os réus pediram a condenação das autoras como litigantes de má fé, em multa e em indemnização a favor dos réus em montante a fixar pelo Tribunal.

As autoras replicaram, pugnando pela não verificação da contradição entre o pedido e a causa de pedir, pela improcedência das diversas excepções invocadas, e do pedido reconvencional, bem como do pedido da sua condenação como litigantes de má fé.

Durante a audiência de discussão e julgamento, a autora apresentou um articulado superveniente para ampliação do pedido, que por despacho de 01.06.2009, veio a ser julgado inadmissível e improcedente, e sobre o qual incidiu recurso de agravo, julgado deserto, por falta de alegações.

Em 22.04.2010, o Tribunal a quo proferiu decisão – cfr. fls. 1064 a 1087 -, em que decidiu “[julgar] a acção improcedente, por não provada, e prejudicada a apreciação do pedido reconvencional.”

Irresignada com o julgado, interpôs, a demandante, recurso de apelação, tendo o tribunal da Relação, em acórdão constante de fls.  a vindo a decidir (sic): “(…) julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida (…)”.

É desta decisão que vem impulsado o presente recurso de revista, para o que as recorrentes alinham o epítome conclusivo que a seguir queda extractado.  

I. – QUADRO CONCLUSIVO.

“1.ª- O pedido da Recorrente foi o de ser reconhecida como com proprietária de determinado imóvel, invocando com modo aquisitivo de tal direito a usucapião

2.ª- Actualizando os dados da questão, em função do decurso do tempo, invocou a Recorrente que durante cerca de 45 anos tem tido "uma actuação sobre o imóvel correspondente ao exercício de um verdadeiro direito de propriedade, havendo “corpus” e “animus”, gozando (…) da presunção contida no art. 1268.º/1 do C.Civil" (art. 31.º da p.i.).

3.ª- Foi indiscutivelmente dado como provado o poder de facto exercido sobre o bem em causa pela Autora, como o foi pelos seus antecessores, seus pais.

4.ª- Provado ficou ainda que tal poder é exercido em exclusivo, não sendo partilhado pelos RR., visto que, desde a entrega do bem aos pais da Recorrente, e a esta, nunca os RR. tiveram em relação ao imóvel qualquer comportamento como proprietários.

5.ª- Os RR. nenhum acto, material ou jurídico, praticaram enquanto proprietários durante os mais de 40 anos que decorreram desde a celebração dos contratos-promessa

6.ª- A única actuação dos RR. em relação ao imóvel durante todos estes anos, foi a que ficou provada na resposta ao art. 11.º- A da BI - dividiam e cobravam da Recorrente e dos restantes possuidores do imóvel a parte correspondente a cada fracção nos impostos e taxas.

7.ª- E os RR. não registaram em seu nome o lote de terreno em que foi construído o prédio, e, consequentemente, nunca declararam na Conservatória ou nas Finanças a construção do imóvel e o processo camarário de construção do imóvel nunca foi concluído pelos RR., razão pela qual nunca foi emitida a respectiva licença de habitação.

8.ª- Nem os RR. praticaram qualquer outro acto em relação ao imóvel, visto que não procederam ali a qualquer obra ou reparação, melhoramento ou recuperação, não pagaram qualquer seguro do imóvel, nem suportaram as despesas de condomínio

9.ª- E se mais prova não foi feita sobre este aspecto, que se mostrava de relevância decisiva, quer para prova do corpus, quer do animus, tal resultou da errada selecção dos factos a provar, que nem a 1.ª instância nem a Relação reconheceram, assim violando o art. 511.º do CPC.

10.ª- Para dar cabal cumprimento ao disposto no art. 511.º do CPC, tornava-se necessário levar à base instrutória dois conjuntos de factos da maior relevância, quer para a aquisição da posse da Recorrente, quer para a perda da posse dos Recorridos.

11.ª- O primeiro desse conjunto era: "Os RR. demitiram-se de todas as suas obrigações, quer como promitentes-vendedores, quer como proprietários do prédio (arts. 8.º e 30.º da p.i.), não existindo da parte destes qualquer relação com o imóvel, que abandonaram, tal como os moradores, à sua sorte (art. 30.º da réplica).

12.ª- Porém, apenas foi levado à BI um facto, sobre a actuação, ou falta dela, dos Recorridos sobre o imóvel: "Desde 15.12.1966 que os réus não efectuam qualquer diligência com vista à obtenção da licença referida em I)" (licença de habitação) – n.º 2 da BI.

13.ª- Ou seja, com o pré-conceito de que só relevava apurar os factos relativos ao contrato-promessa, o juiz da causa apenas cuidou de apurar se os Recorridos tinham ou não criado condições para o cumprimento deste, deixando, em absoluto, na sombra, a sua actuação material sobre o imóvel.

14.ª- O segundo conjunto de factos era este: "Com o incumprimento do contrato-promessa, isto é, a partir da não realização da escritura, para a qual os Recorridos foram notificados judicialmente, isto é, desde 15. 12. 1966, a Recorrente, como os demais moradores do prédio, passaram a substituir-se aos construtores, nomeando uma administração do condomínio, praticando e suportando à sua custa todos os actos de proprietário".

15.ª- Ora, sobre esta concreta questão, o acórdão nada diz, limitando-se a apreciar uma outra questão relativa à necessária ampliação da matéria de facto, ou seja, a que respeita ao conhecimento pelos Recorridos dos actos da Recorrente, que em nada releva para o "corpus", mas apenas para determinação do "animus".

16.ª- De facto, sobre este concreto aspecto do recurso, apenas se extrai do acórdão o seguinte trecho: "A reclamação então apresentada pelas autoras foi atendida parcialmente, tendo sido admitida na Base Instrutória a inclusão de um novo facto – N.º 11.º-A - que já contém em si mesmo o invocado conhecimento por parte de, pelo menos, um dos réus!.

17.ª- Houve, pois, em primeiro lugar, deficiente selecção da matéria de facto pela 1.ª instância, e, depois, omissão relevante de pronúncia pela Relação, com as consequências legalmente previstas.

18.ª- A simples prova do exercício do poder de facto sobre o imóvel faz aplicar à Recorrente a presunção contida no art. 1252.º do C. Civil: "Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que tem o poder de facto" e os RR. nada provaram que pudesse ilidir a presunção em causa.

19.ª- O ST J, pelo Assento de 14/5/1996, Proc. 085204 (www.dgsLpt), decidiu que a existência do corpus faz presumir a existência do animus: "podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa" (...) Donde, e tendo em conta o que se dispõe no n.º 1 do artigo 350.º, competir àqueles que se arrogam a posse provar que o detentor não é possuidor".

20.a - Ora é o próprio acórdão em recurso que admitir que: "a autora e a mãe desta praticaram sobre o dito andar alguns actos materiais susceptíveis de corresponderem ao exercício do direito de propriedade, designadamente quando procederam ao pagamento da sua quota-parte na contribuição autárquica e taxas camarárias as quais são, habitualmente, obrigações inerentes ao proprietário (. . .) exerceram, é certo, os demonstrados poderes de facto, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, e eram inclusivamente consideradas por todas as pessoas com quem se relacionavam como donas do referido 3.º andar direito. (...)

Tal significa que a autora e sua falecida mãe sempre exerceram sobre a andar os poderes de facto, muitos dos quais são consentâneos com a traditio decorrente do contrato promessa" (sem realce no original).

21.a - Ora, se assim concluiu, o acórdão tinha que passar a seguir no seguinte raciocínio: conseguiram os Recorridos convencer o tribunal de que tal poder de facto não corresponde a posse? Não o fez, porém, no que violou as regras de repartição do ónus da prova, designadamente o previsto no art. 350.º do CCivil.

22.a - Diferentemente do que vem sendo defendido por muita jurisprudência (cfr. acórdãos citados no texto das alegações), o acórdão não considerou que o contrato-promessa de compra e venda de imóvel, quando acompanhado da tradição da coisa para o promitente­-comprador, e acompanhado de factos que traduzam o “animus sibi habendi”, transfere a respectiva posse para este.

23.a - A decisão em recurso procurou ainda analisar a tese contrária à que defende, mas esta tese é perfunctória e sumariamente afastada, com esta única fundamentação "não houve pagamento integral, nem existe prova de que a entrega do andar ao falecido pai da autora haja sido acompanhada da intenção dos outorgantes do contrato promessa de efectuarem uma transmissão em definitivo, para que o dito andar passasse a ser, desde logo, daquele".

24.a - Pode porventura comparar-se o pagamento integral do preço com uma actuação continuada e exclusiva durante mais de 40 anos sobre um imóvel? A única situação que pode relevar para que haja posse é o pagamento integral do preço, mesmo quando, como aconteceu no caso, não há qualquer incumprimento do promitente-comprador, pois nos termos contratuais o remanescente apenas teria que ser pago se e quando a escritura fosse celebrada?

25.ª - Mesmo sem pagamento integral do preço, e com matéria em muito semelhante à provada nos autos, vários foram os acórdãos deste Supremo Tribunal, alguns citados nestas alegações, que têm considerado que pode haver posse.

26.ª- Não se percebe igualmente a que propósito surge a relevância e a referência à falta de prova da intenção dos Recorridos. Como se salientou já, só a estes cabia tal prova e se não fizeram prova do contrário não lhes pode aproveitar tal ausência de prova.

27.ª- Parte de seguida o acórdão para análise da "inversão do título da posse", em posição que não se afigura correcta, como tem sido decidido por este ST J: " não estava em causa alegada inversão do titulo de posse para ajuizar se a Autora o exercera contra o promitente-vendedor. mas antes e tão só, saber se a prolongada posse por si exercida, (..) evidencia uma posse em nome próprio. hábil e idónea para conduzir à usucapião. Esta questão, deve ser dirimida à luz da natureza da posse do promitente-comprador apreciada. Casuisticamente, como defende Varela com o aplauso de grande parte da doutrina e da jurisprudência" (Ac. de 12/3/2009, proc. 09A0265, sem realce no original).

28.ª- A inversão do título da posse é afastada pelo ac. com o 1.º argumento de que as obras realizadas no imóvel - e não só no seu andar - pela Recorrente "também poderão ser compatíveis com relações de outra natureza que não a relacionada com a transferência da propriedade"

29.ª- Ora, em primeiro lugar, qualificar as obras em causa, efectuadas ao longo de mais de 30 anos, como "despesas correntes" é manifestamente abusivo. Por outro lado, não havendo qualquer outra relação que impusesse à Recorrente a realização de tais actos, não se percebe a que outra relação se refere o acórdão: arrendamento? comodato? mecenato ou caridade?

30.ª- Outro facto se mostra de enorme relevância e foi totalmente desatendido: a Recorrente, como os demais moradores do prédio, não só cuidaram materialmente do prédio, como tentaram resolver a sua situação jurídica.

31.a - Invoca ainda o acórdão que a Recorrente e/ou seus pais "lançaram mão de uma notificação judicial para que os promitentes vendedores realizassem a escritura pública de compra e venda; por outro, apresentaram o contrato-promessa conforme foi judicialmente requerido por uma das então proprietárias do andar e cuja decisão teve lugar em 07.06.1985, assumindo, consequentemente, a sua qualidade de sucessoras do promitente-comprador".

32.a - Como é possível atender-se apenas e tão só a factos corridos nos anos 60 (1.º) e 80 (2.º), quando as AA. estão no prédio há mais de 44 anos? A conclusão da sentença, mais do que a simples ilegalidade, corresponde a denegação de justiça

33.a - A junção de documentos à invocada acção ocorreu no estrito cumprimento de uma notificação judicial, em acção que nada tem que ver com os presentes autos.

34.a - Como refere o ac. "Mesmo em relação à quota-parte paga pelas autoras relativamente a contribuição autárquica e taxas camarárias, resultou demonstrado que elas eram pagas por um dos promitentes vendedores que, posteriormente, recebia, em parte proporcional, dos promitentes-compradores, o que sucedeu entre 1978 e 2000'.

35.a - É a própria doutrina citada no acórdão que impunha conclusão diferente. “A oposição tem de traduzir-se em actos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a que os actos se opõem", Henrique Mesquita, Direitos Reais, págs. 98/99.

36.a - Pois se era um dos promitentes-vendedores, com conhecimento dos restantes, que cobrava da Recorrente a parte correspondente ao seu andar nos impostos e taxas relativas ao imóvel, tal traduz-se indiscutivelmente num reconhecimento de que esta actuava muito para além de uma simples detentora, sendo onerada com as despesas de uma proprietária.

37.a - Como foi decidido no Ac. desta Relação, 16/6/2009, Proc. 32/1997, "Ora se (...) a par da assunção de poderes de facto pelo promitente-comprador, se verifica a aceitação expressa ou tácita da situação por parte do promitente-vendedor, abstendo-se este de deduzir qualquer oposição, não há dúvidas de que estão presentes todos os ingredientes que justificam a qualificação da situação como verdadeira posse, adquirida, segundo as circunstâncias, por transferência, por inversão do título de posse ou de forma paulatina" (realce nosso).

38.a - Por último, invoca o acórdão que "De resto, conforme resultou da resposta restritiva dada ao artigo 10.º da Base Instrutória, não ficou demonstrado que as autoras se afirmem perante todas as pessoas, designadamente, perante os promitentes vendedores, como donas do 3.º andar direito em causa nos autos".

39.a - Tal conclusão é contraditória, pois se as pessoas passaram a considerar a Recorrente como dona do terceiro direito isso só pode ter resultado do seu comportamento. Ou seja, ocorre nulidade da sentença, por evidente contradição entre os fundamentos e a decisão, como previsto no art. 668.º/1/c.

40.ª - Em suma, e a exemplo do que já se decidiu (v. infra), em relação a outros AA colocados na mesma posição da Recorrente, relativamente ao mesmo prédio também aqui se pode dizer que "são pouco frequentes situações derivadas de contratos-promessa em que como ocorre no caso sub judice. esteiam reunidos, de forma tão evidente, os pressupostos da usucapião" .

41.a - A sentença omite, por outro lado que a posse possa ter sido adquirida por outro meio, que não pela traditio dos promitentes-compradores ou por inversão do título da posse.

42.a - Ora, a posse da Recorrente e seus antecessores adquiriu-se ao abrigo do disposto na alínea a) do art. 1263.º. Tal prática iniciou-se imediatamente após a recusa dos RR. em celebrar a escritura, quando, para esse efeito, foram notificados em 1965, conjugada com a total e imediata demissão dos RR. de todo e qualquer comportamento como proprietários, ou até mesmo como promitentes-compradores.

43.ª- Todos os demais pressupostos da usucapião se verificam e nem sequer foram postos em causa na sentença.

44.ª- Na parte em que se limita a afirmar que "é amplamente discutível a formulação do pedido efectuado pelas autoras, na petição inicial, visto que sempre seria insusceptível de adquirir, por via da usucapião, o direito sobre a quota ideal de 11,4% do prédio", o acórdão é nulo, por total ausência de fundamentação, ao abrigo do disposto no art. 668.º/1/b do CPC (sublinhado nosso)

45.ª- A decisão em recurso foi tomada quando havia já sido dado conhecimento aos autos de decisão contrária das 3 instâncias envolvidas, em caso exactamente igual ao que foi aqui julgado, em acção instaurada por outros 5 habitantes do mesmo imóvel, 4 deles promitentes-­compradores como a Recorrente, com base na mesma matéria de facto dada como provada, todos juntos aos autos.

46.ª - Como foi decidido no Ac. desta Relação, 16/6/2009, Proc. 32/1997, "Ora se em qualquer das referidas situações peculiares, a par da assunção de poderes de facto pelo promitente-­comprador, se verifica a aceitação expressa ou tácita da situação por parte do promitente­-vendedor, abstendo-se este de deduzir qualquer oposição, não há dúvidas de que estão presentes todos os ingredientes que justificam a qualificação da situação como verdadeira posse, adquirida, segundo as circunstâncias, por transferência, por inversão do título de posse ou de forma paulatina".

47.ª - Esta decisão foi confirmada pelo STJ, por acórdão de 11.2.2010 (Proc. 32/1997.L 1.S1),

48.ª - Ao decidir de forma diferente, o Ac. viola de forma frontal o princípio constitucional da igualdade, postergando um direito essencial da Recorrente, qual seja o direito de propriedade.”

I.B. – QUESTÕES A MERECER APRECIAÇÃO.

Da exegese sacada do acervo conclusivo, retêm-se, para apreciação, as sequentes questões:

a) – Nulidade do acórdão por carência (omissão) de fundamentação quanto à questão da insusceptibilidade de adquirir por usucapião uma quota ideal (do condomínio) e contradição entre a fundamentação e a decisão – cfr. artigo 668.º, n.º 1, alíneas b) e c);

b) – Direito de Propriedade. Posse (Actos possessórios reveladores de intenção de agir condizente com um direito de propriedade. Aquisição Prescritiva (Usucapião).    

II. FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

1. Por acordo escrito realizado no dia 26 de Maio de 1964, BB, JJ e EEE declararam prometer vender a FFF, que declarou prometer comprar-lhes, pelo preço de 490.000$00, o 3º andar direito do prédio designado por Lote 985, situado na rua, em projecto, da Quinta do ..., hoje designada por Rua ..., em Lisboa [al. A) da matéria assente];

2. Por conta do preço referido em A), como sinal e princípio de pagamento, na data referida em A), FFF entregou a BB, JJ e EEE a quantia de 100.000$00 [al. B) da matéria assente];

3. Em 21 de Outubro de 1964 (e não 21 de Outubro de 1965, como por manifesto lapso se mencionou na sentença) a [falecida] autora [DDD] e FFF entregaram a BB, JJ e EEE, a quantia de 200.000$00, a título de reforço do sinal referido em B) [al. C) da matéria assente];

4. FFF e BB, JJ e EEE acordaram que a parte restante do preço seria entregue a estes na data da realização da escritura definitiva [al. D) da matéria assente];

5. Os réus adquiriram à Câmara Municipal de Lisboa, em hasta pública realizada no dia 17.04.1963, um lote terreno onde posteriormente construíram o prédio actualmente designado pelo Lote 985 e identificado em A) [al. E) da matéria assente];

6. É ainda como se de um lote de terreno se tratasse que o prédio identificado em A) se encontra descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa [al. F) da matéria assente];

7. Encontrando-se, no entanto, inscrito na matriz predial da freguesia de Alvalade sob o art. 562.º, como um prédio urbano sito na Rua ..., em Lisboa, composto por rés-do-chão e quatro andares, assim descriminados: - Cave - 1 arrecadação por inquilino; - Rés-do-chão direito - 5 divisões, cozinha e duas casas de banho; - Rés-do-chão esquerdo - 3 divisões, cozinha e duas casas de banho; - 1º Dt.º - 4 divisões, cozinha e 2 casas de banho; - 1º Esq. - 5 divisões, cozinha e 2 casas de banho; - 2º Dt.º - 4 divisões, cozinha e 2 casas de banho; - 2º Esq. - 5 divisões, cozinha e 2 casas de banho; - 3º Dt.º - 4 divisões, cozinha e 2 casas de banho; - 3º Esq. - 5 divisões, cozinha e 2 casas de banho; - 4º (porteira) - 2 divisões, cozinha e 2 casas de banho [al. G) da matéria assente];

8. Até ao momento ainda não foi realizada a escritura referida em D) [al. H) da matéria assente];

9. Nem foi concedida pela Câmara Municipal de Lisboa licença de habitação para o prédio identificado em G) [al. I) da matéria assente];

10. Em 29.12.1965 os serviços técnicos da Câmara Municipal de Lisboa realizaram uma vistoria ao prédio identificado, da qual resultou um auto de onde consta que as oito habitações do prédio "constituem unidades suficientemente distintas e isoladas entre si, de modo a formar oito fracções autónomas (...) pelo que se torna possível a constituição do prédio em regime de propriedade horizontal" [al. J) da matéria assente];

11. Até ao momento não foi realizada a escritura de propriedade horizontal identificada em J) [al. K) da matéria assente];

12. FFF faleceu no dia 25 de Setembro de 1989, no estado de divorciado de GGG [al. L) da matéria assente];

13. No âmbito da acção especial para divisão de coisa comum que, com o n.º 6229-B, correu termos na 1.ª secção do antigo 8.º Juízo deste Tribunal, foram adjudicadas à ora ré, II, as ali denominadas "fracções «D» e «G»" (1º Esqº e 3º Dtº) do prédio identificado em G) [al. M) da matéria assente];

14. Em 04.08.1966 os autores notificaram judicialmente BB, JJ e BBB, para a realização da escritura de compra e venda do 3º direito referido em G) [al. N) da matéria assente];

15. Na sequência de tal notificação, BB, JJ e BBB lavraram, no dia 15.12.1966, no 19.º Cartório Notarial de Lisboa, o instrumento notarial cuja cópia se encontra a fls. 27/28 e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido [al. O) da matéria assente];

16. A escritura referida em D) não foi realizada até ao presente momento, pela razão referida em I) [resposta ao artº 1º da base instrutória];

17. Desde data não concretamente apurada, os réus deixaram de efectuar diligências com vista à obtenção da licença de habitação [resposta ao artº 2º da base instrutória];

18. As pessoas que realizaram com os réus acordos pelos quais lhes prometeram comprar apartamentos no prédio em causa nos autos, têm realizado diligências com vista à obtenção da licença de habitação [resposta ao artº 3º da base instrutória];

19. A autora habita e a falecida autora DDD habitava o 3º andar direito do prédio identificado em G) desde a década de 1960, em data que concretamente não foi possível apurar, após a entrega do mesmo, ocorrida no dia 26.05.1964 [resposta ao artº 4º da base instrutória];

20. Ali tomando as refeições, passando os serões e pernoitando [resposta ao artº 5º da base instrutória];

21. E recebendo os seus amigos e familiares, assim como a sua correspondência [resposta ao artº 6º da base instrutória];

22. As autoras sempre tiveram os seus pertences no 3º andar direito identificado em A), nomeadamente, mobílias, electrodomésticos, roupa e demais utensílios indispensáveis ao seu dia-a-dia [resposta ao artº 7º da base instrutória];

23. As autoras sempre suportaram as despesas relativas ao 3º andar direito identificado em A), nomeadamente as relativas a consumos de água, luz e telefone, bem como as relativas a reparações, pinturas, impermeabilização de paredes, reparação e substituição de canalizações e instalação eléctrica, janelas e persianas [resposta ao artº 8º da base instrutória];

24. Ao agirem da forma descrita de 4º a 8º, as autoras fizeram-no à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse [resposta ao artº 9º da base instrutória];

25. Por todas as pessoas com quem se relacionavam sendo tidas e tratadas como sendo donas do 3º andar direito identificado em A) [resposta ao artº 10º da base instrutória];

26. A autora e a falecida autora DDD têm suportado desde sempre e em conjunto com os demais habitantes do prédio identificado em G), todas as despesas referentes ao mesmo relativas a limpeza de chaminés, manutenção do elevador, arranjo da porta de entrada, salários da porteira e respectivos descontos para a segurança social, montagem de antenas e substituição de cabos, reparação do telhado e obras na cobertura do edifício, electricidade da escada e do elevador e, desde cerca de 1978, a contribuição autárquica e taxas camarárias referentes a esgotos [resposta ao artº 11º da base instrutória];

27. A quota-parte paga pelas autoras relativamente a contribuição autárquica e taxas camarárias, no período compreendido entre aproximadamente 1978 e 2000, era-lhes solicitada e recebida pelo réu CCC [resposta ao artº 11º-A da base instrutória];

28. Ao 3º direito referido em G) corresponde uma "quota ideal" de 11,4% do valor global do prédio ali identificado [resposta ao artº 16º da base instrutória].

AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 659º, Nº 3, APLICÁVEL EX VI DO ARTIGO 713º,  Nº 2 DO CPC

29. A ré II requereu judicialmente, em 02.12.1980, nomeadamente contra a falecida DDD , a apresentação do contrato-promessa atinente ao 3º andar direito do prédio sito na Rua ..., em Lisboa, tendo esta entregue o pretendido documento, conforme certidão da decisão, datada de 07.05.1985, constante de fls. 571-572.

II.B. - DE DIREITO.

II.B.1.a) – Insuficiência da matéria de facto levada à base Instrutória.

 Ainda que sem retirar qualquer consequência no plano jusprocessual – ou tão só «as legalmente» previstas», sem as nominar - «queixa-se» a recorrente – cfr. conclusões 9.ª a 17.ª – que nem o tribunal de primeira instância nem o Tribunal de recurso (2.ª instância) tomaram em devida conta a carência de factos que a base Instrutória continha.

Na versão da recorrente não teriam sido considerados factos essenciais que respeitavam ao seu exercício possessório sobre a coisa, no plano material.

Ainda que, como se disse, a recorrente não retire consequências jurídico-processuais do facto que denuncia, o facto é que ao fazer-lhe alusão, no epítome conclusivo, inculca um dever/poder do tribunal de revista emitir pronúncia, sob pena de poder vir a ser acoimado de omissão de pronúncia.     

Vem este tribunal afirmando, una voce, que o Supremo Tribunal de Justiça é, organicamente um tribunal de revista – cfr. artigo 26.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - pelo que a sua capacidade de cognoscibilidade em matéria de recurso (de revista) está confinada a questões de direito - cfr. artigo 722.º e 729.º, ambos do Código Processo Civil. Essa confinação de cognoscibilidade apenas sofre um “desvio” ou entorse nos casos em que o Supremo, analisada a factualidade adquirida pelas instâncias, verifica não ser compaginável com a assumpção de uma arrimada solução de direito. Neste caso, depois de fixar a questão de direito, o Supremo envia o processo para ampliação da decisão de facto para a 2.ª instância.

Mesmo no campo da possibilidade de censura da decisão de facto os poderes do Supremo Tribunal de Justiça estão confinados aos casos em que tenha havido “[ofensa] de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de prova.” - cfr. n.º 3 do artigo 722.º do Código Processo Civil.

A lei processual, rectius o sistema probatório vigente, consolidou, em matéria de julgamento da matéria de facto alegada e carreada, oficiosamente para o processo, dois graus de jurisdição. Assim é que os intervenientes processuais apenas podem impugnar a decisão de facto julgada na primeira (1.ª) instância em recurso para a Relação. Vale por dizer que o sistema achou adequando e suficiente que o julgamento deste tipo de matéria (da facto) fique completa com dois graus de jurisdição    
Excepcionalmente, e tão só, no plano da densificação jurídica das regras e princípios que regem para a prova de determinada categoria de factos, como seja a necessidade de prova taxada ou a aplicação dos princípios que regem na administração da prova, pode o Supremo Tribunal de Justiça intervir, não na decisão concreta da decisão da matéria de facto, mas no modo e procedimento utilizado pelas instâncias para a aquisição de determinados factos. Vale por dizer que o Supremo não questiona ou sindica a convicção do julgamento e o razoamento utilizado para inferir os factos provados resultantes da prova produzida, mas se os procedimentos e as regras definidas para a aquisição de determinado facto foram correctamente utilizadas. Resultando o erro de julgamento de um desviado ajuizamento ou ponderação da prova produzida, de ilogicidade ou entorse de raciocínio na extracção de inferências, decorrentes de divertida aquilatação e aferição socio-racional das regras de experiência comum, ao Supremo está vedada a possibilidade de perscrutar a consciência que ditou um determinado veredicto de facto. Este tipo de erro cabe no âmbito da apreciação do julgador e esta apreciação está vedada sindicar ao Supremo. [[1]]
Importa o que fica dito que, para que o Supremo Tribunal de Justiça possa intervir no escrutínio da decisão e facto, é imperioso que se detecte que na apreciação da matéria de facto as instancias hajam ofendido uma disposição em que a lei faça depender ou fixe para a prova de determinado facto uma prova tarifada ou tabelada que tenha ocorrido um desvio na exigência de determinado tipo de prova para a consolidação de um facto. O Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar a decisão da matéria de facto se esta revelar uma incompletude ontológica para sustentar uma decisão arrimada ao direito ou nos já apontados casos ineridos nos artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 3, ambos do Código Processo Civil. Desta competência residual, em matéria de sindicância da decisão de facto, resulta que ao Supremo tribunal está vedada a possibilidade de sindicar a decisão de facto quando o tribunal inferior toma como referente decisional prova não vinculada ou não ofenda regras de produção de prova que a lei prescreva. Vale por dizer que tendo as instâncias laborado a decisão de facto num conspecto de livre apreciação da prova escapa ao Supremo Tribunal sindicar a percepção e a compreensão dos meios de prova captados e utilizados, ou seja o sentido e a inteligibilidade que desses meios de prova o julgador captou e razoou para obter o resultado probatório que consignou na decisão de facto. A decisão de facto fundada em meios de prova que devam ser apreciados livremente pelo tribunal, pelo razoamento e capacidade de inteligibilidade pessoal-institucional a que estão sujeitos, desde que não violem as regras estipuladas para a sua produção em tribunal, não podem ser escrutinadas pelo Supremo Tribunal.

Decorre do que fica explanado que, no âmbito do julgamento da matéria de facto, cabe, quase em exclusivo, ou numa dimensão quase total, às instâncias fixarem os parâmetros em que o Supremo Tribunal terá de se movimentar e orientar para aplicar o direito que ao caso couber. A este Supremo Tribunal cabe o papel residual de sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos a que chegaram por aplicação das referidas normas. [[2]] Esta função, capacidade cognoscente, atina com o já referido enquadramento estatutário que a lei orgânica lhe inculca e ao qual o vincula, de conhecer tão só de matéria de direito deixando para as instâncias o poder-dever de formular os juízos, extrair conclusões fácticas e justificar os resultados das provas apresentadas pelos sujeitos processuais. Desta injunção normativa extrai-se, com meridiana linearidade intelectiva, que o Supremo estaria capacitado e poderia intervir na operação de reapreciação da decisão de facto estabelecida pela 2.ª instância e criticar a forma como aceitou ou modificou a decisão de tacto que lhe vinha aportada da 1.ª instância, se viesse alegado que na conclusão a que chegou para se alcandorar a uma determinada decisão de facto, as instâncias utilizaram um comportamento inibitório ou perverso violador de normas de direito probatório material. [[3]

Vale o que fica dito para explicar que, no caso «denunciado» o Supremo Tribunal apenas poderia exercer o poder de sindicar a eventual omissão ou carência de matéria de facto apontado pela recorrente se para a aplicação do direito se evidenciasse uma carência de factologia que ilaqueasse ou conturbasse, de forma indeclinável, a aplicação da previsão normativa que coubesse ao caso.

Não se nos afigura que os factos em questão se tornem imprescindíveis para a subsunção ás previsões normativas substantivas que comportam a solução jurídica do caso submetido a julgamento.

Os factos indicados nas conclusões 11.ª e 14.ª são inócuos e espúrios para integrar ou demonstrar um comportamento material-factual da recorrente – ou dos seus antecessores – sobre a parte do imóvel reivindicado. A demissão das obrigações dos promitentes-compradores – que não resultam especificadas á boa maneira da alegação vaga e generalizante, que é apanágio da insuficiência de matéria factual para exibir em tribunal ou da insuficiência de arte em a saber alegar – em nada densifica ou confere um estado possessório da parte que o pretende demonstrar. Apenas, e tão só, que da parte dos proprietários poderá ter existido um desinteresse em relação ao imóvel, mas não que os promitentes-compradores, ou ocupantes do imóvel (moradores), tenham, com esse aparente desinteresse, feito reverter a situação possessória para a sua esfera dominial. De um facto negativo não pode extrair uma conclusão factual positiva. Pode permitir uma inferência instrumental ou acessória, mas não um facto material (positivo) que possa ser imputado a outrem, anda que esteja em posição antinómica aquela que resulta da prova do facto negativo.

O facto que a recorrente pretende ver incluída na base instrutória é meramente instrumental e não interessa, de forma decisiva e concludente, para a solução de direito a conferir ao caso.

O que acaba de ser dito serve, mutatis mutandis, para o facto aposto na conclusão 14.ª.

O facto que pretendem ver incluído na base instrutória – com a extensão e a complexidade com que foi alegado – não tem a virtualidade de imputar aos autores acções ou actos de posse sobre o imóvel, dado que representam a necessidade de os moradores do imóvel passarem a ter uma forma de gestão interna e autárcica que possibilitasse a resolução dos prolemas que a gestão de um imóvel com vários moradores comporta. Constitui-se como um acto de «gestão de facto» donde não podem extrair-se conclusões decisivas para os actos possessórios conducentes a uma posse dominial.

Poderia ter sido adjuvante ou ancilar do e outros factos que se encontram plasmados na base Instrutória, mas que não se revelam essenciais ou axiais para a decisão de direito que o caso reclama.

Os factos incluídos na base instrutória são, em nosso aviso, suficientes para a decisão de direito que importa dar ao caso submetido a julgamento.        

II.B.2.b) - Nulidade do acórdão por carência (omissão) de fundamentação quanto à questão da insusceptibilidade de adquirir por usucapião uma quota ideal (do condomínio).

Na alegação da demandante/recorrente, “[Na] parte em que se limita a afirmar que "é amplamente discutível a formulação do pedido efectuado pelas autoras, na petição inicial, visto que sempre seria insusceptível de adquirir, por via da usucapião, o direito sobre a quota ideal de 11,4% do prédio", o acórdão é nulo, por total ausência de fundamentação, ao abrigo do disposto no art. 668.º/1/b do CPC.

A motivação, tanto de facto, com de direito, é informada ou perpassada por um princípio basilar, qual seja o da completude. Finca-se este princípio na necessidade de uma justificação cabal de todas as razões que determinaram a valoração (lógico-racional), tanto de facto como de direito, em que o Juiz se escorou para conferir determinada opção ou eleição decisória.

No ensino de Michele Taruffo o princípio da completude comporta duas implicações. “[A] primeira implicação é que a motivação completa deve incluir tanto a chamada justificação interna, que atende à conexão lógica entre premissas de Direito e premissa de facto (a chamada subsunção do facto à norma) que sustenta a decisão final, como a justificação externa, quer dizer, a justificação das eleições das premissas das quais deriva a decisão final. A justificação externa da premissa de facto da decisão concerne às razões pelas quais o juiz reconstruiu e determinou de uma dada maneira os factos da causa: estas razões referem-se, essencialmente, às provas das quais o juiz se serviu para decidir acerca da verdade ou falsidade dos factos.” [[4]]       

A omissão ou ausência de fundamentação com que a recorrente acoima a decisão revidenda radicaria numa falta de justificação (externa) das razões que levaram tribunal a dessumir a conclusão ou consolidar o juízo conviccional de que não seria à recorrente permitido adquirir uma quota ideal do prédio em que se aloca o andar reivindicado.

A omissão de fundamentação só existe se, na análise das questões, tanto de facto como de direito, o tribunal omitiu qualquer sentido justificativo da questão posta à discussão e que haja sido enunciada como questão axial para a solução do caso. Se, sendo a questão de direito determinante para a conclusão (decisória), o tribunal se escusou a debatê-la ou, na análise a que procedeu, omitiu, de todo, qualquer referência ao razoamento lógico-jurídico que orientou o juízo conviccional a que se alçapremou ocorre, neste caso, omissão de fundamentação. Vale por dizer que a omissão de fundamentação tem que ser total ou, pelo menos tão incompleta e vaga, que não se possa extrair o sentido performativo que orientou o raciocínio, ou as premissas lógico-jurídicas, em que o tribunal se escorou para ditar a decisão. 

Uma fundamentação escassa, deficiente, pouco esclarecida ou suportada por um arrazoamento insubsistente não vale como omissão de fundamentação para efeitos da nulidade da decisão.

No caso presente o tribunal elegeu a usucapião ou prescrição aquisitiva – na terminologia expressiva e consecutiva empregue pelo Professor Dias Marques – como questão fundamental para a solução do caso que lhe foi submetido a julgamento.       

Ao longo da fundamentação de direito, o tribunal esforçou-se por demonstrar que a recorrente não exerceu sobre a parte do imóvel que reivindica actos que consubstanciassem um poder efectivo e material sobre a coisa compatível com o conteúdo do direito de propriedade. Depois de ter razoado sobre o conceito, os pressupostos e requisitos que a posse deveria revestir para que aquele que se arroga exercê-la na qualidade de proprietário pudesse ser considerado como tal e se visse investido, pelo tribunal, nessa qualidade, o tribunal viria a concluir que a recorrente não tinha, com o seu comportamento, evidenciado um exercício factual em que se materializasse esse direito.

Na desinência da exposição fundamentadora, e quando já concluirá pela impossibilidade ou insubsistência, factual-material, da acção reivindicativa, por via da usucapião – afinal o cerne ou fundamento axial e invadeável em que a recorrente escorava a sua pretensão reivindicativa – o tribunal, e porque considerou, certamente, que o que ficava dito quanto à questão nuclear da usucapião esgotava a fundamentação deixou expresso que, se não fosse o decesso do fundamento essencial, ainda assim, sempre seria difícil, ou problemático, que a recorrente pudesse adquirir a percentagem do direito de compropriedade que estipulou no pedido. A referência a esta questão surge, não como tema que o tribunal estimasse, ou considerasse merecedora de uma análise específica e aprofundada, mas como questão ancilar ou depreciada, em função da posição que já assumira relativamente à questão axial e pendular, eleita para dar solução ao caso.

A questão surge, ou está configurada, como uma questão prejudicada, ou seja como uma questão que deve ser descartada ou desbordada de análise específica, pela solução que já havia sido fornecida à questão principal. Tendo o tribunal considerado que a recorrente não tinha demonstrado que exercera um poder de facto compaginável com o direito de propriedade que reivindicava, não faria sentido discutir se era viável, ou juridicamente possível, adquirir a percentagem que se atribui no direito de compropriedade, pela via que acabara de constatar não se verificar. Dito de outro modo, e de forma mais perceptível, para quê apreciar a questão da aquisição de uma parte (ou percentagem) do direito, por via da usucapião, se já se constatou que a via de aquisição, por intermédio dessa via está ilaqueada? Não estando verificados os pressupostos ou requisitos da via aquisitiva do direito não vale a pena discutir se era possível adquirir uma parte (ou percentagem) desse mesmo direito.

A alusão à questão da possibilidade de aquisição de uma parte do direito de compropriedade surge, deste modo, como meramente enunciadora de uma questão prejudicada, precisamente pela solução já fornecida à questão essencial ou axial, qual fosse a de que o tribunal, em face da pronúncia quanto à questão nuclear – a usucapião – não valia a pena discutir a questão da aquisição de uma parte (ou percentagem) do direito que acabava de concluir não poder ser atribuído.

Não ocorre, pelas expostas razões, a anunciada omissão de fundamentação.

II.B.2.c) - Nulidade consubstanciada na contradição entre a fundamentação e a decisão – cfr. artigo 668.º, n.º 1, alíneas b) e c).

Acoima, a recorrente, o acórdão de nulo quando – cfr. conclusão n.º 38.ª e 39.ª – “invoca o acórdão que "De resto, conforme resultou da resposta restritiva dada ao artigo 10.º da Base Instrutória, não ficou demonstrado que as autoras se afirmem perante todas as pessoas, designadamente, perante os promitentes vendedores, como donas do 3.º andar direito em causa nos autos", sendo “Tal conclusão é contraditória, pois se as pessoas passaram a considerar a Recorrente como dona do terceiro direito isso só pode ter resultado do seu comportamento. Ou seja, ocorre nulidade da sentença, por evidente contradição entre os fundamentos e a decisão.” 

Como já escrevemos noutro lugar, a sentença não se constitui como um silogismo, [[5]] no sentido de uma operação de logicidade subjectivo-formal, mas antes como uma operação de coerência racional intrínseca na argumentação que desenvolve no sentido de configurar um resultado em que o conteúdo de sentido se prefigure compatível com os termos da enunciação dos problemas a resolver. A sentença constitui um momento de solução de uma caso, em que para além das soluções fácticas já encontradas importa encontrar o sentido normativo para a factologia sedimentada. [[6]]

Daí que para além dos pressupostos de facto em que a decisão tem que assentar, a sentença deva apresentar uma coerência ou uma compatibilidade, não só semântica ou formal, mas, principalmente, material entre o que ficou adquirido, no plano fáctico, com aquilo que o tribunal deve argumentar, num plano discursivo, para constituir uma peça em que o conjunto do teor argumentativo se mostre compatível e inteligível com a realidade (fáctica) descrita e conseguida apurar no conspecto endoprocessual. [[7]] Os argumentos devem apresentar-se organizados e configurados segundo critérios de coerência racional e lógica, como forma de se figurarem válidos e prestáveis para a conclusão que pretendem impor.

Para que ocorra uma contradição entre um enunciado ou pressuposto de facto ou de direito e uma conclusão (decisória) avulta como decisivo que o razoamento ou o raciocínio dedutivo se revele antinómico ou adverso na sua coerência, validade e compatibilidade discursiva e fáctico-material. Vale por dizer que numa operação de argumentação lógica os pressupostos de facto (supostamente válidos) contradizem ou conformam um sentido de razão oposto ao que se inferiu no epítome conclusivo. Existe, assim, uma inconciliabilidade ou incongruência intrínseca e lógico-material entre o que foi enunciado como pressuposto (fáctico) da decisão e a desinência normativa obtida.

A situação configurada pela recorrente não comporta uma contradição entre a fundamentação e a decisão, outrossim poderá configurar uma contradição nos pressupostos da fundamentação, na medida em que, segundo a recorrente se afirmou na decisão que nem todas as pessoas consideravam a recorrente como dona do andar, designadamente os promitentes-vendedores, quando, ainda segundo a sua afirmação, “(…) se as pessoas passaram a considerar a Recorrente como dona do terceiro direito isso só pode ter resultado do seu comportamento.”

O que se afirmou na decisão não foi que as pessoas do prédio passaram a considerar a recorrente como dona do terceiro (3.º) andar direito do prédio, mas que nem todas as pessoas, “(…) designadamente, perante os promitentes vendedores, como donas do 3.º andar direito em causa nos autos.” a consideravam como donas do andar.

Não se alcança a contradição. À vista de toda a gente, ou seja de todos aqueles que têm capacidade ou possibilidade de confirmar o exercício dos actos possessórios correspondentes ao direito reivindicado – neste caso direito de propriedade – significa que aqueles que estão na esfera de cognoscibilidade das acções ou actos possessórios podem atestar a conformidade desses actos com a intencionalidade, ou manifestação exterior do autor desses actos, de agir de forma correspondente ao direito invocado. A representação social, ou melhor dito pessoal-social, que se requesta para efeitos do pressuposto de prescrição aquisitiva, ou usucapião – “à vista de toda a gente -, tem de abranger todas aquelas pessoas que conhecendo a situação em que a coisa é possuída podem atestar que o possuidor agiu sempre em conformidade com a situação que é tida para o comum dessas pessoas como se de um proprietário da coisa se tratasse. Estão nesse amplexo ou círculo de pessoas, no caso de um detentor precário ou possuidor em nome alheio, o proprietário da coisa detida ou possuída. Tendo uma relação de dominialidade ou de exclusão de direito - poder erga omnes -, sobre a coisa, o proprietário está, naturalmente, incluído dentre o leque de pessoas, que para este efeito, ou na compleição do círculo de pessoas a confirmar os actos possessórios do possuidor em nome alheio sobre uma coisa, pode atestar se considera que, por exemplo por seu abandono ou por qualquer outra razão, passou a considerar os possuidores como donos da coisa. Retirar o dono da coisa do leque de pessoas a consultar para verificar ou atestar este pressuposto da usucapião seria violar de forma grosseira e irremível o direito de propriedade.

O tramo da decisão em questão não contém qualquer contradição que erve a estrutura decisória.                   

II.B.2. – Direito de Propriedade. Posse (Actos possessórios reveladores de intenção de agir condizente com um direito de propriedade. Aquisição Prescritiva (Usucapião).   

Estima a recorrente que o fundamento da acção é a usucapião traduzida numa situação radicada na sua esfera de disponibilidade factual-possessória que, pelo decurso do tempo, possibilitou e capacitou a perda do direito do anterior proprietário e fez convergir na sua esfera de dominialidade o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada.

Para a recorrente, do que se dessume das suas extensas e zaranzadas alegações, não importaria – ao contrário do fundamentado pelas instâncias – que tivesse adquirido o direito a permanecer no andar por um meio contratual que não transfere, ou traslada, o direito da esfera de dominialidade o anterior proprietário para o adquirente, mas tão só a obrigação de contratar nos termos acordados. Na perspectiva da recorrente, com o pagamento, ainda que parcial, do preço, o anterior proprietário quis transferir a propriedade sobre o andar para os promitentes-compradores, pelo que, essa manifestação de tradição da coisa, capacitou os promitentes-compradores, a partir desse momento de passar a fruir a coisa como se de verdadeiros proprietários se tratassem, mesmo perante o tradens.

A ser assim, como assevera dever ser, a recorrente não teria que ter invertido o título a que possuía – detentora ou possuidora em nome alheio – mas ser considerada possuidora em nome próprio ara efeitos de aquisição do direito de propriedade.

Não sobra dúvida – mostra-se provado na alínea A) da matéria de facto incontroversa e incontestada – que, “[no] dia 26 de Maio de 1964, BB, JJ e EEE declararam prometer vender a FFF, que declarou prometer comprar-lhes, pelo preço de 490.000$00, o 3º andar direito do prédio designado por Lote 985, situado na rua, em projecto, da Quinta ..., hoje designada por Rua ..., em Lisboa.” 

Para a recorrente, a partir do momento em que os demandados foram notificados para comparecer no Cartório Notarial, em 1965, não compareceram, “[a] posse da Recorrente e seus antecessores adquiriu-se ao abrigo do disposto na alínea a) do art. 1263.º, (…) conjugada com a total e imediata demissão dos RR. de todo e qualquer comportamento como proprietários, ou até mesmo como promitentes-compradores.”

Estriba e alanceia a recorrente a sua divergência das instâncias no seguinte núcleo de razoamento: para as instâncias, dado que a forma de aquisição não é translativa do direito reivindicado, a promitente-compradora, enquanto possuidora em nome alheio, teria que ter invertido o título de posse; para a recorrente, a qualidade de possuidora em nome próprio deve se fixada a partir do momento em que os promitentes-vendedores se recusaram a celebrar o contrato definitivo, em 1965, quando para esse efeito foram notificados. 

Nuclearizado o ponto discrepante, não será despiciendo recensear a matéria de facto pertinente para a solução.

Socorremo-nos para o efeito, data vénia, da recensão colectada pelo aresto recorrido, que não vem posto em causa e que, afora a questão da merma de inclusão de matéria interessante para a decisão da causa – que já se verificou supra não ser atendível -, não sofrerá contrstação.     

“[No] caso vertente, resultou provado que FFF, pai da autora AA, celebrou com HHH, JJ e EEE um contrato promessa, em 26.05.1964, através do qual estes declararam prometer vender, e aquele declarou prometer comprar, o 3º andar direito de um prédio aí identificado, que hoje corresponde ao nº 14 da Rua ..., em Lisboa – v. Nº 1 da Fundamentação e Facto. (o sublinhado e negrito na datação é nosso).

Ficou convencionado entre as partes o preço de Esc. 490.000$00 e, como sinal e princípio de pagamento e reforço do sinal, o promitente-comprador entregou aos promitentes-vendedores a quantia de Esc. 300.000$00, devendo o restante ser pago na data da realização da escritura – v. Nºs 2 a 4 da Fundamentação e Facto.

Mostra-se consignado no contrato promessa constante de fls. 7 e 8 que a escritura pública se realizaria no local, dia e hora que os promitentes vendedores e o promitente-comprador acordassem entre si, ou no caso de não haver acordo, em qualquer cartório notarial de Lisboa e em dia e hora que o promitente-comprador indicar, mas que não pode ser em data anterior àquela em que os promitentes vendedores estivessem de posse da necessária licença de habitabilidade do prédio a que pertence o andar prometido vender, e mais documentação exigível.

O contrato prometido – escritura pública de compra e venda – nunca chegou a ser realizado. Os autores ainda notificaram judicialmente os promitentes vendedores para a sua realização, que não foi levada a efeito, em 15.09.1966, invocando estes a falta de reforço de sinais, por parte dos promitentes-compradores, que teria inviabilizado a obtenção da licença de habitabilidade – v. Nº 14 da Fundamentação e Facto.

Sucede que os réus não lograram obter a necessária licença de habitação, nem foi levada a efeito a escritura de constituição da propriedade horizontal – v. Nºs 8, 9, 11, 16 e 17 da Fundamentação e Facto - pelo que nem a escritura pública de compra e venda teve lugar, nem nenhuma das partes resolveu o contrato promessa então celebrado.

Mas, provou-se também que o aludido 3º andar direito foi entregue ao promitente-comprador, na data de celebração do contrato promessa, no dia 26.05.1964, e que a falecida DDD , mãe da autora, e esta, passaram a habitar o andar desde data não concretamente apurada da década de 60 – v. Nºs 19 a 22 da Fundamentação e Facto.

As autoras, enquanto sucessoras do promitente-comprador, exerceram, é certo, os demonstrados poderes de facto, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, e eram inclusivamente consideradas por todas as pessoas com quem se relacionavam como donas do referido 3.º andar direito – v. Nºs 24 e 25 da Fundamentação e Facto.

Tal significa que a autora e sua falecida mãe sempre exerceram sobre o andar os poderes de facto, muitos dos quais são consentâneos com a traditio decorrente do contrato promessa, sem que se haja apurado que tenham transmitido aos titulares do direito de propriedade a modificação da atitude, i.e., a manifestação de que passaram a actuar sobre a coisa como proprietárias. Daí que, a demonstrada actuação de facto das autoras tem pouca relevância jurídica.

De resto, conforme resultou da resposta restritiva dada ao artigo 10º da Base Instrutória, não ficou demonstrado que as autoras se afirmem perante todas as pessoas, designadamente, perante os promitentes vendedores, como donas do 3º andar direito em causa nos autos.

Ademais, sempre as autoras admitiram, nas suas actuações, que são possuidoras em nome de outrem.

Por um lado, lançaram mão de uma notificação judicial para que os promitentes vendedores realizassem a escritura pública de compra e venda; por outro, apresentaram o contrato-promessa conforme foi judicialmente requerido por uma das então proprietárias do andar e cuja decisão teve lugar em 07.06.1985, assumindo, consequentemente, a sua qualidade de sucessoras do promitente-comprador – v. Nºs 13 a 15, e 29 da Fundamentação e Facto.

Mesmo em relação à quota-parte paga pelas autoras relativamente à contribuição autárquica e taxas camarárias, resultou demonstrado que elas eram pagas por um dos promitentes-vendedores que, posteriormente, recebia, em parte proporcional, dos promitentes-compradores, o que sucedeu entre 1978 e 2000 – v. Nº 27 da Fundamentação e Facto.”

Será com este quadro factológico que iremos apurar, se: 1) a recorrente deve ser considerada possuidora em nome próprio, desde o momento em que tendo sido recusada a celebração do contrato definitivo; 2) ou se deverá considerar-se que o contrato-promessa, apesar de ter ocorrido a tradição da coisa, não transferiu um direito próprio de propriedade e os promitentes-compradores praticaram actos que não eram compatíveis e idóneos para a qualidade de proprietários, de que ora se arrogam.   

Resulta pacifico, na doutrina, bem como na jurisprudência, que “[do] contrato-promessa nasce uma obrigação de prestação de facto positivo, consistente na emissão de uma declaração negocial, a declaração de vontade correspondente a um outro negócio cuja futura realização pretendem assegurar, chamado negócio prometido ou negócio definitivo.” [[8]/[9]]

Segundo o princípio da equiparação ou da correspondência ao contrato-promessa aplicam-se as mesmas regras (requisitos e efeitos) do contrato prometido ou definitivo [[10]], destacando-se, no entanto, deste pelo regime específico e próprio atinente ao sinal, quando ele tenha sido constituído, mais concretamente no plano do sancionamento, adveniente do não cumprimento, que daí decorre para os contraentes faltosos. Quando se verifique uma situação de incumprimento imputável a quem prestou o sinal, permite a lei que aquele que o recebeu o faça seu e, ao invés, verificando-se o incumprimento definitivo da parte de quem o recebeu, confere a quem o prestou a faculdade de exigir o dobro do que tiver prestado – cfr. artigos 441.º e 442.º, n.º 2 do Código Civil.

O contrato-promessa a que se referem os arts 410.º e segs., 441.º, 442.º e 830.º do Código Civil é, em princípio, um contrato de eficácia obrigacional - cfr. artigo 397.º do Código Civil -, o mesmo é dizer que só produz efeitos entre as partes e seus herdeiros. [[11]]

Podem, porém, as partes atribuir-lhe eficácia real (erga omnes) quando tenha por objecto a transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo.

Estabelece a este título o art. 413.º do Código Civil, no seu n.º 1, que "à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo". Por sua vez, o n.º 2 preceitua que "deve constar de escritura pública a promessa a que as partes atribuam eficácia real; porém, quando a lei não exija essa forma para o contrato prometido, é bastante documento particular com reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou de ambas, consoante se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral".

Tratando-se de contrato-promessa cujo objecto recai sobre um bem imóvel – andar de um prédio urbano - para que o contrato-promessa em causa nos autos fosse dotado de eficácia real, teria sido necessário que: a) - constasse de escritura pública; b) - os seus outorgantes declarassem expressamente que atribuíam eficácia real ao contrato; c) - se fizesse a inscrição no registo dos direitos emergentes da promessa.

No caso em apreço, o contrato-promessa não foi celebrado por escritura pública, nem no mesmo existe uma declaração expressa das partes no sentido de atribuição de eficácia real ao contrato – cfr. certidão junta com a petição inicial e constante de fls. 7 e 8 e 10 (reforço do sinal)

Ainda que tendo ocorrido a tradição da coisa prometida comprar, o promitente-comprador não deixa de, relativamente ao promitente-comprador ser um possuidor em nome alheio ou um mero detentor em nome de outrem. Não tendo os promitentes, comprador e vendedor, atribuído eficácia real ao contrato-promessa, do acordo de vontades plasmado no contrato-promessa a que se supra se faz referência, só nasceu para cada um dos contraentes a obrigação de contratar ou seja de celebrar um contrato de compra e venda relativamente ao andar do imóvel identificado no contrato-promessa. (Que os promitentes, compradores e vendedores, não terão querido, reciprocamente, querido atribuir ao contrato-promessa outra eficácia que meramente obrigacional atesta-o o conteúdo da cláusula quarta (4.ª9 do contrato-promessa, quando refere, aperts verbis, que “”São da conta e da exclusiva responsabilidade dos promitentes vendedores quaisquer encargos a que pertence o andar ora prometido vender, e pelo período que decorrer até à celebração da escritura e ainda quaisquer multas por actos praticados até à mesma”.           

Não sobram dúvidas que tanto promitentes-vendedores como promitentes-compradores pretenderam atribuir eficácia meramente obrigacional ao contrato-promessa que celebraram, com as consequências que daí, naturalmente, haveriam de decorrer para o feixe de deveres e direitos que, reciprocamente, faziam derivar do acordo contratual celebrado.

Ainda que, como quedou adquirido para o processo, os promitentes-compradores tivessem a partir de determinada altura passado a suportar “[as] despesas relativas ao 3º andar direito identificado em A), nomeadamente, as relativas a consumos de água, luz e telefone, bem como as relativas a reparações, pinturas, impermeabilização de paredes, reparação e substituição de canalizações e instalação eléctrica, janelas e persianas [resposta ao artº 8º da base instrutória]”, o facto é que as despesas efectuadas são despesas correntes e, eventualmente, necessárias á habitabilidade do andar e que se inscrevem no leque de despesas que qualquer ocupante de um andar tem necessidade de efectuar para conferir comodidade, disfrutar de conforto e, digamos, transmitir aceitabilidade e dignidade funcional (pessoal e social) à casa que habita, de forma permanente.

Os actos que permitiriam transmutar, subverter e reverter, para a sua esfera pessoal/dominial, o direito de propriedade sobre o andar, teria que, como se assevera na decisão recorrida, e já havia sido afirmado na decisão de primeira instância, a inversão do título de posse, isto passar a agir sobre o andar perante os titulares do direito de propriedade como se verdadeiros proprietários se tratassem.        

Preceitua o artigo 1265.º do Código Civil que: “a inversão do título de posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.”  

Com se alcança do citado preceito a inversão do título por que alguém detém uma coisa pode verificar-se por uma de duas formas: a) por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía; ou b) por acto de terceiro capaz de transferir a posse. [[12]] A oposição que o preceito reclama uma contraposição ostensiva revelada ou manifestada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica. Mister é que o detentor de uma coisa, em nome alheio, se apresente perante aquele em nome de quem detinha com uma atitude ou um comportamento diverso daquele que havia assumido até esse momento, isto é, confrontando o titular do direito com um comportamento típico de quem passou a possuir sem qualquer constrangimento ou liberto de peias que tolhessem o uso, a fruição e a disposição plenas da coisa. [[13]] A oposição de direitos a que o preceito alude não tem que revestir uma feição conflituante ou de antagonismo físico-material, mas tão só de reversão ou de refracção de uma posição dominial para outra. A reversão e desconstrução do direito radicado numa pessoa recompõe-se, ou reconstrói-se, na esfera jurídica de outrem mediante a manifestação de factos que revelem e se manifestem, inequivocamente, como uma rejeição ou contraposição á posição em que se encontrava, passando, a partir desse momento, a agir por forma condizente com um direito real típico. O processo translativo de um estado ou situação jurídica de possuidor em nome de outrem para um estádio superior e com estatuto e qualificação jurídica mais densa e com uma configuração diversa de possuidor em nome próprio, opera-se mediante uma assumpção de actos materiais e de configurações típicas que anunciem e façam representar aos observadores normais uma alteração qualitativa da situação jurídica especifica e típica em que se manifesta a actuação e a acção do sujeito. [[14]] Esta oposição não possui formas preestabelecidas de se anunciar mas há-de manifestar-se através dos actos e sinais exteriores que convençam aqueles que os assistem de que houve uma transmutação radical, efectiva e essencial no modo de actuar e estar do sujeito que operou a inversão do título possessório de modo a inculcar uma mudança do paradigma jurídico em que exercita um novo direito. 

A posição da doutrina e da jurisprudência quanto à problemática questão da ocorrência de tradição da coisa prometida vender, mostra-se, de forma diserta e munificente, explanada no acórdão recorrido, pelo que data vénia, nos limitamos a remeter para o nessa sede foi expendido. [[15]

Ainda que no caso em apreço tivesse havido um pagamento significativo do preço acordado – cerca de dois terços (2/3) – o facto é que: a) – os promitentes-compradores sabiam que o contrato-promessa não foi realizado por não ter sido pago a parte sobrante do preço – cfr. ; b) – que parte dos encargos com contribuições e taxas camarárias, no período compreendido entre 1978 e 2000 “era-lhes solicitada e recebida pelo réu CCC [resposta ao artº 11º-A da base instrutória]”; c) – que os promitentes-vendedores não os consideravam como proprietários, dado que na década de oitenta procederam á sua notificação para apresentarem o contrato-promessa, o que veio acontecer – cfr. ponto 29 da matéria aditada, ao amparo do artigo 659º, nº 3, aplicável ex vi do artigo 713º, n.º 2 do CPC . (“II requereu judicialmente, em 02.12.1980, nomeadamente contra a falecida DDD , a apresentação do contrato-promessa atinente ao 3º andar direito do prédio sito na Rua General Pimenta da Castro, em Lisboa, tendo esta entregue o pretendido documento, conforme certidão da decisão, datada de 07.05.1985, constante de fls. 571-572)”.

Resulta, de meridiana compreensão jurídica, que uma posse em nome alheio, como era o caso, só poderia reverter e transmutar-se em posse em nome próprio se os possuidores precários, ou pelo menos com a consciência, demonstrada e evidenciada pela factualidade adquirida, de que os proprietários os não consideravam possuidores em nome próprio ou com possuindo com um animus correspondente a um direito de propriedade. Na verdade, não basta para que se verifique a inversão do título de posse que os próprios ou os vizinhos os tenham como possuidores em nome próprio. Para que esta reversão ou transmutação da intenção de possuir se possa ter por reconhecida, no plano do direito, é necessário que, na atitude reversiva e modificadora do sentido possessório se encontrem engolfados aqueles contra quem a inversão do título se faz. Torna-se necessário que aqueles que deixam de ter o direito saibam, ou compreendam, pela exteriorização dos actos materiais do actual possuidor, que esse direito passou a ser exercitado e dominado por outro. Ao fim ao cabo, o anterior proprietário tem que tomar conhecimento que a partir de determinado momento, e perante a evidência dos actos materiais que lhe são patenteados e que ele reconhece se criou um novo estado jurídico relativamente àquela concreta coisa e que ele aceita esse novo estatuto. [[16]]

O que resulta demonstrado é que as rés exerciam actos de posse à vista de toda a gente, mas esses actos de posse tanto eram compatíveis com um comodato [[17]] com um fruição ou gozo por mero favor. Na verdade, receber pessoas no andar, aí ter os móveis, pagar as despesas inerentes à fruição de um andar – água, luz, gás e outros encargos – pode significar que quem ocupa um andar, tanto o pode fruir em nome próprio, como em nome alheio. Trata-se de actos normais de fruição e mesmo que sejam observados e reconhecidos por todos aqueles que mantêm um relacionamento próximo com os ocupante de um andar, não podem significar inversão do titulo de posse perante aqueles contra quem esses actos deveriam ser ostentados e contrapostos, os verdadeiros proprietários.

A questão deve ser perspectivada, num plano de inversão do título de posse, e não de posse efectiva a ocorrer desde a tradição da coisa. Os actos posteriores, e que se mostram espelhados na factualidade adquirida, demonstram que a tradição da coisa, embora tendo sido efectiva, não foi acompanhada dos necessários, pertinentes e demonstráveis intenções de posse, ou pelo menos não o foram perante quem o deveriam ter sido, dos actos reveladores de uma inequívoca vontade de passar a possuir em nome próprio.

Converge, aliás, a jurisprudência no sentido de que “[A] qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato-promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos, do conteúdo e da execução do respectivo negócio e a menos que dos termos do acordo originário de entrega do imóvel (do negócio e das circunstâncias que rodearam a sua celebração) resulte a intenção de transferir a posse do imóvel (como na situação em que ocorre o pagamento da totalidade do preço aquando da outorga da promessa com entrega subsequente do imóvel), a entrega inicial do imóvel ao promitente vendedor apenas confere a mera detenção ou posse precária (para salvaguarda dos direitos inerentes à promessa) que apenas se converterá em posse correspondente ao direito de propriedade se comprovadamente ocorrer a inversão do título de posse”. [[18]]

Pelo que se deixa dito, falece a causa aquisitiva do direito de compropriedade, na percentagem referida no pedido.

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Negar a revista;

- Condenar a recorrente nas custas.

                                        

Lisboa, 10 de Dezembro de 2013

                       

 Gabriel Catarino (Relator)

                    

  Maria Clara Sottomayor

                      

 Sebastião Póvoas

-----------------
[1] Cfr. a título de exemplo os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 2008, de 18 de Dezembro de 2008 ou de 20 de Janeiro de 2010, em www.dgsi.pt
[2] cfr. acórdão deste Supremo, de 13-11-2012, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, em que se sumariou: “1. Se a Relação reaprecia a prova ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, fá-lo livremente formando a sua convicção acerca de cada facto questionado, tal como a 1.ª instância, nos termos do artigo 655.º do Código de Processo Civil. 2. O actual artigo 685-B, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil não obriga a que a impugnação seja feita por referência aos artigos da base instrutória, nem à especificação separada dos meios de prova gravados relativamente a cada um dos factos postos em crise. 3. Obriga, sim, a que se seriem os concretos pontos de facto e relativamente a cada um se identifique o meio probatório impositivo de decisão diversa, sendo tal indicação feita com referência à gravação constante da acta. (…) 5. O Supremo Tribunal de Justiça, como Tribunal de revista, limita-se a aplicar o direito aos factos materiais que as instâncias fixaram, não podendo sindicar essa fixação salvo nas situações excepcionais dos artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. 6. Mas pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto já que se tal for feito ao arrepio do artigo 712.º, do Código de Processo Civil, está-se no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, no julgamento de direito.”

[3] Cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 05-02-2009, Proc. n.º 4092/08; de 21-09-2010 Proc. n.º 2/03.5TBMNC.G1.S1; de 21-10-2010, Proc. n.º 937/06.3TBCSC.L1.S1; e de 30-11-2010, Proc. n.º 581/1999.P1.S1, in www.stj.pt . Veja-se ainda, pela novidade, o recente acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26-02-2013, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira, de cujo sumário consta: “I – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 722.º, n.º 2, do CPC). II – Não se verificando nenhuma destas hipóteses, o STJ tem de acatar a decisão de facto recorrida, visto que somente lhe compete, enquanto tribunal de revista, aplicar aos factos materiais fixados pela Relação o regime jurídico que julgue adequado (art. 729.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). III – Se o STJ não censurar a decisão de facto das instâncias com base no art. 722.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, terá necessariamente de improceder a revista que não impugne o julgamento de fundo adoptado pela Relação quando a matéria de facto subsista inalterada.” Ou ainda o acórdão desta secção relatado pelo Conselheiro Alves Velho, de 11-12-2012, em cujo sumário se extractou a seguinte doutrina: “I – Quando a Relação tenha procedido a alteração da matéria de facto, o STJ não está impedido de apreciar o uso que a 2.ª Instância fez dos seus poderes nesse campo, pois que em causa está averiguar se houve violação da lei, designadamente dos critérios legais fixados no art. 712.º, n.º 1, do CPC e dos preceitos substantivos relativos ao regime probatório. I – Em regra, se as respostas ultrapassam o âmbito da matéria quesitada, em termos não comportáveis no articulado pelas partes, têm de ser limitadas ao âmbito do perguntado, considerando-se não escrito o que o exorbite. III – Porém, se tal não se mostra possível, em virtude de, por exemplo, a resposta se traduzir na criação de factos novos, inserindo conteúdo diferente do perguntado ou invertendo o sentido do que estava sob indagação, então, terá de ser completamente eliminada. IV - A decisão da Relação que, em apreciação de impugnação da matéria de facto, visando o recorrente que se responda “provado” ou “não provado” a certos quesitos, modifique o sentido da factualidade para mais gravosa para o impugnante que o que resultaria das simples respostas de “provado” ou “não provado” a esses quesitos, preenche os vícios de excesso de pronúncia e de violação de normas processuais relativas ao uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos pelo referido art. 712.º, com referência ao n.º 4 do art. 646.º do CPC.” Ou ainda o acórdão deste Supremo, de 10-07-2008, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, em que, na parte interessante do sumário se escreveu: “1) Cumpre às instâncias apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre o apurado na 1.ª instância. 2) Enquanto Tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, só nos limitados termos do n.º 2 do artigo 722.º e do artigo 729.º, é consentido ao Supremo Tribunal de Justiça que intervenha em matéria de facto. A possibilidade de debater questões de facto perante este Tribunal confina-se ao domínio da prova vinculada. 3) O exercício, ou não, pela Relação dos poderes das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil é incensurável pelo Supremo Tribunal de Justiça sendo a respectiva decisão irrecorrível.4) O Supremo Tribunal de Justiça, e salvo situações de excepção legalmente previstas, só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.5) A fundamentação das respostas aos quesitos – quer quanto aos provados, quer quando aos não provados – basta-se com uma explicação sucinta do “iter” lógico-dedutivo que levou à conclusão encontrada. 6) O princípio da livre apreciação das provas para a formação da convicção do julgador implica que na fase de ponderação decorra um processo lógico-racional conducente a uma conclusão sensata e prudente. 7) Mas esse processo, insondável e íntimo, não tem que ser transposto para a motivação, que se limita a elencar criticamente as provas consideradas credíveis. 8) Contra a falta ou a insuficiência da motivação reage-se com o incidente do n.º 4 do artigo 653.º Código de Processo Civil, também na Relação quando altera ou inova a base instrutória.”
[4] Taruffo; Michele, in “Paginas sobre Justicia Civil”, Marcial Pons, Madrid, 2009, pág. 536.
[5] Cfr. Tarufo, Michelle, in “La Motivazione della sentenza civile”, Padova, 1975, pp. 149-169 considera que a doutrina do silogismo lógico [è peraltro errónea si se presenta come una teoria del giudizio, in quanto non è possible dimostrare che il ragionamento decisorio ha strutura silogística, mentre è possible dimostrare che ha una strutura diversa; è invece incompleta se si presenta come teoria della motivazione, poichè la strutura dedutiva è solo una componente della motivazione, mentre vi sono ragioni decisive per respingerla se si presenta como una teoria di ciò che la motivazione dovrebbe essere; infine, la stessa dottrina è priva di significato se si presenta contemporaneamente come teoria sia del giudizio che la motivazione”. Citado por Aliste Santos, Tomás-Javier, in “La Motivazione de las Resoluciones Judiciales”, Marcial Pons, “Proceso y Derecho”, Madrid, 2011, pág. 253       
[6] Para uma abordagem mais aprofundada veja-se Martinez Zorrilla, David, “Metodologia Jurídica y Argumentación”, Marcial Pons, Madrid, 2010.
[7] “Sólo podemos explicar lo que es un hecho con la ayuda de la verdad de un enunciado sobre los hechos; e lo que es real sólo podemos explicarlo en términos de lo que es verdadero” – Habermas, Jürgen, “Verdad y Justificación”, Editorial Trotta, Madrid, 2007, pág. 237. “[…] Uno de los aspectos esenciales de la justificación de un argumento es la llamada justificación interna, esto es, de la corrección lógica del razonamiento. Si no existe un vinculo logicamente correcto entre las premissas y la conclusión, el argumetno es rechazado. (…) Un argumento válido es todo argumento que satisface los requisitos de la lógica; esto es, un argumento logicamente correcto.” - apud Martinez Zorrilla, Davis, op. loc. cit. pág. 207.       
[8] Cfr. Calvão Silva, João, in “Sinal e Contrato-Promessa”, Almedina, 2010, 13.ª edição, pág. 19.
[9] Cfr. Antunes Varela, Sobre o Contrato-promessa, Coimbra editora, 1988, 
[10] “O contrato-promessa deve definir ou fixar os pontos sem os quais o contrato definitivo, se imediatamente concluído, seria inválido por indeterminidade ou indeterminabilidade do objecto” – cfr. Calvão Silva, João, in op. loc. cit. pág. 30.
[11] cfr. Antunes Varela in "Das Obrigações em geral", 9a ed., vol. I, pág. 317 e segs.; Abel Pereira Delgado, in "Do Contrato Promessa", 1978, págs. 29/30.
[12] Cfr. Oliveira Ascensão, José, in “Direitos Reais”, 1983, pág. 98 e Menezes Leitão, Luís Manuel, “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 2.ª edição, pág. 135-136.
[13] Cfr. Santos Justo, A., in “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.ª edição, pág. 194. “Trata-se, portanto, de uma conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a ser detido a título de animus possidendi”, ou nas palavras de Orlando de Carvalho, citado por este autor, “ a inversão do título de posse é uma inversão do animus: o animus não relevante transforma-se em animus relevante”. No mesmo sentido Menezes Leitão, Luís Manuel, “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 2.ª edição, pág. 135-136. 
[14] Cfr. neste sentido a já citada “Posse” de Orlando de Carvalho, pág. 99, citado por Santos Justo, A., ““Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.ª edição, pág. 194.
[15] Por arrimo ao discurso verificador extractamos o tramo do acórdão recorrido em que foram expendidas as razões que militam a favor da tese que reputamos dever ser seguida.

“Como é sabido, a natureza da posse do promitente-comprador no caso de traditio do objecto prometido vender, tem sido largamente debatida na doutrina e na jurisprudência.

É que, não existe um entendimento unívoco sobre se o contrato-promessa de compra e venda, com a entrega da coisa prometida vender ao promitente-comprador, confere ou não, a este, verdadeira posse.

Segundo um entendimento, o promitente-comprador a quem foi entregue a coisa objecto do contrato prometido tem sobre ela uma posse legítima, que não meramente precária. Para os defensores desta tese, seguidores da doutrina de Ihering, não há que distinguir entre o corpus e o animus, uma vez que a existência daquele implica sempre a deste.

Aponta, todavia, a doutrina maioritária, no sentido de que o Código Civil adoptou a doutrina subjectivista de Savigny, autonomizadora dos dois elementos supra referidos - corpus e animus - assim se distinguindo a verdadeira possa dos casos de mera detenção.

Seguindo esta última doutrina, comungamos do entendimento de que o promitente-comprador investido com a tradição de prédio ou fracção é, em regra, um mero detentor da coisa, ou possuidor em nome alheio.

Com efeito, o contrato-promessa não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire, em princípio, o corpus possessório, mas não assume o animus possidendi, ficando na situação de mero detentor ou possuidor precário – v. art. 1253º do CC.

A entrega antecipada ao promitente-comprador da coisa prometida vender é qualificada pela doutrina e jurisprudência como um contrato atípico ou inominado, porventura análogo ao comodato, mas que goza de autonomia relativamente ao contrato-promessa.

Este contrato atípico, que é gerador de um direito pessoal de gozo, autoriza o promitente-comprador a usar a coisa até à celebração do contrato prometido ou até à resolução do contrato por parte do promitente-vendedor – v. neste sentido VAZ SERRA, RLJ 115º, pág. 206 e Ac. STJ de 03.03.2005 (Pº 05B002), acessível no já citado sítio da Internet.

O promitente-comprador investido com a tradição, nomeadamente de um imóvel objecto do contrato-promessa, goza de poderes que integram um verdadeiro direito de uso, passando a aproveitar todas as utilidades que o tal imóvel lhe pode proporcionar, mas não lhe confere o estatuto de possuidor.

Discutindo sobre a natureza da posse do promitente adquirente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, A Posse, Perspectivas Dogmáticas Actuais, 77-78, prevê três hipóteses possíveis:

i) - A traditio visou antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo; trata-se duma hipótese frequente nos casos em que o preço esteja todo ou quase todo pago (…)

ii) - A entrega da coisa é um favor feito pelo promitente alienante; não houve pagamento do preço ou algo que dele se possa aproveitar (…)

iii) - A entrega da coisa, não sendo uma antecipação do cumprimento definitivo não surge, porém, como mero favor; por exemplo, ela é subsequente a um “reforço” de sinal, tendo, assim, um cariz remuneratório (…).

E, segundo defende ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ob. cit., loc. cit., só no primeiro caso a posse é boa para usucapião, podendo proporcionar, por essa via, a aquisição do domínio. Os segundo e terceiro casos traduzem situações que se aproximam, respectivamente, do comodato e da locação, sendo a posse interdictal: ela dá azo às defesas possessórias, mas não à usucapião.

Igualmente esclarece ANTUNES VARELA, RLJ, Ano 128º, 146, que “o promitente-comprador, investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa”.

É certo que tão pouco se poderá concluir que o simples facto de ter havido um contrato-promessa com traditio, não é suficiente para se entender, como princípio dogmático, que a detenção por parte do promitente-comprador é simplesmente precária.

É que, em certas situações já antes aludidas, é admissível que o promitente-comprador possa ser encarado como um verdadeiro possuidor em nome próprio.

Tal sucede quando o promitente-comprador outorga o contrato-promessa, passando a ocupar o prédio com vista à celebração do contrato-prometido, tendo já pago o preço na totalidade. Nestes casos, o promitente-comprador considera o prédio em causa já como seu e a sua utilização e gozo é susceptível de configurar uma verdadeira posse – v. neste sentido, ANTUNES VARELA, R.L.J., Ano 124, 343 e segts.

Nessas situações, é também entendimento jurisprudencial pacífico que a coisa é entregue ao comprador como se fosse sua e neste estado de espírito ele pratica actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade – v. entre muitos, Acs. STJ de 27.05.2004 (Pº 04B1445) e de 11.05.2006 (Pº 06B404), acessível em www.dgsi.pt.

Mas, a vontade concreta do detentor é susceptível de relevar caso tenha invertido o título de posse.

Com efeito, o mero detentor pode alcançar a inversão do título da posse, o que se verifica quando se substitui uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, ou seja, a uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais.

Tal inversão pode dar-se: ou por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse, conforme decorre do disposto no artigo 1265º do Código Civil.

Torna-se, assim, necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o oponente possuía, pelo qual o detentor torne directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito.

A inversão por oposição, implica, antes de mais, uma modificação do animus por parte do detentor, relevada por actos positivos que, inequivocamente, exteriorizem a sua vontade de opor uma posse própria à pessoa em nome ou no interesse de quem vinha actuando como possuidor precário.

Por isso mesmo, esses actos positivos são receptícios, ou seja, só alcançam aquela relevância modificativa quando, por via judicial ou extrajudicial, são levados ao conhecimento do possuidor, salvo se praticados na sua presença ou de quem o represente.

Como acentua HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, 100, a vontade concreta do detentor só releva caso tenha sido invertido o título de posse. Doutro modo, o elemento intencional da posse mede-se pela natureza do acto jurídico que deu lugar à aquisição.

E mais refere que “A oposição tem de traduzir-se em actos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a que os actos se opõem – ob. cit., 98 e 99.

A propósito do requisito da “oposição do detentor” aludido no artigo 1265º do Código Civil, esclarece DURVAL FERREIRA, Posse e Usucapião, 186-191, que tem de haver mais do que mera exteriorização (expressa ou implícita) do novo animus: mais do que mera “declaração” (cognoscitiva do novo animus). Tem que se passar das palavras (ou mero comportamento declarativo) aos “actos”: pois tem de haver uma “oposição” do detentor e “contra aquele em cujo nome possuía” (artigo 1265). Ainda que seja suficiente o especial “acto” do detentor contra o possuidor, “do notum facere” (ou seja, a sua notificação directa.

Assim, para que o promitente-comprador tradiciário, fora das situações excepcionais antes referidas, possa adquirir posse própria, terá de inverter o título da posse, designadamente por oposição contra o promitente vendedor, dando-lhe a conhecer, de modo inequívoco, a sua intenção de actuar como titular do direito. E apenas se tal oposição não for repelida pelo proprietário, se inverterá o título da posse.

Como bem se refere no Ac. STJ de 17.04.2007 (Pº 07A480), A posse iniciada como precária só é apta para conduzir à usucapião mediante inversão do título de posse – v. também em sentido coincidente Ac. STJ de 14.09.2010 (Pº 1618/04.8TBLLE.E1.S1), acessível em www.dgsi.pt.”
 

[16] Parece ir neste sentido o acórdão deste Supremo (citado no texto do acórdão recorrido), de 27-05.2004, relatado pelo Conselheiro Quirino Soares, em que se escreveu: “1. À tradição material que acompanha o contrato-promessa de compra e venda não corresponde, em regra, a transmissão da posse correspondente ao direito de propriedade, porque a causa daquele acto translativo, que é o contrato-promessa e a convenção acessória de entrega antecipada da coisa, não se destina à constituição ou transferência de direitos reais, designadamente, o direito de propriedade, mas, tão só, à constituição de um direito de crédito a uma determinada declaração negocial. 2. Mas, aquela traditio pode envolver a transmissão da posse, como nos casos excepcionais em que já se encontra paga a totalidade do preço ou em que as partes têm o deliberado e concertado propósito de não realizar a escritura pública, para evitar despesas, e a coisa foi entregue ao promitente-comprador em definitivo, como se dele fosse já. 3. Fora destas circunstâncias, a intenção do beneficiário de uma tal traditio só tem possibilidades de influir no animus da detenção a partir do momento em que se exteriorize numa atitude de oposição face ao transmitente, por uma das formas previstas no artº1265º, CC (inversão do título da posse). 4. Ao beneficiário da traditio assiste o direito de conservar a detenção da fracção enquanto não for indemnizado pelo incumprimento da promessa de venda, ou não for convencido de que o promitente-vendedor não foi o culpado do incumprimento.”  

[17] Cfr. neste sentido o ac. deste STJ de 03-03-2005, in www.dgsi.p em cujo sumário se escreveu: “I - Colocada a fracção em causa, em cumprimento do estipulado em cláusula do contrato-promessa, na imediata disposição do promitente-comprador, e tendo, assim, havido tradição da mesma para este, mostra-se-lhe conferido por esse modo um direito pessoal de gozo, fundado em contrato atípico ou inominado, análogo ao de comodato, paralelo ao, mesmo se formalmente integrado no, contrato-promessa (cujo conteúdo próprio, definido no art. 410.º, n.º 1, C.Civ., obviamente excede). II - Trata-se, então, de convenção complementar, ao abrigo do art. 405.º C. Civ., antecipatória dos efeitos do contrato prometido, e destinada a vigorar até à efectiva, regular, celebração deste último.”

[18] Cfr. neste sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de maio de 2012, relatado pelo Conselheiro João Martins de Sousa, e subscrito pelo ora relator, enquanto 1.º Adjunto, em que, a propósito, se escreveu: “[Por] norma, o contrato-promessa de compra e venda, mesmo que seja acompanhado de tradição da coisa, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador o qual adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário. – Excepcionalmente, são admissíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse, actuando uti dominus, designadamente quando haja sido paga a totalidade do preço ou parte substancial do mesmo ou quando as partes não tenham o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento do IMT ou precludir o exercício de direito de preferência). – A simples ocupação de uma fracção autónoma, por virtude da celebração de um contrato-promessa, não é suficiente para que se possa falar numa situação de verdadeira posse, a menos que, entretanto, tenha havido inversão do título de posse, facto que acarreta, a favor do promitente-comprador, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião.” Ainda neste sentido os acórdãos deste Supremo de 06-05-2004; 17-04-2007; 09-09-2008; 11-12-2008; 12-03-2009; 14-09-2010, todos em www.dgsi.pt