MORA DO CREDOR
DEVER DE COOPERAÇÃO
COOPERAÇÃO ESSENCIAL
REPARAÇÃO DOS DANOS
Sumário


I. Para haver mora do credor – art. 813º do Código Civil – não basta qualquer recusa de colaboração deste, quando exigível, para que o devedor execute proficientemente a sua prestação, sendo antes de exigir que essa recusa se relacione com actos de cooperação essenciais, omitidos ou recusados pelo credor que impeçam a realização da prestação pelo devedor; não estando provado, in casu, que a desmontagem do veículo era essencial à realização da vistoria pelo perito da Ré, como esta alegara, não houve recusa injustificada, e, como tal, não existiu mora credendi.

II. Não obstante se considerar que a mora do credor, ao invés da do devedor, não pressupõe a culpa daquele, é requisito da mora credendi que os actos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam actos de cooperação essenciais; de outro modo, cair-se-ia num campo movediço pela falta de critério objectivo pelo qual se aferisse se o seu comportamento era essencial para o cumprimento pelo devedor. As exigências da boa-fé são recíprocas: os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicitam relações intersubjectivas de cooperação.

Texto Integral

Proc.511/11.2TBPVL.G1.S1

R-432[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            AA Lda., instaurou, em 30.9.2011, no Tribunal Judicial da Póvoa do Lanhoso, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra:

 Companhia de Seguros BB S.A.

Alegando, no essencial, que, quando o seu veículo pesado de passageiros, conduzido por CC, transitava pela direita, numa estrada com dois sentidos de marcha, a não mais e 50 km/h, um veículo ligeiro de passageiros, propriedade de DD e conduzido por EE, saiu, pela sua frente, de um parque de estacionamento situado do seu lado direito, para a dita estrada, sendo intenção do seu condutor virar à esquerda (assim, em sentido inverso ao do veículo pesado).

 Porque seguia desatento e não observou a circulação do pesado, bem visível, a não mais de 20 m, barrou-lhe inesperadamente a progressão na via, não conseguindo o CC evitar a colisão dos veículos, embatendo com a parte da frente do pesado na parte lateral esquerda do ligeiro.

Acrescenta que, sendo da Ré a responsabilidade pelos prejuízos emergentes do acidente, por para ela ter sido transferida por força de contrato de seguro, deve indemnizar a Autora – além do valor da reparação do veículo pesado (€ 10.288,00), já pago – pelo custo emergente da privação do uso verificada entre o dia do acidente (10.3.2010) e o dia 21.7.2010, termo da reparação, à razão de € 253,61 por dia (cfr. acordo entre a ANTROP e a APS), e ainda pela desvalorização comercial do pesado, na ordem de € 2.500,00, que resulta do facto de ter passado a ser um veículo sinistrado.

Alegou ainda que, no momento da colisão, o condutor do ligeiro circulava sob a direcção efectiva e no interesse do seu empregador e proprietário do veículo, no exercício de funções laborais de que o tinha incumbido.

Formulou, assim, o seu pedido:

Pede-se a condenação da demandada a pagar à demandante a quantia de € 36.230,00. A demandante pode optar entre o pedido de uma indemnização actualizada nos termos do artigo 566°, n°2, do Código Civil ou o pedido em juros de mora a contar da citação, nos termos do artigo 805°, n°3, do mesmo Código, mesmo com referência a danos não patrimoniais (Ac. S.T.J. de 12.3.98 — Relator Cons. Martins da Costa). Assim, opta pelos juros de mora a partir da citação.”

Citada, a Ré contestou, impugnando parte dos factos alegados na petição inicial, apresentando uma versão diferente sobre a dinâmica do acidente, fazendo notar que o condutor do pesado agia sob as ordens, as instruções e a direcção efectiva da entidade patronal, no seu interesse e de acordo com um trajecto pré-definido, imprimindo ao veículo, com desatenção pessoal, uma velocidade inadequada para o local, de cerca de 80 km/h (adequada seria a velocidade de 50 km/h).

Além disso, o pesado tinha livre mais de 3,00 m para contornar o veículo seguro pela retaguarda e nem assim evitou o embate. Entende que deve fixar-se culpa exclusiva ou, pelo menos, concorrente do veículo pesado. 

Caso seja de aplicar o invocado acordo existente entre a ANTROP e a APS (de que a R. é associada), a Autora deveria ter ordenado a desmontagem do veículo, mas só criou as condições necessárias à realização da peritagem – essencial para a avaliação dos danos – em 30.6.2010, tendo, por isso incorrido em mora creditoris da sua responsabilidade. 

Termina no sentido de que a acção seja julgada improcedente.

A Autora replicou, impugnando a matéria nova alegada na contestação e invocando a sua filiação na ANTROP.

Defendeu que, antes da desmontagem, tem que haver uma atitude positiva da seguradora acerca da responsabilidade relativamente ao modo como se deu o acidente.

Autorizou a desmontagem ainda antes de 9.4.2010.

Concluiu, remetendo para a petição inicial.

Teve lugar a audiência preliminar, onde foi proferido despacho saneador tabelar, seguido de factos assentes e de base instrutória, de que as partes não reclamaram.

Instruído o processo, teve lugar a audiência de discussão e julgamento da causa, que culminou com respostas fundamentadas à matéria da base instrutória, de que as partes também não reclamaram.


***

Foi proferida sentença que, repartindo a culpa no acidente na proporção de 30% para a Autora e 70% para a Ré, julgou parcialmente procedente a acção, nos seguintes termos:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré Companhia de Seguros BB S.A. no pagamento, à Autora, “AA, Lda”, da quantia de € 25.361,00, acrescida do valor correspondente aos juros moratórios, à taxa de 4%, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do remanescente do pedido.”


***

Inconformadas, Autora e Ré apelaram para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por Acórdão de 2.7.2013 – fls. 207 a 246 –, julgou procedentes ambas as apelações e, em consequência, alterou a sentença recorrida, nos seguintes termos:

Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a Ré Companhia de Seguros BB S.A., no pagamento, à Autora, “AA, Lda.”, da quantia de € 10.651,62, acrescida do valor correspondente aos juros legais moratórios, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento, sendo o juro actual e desde o início do seu vencimento à taxa de 4% ao ano.

No mais, absolve-se a Ré do pedido.”


***

            Inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

            1ª - O acidente dos autos ocorreu no dia 10 de Março de 2010.

            2ª - No dia 17 de Março de 2010 já o veículo tinha sido transportado para a oficina para Vila Nova de Gaia.

            3ª - No dia 25 de Março de 2010 o perito da GEP – peritagens automóveis – empresa que trabalhava para a seguradora, foi observar o veículo sinistrado.

            4ª - Não efectuou a peritagem porque a parte danificada não estava desmontada.

5ª - Foi à oficina várias vezes para efectuar a peritagem, e nunca a realizou, porque o veículo não estava desmontado.

6ª - E não estava desmontado porque os técnicos da oficina onde o veículo estava – seguramente mais sabedores da matéria do que aquilo a que se convencionou chamar perito.

7ª - E, efectivamente, eram os técnicos da oficina onde estava o veículo que tinham razão porque a reparação do veículo levou apenas e tão só as peças e serviços que eles tinham dito ao perito.

8ª - Não é possível dizer-se que a recorrente se opôs à desmontagem do seu veículo, por desnecessária.

9ª - Com efeito, como a demandada, não obstante a clareza acerca da culpa pela produção do acidente, não assumiu a obrigação de indemnizar,

10ª - E porque a desmontagem seria efectuada à custa da demandante e, jamais, da demandada, sendo mais um encargo (mais um prejuízo) que a demandante iria suportar, parece dever impor-se (a demandada) assumir a responsabilidade, como, efectivamente, depois de tanta pantomina, aceitou.

11ª - A demandante não tem culpa que a demandada tenha contratado uma empresa que mandou um “perito” incompetente que apenas queria fazer render as coisas, efectuando, desnecessariamente, muitas deslocações.

12ª - Com um mínimo de equidade e de razoabilidade, não é possível imputar à demandante a culpa na demora da não reparação até ao dia 1 de Julho de 2010, mas sim, desde a data do acidente (10.3.2010) até à entrega da viatura, depois de reparada, em 21.07.2013, à conta da demandada, como resulta da sua carta de 30.06. 2010 – (doc. 12, junto com a contestação). 

13ª - Estranho é, também, que o Tribunal a quo não tenha tomado posição acerca do acordo de paralisação ANTROP/APS de 14 de Junho de 2011, quando é certo que o acidente ocorreu em 10/03/2010. 

14ª - O douto acórdão violou o disposto nos artigos 562° e 566° do Código Civil, motivo por que deve a presente acção ser julgada procedente, como se alega.

A Ré contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.


***

            Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            A – Cerca das 15h40 do dia 10.3.2010 ocorreu um acidente de viação na E.N. 103, ao km 56,150, sito em Arcas – Rendufinho – Póvoa de Lanhoso, em que intervieram os veículos:

– -IZ, pesado de passageiros, propriedade da demandante e conduzido por CC, e;

– -DE, ligeiro de passageiros, propriedade de DD e conduzido por EE. - (A. da Matéria de Facto Assente)

B. O veículo -IZ circulava pela referida E.N. no sentido Chaves Braga, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido. - (B. da Matéria de Facto Assente)

C. O veículo da demandante no momento do acidente era conduzido por CC, seu funcionário, motorista, agindo sob as ordens, as instruções, a direcção efectiva da A. no seu interesse e de acordo com um trajecto pré-definido. – (E. da Matéria de Facto Assente)

D. O tempo estava bom e o pavimento seco e em bom estado de conservação – (alínea H. da Matéria de Facto Assente)

E. A via, com dois sentidos de trânsito, mede 7,55 metros de largura, medindo cada hemi-faixa 3,77 metros. (I. da Matéria de Facto Assente)

F. A via, a EN 103, é sinuosa. (J. da Matéria de Facto Assente)

G. No local, a via está ladeada de edificações – (resposta ao nº 19 da BI).

H. No local entroncam várias vias que impõem (K. da Matéria de Facto Assente, com exclusão da matéria conclusiva ali constante).

I. O veículo -DE encontrava-se no interior de um parque de estacionamento existente do lado direito da EN 103, considerando o sentido Chaves-Braga – (resposta ao nº 2 da BI).

J. Pretendendo o seu condutor aceder à EN 103 e por ela passar a circular no sentido Braga-Chaves (resposta ao nº 3 da BI).

L. O condutor do DE entrou na E.N. 103 quando lhe era visível o veículo da demandante a circular a uma distância não precisamente apurada, mas situada entre 32,80 e 34,80 metros. (resposta ao nº 4 da BI).

M. O condutor do veículo da demandante travou (deixando rasto de travagem como se refere em T.), mas não conseguiu evitar a colisão. (resposta ao nº 5 da BI).

N. Acabando por embater com a parte da frente do veículo -IZ na parte lateral esquerda do veículo -DE, embate que ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Chaves/Braga (resposta ao nº 6 da BI).

O. O veículo da Autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas situada entre os 60 e os 70 km/hora. - (resposta ao nº 14 da BI).

P. O condutor do veículo da Autora apercebeu-se que o veículo DE tinha acedido à EN 103 – (resposta ao nº 15 da BI).

Q. O DE, com o embate, foi projectado para uma distância de 20 metros – (resposta ao nº 16 da BI).

R. O embate verificou-se a cerca de um metro do eixo delimitador da via – (resposta ao nº17 da BI).

S. O condutor do veículo da demandante tinha livre mais de 2,5 metros para contornar o veículo seguro pela sua retaguarda. - (resposta ao nº18 da BI).

T. O veículo da A. deixou marcados no pavimento rastos de travagem de 15,80 metros. (F. da Matéria de Facto Assente)

U. O R..., com o embate, ficou destruído. - (G. da Matéria de Facto Assente)

V. A demandante dedica-se ao transporte de passageiros, quer no país, quer para o estrangeiro, sobretudo para França e Suíça, com viagens semanais – (resposta ao nº7 da BI).

X. A Autora transporta no veículo sinistrado 60 passageiros – (resposta ao nº8 da BI).

Z. Faz um apuro líquido diário, conforme está acordado entre a ANTROP e a APS, para transporte de passageiros internacional, em categoria II, que era o caso do veículo -IZ, de € 253,61 – (resposta ao nº9 da BI).

AA. Por causa do acidente esteve privada do uso do seu veículo sinistrado, que não podia circular, desde o dia do acidente (10.3.2010) até ao dia 21.7.2010 – (resposta ao nº 10 da BI).

BB. Não obstante o veículo da demandante ter ficado bem reparado, o facto de ser um veículo sinistrado reduz-lhe o seu valor comercial. - (resposta ao nº 12 da BI).

CC. É um S... … de 60 lugares, do ano de 1997 e que estava em bom estado de conservação – (resposta ao nº 13 da BI).

DD. A demandante é filiada na ANTROP – (resposta ao nº 20 da BI).

EE. A demandada é associada da APS – (L. da Matéria de Facto Assente)

FF. Após a participação do acidente por parte da demandante, a demandada contactou o segurado por carta – (resposta ao nº 21 da BI).

GG. Em 25.03.2010, o perito contratado pela Demandada deslocou-se à oficina onde estava o veículo sinistrado. - (resposta ao nº 22 da BI).

HH. Na referida data, o aludido perito não procedeu à peritagem dos danos, com fundamento no facto de o veículo estar por desmontar. - (resposta ao nº 23 da BI).

II. Tendo o perito da GEP, S.A. voltado em 30.03.2010, sendo que o veículo ainda estava por desmontar, com o esclarecimento de que, na aludida data, tinha autorização do lesado para desmontar a viatura a fim de elaborar orçamento. - (resposta ao nº 24 da BI).

JJ. O perito voltou em 09.04.2010, data em que a oficina comunicou que a demandante só autorizava “evolução da reparação após definição responsabilidade pela companhia”. - (resposta ao nº 25 da BI).

LL. Perante a manutenção da posição referida na alínea que antecede, em 20.05.2010 o perito cancelou a vistoria. - (resposta ao nº 26 da BI).

MM. A peritagem foi iniciada no dia 26.06.2010 e concluída em 30.06.2010. – (resposta ao nº 27 da BI).

NN. Em consequência do embate o veículo da demandante ficou danificado, tendo o custo da sua reparação sido suportado pela demandada, custo esse que ascendeu à quantia de € 10.288. – (C. da Matéria de Facto Assente)

OO. A demandada, por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº …, assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros -DE, propriedade de DD e que no momento da colisão circulava sob a sua direcção efectiva e no seu interesse, conduzido por EE, no exercício de funções laborais de que o tinha incumbido. - (D. da Matéria de Facto Assente)

PP. Prescreve o art.1º, nº 4, do denominado “Acordo de Paralisação ANTROP/APS”, celebrado entre estas duas Associações, que – “Havendo dúvidas acerca da responsabilidade da empresa de seguros, incumbirá ao lesado ordenar, de sua conta, a reparação em conformidade com os valores aceites pelo perito. No caso de haver necessidade de proceder a desmontagens, devem as mesmas decorrer por conta do lesado, assim, como a própria reparação, de harmonia com os valores acordados com o perito.” - (cfr. doc. de fls. 44 a 46).

QQ. Sob a epígrafe “Paralisações”, prescreve o art. 3º daquele Protocolo:

           

1. A empresa de seguros obriga-se perante a ANTROP a liquidar aos associados desta as importâncias constantes do Anexo I deste Acordo para a paralisação dos seus veículos afectos ao transporte colectivo rodoviário de passageiros conforme a sua classificação.

2. Ficando o veículo impossibilitado de circular, entende-se por paralisação o período que decorre entre a data do acidente, que deverá ser comunicado à empresa de seguros no primeiro dia útil seguinte, até ao dia por esta proposto para a realização da peritagem, aos quais acrescem o dia da peritagem e o período estritamente necessário à reparação dos danos, tal como indicado no relatório de peritagem.” - (cfr. doc. de fls. 44 a 46).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber qual a indemnização devida à Autora/recorrida pela paralisação do seu veículo, em consequência de acidente de viação, considerando as ocorrências entre a data do acidente e a da reparação.

Como resulta das conclusões das alegações da recorrente não se discute, agora, qual o grau de culpa dos intervenientes condutores dos veículos envolvidos na colisão, transitada que está a decisão no que respeita a culpa exclusiva do condutor do veículo R..., -DE, segurado da Ré e a revogação da indemnização arbitrada na 1ª Instância pela desvalorização do veículo da Autora, o auto-pesado -IZ de transporte de passageiros, não obstante ter sido reparado.

A Relação considerou que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva do condutor do C..., veículo segurado na Ré, e que depois da reparação o IZ, auto-pesado de passageiros, não ficou desvalorizado o seu valor comercial. 

A Relação alterou, para menos, a quantia devida pela Ré seguradora à Autora pela imobilização do veículo IZ, entre a data do acidente e a da reparação, quando ficou apto a ser utilizado.

Considerou a Relação que a indemnização devida pela paralisação deveria ser, como foi diminuída, porquanto a Autora, com o seu comportamento, contribuiu para que o período de imobilização fosse superior ao que deveria ter sido, o que se repercutiu no valor a pagar pela Ré em função do Acordo Antrop/Aps que prevê, para o tipo de veículos como o da Autora, a indemnização de € 253,61 por cada dia de paralisação. 

A recorrente não se conforma com o valor da indemnização respeitante ao período durante o qual o veículo esteve imobilizado em função dos danos provocados pela colisão, sufragando que deve ser o sentenciado na 1ª Instância.

A questão passa pela interpretação do denominado “Acordo de Paralisação ANTROP/APS” que rege, além do mais, sobre os critérios de indemnização pela paralisação de veículos por causa de acidente, sendo que Autora e Ré são associadas das entidades envolvidas nesse acordo e a ele vinculadas.

O Acórdão recorrido considerou que a reparação, que a Ré nunca negou estar a seu cargo por via do contrato de seguro celebrado pelo condutor do DE –, questão em relação à qual as partes não dissentem – ascendeu a um montante superior ao que seria devido caso a Autora tivesse cooperado na realização da vistoria do veículo acidentado.

Enquadrando a questão à luz do regime normativo da mora do credor – arts. 813º a 816º do Código Civil – mora credendi ou accipiendi, concluiu que a Autora não colaborou com a Ré, como lhe competia, para que esta, prontamente, cumprisse a sua obrigação de indemnizar.

Está em causa apurar o quantum indemnizatório a cargo da Ré por via do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado com o segurado do veículo interveniente DE.

Não se discute que ao perito da Ré (da empresa GEP, S.A. por si incumbida da peritagem) competia avaliar os danos sofridos pelo autocarro de passageiros da Autora, que ficou inoperacional por causa do acidente.

Importa, então, antes de mais, convocar os factos pertinentes ao enquadramento fáctico-jurídico com que lidou o Tribunal recorrido:

“AA. Por causa do acidente esteve (a demandante) privada do uso do veículo sinistrado, que não podia circular, desde o dia do acidente (10.03.2010) até ao dia 21.7.2010 – (resposta ao n° 10 da BI);

DD. A demandante é filiada na ANTROP – (resposta ao n° 20 da BI);

EE. A demandada é associada da APS – (L da Matéria de Facto Assente);

GG. Em 25.03.2010, o perito contratado pela Demandada deslocou-se à oficina onde estava o veículo sinistrado – (resposta ao n° 22 da BI);

HH. Na referida data, o aludido perito não procedeu à peritagem dos danos, com fundamento no facto de o veículo estar por desmontar – (resposta ao n° 23 da BI);

II. Tendo o perito da GEP, S.A. voltado em 30.03.2010, sendo que o veículo ainda estava por desmontar, com o esclarecimento de que, na aludida data, tinha autorização do lesado para desmontar a viatura a fim de elaborar orçamento – (resposta ao n° 24 da BI);

JJ. O perito voltou em 09.04.2010, data em que a oficina comunicou que a demandante só autorizava “evolução da reparação após definição responsabilidade pela companhia” – (resposta ao n° 25 da BI);

LL. Perante a manutenção da posição referida na alínea que antecede, em 20.05.2010 o perito cancelou a vistoria – (resposta ao n° 26 da BI);

MM. A peritagem foi iniciada no dia 26.06.2010 e concluída em 30.06.2010 – (resposta ao n° 27 da BI),

PP. Prescreve o art. 1°, n°4, do denominado “Acordo de Paralisação ANTROP/APS”, celebrado entre estas duas Associações, que:

 “Havendo dúvidas acerca da responsabilidade da empresa de seguros, incumbirá ao lesado ordenar, de sua conta, a reparação em conformidade com os valores aceites pelo perito. No caso de haver necessidade de proceder a desmontagens, devem as mesmas decorrer por conta do lesado, assim, como a própria reparação, de harmonia com os valores acordados com o perito.” (cfr. doc. de fls. 44 a 46),

QQ. Sob a epígrafe “Paralisações”, prescreve o art. 3° daquele protocolo:

“1. A empresa de seguros obriga-se perante a ANTROP a liquidar aos associados desta as importâncias constantes do Anexo I deste Acordo para a paralisação dos seus veículos afectos ao transporte colectivo rodoviário de passageiros conforme a sua classificação.

2. Ficando o veículo impossibilitado de circular, entende-se por paralisação o período que decorre entre a data do acidente, que deverá ser comunicado à empresa de seguros no primeiro dia útil seguinte, até ao dia por esta proposto para a realização da peritagem, aos quais acrescem o dia da peritagem e o período estritamente necessário à reparação dos danos, tal como indicado no relatório de peritagem.” (cfr. doc. de fls. 44 a 46).”

Estando o veículo da Autora estacionado numa oficina e não podendo circular desde a data do acidente – 10.3.2010 – tendo a Autora comunicado o sinistro à Ré, a esta competia, de harmonia com as regras da boa fé – art. 762º, nº2, do Código Civil – usar da diligência própria do bom pai de família em ordem a proceder à pronta reparação do veículo, para que o período de paralisação fosse o menor possível e, assim, fossem minorados os danos sofridos pela proprietária do veículo a reparar.

            A prestação devida pela seguradora, tratando-se de indemnizar os danos sofridos – art. 483º, nº1, do Código Civil – exprime a existência de uma obrigação pecuniária aferida, in casu, pelo lapso de tempo correspondente aos dias de paralisação multiplicados pela quantia pré-acordada de € 253,61 por cada dia, por aplicação do Acordo Anrtrop/APS.

            O nº2 do art. 3º desse Acordo define “paralisação” como “O período que decorre entre a data do acidente, que deverá ser comunicado à empresa de seguros no primeiro dia útil seguinte, até ao dia por esta proposto para a realização da peritagem, aos quais acrescem o dia da peritagem e o período estritamente necessário à reparação dos danos, tal como indicado no relatório de peritagem.”

            O período de paralisação teve início no dia do acidente – 10.3. 2010 – e findou no dia 21.7.2010.  

Como resulta dos factos antes enumerados, quinze dias após acidente, o perito da seguradora deslocou-se à oficina onde estava o veículo acidentado, mas não o peritou por não estar desmontado; voltou aí em 30.3, permanecendo o veículo por desmontar, mas tendo a Autora dado autorização para que fosse desmontado para ser elaborado orçamento; em 9.4. a oficina comunicou ao perito da ré que a Autora só autorizava a “evolução da reparação após definição da responsabilidade pela companhia”, pelo que o perito cancelou em 20.5 a vistoria. Esta iniciou-se no dia 26.6.2010 e ficou concluída em 30.6.2010.

Sabe-se que a reparação decorreu entre 30.6 e 21.7.2010, data em que o veículo ficou apto a circular.

Será que a Autora cooperou com a Ré para receber a prestação que sobre esta impendia?

Se a resposta for negativa poderemos considerar ter havido mora do credor; se for positiva poderá haver incumprimento da Ré.

Dada a natureza da prestação impendente sobre a Ré, manifesto é considerar que a Autora estava – à luz do padrão da boa-fé e até dos deveres acessórios de conduta – obrigada a colaborar com a Ré; essa colaboração passava por facultar o acesso ao veículo acidentado estando ele desmontado, importando aqui saber, no entanto, se a desmontagem era essencial à prestação da Ré, aspecto que adiante versaremos, a fim de que o perito pudesse avaliar os danos sofridos.

De notar que nos termos do art. 1º, nº4 do mencionado Acordo Antrop/Aps:

Havendo dúvidas acerca da responsabilidade da empresa de seguros, incumbirá ao lesado ordenar, de sua conta, a reparação em conformidade com os valores aceites pelo perito. No caso de haver necessidade de proceder a desmontagens, devem as mesmas decorrer por conta do lesado, assim, como a própria reparação, de harmonia com os valores acordados como perito.”

O regime jurídico da mora do credor está previsto no art. 813º do Código Civil. Há mora do credor quando este recusa, ou não presta ao devedor, a colaboração necessária ao cumprimento (nº1) – havendo ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão (nº2).

Enquanto para haver mora do devedor a lei exige que haja culpa sua – art. 804º, nº2, do Código Civil – já não assim quanto à mora do credor (mora credendi), definida no art.813º –  “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.

O art. 816º define os efeitos da mora do credor:

Obrigação de indemnizar; atenuação da responsabilidade do devedor (não tem que pagar juros de mora); inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa.

A mora do credor extingue-se quando, ainda que tardiamente, prestar a colaboração que recusara para o cumprimento.

Primo conspectu, são dois pressupostos da mora do credor; a) a recusa ou não realização pelo credor da colaboração necessária para o cumprimento e; b) a ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.

Ao invés do que acontece com o devedor, a mora não depende da culpa do credor, uma vez que, não se impõe ao credor um dever de colaboração no cumprimento, também não se exige que a sua omissão da colaboração seja censurável.

Tal como acontecia com o devedor em caso de mora, também a mora do credor tem efeitos, sendo eles a obrigação de indemnizar (art. 816º do Código Civil), a atenuação da responsabilidade do devedor (art. 798º) e a inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa (art.º 815º do Código Civil).

Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, vol. II, 6ª edição, págs. 243, 244, sobre situações em que é devida a colaboração do credor afirma:

“Nessas situações em que o cumprimento da obrigação pressupõe a colaboração do credor, a não realização dessa colaboração por parte dele importa a constituição do credor em mora (art. 813.°), uma vez que a não realização da prestação pelo devedor nessas circunstâncias não lhe pode ser imputada.

A mora do credor pressupõe, no entanto, que a recusa da colaboração devida ocorra sem motivo justificado. Efectivamente, em certos casos o credor pode ter motivo justificado para recusar a prestação, como sucede quando esta não coincida plenamente com a obrigação a que o devedor se vinculou.”

Esta exigência de cooperação exprime a existência de deveres acessórios de conduta que, na definição de José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato” – 1986, 42, nota 8: “São os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, págs. 124/125, depois de referir que, além dos deveres principais ou típicos da prestação nos contratos nominados, existem outros a que se pode chamar deveres secundários ou acidentais, define os deveres de conduta como aqueles que: “Não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cfr. art. 817º e sgs.) são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”.

Os deveres acessórios de conduta são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762º, nº2, do Código Civil – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos deveres correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte.

Um ponto é fulcral ponderar.

 Não obstante se considerar que a mora do credor, ao invés da do devedor, não pressupõe a culpa daquele, é requisito da mora credendi que os actos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam actos de cooperação essenciais; de outro modo, cair-se-ia num campo movediço pela falta de um critério objectivo pelo qual se aferisse se o seu comportamento era essencial para o cumprimento pelo devedor.

As exigências da boa-fé são recíprocas. Os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicitam relações intersubjectivas de cooperação.

Ora, no caso em apreço, importa saber se o veículo da Autora tinha necessariamente de estar desmontado para o perito da Ré avaliar os danos, incumbindo, em regra, ao lesado (à Autora) o custeio da desmontagem.

 Não custa antever que nem sempre a desmontagem é essencial à realização da perícia, basta pensar nos casos em que existem danos severos não visíveis imediatamente.

No caso dos autos discutiu-se, logo nos articulados, se a desmontagem era essencial à profícua realização da perícia.

No quesito 23º, relacionado com o 22º, perguntou-se:

 “O que não foi possível, dado que o veículo estava por desmontar, desmontagem essencial para a avaliação dos danos?” – (refere-se ao facto de, em 25.3.2010, a Ré ter tentado proceder à peritagem dos danos após comunicação da Autora).

Resposta – “Provado apenas que, na referida data, o aludido perito não procedeu à peritagem dos danos, com fundamento no facto de o veículo estar por desmontar.

No ponto 26º da BI, correspondente a alegação da Ré – art. 46º da contestação –, indagou-se:

  “Em 20.05.2010, data em que, perante a manutenção daquela posição e porque a desmontagem era essencial para apuramento real dos danos, de todos os danos, o perito cancelou a vistoria?    

Resposta – “Provado apenas que, perante a manutenção da posição referida na resposta ao nº 25, em 20.05.2010, o perito cancelou a vistoria.”

Competia à Ré, tendo ela alegado a mora da Autora/credora, fazer a prova da omissão de cooperação, omissão essa que, como se referiu se reportaria ao acto de cooperação essencial de a vistoria só ser possível caso o veículo estivesse desmontado, desmontagem a que a Autora deveria ter procedido.

Note-se que a perícia foi sendo recusada pela Ré com o fundamento que o veículo da Autora permanecia por desmontar.

Para haver mora do credor – art. 813º do Código Civil – não basta qualquer recusa de colaboração deste, quando exigível, para que o devedor execute proficientemente a sua prestação, sendo antes de exigir que essa recusa se relacione com actos de cooperação essenciais omitidos ou recusados pelo credor que impeçam a realização da prestação pelo devedor; não estando provado, in casu, que a desmontagem do veículo era essencial à realização da vistoria pelo perito da Ré, a recusa deste com tal fundamento, não implica mora do credor.

Neste entendimento não pode manter-se o Acórdão recorrido, que considerou que a indemnização apenas contemplava 42 dias de paralisação e a indemnização de € 10 615,62, por ter considerado ter havido recusa injustificada de colaboração da Autora que assim como credora teria incorrido em mora accipiendi.

Sendo, antes de considerar, pelo quanto dissemos, que o período de paralisação se iniciou em 10.3.2010 e cessou em 21.7.2010, pelo que a indemnização pela paralisação, tendo em conta a culpa exclusiva do segurado da Ré, ascende a € 33 370,00, tal como se sentenciou na 1ª Instância, tendo em conta que o valor diário de indemnização é o que as partes aceitam estipulado no acordo Antrop/Aps.

Sumário – art.713º, nº7, do Código de Processo Civil (DL.303/2007, de 24.8)

I. Para haver mora do credor – art. 813º do Código Civil – não basta qualquer recusa de colaboração deste, quando exigível, para que o devedor execute proficientemente a sua prestação, sendo antes de exigir que essa recusa se relacione com actos de cooperação essenciais, omitidos ou recusados pelo credor que impeçam a realização da prestação pelo devedor; não estando provado, in casu, que a desmontagem do veículo era essencial à realização da vistoria pelo perito da Ré, como esta alegara, não houve recusa injustificada, e, como tal, não existiu mora credendi.

II. Não obstante se considerar que a mora do credor, ao invés da do devedor, não pressupõe a culpa daquele, é requisito da mora credendi que os actos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam actos de cooperação essenciais; de outro modo, cair-se-ia num campo movediço pela falta de critério objectivo pelo qual se aferisse se o seu comportamento era essencial para o cumprimento pelo devedor. As exigências da boa-fé são recíprocas: os direitos subjectivos, por definição, são direitos a prestações e implicitam relações intersubjectivas de cooperação.

Decisão:

Nestes termos, na procedência do recurso, revoga-se o Acórdão recorrido, condenando-se a Ré a pagar à Autora, pelo período de paralisação do seu veículo -IZ, que mediou desde 13.3.2010 até 21.7.2010, a quantia de € 33 370,00, mantendo-o no mais.

Custas pela Ré sucumbente.

Supremo Tribunal de Justiça,14 de Janeiro de 2014

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

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[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.