ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
CONTRATO DE SEGURO
NULIDADE
ANULABILIDADE
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
Sumário


I - O FGA garante, relativamente a acidente originado pelos veículos referidos no art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 522/85, de 31-12, a satisfação das indemnizações, nos termos do n.º 2 daquele preceito, sendo tal garantia apenas perante os lesados, só depois se colocando a questão da sub-rogação legal.

II - A natureza do vício referido no art. 429.º do CCom já se encontra amplamente debatida e reúne consenso doutrinal e jurisprudencial: trata-se de uma simples anulabilidade.

III - O disposto no art. 7.º do DL n.º 142/2000, de 15-07 (entretanto revogado pelo art. 6.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008, de 16-04) impõe obrigações à seguradora e um ónus de prova que visa evitar que o seguro fique sem efeito, sem o seu tomador ter sido previamente alertado, mediante aviso, para o pagamento e para a cominação decorrente do não pagamento tempestivo.

IV - Não demonstrada a entrega ao segurado do aviso em causa, nem, por outra forma, provado o conhecimento, por parte deste, da sua falta de pagamento e das consequências dela decorrentes, tem que considerar-se que o contrato de seguro se mantinha em vigor à data do acidente.

Texto Integral


Processo n.º 718/04.9TJVNF.P1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Em 5.2.2004, AA instaurou, no 4.º Juízo de Competência Cível de Vila Nova de Famalicão, acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra o Fundo de Garantia Automóvel – Instituto de Seguros de Portugal [FGA], BB e CC, pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem à autora a quantia de 310.000 €, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

Para tanto e, em resumo, alega a autora:

No dia 25.2.2001, pelas 19h50m, a autora seguia como passageira de um motociclo conduzido pelo réu AA;

Após ultrapassar um veículo, o réu AA foi incapaz de efectuar uma curva à direita, situada num cruzamento, indo embater no triângulo que, no meio de tal cruzamento, estabelece funcionalmente uma pequena rotunda;

O réu AA seguia a mais de 90 quilómetros por hora, o que corresponde a excesso de velocidade, ficando o acidente a dever-se ao facto de esse réu ter efectuado uma ultrapassagem mal calculada, próxima de um cruzamento, em estrada mal iluminada e apertada, já que só tem 6,20 metros de largura;

O réu AA foi o único causador do acidente;

A autora feriu-se gravemente e só muito esporadicamente se encontra em estado de discernimento, encontrando-se sem qualquer coordenação motora, paraplégica, impossibilitada de se locomover, permanentemente acamada e afectada de incapacidade absoluta, permanente e irreversível;

A autora reside, na companhia do seu filho, com os seus pais, de quem depende em absoluto;

O proprietário do motociclo era o réu CC, o qual não possuía, à data do acidente, seguro em vigor e eficaz, por ter sido anulado;

Tal seguro era titulado pela apólice ..., emitida por “DD, Companhia de Seguros, Sociedade Anónima”;

Daí a responsabilidade do réu FGA, juntamente com os réus AA e CC, respectivamente condutor e proprietário, cujas situações económicas se desconhecem por completo.

Citados pessoal e regularmente contestaram os RR.

Na sua contestação conjunta os réus AA e CC concluem que se devem julgar procedentes as excepções deduzidas, absolvendo-os da instância, mas que, sempre, deverá ser a acção julgada improcedente, por não provada, absolvendo-os do pedido.

Sumariamente, alegam os réus AA e CC:

A autora junta procuração com poderes forenses gerais, procuração essa que vem assinada com o nome AA;

Face às invocações de incapacidade deduzidas pela própria autora, o mandato é nulo;

Na altura em que o réu AA realizava a ultrapassagem, o veículo ultrapassado aumentou a velocidade de modo repentino, não tendo o réu AA outra hipótese que não a de embater no sinal vertical que se situa antes da rotunda;

Não teve o réu AA a possibilidade de realizar outra manobra, já que o veículo que ele ultrapassava o impediu de retomar a direita da sua hemi-‑faixa de rodagem;

Os montantes indemnizatórios peticionados pela autora mostram-se deveras exagerados e não fundamentados.

Na contestação do réu FGA conclui-se que a acção deve ser julgada improcedente, por não provada, quanto ao réu FGA.

Sumariamente alega o réu FGA:

O réu FGA desconhece os factos alegados na petição inicial, sendo exagerado o montante reclamado e podendo reduzir a importância de 299,28 € a eventuais danos patrimoniais;

O réu FGA apurou que o proprietário do motociclo transferiu a sua responsabilidade civil emergente da circulação desse motociclo para “DD, Companhia de Seguros, Sociedade Anónima”, mediante a celebração de contrato de seguro, invocando essa seguradora que tal contrato não se encontrava válido e eficaz à data do sinistro;

Essa seguradora terá de vir aos autos alegar e provar isso mesmo.

Na réplica a autora alegou que assinou pessoalmente o instrumento de procuração num momento em que tinha capacidade mental e física para tanto.

Mais requereu a intervenção de “DD, Companhia de Seguros, Sociedade Anónima”, como co-réu, prevenindo a possibilidade de se vir a entender que essa seguradora estabeleceu contrato de seguro válido e de ser ela a única responsável pelo pagamento da indemnização peticionada, fundando essa pretensão no art. 31.º-B do Código de Processo Civil (CPC).

O processado posterior à entrada da petição inicial foi anulado, tendo sido repetidos os articulados já produzidos, nos precisos termos em que já estavam praticados.

Ao abrigo do art. 31.º-B do CPC foi admitida a intervir na causa como co-réu “DD, Companhia de Seguros, Sociedade Anónima”, entretanto incorporado na “Companhia de EE, Sociedade Anónima” [por facilidade de compreensão e limitação de denominações num processo que envolve sete partes, a denominação “DD, Companhia de Seguros, Sociedade Anónima”, pode vir a ser substituída pela denominação ré EE].

A ré EE contestou para concluir que devem as excepções invocadas ser julgadas procedentes ou, se assim se não entender, deve a acção ser julgada improcedente, por não provada.

Sumariamente alega a ré EE:

O contrato de seguro em causa foi anulado em 27.1.2001, por falta de pagamento do prémio;

A ré EE moveu procedimento de injunção contra o réu CC, para cobrança desse prémio;

A não ter ocorrido a falta de pagamento do prémio, a ré EE teria anulado o seguro por falsas declarações do réu CC, já que veio a averiguar que o motociclo nunca lhe pertenceu, encontrando-se registado em nome de FF desde 22.5.2000, com reserva de propriedade a favor de GG, Sociedade Anónima;

O réu CC declarou, após o sinistro, que apesar do referido registo a favor da dita FF, quem pagava as prestações do leasing era o réu AA, réu este que, por outro lado, não estava legalmente habilitado para conduzir o motociclo à data do sinistro;

A ré EE não teria celebrado o contrato de seguro se soubesse que o réu AA não estava legalmente habilitado para conduzir o motociclo, o que também acarreta nulidade do seguro;

O acidente não foi participado à ré EE, desconhecendo essa ré tal acidente, e reservando a ré EE o direito de regresso contra o réu AA, por este conduzir sem habilitação legal.

Na réplica à contestação da ré EE, a autora conclui que devem improceder as excepções invocadas por essa ré.

Também o réu FGA respondeu a essa contestação, alegando que não existe nulidade do contrato de seguro que possa ser oposta à autora, o que determina a existência de seguro válido e eficaz, com a inerente condenação da ré EE, devendo o réu FGA ser considerado parte ilegítima.

Num outro articulado e ao abrigo do art. 31º-B do CPC, a autora veio requerer a intervenção de FF e de GG, Sociedade Anónima, como co-réus.

Ao abrigo do art. 31.º-B do CPC foram admitidos a intervir na causa como co-réus FF e GG, Sociedade Anónima.

A ré FF contestou, apenas para declarar que subscreve os articulados da parte a que se associa.

O réu GG Crédito contestou para concluir que a acção deve ser julgada improcedente, por não provada, em relação ao réu GG Crédito.

Sumariamente alega o réu GG Crédito:

Em 15.3.2000 o réu GG Crédito celebrou contrato de financiamento com a ré FF para que esta adquirisse o motociclo, estabelecendo o réu GG Crédito reserva de propriedade sobre o motociclo;

A ré FF cumpriu pontualmente o contrato de financiamento até 15.3.2003 e o réu GG Crédito remeteu-lhe, então, documento para extinção da reserva de propriedade;

O réu GG Crédito nunca soube que o motociclo era utilizado por terceiros e não conhecia o acidente ora em causa;

O registo de reserva de propriedade constitui garantia de bom cumprimento do contrato de financiamento, mas nunca conferiu ao réu GG Crédito a direcção efectiva do motociclo, nem este veículo alguma vez circulou no interesse e por conta do réu GG Crédito;

O réu GG Crédito não tem qualquer responsabilidade, ainda que objectiva, no assunto dos autos.

Na réplica às contestações da ré FF e do réu GG Crédito, a autora alega que tanto o réu AA, como o réu CC, diziam à autora e em público que o motociclo era propriedade do réu CC.

No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções da incapacidade judiciária da autora e da ilegitimidade do chamado GG e relegada para final a decisão sobre a nulidade do contrato de seguro estabelecido com a ré EE, tendo-se ainda seleccionado a matéria de facto assente e a base instrutória.

Aguardava-se a realização de diligências de prova e a realização do julgamento quando, em 9.2.2007, a autora requereu contra os seis réus uma reparação provisória, com arbitramento de quantia mensal de 806 €, ao abrigo dos arts. 403 a 405 do CPC (apenso A).

Mediante transacção judicial homologada por sentença de 18/4/2007, o réu FGA e a ré EE passaram a pagar, desde 15.5.2007, a verba mensal de 800 € à autora, repartida na proporção de 400 € pelo réu FGA e na proporção de 400 € pela ré EE.

Procedeu-se a exame médico pericial à autora.

Aguardava-se a realização de julgamento quando, em 22.10.2007, a autora ampliou o pedido, a fim de os réus serem condenados a pagarem-lhe a verba mensal de 403 €, desde a data da alta até a autora perfazer 70 anos de idade [a autora nasceu no dia 22.9.1976].

 

Sumariamente, a autora alega que necessita de apoio de terceira pessoa, para a auxiliar na higiene corporal, na alimentação e noutras tarefas básicas do dia a dia, uma vez que os seus pais são pessoas idosas e já não têm capacidade para executarem tais actos.

Aguardava-se a realização de julgamento quando, em 10/9/2008, a autora ampliou de novo o pedido, a fim de os réus serem condenados a pagarem-‑lhe a verba adicional de 100.000 €.

Sumariamente, a autora alega que foi submetida a internamento hospitalar entre 29/7/2008 e 7/8/2008, com tratamentos diversos decorrentes de padecimentos renais e urinários, tendo padecido dores intensas e agravamento do seu estado de saúde, na parte específica das funções renais e urinárias, agravamento esse ainda inerente aos tratamentos do dito período de internamento, sendo tudo decorrência do acidente de viação de 25.2.2001.

O réu FGA respondeu ao articulado de ampliação do pedido deduzido em 10.9.2008, concluindo que essa ampliação deve ser indeferida, por se sustentar em alegações ininteligíveis.

A ré EE respondeu ao articulado de ampliação do pedido deduzido em 10.9.2008, concluindo que essa ampliação do pedido deve ser julgada improcedente, alegando desconhecer os factos invocados no articulado dessa ampliação e que a ampliação de 100.000 € corresponde a verba excessiva.

O réu GG Crédito respondeu ao articulado de ampliação do pedido deduzido em 10.9.2008, concluindo que essa ampliação deve ser indeferida, por se não poder entender que os novos factos alegados pela autora sejam consequência directa do acidente em causa.

Foi admitida a ampliação do pedido formulada em 10/9/2008 e foram acrescentados quesitos à base instrutória.

Procedeu-se a novo exame médico pericial à autora, para esclarecimento de parte da matéria de facto dos quesitos acrescentados em função da ampliação do pedido formulada em 10.9.2008.

Na sequência do relatório pericial veio a A. requerer nova ampliação do seu pedido originário, o que foi indeferido.

t

Procedeu-se à audiência de julgamento.

Na sessão que teve lugar no dia 24.1.2011 e numa altura em que só faltava ouvir duas testemunhas arroladas pela ré EE e duas testemunhas posteriormente aditadas pelo réu FGA – aditamento requerido ainda nessa audiência – a ré EE apresentou quatro documentos, um denominado aviso de cobrança, ostentando a data de 20.11.2000, outro um envelope postal, outro uma carta, ostentando a data 12.1.2001 e, por fim, um segundo envelope postal.

Para justificar tal junção e conforme acta, a ré EE alegou o seguinte:

”Na audiência de julgamento do passado dia 20/1/2011, foi ouvido em depoimento de parte o réu CC.

No seu decurso, foi confrontado com a proposta de seguro automóvel junta aos autos com a contestação da chamada EE, como documento nº 3.

Confirmou o mencionado réu que a assinatura colocada nesse documento no local destinado ao tomador do seguro ser a sua.

Mais referiu que o nome e a morada que no mesmo documento consta no local destinado ao proponente/segurado corresponde aos seus.

Aí se lê, como sua morada …, …, …, CP ....

Também referiu que à data do acidente dos autos era essa a morada da sua residência, sendo certo que essa é a casa de sua mãe.

Por último referiu que nessa localidade e morada, ele e a mãe, eram pessoas conhecidas de todos.

Com data de 20.11.2000, para a morada referida na proposta de seguro e confirmada pelo réu, a chamada dirigiu-lhe uma carta “aviso de cobrança” relativa ao identificado contrato de seguro, de onde resulta, entre o mais, o período em que o seguros iria vigorar “28/12/2000 a 27/12/2001”, a data do vencimento do prémio “28/12/2000” e a data de resolução do contrato “27/1/2001”.

Mais se indicava aí que o mesmo prémio poderia ser pago por multibanco, cheque ou vale de correio.

Consoante se extrai do verso do envelope dessa correspondência foi a mesma devolvida pelo serviço de correios, assinalando “endereço insuficiente” e “desconhecido”, apondo-lhe o carimbo com a data de 30/11/2000.

Conforme resulta da frente desse mesmo envelope, a sua devolução deu entrada nos serviços da chamada no dia 6/12/2000, conforme carimbo que do mesmo consta.

Por carta da chamada, datada de 12/1/2001, dirigida para o réu em referência e para a morada que o mesmo tinha e indicou, foi assinalado que tinha a data limite da pagamento do prémio da apólice do contracto dos autos no dia 27/1/2001, indicando-lhe igualmente que poderia efectuar esse pagamento através de multibanco, cheque ou vale do correio.

Como objecto dessa missiva era expressamente assinalar ao réu que “a manter-se a falta de pagamento até à data limite indicada, implicaria a anulação automática da apólice, sem possibilidade de ser reposta em vigor”.

Retira-se do verso do envelope de envio dessa correspondência que foi a mesma devolvida pelos mesmos fundamentos da anterior carta referida neste requerimento.

Resulta também que a sua devolução foi recebida nos serviços da chamada no dia 24/1/2001, consoante resulta no carimbo que nele está aposto.

Serve o presente requerimento, com a junção dos referidos documentos, para contribuir para a descoberta da verdade material, numa das vertentes que nos autos agora se discute, concretamente a validade do contrato de seguros à data da ocorrência do sinistro automóvel sub judice”.

A autora declarou em acta nada ter a opor à junção e prescindir do prazo de vista.

O réu FGA, na mesma acta, alegou o seguinte:

“Considerando as regras processuais plasmadas no então CPC, a defesa apresentada pelo ré EE oportunamente nos autos versou sobre excepção e impugnação. Nessa medida, a ré EE juntou com o seu articulado vários documentos que entendeu oportunos e necessários à sua defesa, aliás como se lhe impunha pelas regras processuais.

À posteriori, em sede de apresentação de prova nos termos do disposto no art. 512 do CPC e a pedido do réu FGA juntou, ou pelo menos teve a oportunidade de juntar, todos os documentos relativos ao contrato de seguro em crise nos autos, o que aliás viria a acontecer.

Entende o réu FGA que neste momento está precludido o direito de junção dos documentos aqui em apreço, uma vez que ao longo de todo o processo se vem requerendo a sua junção, para melhor defesa dos interesses das partes. Ao fazê-lo nesta data, sob melhor opinião, estará a ré EE a litigar de má fé, consubstanciado na figura do abuso de direito.

Desta forma entende-se e requer-se a Vª Exª se digne não admitir a requerida junção de documentos pelos fundamentos acima expostos.

A admitir-se, não prescinde o réu FGA do prazo de vista”.

O réu GG Crédito na mesma acta, alegou o seguinte:

”Nada tem a opor à junção dos documentos, sendo certo que se mostra ultrapassado, salvo melhor entendimento, o momento processualmente adequado, tanto mais que a factualidade que se pretende provar consta do art. 29 da base instrutória.

Acresce, no que à morada para a qual terão sido enviados os dois documentos ora juntos, que não será demais referir que no documento nº 3 junto com a contestação da ora requerente, o mesmo se mostra preenchido pelo angariador e cobrador da mesma, e impenderia sobre esse a obrigação de se certificar que aquela morada indicada correspondia à verdadeira morada do réu CC, sendo certo que não consta dos autos qualquer indicação de que o mesmo não tenha recebido as cartas que anteriormente lhe foram remetidas, uma vez que o contrato de seguro é datado de 1990, salvo erro, uma vez que não se mostra legível o documento”.

Os réus AA e CC, na mesma acta, alegaram o seguinte:

”Opõem-se à junção dos presentes documentos, porquanto, e de acordo com o já requerido pelo chamado FGA, com o qual se adere integralmente, muito é de estranhar o facto de a ré EE em 20/11/2000 ter endereçado a carta de cobrança para a morada ..., ..., ...-000 ..., sendo tal carta devolvida por “endereço insuficiente” e “desconhecido”, para, em seguida, enviar a carta de 12/1/2001 exactamente para mesma morada, sabendo que esta carta iria ser devolvida por “endereço insuficiente” e por “desconhecido”, pois é o que se podia depreender do envio da carta 20/11/2000 e da sua consequente devolução.

Acresce que, para além de ter conhecimento disto, a chamada não releva o facto de possuir na área um agente de seguros, o qual, como ouvimos dizer no depoimento de parte de CC, era o próprio agente de seguro que se dirigia a sua casa para cobrar os prémios.

Depois subsiste sempre esta dúvida que é no momento em que foi feito o seguro a situação relativa à existência de códigos postais por organização dos CTT e a subsequente existência de ruas e lugares ser já nesta data do conhecimento geral e a chamada não poderia ignorar, pois lida diariamente com estas coisas.

Esta morada de ...-... nem sequer existe, porque ... é um lugar e ... é freguesia, e a indicação de ...-... é susceptível de criar confusão no Sr. funcionário distribuidor do correio.

Acresce que o facto do código postal estar incompleto é também susceptível da mesma confusão.

Ora, a chamada não pode vir dizer que tendo sido devolvida pelas razões por vias das dúvidas a carta de 20/11/2000 incorra no mesmo erro e na mesma confusão ao enviar a carta de 12/1/2001.

Acresce, salvo melhor entendimento, que a requerente não indica qual o artigo da base instrutória que pretendia provar com esses documentos.

Termos em que tais documentos não deverão ser recebidos”.

Voltou a alegar a ré EE, na mesma acta, nos seguintes termos:

”Sob o manto genérico da figura do abuso de direito, o FGA entende que a chamada litiga de má fé ao requerer a junção de dois documentos destinados à prova da existência de contrato de seguro automóvel válido e eficaz à data do sinistro dos autos.

Embora não o tenha dito só se percebe essa imputação a título de dolo.

A essa imputação só é possível responder com os olhos postos na lei e pela seguinte forma:

Art. 523 nº 2 do CPC – Não sendo apresentados com o articulado, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1ª instância, sendo a parte apresentante condenada em multa pela apresentação tardia, excepto se demonstrar que não pode apresentar esse documento com o articulado.

Cumprindo a lei, como cumpriu, tão pouco é possível surpreender à chamada que a montante da culpa haja qualquer ilícito processual que, a propósito, tenha praticado.

Improcede pois a pretendida litigância de má fé, como requer a Vª Exª venha a decidir”.

Na mesma acta e em seguida, foi proferido o seguinte despacho:

””Por se afigurarem pertinentes para a descoberta da verdade material, admito a junção dos documentos oferecidos pela chamada EE, tanto mais que a sua junção foi ordenada pelo próprio Tribunal na derradeira parte do despacho de saneamento, datado de 14/7/2006. A circunstância invocada pelo réu FGA, consubstanciada na estratégia processual da chamada só agora, depois de praticamente esgotada a fase de instrução, quando já haviam sido ouvidas todas as testemunhas das partes contrárias, apesar de vários despachos e requerimentos nesse sentido, ter promovido a junção de tais documentos aos autos, não pode ser fundamento de inadmissibilidade dos documentos, mas de condenação em multa, sem prejuízo naturalmente da relevância processual desse comportamento a titulo de litigância de má fé.

No caso em apreço, sem prejuízo da apreciação oportuna da relevância de tal comportamento processual em sede de litigância de má fé, julga-se que essa estratégia processual é censurável desde logo, porque condiciona a possibilidade de confrontar as testemunhas, cujo depoimento já foi produzido, com os documentos, razão pela qual deve ser punida com multa que, atento o título de imputação subjectiva aqui indiciado, se fixa em 10 UC (art. 523 nº 2 do CPC e art. 102 do Código das Custas Judiciais)”

A ré EE deduziu recurso de agravo desse despacho de 24.1.2011, a fim de o mesmo ser alterado, com redução drástica da multa.

Não foram apresentadas contra-alegações na matéria do agravo, tendo sido proferido despacho que sustenta aquela decisão de 24/1/2011.

Foi proferido despacho com resposta à base instrutória.

Na sentença, decidiu-se julgar a acção parcialmente procedente, condenando-se a ré EE a pagar à autora a quantia de 550.000 €, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento, absolvendo-se essa ré do demais peticionado e devendo ter-se em conta o que já foi pago a título de reparação provisória do dano, bem como se absolveram os demais réus e chamados do pedido.

A ré EE apelou da sentença.

Tal apelação foi admitida com efeito suspensivo, uma vez que a apelante prestou caução para assegurar o pagamento da verba de 650.000 €.

Só o réu FGA apresentou contra-alegações, mas tais contra-alegações não foram admitidas, por não ter sido paga a multa referida no art.º 145.º n.º 6 do CPC.

A Relação veio a decidir conceder provimento ao agravo deduzido pela ré EE e em julgar procedente a apelação deduzida pela ré EE pelo que:

– Alterou o despacho proferido em 24/1/2011, reduzindo para 204 € a multa em que foi condenada a ré EE;

– Declarou nula a sentença;

– Absolveu a ré EE do pedido;

– Manteve a sentença na parte em que absolveu do pedido os réus CC, AA, FF e GG Crédito;

– Condenou o réu FGA a pagar 410.000 € à autora, procedendo inteiramente a acção só contra o réu FGA;

– Condenou o réu FGA a pagar à autora juros contados à taxa anual de 4% até integral pagamento, os quais incidem sobre a parcela de 310.000 € desde 13/2/2004 e sobre a parcela de 100.000 € desde 10/9/2008;

– Determinou que o réu FGA deduzirá à indemnização a verba mensal de 800 € que tem vindo a ser paga à autora desde 15/5/2007, imputando em primeiro lugar esse crédito nos juros devidos e só na parte restante abatendo esse crédito ao capital de 410.000 €;

– Determinou que não são devidas custas, em virtude da isenção de que beneficia o réu FGA, pagando o IGFIJ os honorários ao Sr. Dr. HH, pelo patrocínio dos réus AA e CC no âmbito do apoio judiciário.

Posteriormente, atendendo ao pedido de aclaração apresentado pela EE, a Relação em conferência, alterou o acórdão inicial por forma a “conceder provimento ao pedido de aclaração e, ao abrigo do art. 265-A do CPC, ainda condenam o réu FGA a pagar à ré EE tudo o que esta já pagou à autora no âmbito da reparação provisória por conta da indemnização, mantendo-se integralmente a restante parte da condenação do réu FGA, nos termos que constam no acórdão de 14/3/2013.”

Inconformado recorreu de revista o FGA, tendo tal recurso sido admitido.

O Recorrente termina o seu recurso com as seguintes conclusões:

1. Tendo sido determinado que transitou em julgado a absolvição do réu BB, deveria determinar-se também a absolvição do FGA;

2. Não cabia ao FGA ampliar o recurso da ré seguradora ou recorrer subordinadamente com vista a impedir o trânsito em julgado da absolvição em primeira instância do réu AA;

3. Tal co-réu AA é o responsável primário pelo dever de indemnizar a autora, sendo o FGA um mero garante de tal obrigação;

4. Em virtude do regime de litisconsórcio necessário passivo, o réu FGA só pode ser condenado conjuntamente com o réu AA;

5. A decisão recorrida violou os artigos 29.º, n.º 6 e 21.º do DL nº 522/85, de 31/12 e o artigo 483.º do CC.


***

6. O contrato de seguro invocado nos autos deve ser considerado válido e eficaz à data do acidente de viação;

***

7. O FGA actua sub-rogado nos direitos do lesado, assumindo nos autos a posição jurídica de lesado;

8. A excepção invocada pela ré seguradora, de nulidade do contrato de seguro, é inoponível ao FGA, nos termos do disposto no artigo 14.º do DL n.º 522/85;

9. Tal vício, para ser oponível ao lesado, deveria ter sido declarada antes do sinistro e não, como no caso vertente sucede, apenas após a ocorrência do acidente e por via da presente acção;

10. O tribunal, ao não o interpretar da forma acima assinalada, violou o artigo 14.º do DL n.º 522/85.


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11. Os factos provados não permitem concluir que foi cumprido o procedimento de resolução do contrato de seguro por falta de pagamento do prémio de seguro;

12. O tribunal, ao não o interpretar da forma acima assinalada, violou o n.º 3, do artigo 7.º do DL nº 142/2000.


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13.Caso se mantenha a condenação do FGA, deve este poder deduzir à indemnização a pagar à autora as quantias que pague à ré seguradora e que esta adiantou à autora;

14. O tribunal, ao não o interpretar da forma acima assinalada, violou o artigo 564.º do CC.

Em contralegações disse a EE, peticionando a ampliação do recurso:

1. O Acórdão recorrido não merece reparo, sendo a absolvição da Ré EE um imperativo de justiça;

2. Como se lê nesse Acórdão e decorre à saciedade da matéria assente, “existiu uma trama tripartida entre a Ré FF, o Réu AA e o Réu CC no sentido de, logo em 15.03.2000, se entenderem e aceitarem mutuamente que seria o Réu AA o proprietário do motociclo, comprando-o a AII, Limitada, ao mesmo tempo que se entenderam e aceitaram que esse veículo constaria como propriedade do Réu CC para poder ser abrangido por um seguro obrigatório de responsabilidade civil, a fim de poder rodar na via pública e serem enganadas as autoridades de fiscalização rodoviária (...).Os réus FF, CC e AA aparentam atos simulados, emprestando uns aos outros nomes, caras, mãos que assinam autógrafos autênticos e posições contratuais, mas um efeito dissimulado que efetivamente pretendem e em que se mancomunam acaba por ser juridicamente válido: desde 15.03.2000 o titular do direito de propriedade sobre o motociclo é o réu AA.”

3. Assim, em face da matéria de facto, em particular dos pontos 1 a 6, 23 a 28, é manifesto que o contrato é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 429.º do Código Comercial, vício esse oponível a terceiros, como resulta do artº 14.º do DL n.º 522/85, interpretados em respeito pelo preceituado no artº 9.º do CC;

4. Do mesmo modo, decorre da matéria assente, que o contrato foi validamente resolvido, por falta de pagamento de prémio, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 7.º e 8.º, do DL 142/2000, e do artº 224.º, do CC.

Subsidiariamente, e sem prescindir,

5. A Recorrida vem requerer a ampliação do objeto de recurso, ao abrigo do disposto no artº 684.º-A do CPC, na medida em que entende que o contrato de seguro sub judice é – também – nulo ao abrigo do disposto no artº 428.º, § 1, do Código Comercial, contrariamente ao que decidiu o Acórdão recorrido.

6. Não sendo o Réu CC proprietário do veículo, cabia à autora – e ao FGA – demonstrar que este tinha um qualquer interesse económico relevante na celebração do contrato de seguro, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 342.º, n.º 1, do CC. Nada na matéria de facto assente admite a conclusão de que esse interesse pudesse ter existido, em qualquer momento de vigência do contrato.

7. O único interesse na celebração do contrato de seguro pelo Réu CC, era “que esse veículo constaria como propriedade do Réu CC para poder ser abrangido por um seguro obrigatório de responsabilidade civil, a fim de poder rodar na via pública e serem enganadas as autoridades de fiscalização rodoviária”.

8. Como tem vindo a ser sustentado por este Supremo Tribunal de Justiça, o interesse do “favor”, como é o interesse em causa, não integra o conceito de interesse patrimonial pressuposto do artº 428.º do Código Comercial, (Cf. Ac. STJ de 30/11/06, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 06B2608; STJ de 16/5/05, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 05A3992; STJ de 12/11/04, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 05B1611).

9. Acresce que, contrariamente ao que entendeu o Tribunal recorrido, o interesse patrimonial “na coisa segurada não pode deixar de ser aferido também no momento do sinistro e não apenas no momento da celebração do contrato, tendo o segurado que manter vivo e actual o seu interesse legítimo no ressarcimento dos prejuízos que lhe forem causados pelo evento danoso aquando da ocorrência deste.” (Cf. Ac. STJ de 12.11.2004, processo n.º 05B1611, www.dgsi.pt).

10. Na ausência de qualquer prova ou facto que milite no sentido da existência de qualquer interesse patrimonial do Réu CC no objeto seguro, bem assim, a circunstância de este não ter qualquer interesse patrimonial relevante no momento da ocorrência do sinistro (note-se que quem conduz o veículo nessa data é o proprietário AA), é líquido que o contrato é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 428.º §1 do Código Comercial.

11. A referida nulidade é oponível a terceiros, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 14.º do DL n.º 522/85, de 31/12.

12. Neste quadro, deve a decisão em crise ser substituída por outra que declare a nulidade do contrato de seguro sub judice, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 428.º § 1 do Código Comercial, com as devidas consequências legais.

O FGA respondeu ao pedido de ampliação do recurso.

Cumpridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

II.1 – De facto

A matéria de facto fixada e relevante para a apreciação do recurso é a seguinte, após as alterações introduzidas pela Relação:

Em conformidade com as respostas alteradas, os factos considerados provados passam a ser os seguintes [mantém-se e adapta-se a numeração inicial atribuída na sentença, em virtude de se aludir a essa numeração na apelação, mas também se mantém a não formulação dos pontos 10.44 a 10.53]:

10.1 Entre a ré EE e o réu CC foi celebrado, em 26/12/1990, pelo prazo de um ano e seguintes, um contrato de seguro obrigatório, cujo objecto incidiu sobre o motociclo com a matrícula ...VNF... e que, posteriormente, por força de uma alteração, passou a ter por objecto o motociclo com a matrícula -PE, titulado pela apólice ... – alínea A) da matéria de facto assente.

10.2 No dia 25/2/2001, pelas 19h50m, o réu AA conduzia o motociclo de marca ... com a matrícula -PE – resposta a 1 da base instrutória, em conformidade com o trecho inicial da sentença.

10.3 Pela estrada municipal 508, na direcção de Cabeçudos para Vila Nova de Famalicão – 2 da base instrutória.

10.3 [A] A autora seguia como sua passageira – 3 da base instrutória.

10.4 A dada altura do percurso, em Esmeriz, o réu AA foi incapaz de efectuar uma curva à direita, que ali se situa, no cruzamento da referida estrada municipal com a Rua …, embatendo no triângulo que, no meio de tal cruzamento, forma uma pequena rotunda – resposta a 4 a 7 da base instrutória.

10.5 O réu AA seguia a velocidade não concretamente apurada – resposta a 8 da base instrutória.

10.6 O réu AA e a autora foram projectados a vários metros do motociclo em que seguiam, ao embater no aludido triângulo – resposta a 11 da base instrutória.

10.7 A autora e o réu AA foram, como consequência do acidente, conduzidos para o hospital de Vila Nova de Famalicão, pelos bombeiros voluntários dessa cidade – 13 da base instrutória.

10.8 Tendo a autora sido enviada, de imediato, para o Hospital de São Marcos, em Braga – 14 da base instrutória.

10.9 Quando deu entrada no hospital de Vila Nova de Famalicão, a autora já se encontrava, em consequência do acidente, em estado de coma – 15 da base instrutória.

10.10 A autora, em consequência do acidente, ficou no estado melhor descrito nos escritos que constituem os documentos 2 e 3 juntos aos autos com a petição inicial – 16 da base instrutória.

10.11 Em consequência do acidente, a autora só muito esporadicamente se encontra em estado de discernimento – 17 da base instrutória.

10.12 Encontrando-se sem qualquer coordenação motora – 18 da base instrutória.

10.13 Impossibilitada de se locomover e permanentemente acamada, desde o acidente e como sua consequência – 19 da base instrutória.

10.14 Desde que teve alta do Hospital de São Marcos, a autora reside, com o seu filho, com seus pais, JJ e KK – 20 da base instrutória.

10.15 Dos quais depende, como consequência do acidente, absolutamente para se alimentar, para se lavar e para satisfazer as suas necessidades fisiológicas – 21 da base instrutória.

10.16 Raramente fala – 22 da base instrutória.

10.17 Desde o acidente, e como sua consequência, que a autora se encontra com incapacidade absoluta permanente, estando a ser tratada no Hospital Distrital de Santo Tirso – 23 da base instrutória.

10.18 O estado em que se encontra, como consequência do acidente que se descreveu, causa-lhe profundo desgosto e angústia moral, perceptível nos momentos em que tem discernimento – 24 da base instrutória.

10.19 Dores decorrentes do estado em que ficou e todo o sofrimento que resultou do tratamento a que teve que se sujeitar no Hospital de São Marcos – 25 da base instrutória.

10.20 A autora, embora à data do acidente estivesse desempregada, sempre trabalhou – 26 da base instrutória.

10.21 Sendo certo que, devido às sequelas resultantes do acidente, jamais poderá trabalhar – 27 da base instrutória.

10.22 A autora, no último emprego que teve antes de suceder o acidente, auferia o salário mensal de 350€ – 28 da base instrutória.

10.23 À data do acidente e desde o dia 15/3/2000 o réu AA era o proprietário do motociclo – nova resposta a 29 da base instrutória.

10.24 Em sequência, foi movido pela ré EE ao tomador do seguro, ora réu CC, um processo de injunção, o qual não sofreu qualquer oposição daquele, tendo a referida injunção adquirido força executiva, tudo conforme documentos que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos sob os números 1 e 2 – 36 da base instrutória.

10.25 À data do acidente e desde 22/5/2000 o motociclo estava registado em nome da ré FF, com reserva de propriedade a favor do réu GG Crédito – 37 da base instrutória.

10.26 Apesar da titular inscrita ser a ré FF, era o réu AA quem pagava as prestações do leasing e os prémios de seguro – resposta a 38 da base instrutória.

10.27 O réu AA não estava à data dos factos habilitado para conduzir o motociclo, designadamente na data e hora do acidente – 39 da base instrutória.

10.27 [A] A ré EE jamais aceitaria alterar as condições do contrato de seguro, em conformidade com a acta adicional 4 de 15/3/2000, se tivesse conhecimento que o réu AA era o proprietário do motociclo, que o réu AA se propunha conduzir esse motociclo e que o réu AA não era titular de carta de condução – nova resposta a 40 da base instrutória.

10.28 Por não ter sido pago o prémio de seguro reportado ao período de 28/12/2000 a 27/12/2001, a ré EE não enviou ao réu CC o certificado internacional de seguro reportado ao mesmo período – nova resposta a 41 da base instrutória.

10.29 A GG Creditus, entretanto incorporada por fusão no réu GG Crédito, era uma sociedade parabancária autorizada a conceder crédito – 42 da base instrutória.

10.30 No exercício da sua actividade a GG Creditus financiava aquisições de veículos automóveis, motociclos e outros bens de consumo, financiamentos que eram efectuados no âmbito do Decreto-Lei 359/91, de 21/9 – 43 da base instrutória.

10.31 A GG Creditus pertencia, tal como sucede agora com o réu GG Crédito, ao grupo Banco GG – 44 da base instrutória.

10.32 A actividade de concessão de crédito do grupo GG, antes de terem sido criadas as sociedades de crédito especializado, estava confiada a vários departamentos, também eles especializados e autonomizados, do Banco GG – 45 da base instrutória.

10.33 Sendo que o departamento Creditus, especialmente vocacionado para o crédito ao consumo, veio a dar origem à sociedade financeira GG Creditus, SFAC, Sociedade Anónima – 46 da base instrutória.

10.34 Foi neste contexto que o departamento Creditus do Banco GG recebeu uma proposta/pedido de financiamento da ré FF para aquisição do motociclo – 47 da base instrutória.

10.35 Analisada a proposta/pedido de financiamento e avaliada a capacidade de endividamento da ré FF, foi a mesma aceite, tendo o financiamento sido concretizado através do contrato 46.866, cuja cópia se junta e se dá por integralmente reproduzida – 48 da base instrutória.

10.36 Com a criação da GG Creditus, SFAC, SA, a gestão dos processos de financiamento, designadamente o acompanhamento dos contratos e a verificação do seu cumprimento, passou a estar a cargo desta nova sociedade, para quem foram cedidos grande parte dos créditos emergentes dos contratos de financiamento celebrados em data anterior à sua constituição, entre os quais o referido contrato – 49 da base instrutória.

10.37 O que justifica que a reserva de propriedade sobre o motociclo tenha sido constituída a favor da GG Creditus, SFAC, SA – 50 da base instrutória.

10.38 A Creditus limitou-se, assim, a financiar uma venda, daí que tenha sido interveniente num mero contrato de financiamento – 51 da base instrutória.

10.39 Mediante aquele contrato de financiamento, a Creditus colocou à disposição da mutuária, ora ré FF, o preço que esta acordou com o vendedor, a sociedade II, Limitada – 52 da base instrutória.

10.40 Obrigando-se a ré FF a amortizar em prestações mensais a importância que a Creditus lhe mutuou – 53 da base instrutória.

10.41 Obrigação que a ré FF cumpriu pontualmente até ao termo do contrato, 15/3/2003 – 54 da base instrutória.

10.42 O réu GG Crédito jamais teve conhecimento que o motociclo era utilizado por terceiros – 55 da base instrutória.

10.43 No âmbito do aludido contrato, o réu GG Crédito não teve necessidade de efectuar quaisquer contactos com a mutuária, pois esta sempre pagou pontualmente as suas prestações, através de débito na sua conta bancária – 56 da base instrutória.

10.54 Quando o contrato de financiamento atingiu o seu termo, ficando totalmente amortizada a quantia mutuada, o réu GG Crédito limitou-se a remeter para a morada constante do contrato o documento para extinção da reserva de propriedade sobre o motociclo – 57 da base instrutória.

10.55 Jamais o réu GG Crédito pôs ou dispôs do motociclo – 58 da base instrutória.

10.56 Nem a motociclo esteve ao dispor da sua vontade – 59 da base instrutória.

10.57 A autora foi internada no Centro Hospitalar do Médio Ave no dia 29/7/2008 – 1A da base instrutória de fls. 839.

10.58 Esse internamento ficou a dever-se a complicações de índole renal e urinária – 2B da base instrutória de fls. 839.

10.59 Esse internamento decorreu do quadro clínico de pielonefrite aguda por klebsiella, situação que habitualmente ocorre em doentes portadores de sequelas do tipo das que resultaram do acidente em apreço – resposta a 3C da base instrutória de fls. 839.

10.60 A autora, após o referido internamento, que durou de 29/7/2008 a 1/8/2008, foi transferida para o Hospital de São João, no Porto – 4D da base instrutória de fls. 839.

10.61 O seu estado é o que está descrito no relatório que constitui o documento 2 junto a fls. 806 – 5E da base instrutória de fls. 839.

10.62 A autora teve alta em 7/8/2008, depois de ter sido sujeita aos tratamentos mencionados no documento 2 junto a fls. 806 – 6F da base instrutória de fls. 839.

10.63 A autora sofreu dores intensas, quer por força do seu estado de saúde, o qual se agravou, quanto às suas funções renais e urinárias, face à situação anterior a 29/7/2008, quer por força dos tratamentos a que foi sujeita – 7G da base instrutória de fls. 839.

10.64 As complicações urinárias que ditaram os referidos internamentos têm nexo de causalidade com o acidente em apreço e sequelas dele resultantes, podendo ocorrer outro tipo de complicações, nomeadamente do foro respiratório, músculo esqueléticas ou outras – resposta a 8H da base instrutória de fls. 839.

10.65 Em consequência do acidente, a autora ficou a padecer das seguintes sequelas:

Crânio: síndrome pós-traumático, pós traumatismo crânio-encefálico grave, com afundamento de crânio e coma de cerca de 4 semanas. Crises de epilepsia pós-traumática com certa frequência, a última das quais há cerca de um ano. Disartria de origem central.

Face: escalpe de 6x4 cm da região fronto-temporal esquerda. Cicatriz de 26 cm transversal a toda a região frontal, mas já no couro cabeludo, resultante de acto operatório. Perda de olho esquerdo, substituído por prótese, apresentando afundamento orbitário/malar esquerdo;

Pescoço: processo cicatricial da face anterior do pescoço, na sua base e resultante de traqueostomia, com eixos de 6x2 cm;

Raquis: paraplegia flácida pós fractura vertebro-medular D11-D12, com incontinência de esfíncteres e dependente de terceira pessoa para os actos da vida diária;

Períneo: algália permanente, mudada de 3 em 3 semanas;

Membro inferior direito: cicatriz de 12 cm da face externa da coxa, consequente de recolha de material para enxerto (factos aditados ao abrigo do art. 659 nº 3 do CPC por constarem da perícia de avaliação do dano corporal, que constitui fls. 591 e ss., e do relatório de avaliação de necessidades de reabilitação que constitui fls. 628).

10.66 A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 14/10/2004;

Período de incapacidade temporária geral fixável num período de 193 dias;

Período de incapacidade temporária geral parcial fixável em 1.165 dias;

Período de incapacidade temporária profissional total fixável em 1.328 dias;

Quantum doloris fixável no grau 5;

Incapacidade permanente geral fixável em 90% (à qual acresce, a título de dano futuro, mais 5%);

As sequelas descritas são, em termos de rebate profissional, impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico profissional;

Dano estético fixável num grau 6/7;

Prejuízo de afirmação pessoal fixável no grau 5/5;

Prejuízo sexual fixável no grau 5/5;

Dependência de: adaptação do domicílio, ajuda de terceira pessoa, ajudas medicamentosas e ajudas técnicas (factos aditados ao abrigo do art. 659 nº 3 do CPC por constarem da perícia de avaliação do dano corporal, que constitui fls. 591 e ss., e do relatório de avaliação de necessidades de reabilitação que constitui fls. 628);

10.67 Da avaliação feita à acessibilidade da habitação da autora, em 25/5/2007, resultou: “… Apesar de ser dependente para a realização das actividades de auto-cuidados, a examinada colabora apenas na execução de pequenas tarefas, como por exemplo mudar de posição na cama, pentear, lavar os dentes e a face. Desloca-se em cadeira de rodas manual, manobrada por terceiros. Apenas consegue deslocar-se autonomamente em superfícies planas e por pequenos percursos. Não possui carta de condução. Evita deslocações em viaturas automóveis, mencionando que se cansa muito. … Antes do acidente vivia em casa própria. Actualmente vive em casa dos pais com o seu filho de 10 anos de idade. O apoio de terceira pessoa é assegurado pela sua mãe, que deixou de trabalhar. A habitação é constituída por r/c e 1º andar, com acesso interior por escadas. Após o acidente e devido à dificuldade em aceder ao piso superior, foram realizadas obras no r/c, pelos familiares, convertendo o quarto de arrumos em actual quarto da autora, uma antiga cozinha numa casa de banho, constituída por lavatório e base para o duche, e foram criados passeios e rampas, para fácil acesso às várias divisões existentes no piso térreo e ao jardim. A passagem entre o quarto e a casa de banho apenas pode ser efectuada pelo exterior” (factos aditados ao abrigo do art. 659 nº 3 do CPC por constarem da perícia de avaliação do dano corporal, que constitui fls. 591 e ss., e do relatório de avaliação de necessidades de reabilitação que constitui fls. 628).

10.68 A autora possui como ajudas técnicas, fornecidas pelo Hospital de São Marcos:

– cadeira de rodas manual, demasiado estreita e desgastada;

– almofada anti-escaras;

– cadeira de duche.

Possui ainda, a título de empréstimo:

– cama articulada com pendural;

– colchão anti-escaras (factos aditados ao abrigo do art. 659 nº 3 do CPC por constarem da perícia de avaliação do dano corporal, que constitui fls. 591 e ss., e do relatório de avaliação de necessidades de reabilitação que constitui fls. 628).

10.69 Foram propostas as seguintes ajudas técnicas e adaptações:

– a colocação de uma cobertura, vertical e lateral, entre o quarto e casa de banho da autora;

– uma sanita na casa de banho, que permitirá à autora realizar treino de esfíncteres;

– cadeira de rodas eléctrica, facilitando as deslocações no interior da habitação, nomeadamente no jardim;

– poltrona para permitir variar de posição, desde sentada até semideitada, de forma confortável e autónoma;

– elevador de transferências, garantindo com conforto e segurança o acto de transferir;

– dispositivo estático para colocar a autora na posição vertical;

– meias de contenção elástica até à raiz da coxa, minimizando o efeito de doença vascular periférica nos membros inferiores (factos aditados ao abrigo do art. 659 nº 3 do CPC por constarem da perícia de avaliação do dano corporal, que constitui fls. 591 e ss., e do relatório de avaliação de necessidades de reabilitação que constitui fls. 628).

10.70 Da avaliação psicológica realizada em 23/5/2007, no CRPG, resultou:

…A examinada apresenta uma constelação de sintomas comportamentais e cognitivos que podem ser associados a “síndroma de disfunção executiva”, compatíveis com a lesão cerebral sofrida: verbalizações repetitivas, alterações da memória de trabalho, apatia com amotivação, desinteresse generalizado, desinvestimento em actividades e falta de iniciativa, dificuldade no planeamento e execução de actividades, comportamento infantilizado, distanciamento emocional. Dado o quadro deficitário, não era de prever a possibilidade de reintegração profissional da examinada” (factos aditados ao abrigo do art. 659 nº 3 do CPC por constarem da perícia de avaliação do dano corporal, que constitui fls. 591 e ss., e do relatório de avaliação de necessidades de reabilitação que constitui fls. 628).

II.B. De Direito

II.B.1. São as seguintes as questões objecto do recurso.

 

a) Litisconsórcio necessário entre FGA e R. AA e absolvição daquela por efeito da absolvição, com trânsito em julgado do R. AA;

b) Validade do contrato de seguro à data do acidente e inoponibilidade da nulidade invocada pela seguradora ao FGA;

c) Falta dos pressupostos da resolução do contrato de seguro;

d) Nulidade do contrato de seguro ao abrigo do artigo 428.º § 1 do CCom e sua oponibilidade a terceiros.

II.B.2. Litisconsórcio necessário entre FGA e R. AA e absolvição daquela por efeito da absolvição, com trânsito em julgado do R. AA

No acórdão recorrido considerou-se que o motociclo interveniente no acidente não estava coberto por um seguro de responsabilidade civil, válido e eficaz, pelo que absolveu a seguradora EE.

O art. 21.º, n.º 2, al. a) do DL 522/85, diploma aplicável, estabelecia que, no caso de acidente de que decorressem lesões corporais – como aconteceu com a autora – era o FGA quem suportava a indemnização correspondente, isso na eventualidade de o responsável – seja conhecido, seja desconhecido – não beneficiar de seguro válido ou eficaz.

Aplicando essa norma ao caso vertente, em que existia um responsável conhecido, mas não existia (na perspectiva do acórdão) seguro válido e eficaz, ou seja, seguro que, à data do sinistro, cobrisse os riscos civis de circulação do motociclo, condenou o réu FGA e só ele, dada a absolvição do réu AA, na 1.ª instância.

Contra isto se insurge o FGA, argumentando que o DL n.º 522/85 estabelece a responsabilidade solidária com o condutor e não se poder reagir contra esse facto.

A norma do art.º 29.º, n.º 6, do DL n.º 522/85 é uma norma que visa assegurar a legitimidade processual, o que foi efectivado ao propor-se a acção contra o proprietário registral e o condutor.

O réu FGA requereu a intervenção da seguradora, visando a exclusão do seu papel de garante.

Na 1.ª instância decidiu-se condenar a seguradora, no pressuposto da existência de um seguro válido e eficaz, absolvendo os demais réus.

Só a EE recorreu, vindo peticionar a condenação da FGA e só dele.

Nenhuma reacção válida foi deduzida pelo FGA, tendo apresentado tardiamente contralegações que, por isso, não foram admitidas, nem deduziu recurso subordinado, o que podia e devia ter feito, uma vez que a procedência da apelação, apenas poderia determinar a condenação do Fundo e não do condutor, porquanto a absolvição do Réu AA, na ausência de um recurso subordinado transitou em julgado.

È um facto que o FGA não poderia requerer a ampliação do recurso mas recorrer subordinadamente era algo que podia e devia fazer, na nossa perspectiva, se pretendia evitar a sua condenação exclusiva.

A leitura que a recorrente faz do seu papel de garante é claramente enviesada, porquanto decorre do artigo 21.º (n.º 1) do diploma em causa que compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais, sendo que (n.º 2) o FGA garante, relativamente a acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz, ou for declarada a falência da seguradora e por lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz.

Tal garantia é perante os lesados e a responsabilidade primeira pelo pagamento é sempre do Fundo, só depois se colocando a questão da subrogação legal.

Não existe, pois, neste segmento nenhuma censura a fazer, em termos de decisão, ao acórdão.

II.B.3. Validade do contrato de seguro à data do acidente e inoponibilidade da nulidade invocada pela seguradora ao FGA

A ré seguradora defendeu a nulidade do contrato de seguro, nos termos do artigo 429.º do Código Comercial e, que tal vício implica necessariamente a sua irresponsabilidade no tocante ao ressarcimento dos danos causados pela circulação do veículo.

Resultou, efectivamente, dos autos que:

Entre a ré EE e o réu CC foi celebrado, em 26/12/1990, pelo prazo de um ano e seguintes, um contrato de seguro obrigatório, cujo objecto incidiu sobre o motociclo com a matrícula ...VNF... e que, posteriormente, por força de uma alteração, passou a ter por objecto o motociclo com a matrícula -PE, titulado pela apólice ...;

À data do acidente e desde o dia 15/3/2000 o réu AA era o proprietário do motociclo;

Em sequência, foi movido pela ré EE ao tomador do seguro, ora réu CC, um processo de injunção, o qual não sofreu qualquer oposição daquele, tendo a referida injunção adquirido força executiva;

À data do acidente e desde 22/5/2000, o motociclo estava registado em nome da ré FF, com reserva de propriedade a favor do réu GG Crédito;

Apesar da titular inscrita ser a ré FF, era o réu AA quem pagava as prestações do leasing e os prémios de seguro;

O réu AA não estava à data dos factos habilitado para conduzir o motociclo, designadamente na data e hora do acidente;

A ré EE jamais aceitaria alterar as condições do contrato de seguro, em conformidade com a acta adicional 4 de 15/3/2000, se tivesse conhecimento que o réu AA era o proprietário do motociclo, que o réu AA se propunha conduzir esse motociclo e que o réu AA não era titular de carta de condução;

Por não ter sido pago o prémio de seguro reportado ao período de 28/12/2000 a 27/12/2001, a ré EE não enviou ao réu CC o certificado internacional de seguro reportado ao mesmo período.

Está em causa a aplicação ao caso vertente do artigo 429.º do Código Comercial, que dispõe:

“Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.

Por outro lado, o artigo 14.º do D.L. nº 522/85 (seguro obrigatório), de 31 de Dezembro, estipulava o seguinte:

“Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato (…), ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”.

Antes de abordarmos a questão da interpretação e aplicação das normas em causa, importa fazer ainda algumas considerações complementares sobre a matéria de facto.

Resulta dos autos, que a partir da acta adicional 4 o seguro modificado se considera feito por conta do réu CC e não do réu AA seu condutor e que a ré EE jamais aceitaria alterar as condições do contrato de seguro, em conformidade com a acta adicional 4 de 15/3/2000, se tivesse conhecimento que o réu AA era o proprietário do motociclo, que se propunha conduzir esse motociclo, não sendo titular de carta de condução.

No entendimento da primeira instância, a falsa declaração sobre a propriedade do motociclo era do conhecimento da seguradora, através do seu mediador, pelo que constituiria um abuso de direito suscitar a questão da nulidade do contrato, com base nessa falsa declaração.

Entendimento diverso teve a Relação, ao considerar que a seguradora nunca teria aceitado celebrar esse seguro se tivesse conhecimento que o réu AA era o proprietário do motociclo, que se propunha conduzir esse motociclo, não sendo titular de carta de condução.

Não podemos sufragar esta posição, em primeiro lugar, porque a resposta ao quesito 40.º dada pela Relação é no segmento “que se propunha conduzir esse motociclo” claramente exorbitante e não meramente explicativa, pelo terá que se considerar como não escrita.

De facto, seguindo de perto o entendimento sufragado no acórdão deste Tribunal de 30.11.10 (processo n.º 581/1999.P1.S1, inserto em www.dgsi.pt), entende-se estarem sujeitas à censura do Supremo as irregularidades cometidas pela Relação “a montante” da reavaliação da factualidade impugnada, “um prius, de resto, condicionante, quer do uso, quer do não uso, dos seus poderes de modificabilidade da matéria de facto” (ac. STJ de 13/11/2003), sejam violações da lei do processo ou de normas de direito probatório material, o que tudo é matéria de direito.

O art. 664.º, 2.ª parte do CPC dispõe que o juiz só pode servir-se dos factos alegados pelas partes, salvo o disposto no art. 264.º, preceito que não interessa analisar.

É pacífico o entendimento que a sanção correspondente à violação do comando daquele preceito, quando decorrente de decisão de matéria de facto incluída em questionário, é a de se considerarem não escritas as respostas que excedam o âmbito da questão de facto a que o quesito se reporta, nos termos previstos no n.º 4 do art. 646.º, por analogia.

Em regra, pois, se as respostas ultrapassam o âmbito da matéria quesitada, em termos não comportáveis no articulado pelas partes, têm de ser limitadas ao âmbito do perguntado, considerando-se não escrito o que o exorbite (A. REIS, ”Anotado”, IV, 500 e 547).

A questão de saber se determinada resposta deve considerar-se excessiva (e, consequentemente, não escrita) tem de aferir-se, apenas, pelo seu cabimento nos contornos da matéria alegada, que não estritamente pelos do ponto de facto (quesito) a que a resposta respeita.

O tribunal pode explicitar o que considera provado, podendo a resposta ser reformulada em termos diversos do quesitado, posto que se contenha nos limites atrás enunciados.

Impõe-se, pois, qualificando o vício e extraindo dele as devidas consequências, considerar não escrita a resposta em causa, no referido segmento tido por excessivo, fixando-se ao facto 40. a seguinte redacção:

“A ré EE jamais aceitaria alterar as condições do contrato de seguro, em conformidade com a acta adicional 4 de 15/3/2000, se tivesse conhecimento que o réu AA era o proprietário do motociclo e não era titular de carta de condução”.

Em segundo lugar, porque o facto de o réu CC não ser o proprietário do veículo, não o impedia de celebrar o contrato de seguro e apresentando-se como seu condutor habitual (doc de fls. 361 e 362), não haveria razão para a seguradora o recusar.

Naturalmente já não seria assim se o réu AA, se apresentasse como seu condutor habitual, o que não se provou. Só se provou que no dia do acidente era o Réu AA quem conduzia o motociclo.

Também não está demonstrado que a falsa declaração sobre a propriedade do veículo visasse ocultar a falta de habilitação do réu AA, podendo perfeitamente ter sido o réu AA a celebrar o contrato de seguro como proprietário, desde que ele não fosse indicado como o seu condutor habitual, o que pouco diferiria em termos contratuais, por forma a interferir nos termos e condições do contrato.

A natureza do vício referido no artigo 429.º do Código Comercial, já se encontra amplamente debatida e reúne consenso ao mais alto nível da nossa doutrina (MOITINHO DE ALMEIDA, O Contrato de Seguro, p. 61, nota 29; CC VASQUES, Contrato de Seguro, p. 379) e da jurisprudência (além de outros a que adiante se fará referência, o Ac. do STJ de 10.5.01, CJSTJ, IX, 2º, 60 e o Ac. do STJ de 4.3.04, CJSTJ, XII, 1º, 102).

Tal consenso é ainda assinalado no acórdão deste Tribunal, relatado pelo Sr. Conselheiro Moitinho de Almeida, em 18.12.2002, proc. 02B3891, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual:

“Tudo está, pois, em saber se a "nulidade" prevista no artigo 429º do Código Comercial, resultante de falsas declarações sobre o risco, deve ser considerada "nulidade" para efeitos do disposto naquele preceito.

A este respeito importa observar que o seguro obrigatório automóvel destina-se a garantir o ressarcimento dos lesados em consequência de acidentes de trânsito. Imperativas razões de ordem social impõem que a reparação das vítimas seja rápida e segura, isto é, que não haja dúvidas quanto à pessoa do responsável, que o processo a seguir seja célere e que a efectiva indemnização não seja posta em causa pela insolvabilidade do causador do acidente.

Estas exigências impõem um seguro obrigatório em que a responsabilidade é garantida pela seguradora, salvo nos casos excepcionais em que a garantia é assumida pelo Fundo de Garantia.

Daí que nos regimes do seguro obrigatório se encontre amplamente consagrado o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais. Assim, a Convenção de Estrasburgo de 20 de Abril de 1959 já o contemplava ao determinar que "O segurador não pode opor à pessoa lesada a nulidade ou a cessação do contrato, a sua suspensão ou a da garantia, a menos que se trate de sinistros ocorridos finda a expiração do prazo de 16 dias seguintes à notificação pelo segurador da nulidade, cessação ou suspensão" (artigo 9º, nº 2).

Preceito semelhante encontra-se, por exemplo, na lei italiana nº 990, de 24 de Dezembro de 1969: "dentro do máximo garantido na apólice o segurador não pode opor ao lesado, que o demanda directamente, excepções derivadas do contrato, nem cláusulas que prevejam eventual participação do segurado no ressarcimento do dano. O segurador beneficia contudo de direito de regresso contra o segurado na medida em que teria contratualmente direito de recusar ou de reduzir a própria prestação".

Também o artigo 76º da Lei do Contrato de Seguro espanhola, estabelece que a acção directa "está isenta das excepções que o segurador disponha contra o segurado", e o artigo 13º da lei belga de 1 de Julho de 1956 segue a mesma orientação.

É certo que estas disposições têm sido interpretadas no sentido de que a nulidade (absoluta) do contrato de seguro é sempre oponível aos lesados (Antonio La Torre, Le Assicurazioni, L´Assicurazione nei Codici, Le Assicurazioni Obligatorie, Milão 2000, p.714, J. Boquera Matarredona, J.Bataller Grau e J.Olavarría Iglesia, Comentarios a la Ley de Contrato de Seguro, Valencia, 2002 p. 849). Mas, o vício do contrato resultante de falsas declarações sobre o risco por parte do tomador do seguro gera nas legislações referidas mera anulabilidade.

Tem-se no nosso país entendido que a "nulidade" a que se refere o artigo 429º do Código Comercial não é uma nulidade mas simples anulabilidade. Com efeito, a nulidade é um vício do contrato imposto pela salvaguarda do interesse geral, o que no caso de falsas declarações quanto ao risco se não verifica: estamos aqui numa situação paralela à dos vícios na formação do contrato (dolo e erro) que determinam mera anulabilidade.

E é neste sentido que deve ser interpretado o artigo 14º do Decreto-Lei nº 522/85.

Tal interpretação, que faz coincidir o nosso ordenamento jurídico com os acima referidos, é ainda imposta pela finalidade do seguro obrigatório: um regime que faça depender a determinação do responsável de eventual nulidade resultante de falsas declarações sobre o risco seria fonte de incerteza para os lesados quanto à forma de jurisdicionalmente exercerem os respectivos direitos. Os atrasos que daí resultariam, e o caso dos autos é disso um exemplo, afectariam de modo intolerável a protecção jurídica das vítimas de acidentes de circulação”.

No mesmo sentido, vêm citados, de seguida, outros acórdãos deste Tribunal: de 20.10.2005, proc. 05B2347 (Conselheiro Oliveira Barros), de 08.06.2006, proc. 06A1435 (Conselheiro Azevedo Ramos) e de 12.09.2006, proc. 06A2276 (Conselheiro Alves Velho), disponíveis em www.dgsi.pt.

A estes se aditam os acórdãos de 14.11.06, proc. 06A3465 (Conselheiro Alves Velho) e o de 06.11.07, proc. 07A3447 (Conselheiro Nuno Cameira), igualmente disponíveis no sítio atrás referido.

Deste último permitimo-nos citar um longo excerto, por ser idêntica a situação aí contemplada à dos presentes autos:

“A natureza particular dos interesses em presença, por um lado, e a inexistência de violação de qualquer norma imperativa, por outro, justificam que deva ser a anulabilidade a consequência jurídica associada à emissão de declarações inexactas ou reticentes do segurado, passíveis de influir na existência ou nas condições do contrato de seguro. A tudo acresce que tal sanção se harmoniza por completo com a estabelecida em geral para os vícios na formação da vontade – art.ºs 247º e 251º a 257º do Código Civil; e sendo certo que o art.º 429º do C. Comercial integra um caso da espécie erro do declaratário, não se vê que deva merecer um tratamento diverso do previsto para tal vício (citados art.ºs 247º e 251º), tendo presente, além do exposto, que as normas devem ser interpretadas ponderando a unidade do sistema jurídico, cânone interpretativo destacado logo no nº 1 do art.º 9º do CC.

Também resulta claramente do texto legal que não é uma qualquer declaração inexacta ou reticente que pode desencadear a possibilidade de anulação do seguro. Conforme vem sendo entendido maioritariamente, torna-se indispensável que as declarações inexactas ou reticentes influam na existência e nas condições do contrato, de sorte que o segurador, se as conhecesse, não contrataria ou teria contratado em diversas condições.

Ora, no caso presente apenas se provou que à data da celebração do seguro FF não era proprietário do veículo (…), facto que manifestamente não se integra na previsão do art.º 429º do C. Comercial. De resto, como bem se observa na sentença, o encargo que recai sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões envolve de igual modo a seguradora, “que não pode abandonar-se totalmente às declarações do proponente com o fundamento de que a sanção legal a protegerá das declarações erróneas, devendo entender-se que sobre ela impende, no mínimo, o dever de sindicar as respostas que o tomador dá aquando da proposta de seguro ao questionário, ou o seu não preenchimento. A questão da propriedade é de fácil indagação, na medida em que basta exigir o título de registo de propriedade. No caso dos autos, não faz sentido que a ré pretenda prevalecer-se de uma declaração inexacta de tão fácil indagação ” (…).

Portanto, não tendo a ré seguradora provado, como lhe competia – art.º 342º, nº 2, do CC – que não teria celebrado o contrato de seguro se conhecesse a verdadeira identidade do condutor habitual do veículo (…), ou que, conhecendo tal identidade, teria contratado em condições diversas (exigindo, por exemplo, prémio diferente do convencionado), não pode deixar de decair na excepção que opôs à validade do seguro, como as instâncias decidiram.

Deve, contudo, sublinhar-se ainda o seguinte: mesmo que se entendesse, perante o disposto no art.º 429º do C. Comercial, que o seguro era anulável, essa anulabilidade seria inoponível aos recorridos, face ao art.º 14º do DL 522/85, de 31/12, que dispõe: “Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora só pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”. Desta norma infere-se que no âmbito do seguro obrigatório a seguradora não pode livrar-se da sua obrigação perante o lesado mediante a invocação duma mera anulabilidade não prevista no DL 522/85, como é o caso, justamente, da consagrada no art.º 429º do C. Comercial. E compreende-se que assim seja porque a instituição do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel teve em vista, como medida de relevante alcance social, a protecção directa (e célere) dos legítimos interesses e direitos das pessoas lesadas em consequência de acidentes de viação, o que postula um seguro em que, sendo a responsabilidade, em regra, garantida pela seguradora (e, excepcionalmente, pelo FGA), vigore com a máxima amplitude o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais, do que resulta que só a nulidade, não a anulabilidade, do contrato de seguro possa ser oposta aos lesados em acidente de viação, nos termos do citado art.º 14º do DL 522/85.”

Temos, pois, por incorrectamente decidida, no acórdão, a nulidade do contrato de seguro.

II.B.4. Falta dos pressupostos da resolução do contrato de seguro.

Entendeu-se no acórdão que, mesmo que não se pudesse sustentar a nulidade do contrato, sempre teria ocorrido resolução eficaz do mesmo, por ausência do pagamento do prémio reportado ao período que inclui o dia do sinistro (28/12/2000 a 27/12/2001).

Também aqui discordamos do acórdão.

O DL 142/2000, de 15/7, vigorava na altura em que era devido o prémio citado, vindo esse diploma a ser revogado pelo art. 6.º n.º 1 do DL 72/2008, de 16/4.

Estabelecia o citado diploma no seu artigo 7.º:

“1– A empresa de seguros encontra-se obrigada, até 30 dias antes da data em que os prémios ou fracções subsequentes sejam devidos, a avisar, por escrito, o tomador de seguro, indicando a data do pagamento, o valor a pagar e a forma de pagamento.

2– Do aviso a que se refere o número anterior devem obrigatoriamente constar as consequências da falta de pagamento do prémio ou fracção, nomeadamente a data a partir da qual o contrato é automaticamente resolvido, nos termos do artigo seguinte.

3– Recai sobre a empresa de seguros o ónus da prova relativo ao envio do aviso a que se refere o presente artigo”;

E mais se estabelecia no seu artigo 8.º:

“1– Na falta de pagamento do prémio ou fracção na data indicada no aviso referido no artigo anterior, o tomador de seguro constitui-se em mora e, decorridos que sejam 30 dias após aquela data, o contrato é automaticamente resolvido, sem possibilidade de ser reposto em vigor.

2– Durante o prazo referido no número anterior o contrato produz todos os seus efeitos”.

Provou-se, na nova resposta ao quesito 41, que não foi pago o prémio de seguro reportado ao período de 28/12/2000 a 27/12/2001.

E entendeu a Relação que ocorreu a resolução do contrato, extraindo uma ilação do conhecimento do réu da resolução do contrato a partir de determinados elementos que constam dos autos.

Reafirmando os poderes do Supremo de ajuizar dessa ilação extraída pela Relação (Acórdão de 7.2.2005, proc 05B3853, in www.dgsi.pt) cabe dizer que tal ilação é ilegítima, e, por isso insusceptível de ser aceite, uma vez que a Relação só pode extrair da matéria de facto as ilações que desta entendam resultar, desde que constituam o desenvolvimento lógico dos factos assentes (Ac do STJ de7.2.2002, processo n.º 02B4389, também em www.dgsi.pt).

Ora, no caso em apreço, a Relação extraiu essa ilação de elementos de facto não dados como provados, ou seja, apesar de não se ter dado como provado que o segurado tinha conhecimento, desde antes da data do acidente, da anulação do contrato (o que era perguntado no quesito 29), que esse conhecimento se deve deduzir de três cartas enviadas pela seguradora para uma morada determinada, devolvidas pelos serviços postais, por noutra ocasião nessa mesma morada ter sido recebida uma notificação pelo Réu CC e por este não ter reagido ao processo de injunção proposto pela seguradora.

Disse-se no acórdão sobre este ponto, em termos de justificar a ilação de facto:

“A ré EE enviou ao réu CC as seguintes três cartas que se reportam ao pagamento desse prémio, indicando sempre a morada “... ... ...-000 ...”, a qual também é a morada referida pelo dito réu na proposta de seguro de 26/12/1990:

– a carta datada de 20/11/2000 – mas que a ré EE entendeu ser emitida em 1/12/2000 –, a qual avisa o réu CC para pagar o prémio até 28/12/2000, com a advertência de que a falta de pagamento acarretaria a resolução automática do contrato no dia 27/1/2001, carta essa que veio devolvida no dia 6/12/2000, por motivo de endereço insuficiente e destinatário desconhecido do carteiro;

– a carta datada de 12/1/2001, em que a ré EE concede novo prazo de pagamento até 27/1/2001, avisando o réu CC que a falta de pagamento acarretaria a resolução automática e irreversível do contrato, carta essa que veio devolvida no dia 24/1/2001, por motivo de endereço insuficiente e destinatário desconhecido do carteiro;

– a carta datada de 28/2/2001, em que a ré EE atesta a falta de pagamento e declara resolvido o contrato desde o dia 29/9/2000.”

“Não é possível estabelecer culpa de quem quer que seja na não recepção pelo réu CC das cartas que ostentam as datas de 20/11/2000 e 12/1/2001, mesmo não perdendo de vista a circunstância de a ré EE, em 12/1/2001, ter repetido o envio postal para a mesma morada, isso quando o carteiro já tinha declarado que a morada indicada era insuficiente e que desconhecia o destinatário.

Com efeito, não se pode excluir que a morada indicada, mesmo sendo incompleta, ainda assim pudesse ser suficiente para que um outro carteiro desse com o réu CC, como provavelmente acontecia desde o ano de 1990 com as cartas que a ré EE enviava ao mesmo réu a propósito do seguro. Veja-se que na injunção instaurada em 21/6/2001 (fls. 167 e 168) a morada indicada continua a ser rigorosamente a mesma e a carta enviada no âmbito dessa injunção foi recebida pelo réu CC.”

“Acresce que o réu CC teve ampla oportunidade de se pronunciar sobre as cartas que ostentam as datas de 20/11/2000 e 28/2/2001, as quais se encontram copiadas nos autos desde 18/9/2006 e foram notificadas a esse réu por carta do mandatário da ré EE (registo postal ….PT, a fls. 379), não tendo esse réu desmentido que conhecesse as notícias de resolução contratual que constam nas cartas em causa. Também na resposta desse réu deduzida na acta da sessão de 24/1/2011, supra transcrita, agora com elementos adicionais relativos a duas devoluções postais que não constavam nos autos no acto de 18/9/2006, não se alega o desconhecimento de resolução do contrato se o prémio não fosse pago.”

Cabe dizer que, entre outros pontos, a ilação assenta em raciocínio viciado, uma vez que o relevante é se a resolução do contrato foi dada a conhecer ao segurado antes do acidente, sendo certo que a terceira carta é posterior, como são muito posteriores a instauração do processo de injunção e o conhecimento em audiência, pelo réu CC, das cartas devolvidas.

Excluída esta ilação, não podemos concordar com a decisão de direito.

Em primeiro lugar, por não decorrer do artigo 224.º do CC terem-se tornado eficazes as notificações iniciais da seguradora.

Com efeito, estabelece o n.º 1 do citado normativo que “a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida […]”, acrescentando o seu nº 2 que “é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”.

No caso em apreço nem há recebimento ou conhecimento da notificação nem culpa do destinatário por a não ter recebido.

Depois, o disposto no artigo 7.º do do DL 142/2000 impõe obrigações à seguradora e um ónus de prova que visa evitar que o seguro fique sem efeito, sem o seu tomador ter sido previamente alertado para o pagamento e para a cominação decorrente do não pagamento tempestivo.

Não demonstrada a entrega ao segurado do aviso em causa, nem, por outra forma, provado o conhecimento por parte deste da sua falta de pagamento e das consequências dela decorrentes, temos que considerar que o contrato de seguro se mantinha em vigor à data do acidente.

II.B.5. Nulidade do contrato de seguro ao abrigo do artigo 428.º § 1 do CCom e sua oponibilidade a terceiros.

Finalmente também entendemos, aqui em concordância com a Relação, que o contrato de seguro não era inválido, por efeito do disposto no artigo 428.º, §1.º do Código Comercial.

Este parágrafo estabelece que o seguro pode ser contratado por conta própria ou por conta de outrem e que se aquele por quem, ou em nome de quem, o seguro é feito não tiver interesse na coisa segurada, o seguro é nulo.

Constatada a acta adicional 4 e o disposto no parágrafo segundo do mesmo art. 428.º é certo que o seguro assim modificado se considera feito por conta do réu CC.

Alega a ré EE que o réu CC não tinha qualquer interesse no motociclo e no seguro, na medida em que se se verificasse qualquer sinistro com esse veículo ao réu CC nunca poderia ser imputada qualquer responsabilidade.

Embora o motociclo fosse propriedade do réu AA à data da alteração do seguro corporizada na acta adicional 4, a verdade é que os factos provados não permitem concluir que ao réu CC nunca poderia ser imputada qualquer responsabilidade civil por sinistro que envolvesse o motociclo, nomeadamente porque não se pode nem deve excluir que o referido réu CC fosse efectivamente o seu condutor habitual (como declarou na acta n.º 4 já referida) ou ocasional, tendo pois todo o interesse em transferir para a seguradora a sua virtual responsabilidade civil.

Como se decidiu no acórdão deste Tribunal de 9.6.05, processo n.º 1611/05:

“I – Se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na coisa segurada, o seguro é nulo – art.º 428, § 1, do CCom.

II – O interesse que esse preceito pressupõe não resulta apenas da qualidade de proprietário, podendo também emergir de outras qualidades jurídicas, tais como a de usufrutuário, arrendatário, comodatário, de mero possuidor ou detentor, ou seja sempre que o segurado detiver, por qualquer título que o obrigue a restituir, a coisa (ou o seu valor) se esta perecer.”

Cabe referir, ainda. Que, também, no acórdão deste Tribunal de 16.10.2008, proc 2362/08, se sustentou que “[f]ace à relevância social da protecção do lesado e valores subjacentes ao Regime do Seguro Obrigatório, nomeadamente quanto à inoponibilidade das excepções contratuais gerais nele não previstas, não repugna aceitar a derrogação da norma do § 1.º do art. 428.º do CCom pelas do DL n.º 522/85, nomeadamente nos seus arts. 2.º e 8.º, n.º 1, enquanto enformadoras dum regime especial, quanto ao regime da nulidade do seguro por falta de interesse na coisa segurada” e que recai “sobre a empresa seguradora o ónus de alegação e prova de que ao tomador do seguro não assistia nenhum título legítimo que lhe permitisse a celebração do contrato de seguro” 

O que tudo conduz a que, também por aqui se não pode afastar a validade do contrato de seguro.

III. Pelo exposto, acordam em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo em vigor a decisão da 1.ª instância.

Custas, a suportar por Seguradora e Fundo, aqui e nas instâncias, na proporção dos respectivos decaimentos.

Lisboa, 21 Janeiro 2014

Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque

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[1] N.º628
   Relator:    Paulo Sá
   Adjuntos: Garcia Calejo e
   Hélder Roque