CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DIREITO DE RETENÇÃO
HERANÇA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CONFISSÃO
DEPOIMENTO DE PARTE
Sumário

I - O que identifica e define a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a caracterização jurídico-normativa da pretensão material que lhe atribui.
II - Peticionada a declaração judicial de transferência de metade dos imóveis para a herança e da outra metade para a própria autora, no seguimento do pedido de prévio reconhecimento do direito ao cumprimento coercivo do contrato-promessa (execução específica) a favor dos representantes do falecido, aqueles pedidos apresentam-se como meramente consequenciais ou dependentes, constituindo como que um desenvolvimento ou consequência do pedido principal, sendo ilícito ao tribunal proceder, ele próprio, na sentença e a título oficioso, à pertinente correcção desse efeitos mediatos, sem violação dos princípios do pedido e do dispositivo.
III - O direito de crédito gerado pelo contrato-promessa transmite-se aos herdeiros sucessores do falecido promitente-comprador os quais, como titulares dos direitos e obrigações da herança e em sua representação, gozam de legitimidade substantiva e processual para o executarem forçadamente, mesmo contra outro sucessor co-herdeiro, que mantém a qualidade de devedor.
IV - O art. 2091.º do CC, ressalvando os casos declarados nos artigos anteriores, exclui do seu âmbito de previsão e aplicação, por regulada especialmente no art. 2074.º, a forma de exercício dos direitos e obrigações entre a herança e os herdeiros, atendendo à separação de patrimónios, por forma a que apenas haja lugar à resolução de conflito, mediante nomeação de curador especial, quando o cabeça-de-casal for, ele próprio, o herdeiro credor ou devedor.
V - Para efeito de admissão por acordo dos factos articulados e não impugnados, à não contradição com o conjunto do articulado da parte é assimilável a não contradição com o alegado, pela parte que eventualmente omita a impugnação, em articulado anterior, designadamente na petição inicial, de sorte que não carecerá o autor de repetir na réplica o que já deixou articulado na petição inicial.
VI - Se a declaração confessória, obtida em depoimento de parte, não foi reduzida a escrito, existindo apenas uma declaração, na acta, do julgador da 1ª Instância no sentido de que o depoente confessou a matéria do quesito, não se satisfazem as exigências legais de forma, que são condição legal de eleição da possibilidade de excepcional reapreciação desse meio de prova pelo Tribunal de revista, sendo a decisão da Relação que alterou a resposta, porque tomada em apreciação de meio de prova de livre apreciação, ao abrigo da al. a) do art. 712º-1, insusceptível de censura.
VII - O direito de retenção é um direito real de garantia das obrigações - e não um direito real de gozo - que visa garantir o crédito resultante do não cumprimento do contrato-promessa, surgindo e existindo apenas para garantia do crédito gerado por um incumprimento definitivo desse contrato.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA instaurou acção declarativa contra BB formulando os seguintes pedidos:

"a) Seja declarado o incumprimento definitivo do contrato promessa pela R. promitente vendedora por facto só a si imputável e tal falta desta suprida mediante sentença, nos termos do artigo 830° do Código Civil que efective o contrato prometido, onde a R. seja condenada a ver transferida para a herança aberta por óbito do marido da A. quanto a metade e para a própria A. quanto à sua meação a plena propriedade das fracções "BN" e "H" identificadas na pi, devendo ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da faltosa, ou, subsidiariamente se tal não for possível, ser a R, condenada nos termos do nº 2 do art. 442º do CC no pagamento da quantia pecuniária referente a diferença entre o preço fixado no contrato promessa e o actual valor dos prédios, acrescido da quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento a liquidar em execução de sentença mas nunca inferior a Eur: 282.356, 77€;

b) Seja declarado que desde Novembro de 1992 o casal formado pela A. e seu falecido marido vivem (dormem, fazem as refeições, convivem com amigos, recebem a correspondência, etc.) na fracção referida e pagam as quotas mensais do condomínio exercendo assim, sobre tais fracções e desde aquela data uma posse pública, pacifica, continuada e de boa fé, na convicção segura de que são os únicos e exclusivos possuidores desde a data referida e simultaneamente de que sobre os ditos imóveis têm o "animus" de virem a tomar-se proprietários.

c) Seja a Ré condenada a reconhecer que a A. goza do direito de retenção sobre as fracções "BN" e "H" identificadas no item 3 deste articulado".

Alegou, em resumo, ser cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, com quem foi casada no regime da comunhão de adquiridos, sendo a R. a titular inscrita do direito de propriedade dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Guimarães, prédios que, por contrato celebrado em 13 de Novembro de 1992, prometeu vender ao marido da A., pelo preço global de 11 500 000$00, do qual recebeu 11 499 000$00, ficando acordado que o remanescente do preço, no montante de 1.000$00, seria pago no acto da escritura de compra e venda, sendo que a mesma seria outorgada logo que o promitente-comprador o pretendesse; ainda antes da formalização do contrato-promessa das referidas fracções, à A. e ao seu falecido marido foram entregues as chaves e todos os pertences das fracções, tendo estes entrado na posse dos imóveis, nos quais instalaram e sempre mantiveram a sua casa de morada de família, sendo reconhecidos, por todos, como proprietários dos referidos imóveis, situação que se mantém para a A., que aí continua a residir e tratar dos mesmos como até então, agora na qualidade de cabeça de casal da herança; a A., na qualidade de cabeça de casal e para a referida herança, exigiu o cumprimento do contrato-promessa e, agendada a escritura para o dia 1 de Março de 2006, a R. recusou nela outorgar.

A Ré contestou.

Arguiu a ilegitimidade da A., por não ser mais do que cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu marido, e alegou ser possuidora, que não mera "titular inscrita" dos imóveis, que adquiriu mediante o pagamento do preço convencionado. Acrescentou que o objectivo da A., de seu marido e da Ré, ao outorgarem os documentos, foi o de, no interesse do A. e marido, anteciparem as partilhas dos bens do casal com os filhos, garantindo, através do contrato promessa - e apenas isso - o direito de, querendo e podendo, fazerem reverter a transmissão enquanto o pai da Ré fosse vivo. Certo é que a A. não vive no prédio e, de resto, a Ré não recebeu de seu pai qualquer importância nem se comprometeu com ele a transmitir-lhe a propriedade dos imóveis.

Na procedência da invocada excepção de ilegitimidade, a Ré foi absolvida da instância, por preterição de litisconsórcio necessário activo, mas, admitida a intervenção principal provocada de DD e, por via desta intervenção, considerou-se suprida a dita excepção de legitimidade.

A final, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:

“- declarar que, desde Novembro de 1992, o casal formado pela A. e seu falecido marido vivem (dormem, fazem as refeições, convivem com amigos, recebem a correspondência, etc.) na fracção referida e pagam as quotas mensais do condomínio exercendo assim, sobre tais fracções e desde aquela data uma posse pública, pacífica, continuada e de boa fé, na convicção segura de que são os únicos e exclusivos possuidores desde a data referida e simultaneamente de que sobre os ditos imóveis têm o "animus" de virem a tornar-se proprietários.

- absolver a Ré dos demais pedidos formulados".

Autora e Ré apelaram.

A Relação, conhecendo de ambos os recursos, decidiu:

(...) julgar a apelação do Réu parcialmente procedente e, em consequência:

  1. Afirma-se a personalidade judiciária e a legitimidade das partes pelo lado activo, conforme decidido na primeira instância;

  2. Julga-se improcedente o pedido formulado na ai b) da petição inicial - Seja declarado que desde Novembro de 1992 o casal formado pela A. e seu falecido marido vivem (dormem, fazem as refeições, convivem com amigos, recebem a correspondência, etc) na fracção referida e pagam as quotas mensais do condomínio exercendo assim, sobre tais fracções e desde aquela data uma posse pública, pacífica, continuada e de boa fé, na convicção segura de que são os únicos e exclusivos possuidores desde a data referida e simultaneamente de que sobre os ditos imóveis têm o "animus" de virem a tomar-se proprietários - absolvendo-se a Ré de tal pedido.

  3. Revoga-se a decisão na parte em que condenou a Ré como litigante de má-fé.

Julga-se parcialmente procedente o recurso da Autora e, em consequência:

  1. Altera-se a decisão que incidiu sobre a matéria de facto nos termos supra expostos;

  2. Substituindo-se o tribunal à Ré, declara-se transmitido a favor dos sucessores do falecido promitente comparador, a propriedade das fracções autónomas identificadas na petição inicial: - "BN" - Habitação tipo T-3, no 3° andar, entrada B-H do lado direito com terraço com a nascente com 38 m2 e terraço a poente com 22 m2 e a fracção "H" ­garagem - (conforme doc. de fls. 126 a 133), que fazem parte do prédio submetido ao regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães, sob o número 338/19900912-Azurém, fracções essas que actualmente se encontram registadas a favor da Ré pela Ap. 25, de 1992/06/15 (doc. de fls. 126 133), pelo preço estipulado no contrato promessa de fls. 25 e 26:

  3. Mais se declara que a Autora, na qualidade de sucessora de seu falecido marido, tem o direito de retenção sobre os referidos imóveis, até decisão definitiva e transitada sobre o pedido de execução específica, condenando-se a Ré a reconhecer tal direito.

  4. Revogar a sentença na parte em que condenou a Autora como litigante de má-fé”.

A Ré pede ainda revista.

Argúi nulidades do acórdão por ter conhecido de questão de que não podia conhecer e ter condenado em objecto diverso do pedido (quanto aos termos em que, julgando procedente a execução específica, atribuiu a propriedade dos bens), novamente por ter apreciado questão vedada, ao proceder à transmissão dos bens antes de depositado todo o preço, e, ainda, a mesma nulidade ao ter conhecido de causa de pedir não alegada. Pede a alteração, para "Provado", da resposta dada ao quesito 14°, ou, a não se entender assim, anulação da decisão recorrida e a baixa do processo à Relação para que seja esta a alterar essa resposta, julgando depois em conformidade, e, em qualquer dos caso, a acção improcedente.

Para tanto, argumenta nas conclusões da alegação que apresentou:

“1ª - A decisão da relação sobre a matéria de facto é irrecorrível para o Supremo (art. 729° nº 2) salvo nos casos do art. 722° nº 2 (erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais quando ocorra ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova ou fixe a força de determinado meio de prova).

2ª - Ante uma decisão da Relação que modifique a matéria de facto desrespeitando os fundamentos em que ela própria se baseia e usando factos não articulados, e fundando-se em depoimento de parte gravado (onde "ouviu" que a A. não tinha que pagar o preço devido pela promessa de venda e por isso respondeu "não provado" ao quesito, o 14° em que se perguntava se fora pago o preço, substituindo, assim, a reposta de "provado" dada pela primeira instância, que o fora em consequência da expressa confissão da A. constante da mesma gravação) o Supremo, conhecendo desse grosseiro erro pode anular a decisão, alterando a resposta para "Provado", como fez, por exemplo no Ac. de 12/3/1998 in Col. STJ VI, I, pág. pág. 124, ou optar pela solução de, exercer uma "discreta censura" sobre a decisão, anulando o Acórdão recorrido para o recurso ser de novo julgado nessa parte pelo Tribunal da Relação, como decidiu, por exemplo, no Acórdão do STJ de 12 de Janeiro de 1994, in Col. Jurisp. STJ 1994, I, 31.

3ª - De facto, estando em causa como está a resposta a um quesito - o 14° onde se perguntava se "A Ré ao invés do declarado no acordo referido em C) não recebeu de seu pai qualquer importância?" a que a primeira instância respondeu "Provado" com base na confissão expressa da A., não podia a Relação alterar essa resposta para "Não Provado": por entender que sem alegação das partes, embora o preço não tivesse sido pago, não tinha de o ser porque a Ré comprara os prédios "com dinheiro de seus pais".

4ª - De resto, tal matéria teria ter sido considerada provada porque foi afirmada pela Ré na sua contestação e essa afirmação não foi contraditada na réplica (cfr. o art. 25° da contestação e a réplica), nos termos do are. 490° nº 2 do Código de Processo Civil (cfr. o Ac. STJ de 2/7/1987, in BMJ 369,501).

5ª - Erradamente, decidiu assim o Tribunal da Relação, e esse erro é sindicável pelo tribunal de revista, por ocorrer, pelo menos manifesta desconformidade entre os factos assim fixados e aqueles que estavam alegados e em discussão, acarretando a nulidade prevista no artigo 668° n.°1 alínea d) do Código de Processo Civil, por erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, por ofensa de disposição expressa da lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 722° n.º 1 alínea c) e 3).

6ª - Sem prescindir, a A. pretende que a ela própria e à herança aberta por óbito de seu marido (herança representada por ela e 2 filhos) seja reconhecido o direito de, nos termos do art. 830° n°1 do Código Civil, adquirir determinados imóveis pertencentes à Ré, ou seja, a um dos herdeiros, e surge na acção apenas acompanhada de um dos seus filhos, contra o outro, alegando representar a herança.

7ª - Porém, a herança salvo se jacente, mesmo ao demandar um herdeiro, só pode estar representada por todos os herdeiros, devendo a decisão de demandar um herdeiro ser tomada em reunião colegial, pelo que a A. no caso, não provocou os mecanismos necessários para representa a herança, não podendo demandar a Ré (cfr. os artigos 2046° do Código Civil, o art. 6° al. c) do C. P. Civil e os artigos 1404°, 1407º e 985° do Código Civil).

8ª - Por outro lado, o pedido formulado pela A. (de ver transmitida para a herança metade dos prédios prometidos vender e para ela própria a outra metade, como se existisse uma situação de com propriedade ou como se a partilha já tivesse sido feita) é ilegal pois só podia pedir essa transmissão, se legitimada para tanto, para a herança, sendo ilegal e nula a "convolação" operada pelo acórdão recorrido (que, sem pedido, condenou na transmissão de propriedade "a favor dos sucessores do falecido promitente comprador") já que a A. só podia a transmissão para a herança de metade dos bens, nunca podendo a decisão conceder-lhe a totalidade deles, indo, pois, a condenação além do pedido.

9ª - De resto, estando alegado pela A. que fora paga apenas parte do preço convencionado, faltando pagar uma parte do preço, nunca a acção podia ter procedido sem que fosse depositada a parte do preço confessadamente devida (art. 830° nº 3 do Código Civil), embora se perceba o embaraço de determinar o depósito do preço quem entendia como noutro passo se lê que, afinal, não era devido qualquer preço ...

10ª - Sendo a causa de pedir da acção a celebração de um contrato promessa subordinado ao regime do art. 830° do Código Civil, com a quase totalidade do preço já pago, não tendo, afinal sido pago o preço (que o acórdão afirma, aliás, não ser devido) não se mostra provada uma parcela da causa de pedir (incumprimento da obrigação de outorgar a escritura, apesar do preço pago) pelo que a acção não podia proceder.

11ª - De facto, o tribunal recorrido não podia, autoritariamente substituir essa causa de pedir por outra fundada em factos não alegados e pretensamente resultantes do probatório (o preço não foi pago porque não era devido na medida em que a obrigação de o pagar ficava compensada pela obrigação da Ré de devolver o que seu pai lhe adiantara para comprar os prédios ao empreiteiro).

12ª - O acórdão recorrido não podia, ainda, como fez, reconhecer à Autora direito de retenção sobre os imóveis com o argumento utilizado de que houve tradição dos imóveis da promitente vendedora para o promitente vendedor, quando a A. alegava que a Ré nunca teve a posse dos imóveis e quando a verdade e que a A. se limitava - e limita - a detê-los.

13ª - De facto, não podia considerar-se que a A. tinha qualquer "posse", quer material, quer jurídica, sobre esses bens, porque a "posse" é unicamente relacionável com direitos reais, e, pior ainda, a partir da ideia de que as partes estabeleceram entre si aceitar uma forma de uso dos bens que correspondia à intenção de garantir a sua "detenção" pela A. pois isso equivalia a criar uma forma de limitação do direito de propriedade que a lei não contempla, violando assim os arts. 1306° e 1251 ° do Código Civil, porque tecnicamente a A. nunca poderia ser considerada possuidora de tais bens, o que não sucede com a Ré, que tem a sua posse jurídica, por os ter adquirido e registado em seu nome embora exercendo essa posse por intermédio de outrem, a A.

14ª - Na verdade, a "posse", é unicamente relacionável com direitos reais (cfr. o acórdão da Relação de Coimbra de 1/03/72, in BMJ 215, pág 296) - é um pressuposto de aquisição originária, isto é, "que se verifica independentemente da intervenção do antigo possuidor", pelo que não pode ocorrer quando se verificar tal intervenção, através da subscrição de um contrato promessa, como no caso se verifica, pelo que não podia ter-se por verificada a pretensa "posse" do "adquirente", nem a susceptibilidade de ela conduzir á aquisição por usucapião, pois aquela detenção dos bens é consequência de um acto positivo e voluntário, expresso, de consentimento das partes interessadas (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. II, pág. 124).

15ª - A consequência jurídica do facto alegado pela A de a proprietária dos bens, a Ré, ter combinado com o pai - ou até com este e com a mãe - que este - ou estes - usariam e ocupariam esses bens é que o - ou os - ocupante - ou ocupantes - mais não podem ser do que simples "detentores" dos bens, apenas ficando a exercer uma "posse em nome alheio", nunca em nome próprio, única que poderia levar à aquisição do direito, mas que continuou radicada em quem deu aquele consentimento, a A, sendo, por isso, indiferente o prazo pelo qual a detenção se verifique, e sendo mesmo indiferente o prazo de duração pelo qual o "adquirente", inicial ou sucessivo, tenha usado, ocupado ou fruído os bens em causa (cfr. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 254 e Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. pág. 57).

16ª - Nunca, o decurso do prazo por 3 ou 4 anos, de "detenção", pela A cabeça de casal, podia somar-se à "posse" dita do seu falecido marido, por 20 ou 200 anos que fosse, porque essa forma de sucessão, nem podia verificar-se nos termos do artigo 1255°, nem nos termos do artigo 1256°, o que significa que a transmissão da "posse" do pai da Ré para a A não era admissível legalmente, porque aqueles normativos só a admitem quando as posses inicial e subsequente têm a mesma natureza e são homogéneas, o que, no caso, e atenta aquela diferença, se não verificava (cfr. o acórdão do STJ de 6 de Julho de 1976, in BMJ, 259, 227).

17ª - Do contrato promessa ajuizado, se com "tradição", só podia resultar "posse" subsequente á detenção se tivesse ocorrido "inversão de posse", o que sempre seria incompatível com o propósito da A de exigir à Ré o cumprimento do articulado no contrato promessa, pois, se ela detém os bens, por força de um contrato promessa, e sabe o alcance deste, jamais pode detê-los com "animus rem sibi habendi".”

A Recorrida respondeu, em defesa do julgado.

         O Tribunal da Relação não reconheceu a comissão das nulidades arguidas pela Recorrente.

         2. - Das conclusões transcritas, emergem, para apreciação, segundo a ordem proposta pelo art. 660º-1 do CPC, as seguintes questões:

         - Nulidades do acórdão por excesso de pronúncia - três -  e por condenação em objecto diverso do pedido;

        

         - Personalidade judiciária da herança e sua representação;

         - Modificação da Matéria de facto; e,

         - Reconhecimento do direito de retenção.

3. - Os factos que fundamentaram as decisões proferidas no acórdão recorrido, após a alteração por ele introduzida, são os seguintes:

 

a) Existe um prédio submetido ao regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº 338/19900912-Azurém, que integra, entre outras, as seguintes fracções autónomas: - "BN" - Habitação tipo T­3, no 3º andar, entrada B-H do lado direito - terraço com a nascente com 38 m2 e terraço a poente 22 m2 - pertence-lhe a garagem nº 5 na cave; - "H" - garagem nº 27 na cave (doc. de fls. 126 a 133).

b) As fracções identificadas em A) encontram-se registadas a favor da Ré pela Ap. 25 de 1992/06/15;

c) Por escrito datado de 13 de Novembro de 1992, assinado pela Ré e por CC: - a primeira declarou ser possuidora das fracções identificadas em A) e prometê-las vender ao segundo - ou a pessoa ou pessoas que o mesmo viesse a designar -, completamente livres e desembaraçadas de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço global de Esc. 11.500.000$00 - sendo Esc. 10.000.000$00 do andar e Esc. 1.500.000$00 da garagem -do qual recebera a quantia de Esc. 11.499.000$00 e que o restante seria pago no acto da escritura a outorgar na Secretaria Notarial de Guimarães logo que o segundo o desejasse, bastando o envio de um simples postal registado com a antecedência mínima de dez dias em relação à data aprazada para a sua outorga; - o segundo declarou aceitar (doc. de fls. 24 e 25).

d) No escrito referido em C) os outorgantes declararam ainda que "se adstringem as estipulações deste contrato e que atribuem as suas declarações dele constantes a eficácia do cumprimento específico prevista no artigo 830º do Código Civil";

e) Por escritura pública celebrada no segundo Cartório Notarial de Guimarães a 15 de Dezembro de 2003 a Autora, invocando a qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC declarou que este faleceu no dia 7 de Novembro de 2003 no estado de casado com ela outorgante em primeiras núpcias de ambos e sob o regime de comunhão de adquiridos, não tendo feito testamento nem qualquer outra disposição de última vontade tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros a sua referida mulher e dois filhos BB e DD, não havendo outras pessoas que, segundo a lei, lhes prefiram ou com eles possam concorrer (doc. de fls. 19 a 21);

t) Em 15 de Fevereiro de 2006, a Autora requereu no Tribunal Judicial de Guimarães notificação judicial avulsa da Ré e do interveniente invocando a qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC e, entre outros, o acordo referido em C) e alegando pretender celebrar as correspondentes escrituras de compra e venda e a herança efectuar o pagamento da parte restante do preço em dívida aos promitentes vendedores comunicou que marcara a outorga das escrituras para o dia 1 de Março de 2006 pelas 10h00 no Cartório Notarial do Notário Carlos Manuel Forte Ribeiro Tavares sito na Avenida de Londres, Bloco 1C, F na freguesia de Creixomil, concelho de Guimarães (doc. de fls. 58 a 68);

g) - A Ré foi notificada do referido em F) a 20 de Fevereiro de 2006;

h) - O interveniente principal foi notificado do referido em F) a 20 de Fevereiro de 2006;

i) - Em 1 de Março de 2006 o Notário Carlos Manuel Forte Ribeiro Tavares certificou que nessa dia pelas 10 horas compareceram no seu Cartório a Ré, seu marido - que outorgava para dar consentimento à venda de uma fracção que constituía a casa de morada de família -, a Autora e o interveniente principal, a primeira na qualidade de vendedora, a primeira, a segunda e o terceiro na qualidade de únicos herdeiros da herança aberta por óbito de CC, herança essa que outorgava na qualidade de compradora numa escritura de compra e venda que tinha por objecto, entre outros, a transmissão das fracções "BN" e "H" identificadas em A), respectivamente pelo preço de € 49.879,78 e € 7.481,97 e que segundo declaração da Autora:

- a referida venda destinava-se a cumprir contratos promessa de compra e venda, pelo que do preço global de € 274.538,34 já se encontrava paga na data do óbito do autor da herança a quantia de € 274.528,34, devendo ser paga naquela data o remanescente do preço no montante de € 10;

- a referida escritura de compra e venda havia sido marcada naquele Cartório e dia pelas 10 horas não se tendo realizado pelo facto de os outorgantes BB e DD terem afirmado que a herança não se encontrava devidamente representada e, ainda que assim não se entendesse, que o negócio jurídico previsto na minuta de escritura pública de compra e venda que lhes foi apresentada não correspondia ao negócio acordado entre as partes" (doc. de fls. 72 a 82).

j) À Autora e ao seu marido foram entregues as chaves e todos os pertences das fracções;

k) Desde então mobilaram a habitação, fizeram melhoramentos e obras que entenderam, designadamente, alterações às divisões, acabamentos, pagaram todas as despesas, contribuições e impostos relativos a tais imóveis;

l) Ali tomaram refeições, pernoitaram, conviveram com amigos e familiares, receberam visitas e correspondência, cuidaram da manutenção e limpeza;

m) À vista de toda a gente;

n) Sem a oposição de quem quer que fosse;

o) Trataram tais imóveis como seus;

p) Essa situação manteve-se para o marido da Autora até à sua morte;

q) A Autora continua a aí residir e a usá-los nos mesmos termos e condições referidos nas alíneas k) a o);

r) Suporta agora todas as despesas inerentes aos imóveis;

s) O acordo referido em C) e D) destinava-se a garantir que a transmissão fosse revertida;

         - Eliminado pelo Tribunal da Relação: “t) A R., ao invés do declarado no acordo referido em C), não recebeu do seu pai qualquer importância”.

         4. - Mérito do recurso.

            4. 1. - Nulidades do acórdão.

         4. 1. 1. - Excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso do pedido (Conclusão 8ª e ponto “1. PRIMEIRA NULIDADE” das alegações).

         A Recorrente argúi a nulidade da decisão por o Tribunal ter julgado questão de que não podia conhecer e condenado em objecto diverso do pedido – alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 668º CPC - ao “declarar transmitida a favor dos sucessores do falecido promitente-comprador a propriedade das fracções” quando no pedido formulado se peticionava a condenação da Ré a ver transferida para a herança aberta por óbito do marido da A. quanto a metade e para a própria A. quanto à sua meação a plena propriedade”.

         Ao assim decidir, argumenta, “quanto ao pretenso direito da herança o acórdão dá mais do que o que foi pedido; quanto aos beneficiários dá a quem se não pedia, pelo menos em parte, porque se atribui tudo à herança e nada à Autora que pedia, embora ilegalmente, metade”, sendo ilegal a “convolação” efectuada.

       

         A relação entre o pedido formulado pela Autora na petição inicial, na qualidade de sucessora e cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do promitente-comprador, e o conteúdo da decisão que sobre ele veio a recair é a que, reconhecendo o exercitado direito de execução específica do contrato, mediante substituição do tribunal à declaração do contraente faltoso, se deixou transcrita.

  

            Em causa estão vícios formais do acórdão atinentes aos respectivos limites de conhecimento, ora por excesso de pronúncia, ora por pronúncia ultra petitum, na modalidade de objecto diferente do especificado pela parte.

         O excesso de pronúncia – art. 668º-1-d) – é nulidade que ocorre quando, em violação do disposto na 2ª parte do n.º 2 do art. 660º CPC, o julgador aprecie questões que as partes não tenham suscitado, isto é, de questão cuja apreciação as partes não tenham configurado nas causas de pedir ou nas excepções deduzidas.

         A expressão “questão” deve ser entendida em “sentido amplo” não abrangendo apenas o pedido, propriamente dito, mas tudo o que respeite à resolução da controvérsia que as partes suscitem sobre a procedência ou improcedência da cauda de pedir e das excepções, envolvendo, enfim, todos esses elementos (cfr. ANSELMO DE CASTRO, “Lições de Processo Civil”, III, 1966, 234; A. DOS REIS, “CPC, Anotado”, V, 58).

            A nulidade cominada na al. e) do citado art. 668º, por sua vez, é a sanção para o desrespeito pela norma do n.º 1 do art. 661º que expressamente proíbe a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

         O pedido é, como o define a lei, o efeito jurídico que se pretende obter com a causa – art. 498º-3 CPC -, balizando o campo de apreciação do tribunal na prossecução da solução do litígio, como exigido pelas ditas normas dos arts. 661º-1 e 668º-1-e).

         Relevante, na determinação do objecto do pedido – englobando o seu objecto imediato e mediato, ou seja, a forma de tutela jurídica e a sua consequência jurídica material -, será o conhecimento do efeito prático, que não do mero efeito jurídico, que a parte pretende alcançar, para além da qualificação jurídica que dá à pretensão (vd. ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., I, reimp., 1970, 354).

                    As nulidades arguidas residiriam na declaração de transmissão dos bens prometidos vender pela Ré “a favor dos sucessores do falecido promitente-comprador”, na totalidade, em vez de como vertido no pedido, a declaração dessa transmissão estar limitada a metade para a herança e metade para a A., como cônjuge meeiro.

         De notar, antes de mais, que, no seguimento da invocação da excepção dilatória da ilegitimidade da A., como representante da herança, foi decidido no despacho saneador, com a definitividade inerente ao trânsito em julgado, que a posição activa no processo impunha litisconsórcio necessário, traduzido na intervenção de todos os herdeiros, conforme o disposto no art. 2091º C. Civil, ressalvada, naturalmente, a da R. por já ocupar o lado passivo na causa.

        

O efeito jurídico típico da acção é, conforme estabelece a norma de direito substantivo que reconhece o direito (art. 830º-1 C. Civil), a obtenção de sentença que produza os efeitos da declaração negocial do contraente faltoso, em execução específica ou forçada da obrigação de celebrar o contrato, gerada pelo contrato-promessa, ou seja, no caso, sentença em que o juiz, substituindo-se ao contraente incumpridor, declare vendidos a quem encabece a titularidade dos direitos do promitente-comprador os bens que constituem o objecto mediato do contrato-promessa.

         Vale isto por dizer que o objecto do pedido é, necessariamente, fazer cumprir a obrigação de celebrar o contrato prometido com o contraente fiel, mediante a substituição do tribunal ao contraente inadimplente na emissão da declaração negocial em falta.

         Esta declaração tem, porém, um conteúdo e âmbito pré-definidos, que hão-de corresponder, naturalmente, ao das obrigações livremente assumidas no contrato-promessa cuja execução forçada se peticiona. Ao que aqui importa relevar, os sujeitos de direitos e obrigações do contrato prometido hão-de determinar-se pelo contido no contrato-promessa que fez nascer a obrigação exequenda.

        

         O direito de acção/legitimidade substantiva da execução específica cabe, em princípio, ao outorgante do contrato-promessa que se confronta com a falta de cumprimento espontâneo da outra parte, em quem se radica a legitimidade passiva.

         Estando, como estamos, perante um direito de natureza obrigacional, nas relações credor/devedor, ocorrendo o decesso de um dos promitentes, a titularidade do direito de acção e substantivo radica-se em quem lhe suceder no crédito ou no débito, enquanto credor ou devedor em mora.

         No caso, o direito de crédito gerado pelo contrato-promessa transmitiu-se aos herdeiros sucessores do falecido promitente-comprador os quais, como titulares dos direitos e obrigações da herança e em sua representação, gozam de legitimidade substantiva e processual para o executarem forçadamente, mesmo contra outro sucessor co-herdeiro, que mantém a qualidade de devedor.

         Com efeito, constituindo a herança um património autónomo, separado do dos herdeiros do de cujus, é princípio geral do regime das obrigações a inexistência de confusão entre os créditos e as dívidas desse património com o dos herdeiros (art. 872º C. Civil).

         Reforçando especificamente a regra da manutenção da separação dos patrimónios do herdeiro e do autor da herança, o art. 2074º C. Civil expressamente estabelece, em seu n.º 1, que “o herdeiro conserva, em relação à herança, até à sua integral liquidação e partilha, todos os direitos e obrigações que tinha para com o falecido, à excepção dos que se extinguem por efeito da morte deste”.

         Assim sendo, requerida a execução específica, se verificados os respectivos pressupostos, o que o tribunal tem de declarar é a alienação forçada, por via da substituição ao contraente em mora, a quem sucedeu nesse mesmo direito de crédito do falecido, nos termos em que este deles era titular, impondo o cumprimento ao devedor também nos exactos termos em que este se encontrava vinculado perante o falecido.

         É este o efeito jurídico e prático próprio da acção, o seu efectivo “elemento individualizador”, e que, por isso, até pela sua natureza de cumprimento forçado do contrato celebrado entre as partes, não pode deixar de ser o pretendido pelo autor, o qual, por sua vez, não pode deixar de ser o sujeito beneficiário da prestação especificada no contrato-promessa.

         Ora, como se estatui no art. 664º CPC, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, embora só possa servir-se dos factos por elas articulados, sem prejuízo do da oficiosidade permitida pelo art. 264º.

         Assim, desde que respeite a causa de pedir, o juiz é livre na aplicação do direito, designadamente no que respeita aos efeitos e consequência jurídicas das normas aplicáveis.

         No caso, o efeito prático-jurídico pretendido com a acção é, sem qualquer dúvida, a prestação forçada do facto convencionado no contrato dado à execução celebrado entre a Ré-recorrente e o falecido, ora substituído pelos seus sucessores.

         Tratar-se-á, então, tão só, de determinar aqueles que, legal ou contratualmente (sendo caso disso), passaram a ocupar a posição jurídica do primitivo contraente, actividade que obedece a critério juridicamente controlado, de harmonia com as normas da sucessão legítima e da habilitação, oficiosamente imposta ao julgador que, de resto, logo a apreciou e fixou em sede de apreciação da legitimidade

         Nesta conformidade, ao deferir a transmissão dos bens que constituem o objecto mediato do contrato-promessa aos sucessores do falecido, titulares do património autónomo que constitui a sua herança, a decisão não cometeu o arguido excesso de pronúncia, limitando-se a deferir, de harmonia com a lei e o contrato exequendo, o direito exercitado aos respectivos beneficiários, questão que não se vê como pudesse deixar de conhecer, em linha, insiste-se, com a decisão sobre o pressuposto legitimidade, proferida no despacho saneador.       

                     

         E também, se bem vemos, não foi proferida decisão incidindo sobre objecto diverso do pedido.

         Com efeito, ao reconhecer o direito à execução específica, isto é, ao cumprimento coercivo da prestação que constituía o crédito do falecido, agora transmitido para os seus herdeiros, o tribunal não poderia cindir a prestação cujo cumprimento impunha, ao substituir-se à devedora. Ou declarava a exequibilidade total da prestação de facto ou a indeferia na totalidade, pois que, não resultando do contrato-promessa nem dos pedidos formulados na acção qualquer manifestação de vontade de cumprimento parcial da prestação do facto, a situação configura-se como de infungibilidade jurídica. 

         O direito de crédito integra, como se viu, a herança. Por isso, não poderia, como também se entendeu, deixar de lhe ser atribuída a prestação que o integra a fim de, conjuntamente com os demais bens, ser objecto da pertinente partilha.

         A circunstância de a Autora-recorrida ter pedido a transferência para si própria de metade da propriedade dos bens, como cônjuge meeiro, pretensão a entroncar, possivelmente, no entendimento de estar a exercer direito de natureza diferente da exigência de cumprimento coercivo de um direito de crédito, como objecto remotamente mediato do pedido, desde logo por pressupor pressupostos de direitos referentes a uma partilha que nem sequer haviam sido articulados, era pretensão que, por infundada, tinha necessariamente de improceder.

         Por via da aludida unidade da prestação cujo realização se pretendia suprida mediante sentença, nos termos do artigo 830° do Código Civil que efective o contrato prometido”, o direito só poderia, como também adiantado, ser deferido aos herdeiros para integrar, na totalidade, o património da herança.

       

A peticionada declaração judicial de transferência de metade dos imóveis para a herança e da outra metade para a própria A. é “meramente consequencial” do prévio reconhecimento do direito ao cumprimento coercivo do contrato a favor dos representantes do falecido, o que significa que esse pedido consequencial se apresenta como um pedido dependente, constituindo, poderá dizer-se, um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo parcialmente infundado, sendo ilícito ao tribunal proceder, ele próprio, na sentença e a título oficioso, à pertinente correcção desse efeito, sem violação dos princípios do pedido (ac. STJ, de 11/5/2009, proc. 309/1999.C1.S1)

Como se escreveu no acórdão deste Tribunal de 03/02/2011 (proc. 823/06.7TBLLE.E1.S1), considerações a que se adere, “embora se trate de matéria menos linear e mais controversa do que a simples – e corrente - alteração da qualificação jurídica da factualidade integradora da causa de pedir, tem sido admitido, com fundamento numa visão funcional e menos rigidificante do processo, que, em certos casos, possa o tribunal corrigir e adequar, quer a pretensão material, reconfigurando no plano normativo o efeito jurídico pretendido pelos litigantes, quer as próprias pretensões adjectivas formuladas pelas partes convolando da configuração jurídica que os litigantes lhes haviam erroneamente atribuído para a que se mostra adequada à realidade normativa (veja-se, de forma paradigmática, o acórdão uniformizador 2/10, estendendo o tradicional regime do «erro na forma do processo» ao suprimento da forma incorrecta que revestiu a impugnação deduzida pela parte, convertendo, em consequência, o inadmissível requerimento de interposição de recurso de decisão do relator na reclamação para a conferência prevista no nº3 do art. 700º do CPC).

Neste último tipo de situações, o que normalmente se pretenderá através da convolação e correcção realizadas pelo tribunal é evitar a sujeição da parte a um gravoso – e, porventura, desproporcionado - efeito preclusivo, que inelutavelmente decorreria do erro cometido acerco do âmbito dos meios procedimentais utilizados, não sendo já possível à parte, pelo jogo dos prazos peremptórios que a oneravam, fazer uso do meio procedimental próprio, no momento em que ficasse assente a impropriedade do meio processual erroneamente utilizado.

Por sua vez, no primeiro grupo de situações, consubstanciadas no correcção da qualificação ou «coloração» jurídica dada à pretensão material, o que, no essencial, se pretende evitar com a convolação operada é, no plano da celeridade e da eficácia processuais, dispensar a propositura de uma nova acção, em que apenas fosse corrigido pelo autor o modo como este havia configurado normativamente o efeito jurídico extraído dos mesmos factos: sendo naturalmente admissível a propositura de uma acção nova em que, apesar de fundada exactamente nos mesmos factos, se deduzisse um pedido diferente (art. 498º do CC), a repetição do litígio envolveria um desproporcionado esforço de alegação de factos e de prova dos mesmos, quando o que, afinal, estava em causa era apenas a reconfiguração – no estrito plano normativo - da via jurídica através da qual se pretendia alcançar o reconhecimento do direito a determinados bens”       

         Assim sendo, a condenação em objecto diverso do pedido será meramente aparente, por isso que resulta, a um tempo, da (incontornável) improcedência do pedido que a A. formulou para si própria e - como decorre da interpretação da vontade expressa pela Autora [de efectivação do contrato prometido], bem compreendida pela Ré e pelo Tribunal, vinculado a uma interpretação do pedido não meramente literal ou empírica, com desprezo da vertente normativa - do peticionado cumprimento integral da prestação prometida, que só pode ser efectuada perante os herdeiros/sucessores do falecido, como titulares dos seus créditos.

         Não se reconhece, portanto, a comissão da nulidade.

         4. 1. 2. - Excesso de pronúncia, por se admitir a transmissão dos bens sem previamente estar paga a totalidade do preço (Conclusão 9ª e ponto “2.SEGUNDA NULIDADE” das alegações).

A Recorrente imputa ao acórdão a nulidade de se ter pronunciado sobre questão que não poderia conhecer ao apreciar a transmissão da propriedade dos bens sem que estivesse depositado ou pago todo o preço.

       

         Como no posto anterior se deixou dito, a nulidade tipificada na al. d) do n.º 1 do art. 668º é a sanção para o vício formal da decisão atinente aos respectivos limites de conhecimento.

         O excesso de pronúncia é nulidade que ocorre quando, em violação do disposto na 2ª parte do n.º 2 do art. 660º CPC, o julgador aprecie questões que as partes não tenham suscitado, isto é, de questão cuja apreciação as partes não tenham configurado nas causas de pedir ou nas excepções deduzidas, devendo a expressão “questão” ser entendida no sentido amplo definido.

         Antes de mais, deve notar-se que, lida e relida a contestação oferecida pela Ré, em parte alguma se detecta a menor referência, explícita ou implícita, à falta de pagamento do valor residual do preço como obstáculo à emissão de declaração judicial substitutiva da declaração negocial da contraente faltosa.

         O mesmo sucede quando se analisem as alegações da Ré no recurso de apelação. O silêncio sobre a questão é absoluto.

         Ora, a consignação em depósito da prestação relativa ao contrato prometido não integra os elementos constitutivos do direito à execução específica que, repete-se, é o direito à celebração forçada do contrato prometido, nos termos em que esse direito foi voluntariamente convencionado no contrato-promessa.

         A consignação em depósito do preço não é mais que uma condição ou pressuposto de procedência da acção, nos termos previstos no n.º 5 do art. 830º C. Civil, isto é, quando a lei, mediante invocação fundada da excepção de não cumprimento, faça depender o reconhecimento do direito exercitado da prática desse acto.

Assim, essa consignação assume a natureza de requisito de procedência no caso de ao demandado gozar da faculdade de invocar e, exercitando esse direito, efectivamente invoque a exceptio, não revestindo, portanto, questão de intervenção oficiosa do Tribunal, a substituir-se à Parte a quem interessa a oposição da excepção de direito material (cfr. sobre o ponto, ANA PRATA, “O Contrato-Promessa e o seu Regime Legal”, 1999, pg. 974; CALVÃO DA SILVA, “Sinal e Contrato Promessa”, 12ª ed., 172).  

        

         Estamos, portanto, não só perante uma questão totalmente nova infundada, por isso que a Recorrente nada alegou, no momento e lugar próprios, sobre o direito e pretensão de excepcionar o não cumprimento de modo a provocar a consignação em depósito do valor ainda não pago, prazo a fixar pelo Tribunal, como previsto no mencionado art. 830º-5, como perante questão que, nos termos em que foi suscitada, não integra qualquer vício formal do acórdão, designadamente o que, como excesso de pronúncia, se encontra tipificado na al. d) do art. 668º-1, mas questão de mérito, a integrar, se fosse caso disso – e, como se viu, não será -, erro de julgamento.

         Improcede, também, a arguição da “segunda nulidade”.

            4. 1. 3. - Excesso de pronúncia, por indevida substituição da causa de pedir alegada por outra fundada em factos não alegados (Conclusões 10ª e 11º e ponto “3.TERCEIRA NULIDADE” das alegações).

Argumenta a Recorrente que “sendo a causa de pedir da acção a celebração de um contrato promessa subordinado ao regime do art. 830° do Código Civil, com a quase totalidade do preço já pago, não tendo, afinal sido pago o preço (…) não se mostra provada uma parcela da causa de pedir (incumprimento da obrigação de outorgar a escritura, apesar do preço pago) pelo que a acção não podia proceder”, não podendo o Tribunal “substituir essa causa de pedir por outra fundada em factos não alegados e pretensamente resultantes do probatório”.

A resposta arguição desta nova nulidade por excesso de pronúncia decorre directamente das considerações expendidas no ponto anterior a propósito da invocação de idêntico vício aí tratada.

Repõe-se, para o efeito, a afirmação de que o pagamento ou depósito da totalidade do preço, que é prestação relativa ao contrato prometido e não ao contrato-promessa cujo cumprimento coercivo é requerido, não pode ser considerado “um elemento constitutivo do direito invocado” pelo autor, direito este que se traduz apenas no direito à celebração do contrato prometido, com fonte no contrato-promessa, por incumprimento tempestivo (mora) e voluntário do obrigado (Autora e Ob. cit., aludindo ao ac. STJ, de 21-02-1989, in BMJ 384º-611).

Vale isto por dizer que, não sendo tal elemento constitutivo do direito, também não integra a causa de pedir, de sorte que se apresenta como irrelevante quanto à procedência da acção se e quando a parte interessada não accione o direito potestativo que lhe é conferido pelo n.º 5 do art. 830º.    

Mais uma vez, a conformação com que se apresenta a comissão do vício não integra a nominada nulidade – vício formal tipificado - do acórdão.

4. 2. - Falta de personalidade judiciária e representação da herança (Conclusões 6ª e 7ª e ponto 4.1 das alegações).

A Recorrente sustenta que “a acção está votada ao fracasso, porque a herança não está representada, são partes ilegítimas os dois membros que pretensamente a representam, e não tem personalidade judiciária”, pois que “a herança, salvo se jacente, só pode estar representada por todos os herdeiros, devendo a decisão de demandar um herdeiro ser tomada em reunião colegial”, como resulta do darts. 2046º, 1404º, 1407º e 85º, todos do C. Civil e 6º-c) do CPC.isposto nos

A legitimidade das Partes está afirmada por decisão oportunamente proferida, transitada em julgado. A Autora, a Ré e o Interveniente gozam da legitimidade ad causam.

Certo que, como diz a Recorrente, a herança, salvo se jacente – excepção ao princípio da coincidência entre a personalidade jurídica e a judiciária destinada a possibilitar a tutela judicial de interesses do património autónomo cujos titulares não estão ainda determinados -, não goza de personalidade judiciária. 

Só que, diferentemente do que a Recorrente repete [confessadamente “ad nauseam”], não será por a herança não ter personalidade judiciária e não ter havido deliberação de todos os herdeiros com vista à instauração da acção, que o direito não pode ser exercitado, naufragando a pretensão formulada.

O objecto da causa é, como já se deixou afirmado, o exercício do direito ao «crédito» da execução específica.

Não estão em apreciação na lide, ao menos a nosso ver, como pressupõe a Recorrente direitos relativos a bens indivisos e respectivas quotas assimiláveis aos direitos dos comproprietários ou dos herdeiros sobre os bens que integram a herança (arts. 1404º e 1407º C. Civil).

Também por isso, como já se deixou dito no ponto 3. 1. 1. desta peça, o direito de acção/legitimidade substantiva da execução específica que cabia ao outorgante do contrato-promessa que se confronta com a falta de cumprimento espontâneo da outra parte, consistente na exigência da prestação direito de natureza obrigacional, radica-se, em caso de morte, em quem lhe suceder no crédito ou no débito, enquanto credor ou devedor em mora.

         No caso, o direito de crédito gerado pelo contrato-promessa transmitiu-se aos herdeiros sucessores do falecido promitente-comprador, os quais, como titulares dos direitos e obrigações da herança que, repete-se, em sua representação, gozam de legitimidade substantiva e processual para o executarem forçadamente, mesmo contra outro sucessor co-herdeiro, que mantém a qualidade de devedor.

         O problema que a Recorrente agora coloca, e cuja resolução propõe com recurso às normas da compropriedade e dos direitos sociais (art. 985º C. Civil), encontra-se, como também já acima aflorado, directamente resolvido na lei, por via do dito art. 2074º C. Civil, em cujo n.º 1 se estatui que o herdeiro conserva, em relação à herança, até à sua integral liquidação e partilha, todos os direitos e obrigações que tinha para com o falecido, à excepção dos que se extinguem por efeito da morte deste, para logo acrescentar o n.º 3 que se houver necessidade de fazer valer em juízo os direito e obrigações do herdeiro, e este for o cabeça de casal, será nomeado à herança, para esse fim, um curador especial.

Situamo-nos, assim, num dos casos que o art. 2091º - também diversamente do entendimento manifestado pela Recorrente -, ressalvando os casos declarados nos artigos anteriores, exclui do seu âmbito de previsão e aplicação, regulando especialmente o art. 2074º a forma de exercício dos direitos e obrigações entre a herança e os herdeiros, atendendo à separação de patrimónios , por forma a que apenas haja lugar à resolução de conflito, mediante nomeação de curador especial, quando o cabeça-de-casal for, ele próprio, o herdeiro credor ou devedor, o que, na situação ajuizada não sucede por estar em lide a cobrança o exercício de um direito de crédito da herança (do falecido) contra um herdeiro que não é cabeça-de-casal.

Infundada e irrelevante, assim, face ao especial regime legal convocado, a nova versão fundante da arguida ilegitimidade, conjugadamente ou não com a falta de personalidade judiciária da herança, que não figura como autora na acção.

Por isso, ainda que por fundamentos não coincidentes com os invocados no acórdão impugnado, reafirma-se o concurso dos pressupostos processuais, designadamente quanto à personalidade judiciária e jurídica, bem como à legitimidade das Partes e à regularidade da representação.

  4. 3. - Modificação da matéria de facto (Conclusões 1ª a 5ª e ponto 4.2 da alegação).

A Recorrente discorda do modo como foi julgada a matéria de facto pela Relação ao alterar de “provado” para “não provado” a resposta ao quesito 14º.

Alega que do processo constam todos os elementos necessários para decidir, com absoluta certeza, em sentido divergente da decisão recorrida.

Assim, argumenta, o facto perguntado deveria ter sido logo considerado provado por a Ré, como excepção a que a Autora não respondeu ter alegado na contestação que “não recebeu de seu pai qualquer importância (preço)”, mas apesar da elaboração do quesito, o conteúdo do mesmo resultou provado, por confissão, conforme declarado no despacho que decidiu a matéria de facto e indicou a respectiva fundamentação.

No quesito, cuja formulação foi efectuada no decurso da audiência de discussão e julgamento, e acabou por ser admitido e mantido pelo acórdão impugnado, perguntava-se se “A Ré, ao invés do declarado no acordo referido em C) – o contrato-promessa -, não recebeu de seu pai qualquer importância”.   

 Na 1ª Instância obteve resposta afirmativa, tendo o julgador declarado que a resposta “assentou no depoimento de parte da A., que confessou … integralmente a matéria vertida no quesito 14º, nos termos que da ata de audiência de julgamento constam”, sendo que da acta se fez constar que “do depoimento de parte da A. resultou uma confissão da matéria … do art.º 14º, na sua totalidade”.

 No recurso de apelação, a Autora impugnou, por inadmissibilidade legal, a formulação do quesito e a respectiva resposta, questões que viu respectivamente, indeferida e acolhida.
Fundamentando a alteração da resposta escreveu-se no acórdão: “Ora, como já adiantámos anteriormente, tal declaração confessória plasmada no documento (declaração de recebimento do preço, pela Ré, constante do contrato-promessa), num dos entendimentos jurídicos possíveis, pode coexistir com um princípio de prova - documental ou outra, v.g., também confessória - que legitime o recurso à prova testemunhal.

No caso, esse princípio de prova poderia ser o depoimento da Autora, caso esta tenha admitido a matéria de facto constante da resposta ao quesito 14.°.

Porém, ouvida a gravação de tal depoimento, não se vislumbra confissão de tal facto.
Pelo contrário, resulta claramente do depoimento da Autora, que a Ré pagou o preço do apartamento objecto do contrato promessa, com dinheiro do casal constituído por seus pais, tanto mais que à data tinha 19 anos e não tinha dinheiro. O preço foi pago ao vendedor (o empreiteiro) em nome da filha, pelo que, confirmou, a instância do seu mandatário, que a declaração confessória de quitação constante do contrato promessa, significa que, com o pagamento efectuado ao empreiteiro/devedor, ficou paga à Ré a quantia ali referida. E, mais, esta compra e venda que a Ré outorgou como compradora, esclareceu a Autora, foi celebrada na mesma altura da celebração do contrato promessa de compra e venda do dito apartamento por seu falecido marido para garantir a recolocação do mesmo no seu património.
Aliás, seria paradoxal pretender a Ré, promitente vendedora, não cumprir um contrato promessa de um imóvel que comprou com dinheiro de seus pais, precisamente com o argumento de que nada recebeu a título de sinal ou princípio de pagamento.

Assim e em nosso entender, afigura-se que não existe qualquer confissão ou outro qualquer documento que possa concorrer com a analisada prova documental já analisada (contrato escrito de fls 24 e 25) de modo a infirmar o seu valor probatório e a permitir a produção de prova testemunhal da qual também não resulta, muito pelo contrário, a prova do facto constante do quesito 14.°. Pelo que, concluímos, tal documento faz prova plena do facto contido na declaração confessória da Ré no sentido de dar quitação do recebimento, pelo promitente vendedor, da dita quantia”.

Suscita a Recorrente uma questão de reapreciação da matéria de facto e das provas no tocante à actuação da Relação que, no uso dos poderes de alteração da matéria de facto, que lhe são concedidos pelo art. 712º-1-a) CPC, modificou a resposta ao ponto 14º da Base Instrutória.

Considera incorrectamente fixada e julgada a matéria de facto, fundando a revista em erro na apreciação a prova e na fixação dos factos materiais da causa, a revelar-se por erro na resposta.

Como expressamente se estabelece no n.º 3 do art. 722º CPC, condições sempre exigidas para a admissibilidade do recurso de revista são a violação de disposição legal impositiva de certo meio específico de prova para a existência de qualquer facto ou a que esteja fixada especial força probatória, sem o concurso das quais o erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto não pode ser objecto de recurso de revista. 

          

 Fundando a Recorrente, como funda, a sua pretensão na existência de confissão da Autora e respectivas consequências, está em causa a aplicação de direito probatório material e respectiva força probatória, cabendo, nessa medida, o objecto do recurso na previsão de excepcionalidade do citado n.º 3 do art. 722º.

Alega a Recorrente que, tendo articulado na contestação que “não recebeu de seu pai qualquer importância” e não tendo a A. impugnado, na réplica, essa afirmação, deduziu uma excepção (não recebeu de seu pai qualquer importância por conta do contrato-promessa) à qual a A. não respondeu donde que devia ter sido logo dada como provada aquela matéria, conforme prescrito no art. 490º-2 CPC.

Efectivamente, deduzida pelo réu, na contestação, alguma excepção, impende sobre o autor o ónus de lhe responder, sendo que a falta de impugnação dos novos factos alegados implica considerarem-se esses factos admitidos por acordo, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito – arts. 505º e 490º-2 CPC.

Acontece, porém, que não se vê como qualificar como matéria de excepção, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 487º-2 e 505º, ambos do CPC, a mera afirmação, a terminar o articulado contestação, de que “de resto, a Ré não recebeu de seu pai qualquer importância - que aliás não tinha – nem se comprometeu com ele a transmitir-lhe a propriedade dos imóveis” face ao alegado na parte transcrita do art. 5º da p.i..

Na verdade, o conteúdo do art. 38º da contestação não passa de defesa directa, contradizendo frontalmente um dos factos invocados pela A. como constitutivos do seu direito e do efeito visado com a acção, nele não se detectando, como defesa indirecta - em que a R. não nega o facto de que A. faz assentar o direito que exercita, mas lhe opõe outros factos que tendem a retirar-lhe o efeito pretendido, ora obstando à sua produção total ou parcialmente (factos impeditivos ou modificativos), ora tendo feio cessar o direito accionado (factos extintivos) -, a finalidade e potencialidade de se erguer como causa impeditiva, modificativa ou extintiva do facto constitutivo alegado pela A., se demonstrado.

Está-se, pois, não perante matéria de excepção, mas perante a negação de facto articulado pela Autora como constitutivo do seu direito, como, de resto, contraditoriamente com o que ora sustenta, foi considerada pela própria Ré ao incluí-la no título “POR IMPUGNAÇÃO”, após a arguição das excepções sob a correspondente epígrafe (“POR EXCEPÇÃO”).

    

De qualquer modo, contrariamente ao que a Recorrente afirma, a A. tomou posição sobre a afirmação da mencionada alegação da Ré, constante do art. 38º da contestação, impugnando-a com expressa referência a esse artigo da defesa e classificando-a de não verdadeira ou desprovida do sentido e alcance pretendido pela Ré, impugnação que, à luz da alegação vertida no art. 5º da petição inicial, segundo a qual “no âmbito do contrato-promessa a R., na qualidade de promitente vendedora, recebeu a quase totalidade do preço, no valor de 11 499.000$00, de que deu a correspondente quitação”, dada a sua natural inconciliabilidade, por manifesta oposição, com o alegado pela Ré não pode deixar de considerar-se uma verdadeira pré-impugnação, sendo que, como é entendimento comum, à não contradição com o conjunto do articulado da parte é assimilável a não contradição com o alegado, pela parte que eventualmente omita a impugnação, em articulado anterior, designadamente na petição inicial, de sorte que não carecerá o autor de repetir na réplica o que já deixou articulado na petição inicial (A. DOS REIS, “CPC, Anotado”, III, 56; LEBRE DE FREITAS, “CPC, Anotado”, vol. 2º, 338).

Não se verificam, enfim, os pressupostos legais da invocada confissão judicial ficta a que se referem os arts. 505º e 490º-2 CPC e 355º e 356º-1, ambos do C. Civil.

   Mais argumenta a Recorrente que estando provada a matéria do quesito com base em confissão da A., em depoimento de parte, a Relação não poderia alterar a resposta.

É verdade que a confissão judicial feita em depoimento de parte – confissão judicial provocada -, tendo por objecto factos pessoais ou de que a parte deva ter conhecimento goza de força probatória contra o confitente – arts. 358º C. Civ. e 554º CPC .

Porém, para que tal aconteça, isto é, para que o depoimento de parte goze, como declaração confessória, dessa especial força probatória impõe a lei que seja reduzido a escrito, mesmo que tenha sido gravado na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória, cabendo a redacção ao juiz e sendo a assentada lida ao depoente, que a confirmará ou fará as rectificações necessárias, pois que, quando essas formalidades não sejam cumpridas a confissão judicial é apreciada livremente pelo tribunal – arts. 563º CPC e 358º-4 C. Civil.

Ora, como atrás se deixou dito, a competência do Supremo, em sede de reapreciação da matéria de facto está estritamente balizada pelas situações de violação de regras de direito probatório material ou de prova vinculada, estando, consequentemente, fora dos seus poderes de cognição a valoração de provas, sua apreciação ou alteração da matéria de facto fora desses casos excepcionais, ou seja, quando se mova no âmbito das provas de livre apreciação ou da prova livre.

Nesta conformidade, porque, como se deixou notado, a alegada declaração confessória não foi reduzida a escrito, está vedada a este Tribunal qualquer reapreciação, proibição que bem se compreende à luz da ideia de que o que está em causa é a interpretação e fixação do sentido com que deve valer uma declaração emitida pela parte sobre cujo conteúdo não podem suscitar-se quaisquer dúvidas.

No caso, diferentemente, o que existe é uma declaração do julgador da 1ª Instância no sentido de que, segundo a valoração por si efectuada das declarações da Depoente, esta confessou a matéria do quesito, o que, manifestamente, não satisfaz as exigências legais de forma, as quais, por sua vez, são condição legal de eleição da possibilidade de excepcional reapreciação desse meio de prova pelo Tribunal de revista.

Assim sendo, a decisão do Tribunal da Relação, porque, insiste-se, tomada em apreciação de meio de prova de livre apreciação, ao abrigo da al. a) do art. 712º-1, é insusceptível de censura, em recurso de revista, impondo-se como definitiva e, consequência, determinante da imutabilidade da matéria de facto que vem fixada.

De resto, integrando-se a modificação efectuada na previsão do n.º 6 do art. 712º CPC, a decisão é, com o fundamento ora sob apreciação, irrecorrível.

Em conclusão, não admite o regime legal convocado que se conheça, nessa parte, do objecto do recurso.

4. 4. - Direito de retenção (conclusões 12ª a 17ª).

Finalmente, a Recorrente insurge-se contra o reconhecimento do direito de retenção sobre os imóveis prometidos vender, argumentando que a A. não tinha qualquer posse dos bens.


Dispõe o art. 755º-1-f) do Código Civil que o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º do mesmo Código.
Traduz-se o direito de retenção, portanto, “na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele” (P. DE Lima e A. VARELA, “C. Civil, Anotado”, I, 772).
Ao que aqui importa assinalar, no tocante aos pressupostos do direito de retenção, aponta-se, desde logo, a detenção ou posse material da coisa e legitimidade da detenção pelo credor da pessoa a quem a coisa deve ser restituída ser o detentor da coisa credor da pessoa a quem a coisa deve ser restituída.
Assim, o direito de retenção pressupõe uma detenção lícita da coisa, que pode consistir numa posse propriamente dita ou numa mera detenção ou posse precária, “apenas se exigindo, em caso de detenção, que o credor detentor tenha, por si ou através de representante, o controlo de facto da coisa, o domínio material desta, excluindo o devedor desse controlo material” (cfr. ac. STJ, de 27/11/2008, Proc.08B2608).

O direito de retenção é um direito real de garantia (especial) das obrigações e não um direito real de gozo.
         É conferido ao promitente-comprador para lhe garantir o crédito pela indemnização por incumprimento do contrato-promessa, e não para lhe conceder o gozo da coisa objecto da promessa cuja tradição obteve.
         Como resulta do texto do da al. f) transcrita, o direito de retenção visa garantir o crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º, isto é, o crédito que representa o dobro do sinal, o do aumento do valor da coisa ou a indemnização estipulada pelas partes, nos termos previstos no n.º 4 do dito artigo.
         Em causa estará, portanto, o crédito do promitente-comprador correspondente à indemnização devida pela outra parte em razão do seu incumprimento, isto é, o crédito “derivado do incumprimento definitivo, de que o direito de retenção constitui garantia acessória”, sendo que, por isso que o direito de retenção surge apenas para garantia do crédito gerado por um incumprimento definitivo do contrato-promessa, “quem pede a execução específica não goza do direito de retenção; que invoca o direito de retenção não goza de execução específica” (CALVÃO DA SILVA, ob. cit., 178 e 182).    

Entende-se, assim, divergindo do entendimento sufragado pelo acórdão sob sindicância, que o crédito que o direito de retenção garante é sempre o crédito pela indemnização decorrente do incumprimento da promessa e não o crédito à prestação de facto, consubstanciada no cumprimento em espécie, por via da execução específica, até ao momento da decisão da acção.

O que o titular do direito à execução específica, que pressupõe a mora do devedor, poderá é usar de embargos de terceiro (art. 351º-1 CPC; cfr. A. e ob. cit., 177).

Nesta conformidade, irrelevando, embora, toda a argumentação assente na existência, ou não, de posse, sua natureza e características, vertida nas conclusões 13ª a 17ª, julga-se assistir razão à Recorrente e inexistir fundamento para o reconhecimento do direito de retenção.

Impõe-se, consequentemente, quanto ao julgado sobre o direito de retenção, a revogação do decidido.

5. - Respondendo às questões colocadas, poderá, em síntese mais relevante, concluir-se:

O que identifica e define a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a caracterização jurídico-normativa da pretensão material que lhe atribui.

Peticionada a declaração judicial de transferência de metade dos imóveis para a herança e da outra metade para a própria autora, no seguimento do pedido de prévio reconhecimento do direito ao cumprimento coercivo do contrato-promessa (execução específica) a favor dos representantes do falecido, aqueles pedidos apresentam-se como meramente consequenciais ou dependentes, constituindo como que um desenvolvimento ou consequência do pedido principal, sendo ilícito ao tribunal proceder, ele próprio, na sentença e a título oficioso, à pertinente correcção desse efeitos mediatos, sem violação dos princípios do pedido e do dispositivo.

         O direito de crédito gerado pelo contrato-promessa transmite-se aos herdeiros sucessores do falecido promitente-comprador os quais, como titulares dos direitos e obrigações da herança e em sua representação, gozam de legitimidade substantiva e processual para o executarem forçadamente, mesmo contra outro sucessor co-herdeiro, que mantém a qualidade de devedor.

          O art. 2091º do Código Civil, ressalvando os casos declarados nos artigos anteriores, exclui do seu âmbito de previsão e aplicação, por regulada especialmente no art. 2074º, a forma de exercício dos direitos e obrigações entre a herança e os herdeiros, atendendo à separação de patrimónios, por forma a que apenas haja lugar à resolução de conflito, mediante nomeação de curador especial, quando o cabeça-de-casal for, ele próprio, o herdeiro credor ou devedor.

Para efeito de admissão por acordo dos factos articulados e não impugnados, à não contradição com o conjunto do articulado da parte é assimilável a não contradição com o alegado, pela parte que eventualmente omita a impugnação, em articulado anterior, designadamente na petição inicial, de sorte que não carecerá o autor de repetir na réplica o que já deixou articulado na petição inicial.

Se a declaração confessória, obtida em depoimento de parte, não foi reduzida a escrito, existindo apenas uma declaração, na acta, do julgador da 1ª Instância no sentido de que o depoente confessou a matéria do quesito, não se satisfazem as exigências legais de forma, que são condição legal de eleição da possibilidade de excepcional reapreciação desse meio de prova pelo Tribunal de revista, sendo a decisão da Relação que alterou a resposta, porque tomada em apreciação de meio de prova de livre apreciação, ao abrigo da al. a) do art. 712º-1, insusceptível de censura.

 O direito de retenção é um direito real de garantia das obrigações - e não um direito real de gozo - que visa garantir o crédito resultante do não cumprimento do contrato-promessa, surgindo e existindo apenas para garantia do crédito gerado por um incumprimento definitivo desse contrato.

6. - Decisão.

De harmonia com tudo o exposto, acorda-se em:

- Conceder parcialmente a revista;

- Revogar o acórdão impugnado na parte em que declarou ter a Autora o direito de retenção sobre os imóveis, até decisão definitiva e transitada sobre o pedido de execução específica, mantendo, quanto a tudo mais, o nele decidido; e,

- Condenar nas custas do recurso a Recorrente e a Recorrida, na proporção de 8/10 e 2/10, respectivamente.

                            Lisboa, 4 de Fevereiro de 2014

Alves Velho (Relator)

Paulo Sá

Garcia Calejo