REPRESENTAÇÃO JUDICIÁRIA
SOCIEDADE POR QUOTAS
CURADOR AD LITEM
Sumário

I - Sendo a gerência plural e conjunta, para os atos de representação da sociedade, é necessária a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos referidos artigos 252.º e 261º/1 do CSC.
II - Tal exigência é também necessária para a representação da sociedade demandada em juízo, existindo irregularidade de representação em caso de apresentação da contestação através de procuração emitida por um único gerente.
III - Porém, verificada a irregularidade da representação, e também a impossibilidade de os representantes assumirem, em conjunto, como impõe o pacto social, as funções de representação, bem como a existência de conflito de interesses entre a Ré e um seu representante incumbe ao juiz, como resulta do disposto nos arts. 21º/2, 40º e 265º, todos do CPC, providenciar, oficiosamente, pela regularização da instância, mormente, nomeando à sociedade um representante especial ou curador ad litem, como forma de assegurar a respetiva representação em juízo, nomeação que pode ocorrer entre os representantes da sociedade ou os sócios, ou através da nomeação de uma terceira entidade.

Texto Integral

Registo 583
Processo n.º 909/10.3TTVCT.P1
Sumariado (art. 713º/7 do CPC)

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B… intentou a presente ação com processo comum, contra C…, Lda, pedindo que, julgada procedente a ação:
1. Seja reconhecido que o A. se encontrava vinculado à R. por contrato de trabalho sem termo, desde 1 de abril de 2004, auferindo um salário mensal de 650€;
2. Seja reconhecida a justa causa de resolução do contrato por parte do A..
3. Seja condenada a R. a pagar-lhe:
a) 3120€ de remunerações vencidas e que não lhe foram pagas;
b) 650€ referentes ao subsídio de natal no ano de 2009;
c) 1290€ referentes aos proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de natal relativos ao ano de cessação do contrato de trabalho;
d) Indemnização por antiguidade a que alude o art. 396º do CT, não podendo a mesma ser inferior a 4225€;
e) Indemnização nunca inferior a 2500€ a título de danos não patrimoniais.
4. Seja condenada a R. a pagar juros legais sobre as quantias acima liquidadas desde a interpelação efetuada a 24-09-2010.

Alega, para tanto e em síntese, que foi admitido pela R. em 01-04-2004 para, sob as suas ordens e diretivas, exercer as funções de Carpinteiro de 1ª, auferindo em contrapartida a quantia mensal de 650 €. Mais alega que por carta datada de 24-09-2010, resolveu o contrato que o ligava à R., com invocação de justa causa – não pagamento culposo das retribuições de base e respetivas prestações complementares dos meses de maio, junho, julho e agosto de 2010 – quantias estas de que em setembro desse mesmo ano tomou conhecimento jamais lhe iriam ser pagas.
Frustrada a conciliação empreendida na audiência de partes (em que a R. compareceu representada pelo sócio gerente D…) contestou a ré, excecionando a sua ilegitimidade passiva (estar representada - e com procuração outorgada - apenas pelo sócio E…, quando a gerência pertence a ambos os sócios e a sociedade se obriga pela assinatura dos dois gerentes em conjunto e alegando ainda a separação dos sócios, e que a partir de 01.01.2008, o contrato de trabalho que ligava o A. à R., com a concordância deste transferiu-se para a titularidade do sócio D…, sob cuja direção efetiva e exclusiva o A. passou desde tal data a trabalhar, sendo este que lhe paga a remuneração e define o respetivo horário) ou seja, sustentando não ser assim a entidade patronal do autor.
Impugna, no mais, o articulado pelo A. e, na hipótese do Tribunal decidir pela existência do contrato de trabalho entre o A. e a R. se declare a ineficácia da rescisão operada, porque não comunicada aos representantes da R.
Sustenta, por fim, a má fé do A. alegando que toda a atuação integra, em conluio, um plano com o referido D… para em concordância com ele acabar com a sociedade C…, Lda, esclarecendo ainda que nenhuma retribuição se encontra por pagar.
Termina a pugnar pela procedência da exceção de ilegitimidade e absolvição da Ré da instância, bem como pela improcedência da ação e pela condenação do A. em multa e indemnização a favor da ré, a fixar pelo Tribunal.

O A. respondeu a fls 49/58, terminando a pugnar pelo desentranhamento da contestação apresentada pela R. por irregularidade do mandato (com consequente condenação da ré na totalidade do pedido). E subsidiariamente pela improcedência total das exceções deduzidas e, num o noutro caso, com a consequente condenação da ré na totalidade do pedido.

Sequencialmente, a fls 76/77, com data de 01-03-2011, foi proferido o seguinte despacho:
«Como decorre do documento de fls. 41 e segs. do p.p., a sociedade R. apenas se pode obrigar através da assinatura dos dois gerentes em conjunto.
Constatou-se que o mandato judicial conferido nos autos aos ilustres advogados que subscreveram a contestação estava consubstanciado numa procuração apenas subscrita por um dos gerentes.
Convidou-se então a R. a retificar essa irregularidade de representação.
Em doutos requerimentos, veio a R. dar conta da existência de um litígio entre os seus dois gerentes e que, por esse motivo, não era possível regularizar aquela situação.
Cumpre decidir.
Afigura-se-nos evidente que, atento o que dispõe o pacto social, a sociedade R. não pode, para estes efeitos, ser representada apenas por um dos sócios, o que demonstra a irregularidade de representação que ocorre nestes autos - sendo irrelevante a situação de litigio que aparece descrita nos requerimentos apresentados. Esse é um problema interno da sociedade que esta terá que resolver através dos meios competentes, inclusive assacando responsabilidades a quem, pelo seu comportamento, a tenha prejudicado.
Por outro lado, também não é caso aqui de aplicação do disposto no art. 21, nº 2, do C.P.Civil: primeiro, porque a sociedade tem quem a represente (os seus gerentes) e, em segundo, por que não ocorre qualquer conflito de interesses entre a sociedade e os seus representantes, mas antes um litígio entre estes.
Por último, a circunstância da R. apenas ter sido representada por um dos seus gerentes na audiência de partes não consubstancia qualquer vício que determine a anulação do processado.
Com efeito, tendo sido regularmente citada, esse facto apenas determinaria que se deveria considerar que faltou àquela audiência, prosseguindo os autos os seus termos normais, ou seja, com a notificação da R. para contestar.
Foi o que aconteceu, sendo que essa notificação foi regularmente realizada, na pessoa de um dos gerentes (aquele que se encontrava presente) - cfr. art.261, nº 3, do C.S.C.
Nestes termos, e dado que, mesmo após o convite do tribunal, não foi junta procuração que regularizasse a apontada irregularidade, não resta outra solução que não seja ordenar o desentranhamento da contestação e demais requerimentos apresentados pela R.
Assim, e face ao exposto, determina-se o referido desentranhamento.
Notifique.»

Irresignada, recorreu a ré pedindo a revogação do despacho e a sua substituição por outro que não considere verificada a irregularidade de representação da Ré, ou então, que nomeie representante legal à recorrente, o qual deve ser o sócio E…, que tem vindo a assumir a defesa ou, caso assim se não entenda, anular-se todo o processado até à audiência de partes nomeando-se representante especial à Ré para assumir a defesa, designadamente apresentando nova contestação.

O Mº Juiz a quo, por despacho de 25.03-2011, admitiu o recurso como de apelação, a subir nos próprios autos “com o recurso que venha a ser interposto da decisão final e com efeito devolutivo.”

Deste despacho reclamou a Ré, pedindo a sua revogação e substituição por outro que ordene a subida imediata do mesmo e em separado.

No entendimento de que ao caso é aplicável o nº3 do artigo 79º-A do CPT ao determinar que “As restantes decisões proferidas pelo Tribunal de 1ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final”, deixando, portanto, de existir “recursos retidos”, a Exma Relatora, nesta Relação e Secção Social, julgou improcedente a reclamação.

Entretanto, sob conclusão de 15-06-2011, o Exmo juiz da 1ª instância proferiu a seguinte decisão:

«B…, casado, desempregado, residente no …, …, Monção, intentou a presente ação com processo comum contra “C…, com sede no …, …, Monção.
A R. foi regularmente citada na sua própria pessoa.
Notificada para contestar, não apresentou contestação válida.
Nos termos do disposto no nº 1 do art. 57º do C.P.Trabalho, consideram-se confessados os factos alegados pelo A., proferindo-se desde logo sentença a julgar a causa.
Assim procedendo, dada a simplicidade que a mesma reveste, nos termos do disposto no nº 2 da citada disposição legal, aderindo ao alegado pelo A. na petição inicial e com base nas normas jurídicas aí invocadas, julga-se a presente ação procedente, por provada, pelo que a R. vai condenada:
- a reconhecer que o A. se encontrava vinculado por contrato de trabalho sem termo desde 1/4/2004, auferindo o salário mensal de C650,00;
- a reconhecer a justa causa da resolução do contrato por parte do A.;
- a pagar ao A. a quantia global de € 1.785,00, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, até efetivo pagamento.
Custas pela R.
Registe e notifique.»

Inconformada, apelou a R., pedindo i) a nulidade do despacho interlocutório que ordenou o desentranhamento da contestação e requerimentos subsequentes, revogando-se o mesmo com admissão dos referidos articulados, ou então, ii) a anulação de todo o processado posterior à audiência de partes nomeando-se representante especial à Ré para assumir a defesa, designadamente apresentando nova contestação e em consequência, iii) seja revogada a sentença por falta de fundamentação de facto e de direito.
Para o efeito formulou, a finalizar a sua alegação, as seguintes conclusões:
1. B… intentou contra a ré C…, Lda, ação emergente de contrato individual de trabalho, com os fundamentos que aqui se dão por reproduzidos pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de 11.785€ acrescida dos juros legais.

2. Foi ordenada a citação da Ré, por carta registada com aviso de receção, que foi recebido e assinado pelo sócio D… e foi sem dar conhecimento ao outro sócio E…, se apresentou na audiência de partes em representação da mesma.

3. Foi este sócio que foi notificado para em nome da ré para apresentar contestação no prazo de 10 dias.

4. Não tendo ele assumido a defesa da Ré, o que obrigou o outro sócio E… a assumir sozinho a representação da Ré, sob cominação de esta ser condenada de preceito.

5. Em defesa da Ré este sócio invocou: a ilegitimidade da ré, por esta ter cessado a sua atividade a partir de 31 de dezembro de 2007 e por isso não ser esta a entidade patronal do A; mas antes ser a entidade patronal do autor o sócio D…; a ineficácia da rescisão do contrato de trabalho por parte do A. por não ter comunicada aos dois sócios; e ainda o conluio existente ente o sócio D… e o Autor para acabar (extinguir) com a ré, através da dissipação do património desta.

6. Dando conta que inclusive que o sócio D… requereu o despejo da ré através de notificação judicial avulsa. E que filho do sócio D…, o Sr. F…, que trabalhava para o sócio D… nas mesmas condições que o Autor, ter enviada carta de rescisão idêntica á do autor cuja falsidade invoca

7. Concluindo pela inexistência de qualquer crédito salarial em falta por parte do autor e do filho.

8. O autor veio arguir a irregularidade do mandato, invocando que ao existirem dois gerentes e a sociedade se obrigar com a assinatura de ambos, têm de ser ambos a passar a procuração a advogado, insurgindo-se ainda contra a ilegitimidade da ré invocada pela Ré.

9. Por douto despacho o Meritíssimo Juiz concedeu á ré o prazo de dez dias para juntar aos autos procuração que “ retifique a apontada irregularidade do mandato (apenas conferido por um dos sócios) e simultaneamente ratificar todo o processado”.

10. O dito sócio D… enviou carta recusando-se á subscrição da procuração e ratificação do processado que foi dada a conhecer ao tribunal através de requerimento enviado via citius ref. Nº ……. tendo igualmente junto cópia da carta em que o dito sócio D… se recusa a subscrever o mandato e ainda cópia de notificação judicial avulsa de despejo enviada por este á ré, o que desde logo demonstra o conflito existente entre este sócio e a sociedade.

11. O Meritíssimo juiz ordenou então o desentranhamento da contestação e demais requerimentos apresentados pela R., fundamentando a sua decisão de inexistência de irregularidade de representação pelo facto de o pacto social da mesma prever que a sociedade apenas se obriga através da assinatura dos dois gerentes em conjunto.

12. Com base neste despacho interlocutório, foi proferida douta sentença final que condenou a Ré a pagar ao A. a quantia global de € 11.785,00 acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, até efetivo pagamento e ainda nas custas do processo.

13. Esta decisão final foi fundamentada no facto de não ter sido apresentada contestação válida e proferida ao abrigo do disposto no artigo 57 do CPT

14. A fundamentação do despacho interlocutório que ordenou o desentranhamento da contestação, equivale, até tendo em conta tudo quanto nos sucessivos requerimentos A. e Ré disseram justificando as suas posições, a uma ausência de fundamentação legal. Pelo que em nosso modesto entender sofre o douto despacho judicial de nulidade nos termos do artigo 668, nº1 b) do CPC. Nulidade que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

15. Estando em causa nos autos a representação passiva da Ré em juízo, utiliza-se quanto a esta o método disjuntivo de gerência, o que significa que cada um dos gerentes por si, e separadamente pode representar a sociedade. Não estando em causa um ato de gerência previsto no artigo 261, nº1 do C.S.C. Mas antes um ato de gerência previsto no artigo 261, nº 3 do C.S.C

16. Pelo que deveria ter-se decidido pela inexistência da irregularidade de representação. Ao não fazê-lo violou o Meritíssimo juiz a norma inserta no artigo 261, nº3 do CPC.

Sem prescindir

17. Ao entender o Meritíssimo Juiz que para que a sociedade se considere representada em juízo, é necessário que o mandato seja conferido pelos dois sócios, o que não se conseguiu. Pelo que apenas se pode chegar à conclusão que apesar e um dos sócios ter assumido a defesa da ré, perante a decisão do SR. juiz, a Ré sociedade não tem quem a represente em juízo.

18. O que só por si seria suficiente para o Sr. Juiz se socorrer da norma do artigo 21, nº2 do CPC e nomear representante especial á ré

19. Também não é verdade que não exista conflito de interesses entre a Ré e os seus representantes. Esse conflito existe deveras entre a ré e o sócio D…. Aliás basta atentar na posição do mesmo nos presentes autos.

20. Além disso, prova mais evidente da existência de conflito deste sócio D…, com a ré sociedade é a notificação judicial avulsa de despejo intentada no Tribunal Judicial de Monção contra a sociedade, conforme doc.2 junto com o requerimento enviado via citius ref. ……., que aqui se dá por integralmente reproduzida.

21. É que se este sócio obtém o referido despejo a sociedade C… não poderá exercer a sua atividade social o que levará á sua dissolução, que é a nada mais nada menos do que o fim último do sócio D….

22. Ora este conflito existente entre este sócio exigiria que o Sr. Juiz se socorresse da norma do artigo 21, nº2 do CPC e nomeasse representante especial á ré.

23. Representante especial, este, que em obediência ao principio da economia processual, poderia e deveria ser nomeado o Sócio gerente E… (que assinou e assumiu a defesa da Ré).

24. Ao não fazê-lo estando para tal legitimado violou o Meritíssimo juiz a norma do artigo 21, nº2 do CPC

25. Atenta a existência de conflito de interesses existente entre o sócio D… e a Sociedade e em obediência ao disposto no artigo 21, nº2 do CPC, se o Sr. Juiz entendesse não e nomear representante especial á sociedade o outro sócio E…, deveria anular todo o processado posterior á audiência de partes e nomear representante especial á sociedade notificando-o a ele para apresentar nova contestação em nome e representação da sociedade por esta não ter quem a represente.

26. A não fazê-lo além da violação do disposto no artigo 21, nº2 do CPC, estamos perante a um puro ato de denegação de justiça á ré sociedade.

27. Porque a decisão final de condenação da Ré, foi tomada no pressuposto de que não foi apresentada contestação válida, nos termos dos fundamentos invocados no despacho interlocutório, que supra se referiram e impugnaram, deve considerar-se que a presente decisão é ilegal porque foi tomada ao arrepio do disposto no artigo 57 do CPT.

28. Assim ao condenar nos termos em que condenou a R., violou o Meritíssimo Juiz o disposto no artigo 57 do CPT e por anteriormente ter violado a norma inserta no artigo 261, nº3 do CPC e ainda a norma inserta no artigo 21, nº2 do CPCivil.

O A. apresentou contra alegações, pugnando pela manutenção da sentença.
O Exmo Procurador junto desta Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interlocutório e a subsequente manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Factos provados
Os constantes do relatório que antecede supra e ainda designadamente os seguintes:
a) Na audiência de partes, realizada a fls 27 dos autos, a R. foi representada pelo sócio-gerente D…, frustrando-se a sua conciliação ai empreendida.
b) Notificada para contestar, fê-lo a Ré em articulado subscrito por advogado, em mandato outorgado por procuração apenas subscrita pelo sócio-gerente E… (um dos dois gerentes da R.).
c) A ré “C…, Lda”, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Predial/Comercia de Monção e das respetivas Inscrições-Averbamentos-Anotações (cfr fls 41/43), consta que, como forma de obrigar “são necessárias assinaturas dos dois sócios gerentes em conjunto”.
d) E sob a designação “Orgão(s) Designado(s): Gerência: D… e E…”.
e) Em 27-01-2011 (fl. 144), foi concedido à R. o prazo de 10 dias para suprir a irregularidade de representação e simultaneamente ratificar o processado, mas tal não foi feito.
f) A fls 160/161, dá-se conta que D… e mulher requereram ‘notificação judicial avulsa’ da aqui ré, dando-lhe conhecimento de que consideram resolvido o contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano composto de edifício com pavimento destinado a oficina de serração e escritórios e rossios, sito no …, freguesia de … e inscrito na respetiva matriz sob o artigo nº 519, com o fundamento em falta de pagamento da renda por um período superior a três meses.

III. Do Direito
De harmonia com o disposto nos artigos 684º/3 e 685º-A/1 e 3 do CPCivil[1], aplicável ex vi do art.87º/1 do CPT, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com ressalva da matéria de conhecimento oficioso, que in casu se não lobriga.
Definidas estas premissas, são essencialmente quatro as questões suscitadas pela recorrente e a apreciar no caso em apreço, a saber:
1. Nulidade do despacho interlocutório,
2. Saber da existência ou não da regularidade da representação da ré; e
3. Em caso afirmativo da nomeação de um representante especial à ré;
4. Da revogação da sentença por falta de fundamentação de facto e direito.

1. Nulidade do despacho interlocutório
Invoca a recorrente a nulidade do despacho interlocutório, nos termos do artigo 668, nº1 b) do CPC, porquanto, salienta, a respetiva fundamentação ao ordenar o desentranhamento da contestação, equivale, até tendo em conta tudo quanto nos sucessivos requerimentos A. e Ré disseram justificando as suas posições, a uma ausência de fundamentação legal[2].

Dispõe a este propósito o art. 77º/1 do CPT[3]: a arguição de nulidades de sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.
In casu mostra-se observado este requisito de ordem formal - consabidamente aplicável aos próprios despachos (art. 666º/3 do CPC) - , uma vez que a arguição foi feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso, devidamente dirigido ao Mº Juiz do tribunal a quo.
Vejamos, pois, se a arguição é de atender no plano substancial.
De harmonia com o estabelecido no art. 668º1-b) do CPCivil:
“É nula a sentença (ou despacho) quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
Ora, como vem sendo unanimemente entendido a falta de motivação integradora da invocada nulidade da sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito; já a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz a nulidade, afetando somente o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso. [4]
E como melhor explicita Amâncio Ferreira no que concerne aos fundamentos de direito, duas notas se impõe destacar: uma é que o julgador não tem que apreciar todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, se bem que não se encontre dispensado de resolver todas as questões por elas suscitadas; outra é que não é preciso que o juiz indique as disposições legais em que se baseia a sua decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam.
Ora, admitindo embora que o despacho recorrido não seja paradigmático em termos da invocada falta de fundamentação jurídica ou legal - ao invés do parecer do Exmo PGA, segundo o qual tal despacho se mostra bem fundamentado de facto e de direito -, o certo é que, segundo entendimento jurisprudencial, praticamente unânime[5], só releva a falta absoluta de fundamentação, que não uma deficiente ou insuficiente densidade fundamentadora, como causa de nulidade de decisão, nos termos da alínea b) do nº1 do art. 668º do CPCivil.
Vale isto dizer, em suma, que só a total ausência de fundamentação – que não a sua insuficiência ou deficiência – corporiza a nulidade de sentença prevista no art. 668º/1-b) do CPCivil.
E sendo assim, porque no caso não ocorre a alegada ausência absoluta de fundamentação legal do despacho interlocutório, diremos que não se configura a violação do art. 668º/1-b) do CPC, pelo que a nulidade arguida tem necessariamente de improceder.

2. Da regularidade ou irregularidade de representação da ré
Diz a recorrente a propósito que estando em causa nos autos a representação passiva da Ré em juízo, utiliza-se quanto a esta o método disjuntivo de gerência, o que significa que cada um dos gerentes por si, e separadamente pode representar a sociedade. Logo, não estando em causa um ato de gerência previsto no artigo 261º/1 do C.S.C, mas antes um ato de gerência previsto no artigo 261º/3 do C.S.C, deveria ter-se decidido pela inexistência da irregularidade de representação. Ao não fazê-lo violou o Meritíssimo juiz a norma inserta no artigo 261º/3 do CPC.

Quid iuris?
Sobre a representação das sociedades por quotas, dispõe adrede o Código das sociedades Comerciais[6]:
- Artigo 192º (Competência dos gerentes):
1. A administração e a representação da sociedade competem aos gerentes.
… ….
- Artigo 252º (Composição da gerência):
1. A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes (…).
… …
5. Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 261º.

- Artigo 261º (Funcionamento da gerência plural)
1. Quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respetivos poderes são exercidos juntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados.
2. O disposto no número anterior não impede que os gerentes deleguem nalgum ou nalguns deles a competência para determinados negócios ou espécie de negócio, mas mesmo nesses negócios, os gerentes delegados só vinculam a sociedade se a delegação lhes atribuir expressamente tal poder.
3. As notificações ou declarações de terceiros à sociedade podem ser dirigidas a qualquer dos gerentes, sendo nula toda a disposição em contrário do contrato de sociedade.

Decorre dos normativos transcritos que o legislador, na organização do modo de exercício da gerência, optou pela gerência conjunta, como regra supletiva no que concerne à representação (ativa ou passiva) da sociedade.
Deles não resulta, por isso, qualquer limitação à extensão dos poderes de representação dos sócios gerentes mas apenas uma limitação ao exercício desses poderes de representação.
No caso em apreço, da inscrição do respetivo registo comercial, resulta claro que como forma de obrigar a sociedade/ré “são necessárias as assinaturas dos dois gerentes em conjunto”.
Ou seja, sendo a gerência plural e conjunta, é manifesto que, para os atos de representação da sociedade, é necessária a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos referidos artigos 252.º e 261º/1 do CSC.[7]
Incluir-se-à nessa exigência a representação da R. em juízo? Vejamos:
Nos termos do art. 21º/1 do CPCivil, “as pessoas coletivas e as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos e o pacto social designarem”
Ora como vimos a sociedade demandada obriga-se com a assinatura conjunta dos dois referidos gerentes; porém é omissa quanto à sua representação em juízo.
Daí que, como se afirma no acórdão do STJ de 12/7/2007[8], tenha aplicação ao caso a norma supletiva do art. 985º do Código Civil, aplicável por força do artº 996º do mesmo diploma.
Resulta de tais preceitos que gozam de poderes de representação da sociedade em juízo, na falta de convenção em contrário, as pessoas que têm poderes de administração.
Poderes de administração e poderes de representação são dois aspetos da mesma posição jurídica, refletindo-se nos poderes de representação todo o conteúdo dos poderes de administração atribuídos a cada sócio.
Todos os sócios têm igual poder para administrar, na falta de convenção em contrário.
A administração pertence, segundo o método disjuntivo, a todos os sócios, salvo se a estes ou a algum deles tiver sido atribuída em conjunto a administração, nos termos do nº 3 do citado art. 985º.
Ora, a representação em juízo implica, naturalmente a outorga de procuração a mandatário judicial, procuração que, no caso dos autos foi apenas outorgada por um dos gerentes – E…, quando a forma de obrigar a sociedade é pela assinatura conjunta de dois gerentes, o referido E… e D….
Assim, existe irregularidade de representação da sociedade/demandada.
Na verdade, cabendo a representação a dois gerentes, não pode um só gerente praticar atos que obriguem a sociedade pelo que não está bem representada em juízo através de procuração emitida por um único gerente.
Impunha-se, portanto, que o gerente não outorgante do mandato judicial ratificasse o processado, assim suprindo a irregularidade da representação judiciária da ré – art. 40º/1, do CPCivil.
Para esse efeito, o tribunal a quo concedeu-lhe o prazo de 10 dias. Apesar disso, temos de convir que a sociedade, ora demandada, não supriu a invocada irregularidade da sua representação em juízo, no tocante à apresentação da respetiva contestação.
Mais: constata-se dos autos que o défice de representação da ré decorre não só das alegadas “divergências entre os sócios”, mas também de conflito de interesses entre a ré e um dos seus representantes - o sócio D….
Logo - sublinhamo-lo - se a forma de obrigar a sociedade depende da assinatura de dois gerentes, é manifesto que, ao invés do entendimento da recorrente, a ré não está regularmente representada em juízo através de procuração emitida por um único gerente.)
Todavia, face à manifestação da vontade de defesa traduzida na apresentação da contestação, razões de economia processual aconselham o suprimento da referida irregularidade de representação da demandada, situação que nos remete para a terceira questão enunciada, a saber:

3. Da nomeação de um representante especial à ré.
Adrede sustenta a recorrente que atenta a existência de conflito de interesses existente entre o sócio D… e a Sociedade e em obediência ao disposto no artigo 21º, nº 2 do CPC, se o Sr. Juiz entendesse não nomear representante especial à sociedade o outro sócio E…, deveria anular todo o processado posterior á audiência de partes e nomear representante especial á sociedade notificando-o a ele para apresentar nova contestação em nome e representação da sociedade por esta não ter quem a represente.
Estabelece o referido art. 21º, nº 2 do CPC, que sendo demandada pessoa coletiva ou sociedade que não tenha representante ou ocorrendo conflito de interesses entre a ré e o seu representante, designará o juiz representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respetiva representação.
Daqui decorre, como refere Lebre de Freitas[9], que “sendo demandada, como ré ou para intervir em causa pendente, pessoa coletiva (incluindo sociedade) sem representante ou em conflito de interesses com o representante, o juiz continua a dever designar um representante especial, que exercerá a sua função até que a representação seja assumida por quem legalmente a deva assegurar (…); mas deixou, com a revisão do Código, de o dever fazer entre os membros da pessoa coletiva (incluindo a sociedade), solução que podia não ser a mais adequada.
Ressalvam-se, como anteriormente, os casos em que lei especial disponha diversamente. Mas deixou de se estatuir que ‘quem substituir este (o representante) nas suas faltas poderá demandar ou ser demandado em nome de pessoa coletiva ou da sociedade’. Esta disposição que constava da 1ª parte do nº 1, era redundante: o substituto do representante, quando exista, é ainda um representante, pelo que, ocorrendo, os pressupostos da substituição, não há lugar à representação especial. Mas constitui sempre questão de interpretação (do pacto, dos estatutos, da deliberação social) saber se há lugar à substituição, nomeadamente em caso de conflito entre a sociedade e o representante principal.”
A irregularidade de representação verifica-se quando a parte, embora esteja representada ou assistida, não o está pelo seu verdadeiro representante ou curador.
Quando o juiz se aperceba da irregularidade de representação incumbe-lhe, oficiosamente e a todo o tempo, providenciar pela regularização da instância (arts 24º, nº 1, e 265º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Essa irregularidade sana-se mediante a intervenção ou citação do representante ou do curador do incapaz.
Se o representante não ratificar nem renovar os atos praticados, a irregularidade não se pode considerar sanada: se o representante do réu não sanar a irregularidade, então falta apenas um pressuposto processual. É o que sobre este assunto - estribado em M. Teixeira de Sousa[10] -, outrossim se diz no acórdão desta Relação de 15.07.2009, que data vénia aqui trazemos à colação.[11]
Ora, no caso em apreço, deteta-se não só a irregularidade de representação da Ré, como a impossibilidade de os representantes assumirem em conjunto, como exige o pacto social, as funções da sua representação em juízo, ocorrendo ainda um conflito de interesses entre a ré e um seu representante.
Desta sorte, incumbe ao juiz da causa, assegurar a representação da demandada em juízo, designando para o efeito, um curador especial.
Ou, cotejando o sumário do citado acórdão desta Relação de 15-07-2009[12]:
Verificada a irregularidade da representação, e também a impossibilidade de os representantes assumirem, em conjunto, como impõe o pacto social, as funções de representação e ainda a existência de conflito entre a Ré e um seu representante, incumbe ao juiz, como resulta do disposto nos arts. 21º/2, 40º e 265º, todos do CPC, providenciar, ex officio, pela regularização da instância, mormente, nomeando à sociedade um representante especial ou curador ad litem, como forma de assegurar a respetiva representação em juízo, nomeação que pode ocorrer entre os representantes da sociedade ou os sócios, ou através da nomeação de uma terceira entidade, v. g. um revisor oficial de contas, o qual deve, se o entender, ratificar ou renovar os atos praticados pela sociedade, no prazo que lhe seja concedido.
Dito isto, é mister salientar que como a procuração foi outorgada por apenas um dos sócios gerentes da ré quando o pacto social exige a intervenção dos dois, verifica-se a irregularidade da representação que urge suprir.
Nessa conformidade, revoga-se o despacho que ordenou o desentranhamento da contestação e documentos subsequentes, devendo o tribunal a quo designar curador especial a fim de assegurar a representação da sociedade/demandada em juízo, suprindo-se a irregularidade de representação verificada, com ratificação ou renovação do processado, assim prosseguindo a ação os seus ulteriores termos.
Destarte, procedem as conclusões da recorrente.

E procedendo a apelação nestes termos, fica prejudicada a apreciação da última questão - revogação da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito - que tinha como pressuposto a improcedência a montante daqueloutras.

Em resumo e sumariando (art. 713º/7 do CPC):
1. Sendo a gerência plural e conjunta, para os atos de representação da sociedade, é necessária a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos referidos artigos 252.º e 261º/1 do CSC.
2.Tal exigência é também necessária para a representação da sociedade demandada em juízo, existindo irregularidade de representação em caso de apresentação da contestação através de procuração emitida por um único gerente.
3. Porém, verificada a irregularidade da representação, e também impossibilidade de os representantes assumirem, em conjunto, como impõe o pacto social, as funções de representação, bem como a existência de conflito de interesses entre a Ré e um seu representante incumbe ao juiz, como resulta do disposto nos arts. 21º/2, 40º e 265º, todos do CPC, providenciar, oficiosamente, pela regularização da instância, mormente, nomeando à sociedade um representante especial ou curador ad litem, como forma de assegurar a respetiva representação em juízo, nomeação que pode ocorrer entre os representantes da sociedade ou os sócios, ou através da nomeação de uma terceira entidade.

IV. Decisão
Perante o exposto decide-se revogar o despacho que ordenou o desentranhamento da contestação e documentos subsequentes, devendo o tribunal a quo designar curador especial a fim de assegurar a representação da sociedade/demandada em juízo, suprindo-se a irregularidade de representação verificada, com ratificação ou renovação do processado, assim prosseguindo a ação os seus ulteriores termos.
Custas pelo recorrido, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.

Porto, 2012-04-16
António José Fernandes Isidoro
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho
António José da Ascensão Ramos
________________
[1] Versão do DL 303/2007, de 24.08.
[2] Itálico nosso.
[3] Reporta-se ao CPT versão do DL 295/2009, de 13.10, porquanto reporta a ação iniciada após a sua entrada em vigor, ou seja, em 1.01.2010 (vide os respetivos arts 6º e 9º/1).
[4] -Vide Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 5ª edição, p. 48/49; Alberto dos Reis, CPC anotado, Vol. V, Reimpressão, p. 140 e ss.
[5] Vd, por todos, o acórdão do STJ de 26.02.2004, Procº nº 03B3798/itij/net, outrossim citado pelo MP em representação do recorrido, nas respetivas alegações.
[6] Brevitatis causa “CSC” e doravante assim designada.
[7] Vd, neste sentid, o acórdão da RPorto de 17-05-2010, Pº 2471/06,2TBPVZ.P1. ITIJ/net.
[8] In Procº nº 07A1874, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Apud Código de Processo Civil anotado, volume 1º, 1999, p. 43
[10] In Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 150.;
[11] Cf. Processo nº 199/07.5TYVNG-B.P1, acessível em dgsi.pt
[12] Vd nota anterior [11].

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.