I - No decurso da ação emergente de acidente de trabalho, verificados determinados requisitos, o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) antecipa uma pensão ou indemnização provisória, por conta dos quantitativos que venham a ser arbitrados a final, sendo que, proferida sentença condenatória, o juiz transfere para a entidade responsável o pagamento da pensão ou indemnização e demais encargos, para além de a condenar a reembolsar todas as importâncias adiantadas (art. 122.º, n.º, 4, CPT).
II – Não tendo o FAT deduzido contra o Autor (na ação emergente de acidente de trabalho) qualquer pedido de reembolso das quantias provisoriamente adiantadas, este não teve oportunidade de conhecer (e muito menos de discutir) o fundamento/natureza da correspondente obrigação (pela primeira vez foi invocada no âmbito do recurso de apelação), tal como não teve o ensejo de se pronunciar sobre os seus contornos quantitativos.
III – Nestas circunstâncias, proferida sentença absolutória, não podia o juiz, oficiosamente, pronunciar-se sobre a restituição (ou não restituição) das quantias adiantadas pelo FAT, porquanto isso seria incompatível com vetores fundamentais/estruturantes do nosso direito processual civil, como é o caso dos princípios da necessidade de pedido e do contraditório, dos quais decorre que o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses sem que isso lhe seja pedido por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (art. 3.º, CPC), e ainda dos princípios da igualdade de armas e do processo equitativo.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I.
1. AA deduziu contra BB ação declarativa, com processo especial, emergente de acidente de trabalho.
2. No decurso da ação, foi fixada pensão/indemnização provisória a favor do Autor, suportada pelo Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT), ao abrigo do disposto no art. 122.º, CPT.
3. A ação foi julgada improcedente na 1.ª instância (por não se ter verificado um acidente de trabalho reparável), por sentença que, por outro lado, nada decidiu relativamente ao destino das quantias provisoriamente adiantadas ao A. pelo FAT (que, neste âmbito, nada peticionara nos autos).
4. Interpuseram recurso de apelação o A. e o FAT (sustentando este Fundo que a sentença deveria ter determinado a restituição das quantias provisoriamente adiantadas ao A., com base em razões essencialmente idênticas às descritas em infra n.º 5), tendo ambos os recursos sido julgados improcedentes.
5. O A. conformou-se com a decisão.
Contrariamente, o FAT interpôs recurso de revista, sustentando, em síntese, nas conclusões da sua alegação:
1. O Fundo de Acidentes de Trabalho foi notificado para proceder ao pagamento de uma indemnização provisória diária e despesas com tratamento ao sinistrado, nos termos do disposto no artigo 122.º, do CPT, tendo liquidado, a esse título, a quantia de € 27 321,21.
2. A sentença final entendeu que o acidente sofrido pelo sinistrado não é um acidente de trabalho, pelo que absolveu o Réu do pedido.
3. Atendendo a que tal sentença não apreciou/decidiu quanto à condenação do Autor na restituição ao FAT das quantias por este adiantadas a título provisório, apresentou este Fundo recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
4. Entendendo não haver caso omisso no art. 122º do CPT, o acórdão recorrido decidiu que, em caso de sentença absolutória, o Tribunal não tem de condenar no reembolso das pensões provisórias adiantadas, negando provimento ao recurso.
5. O Tribunal recorrido entendeu ainda que, a existir caso omisso, seria de aplicar a situação prevista para os alimentos provisórios, não havendo lugar à restituição em caso de sentença absolutória, nos termos do art. 2007.º, n.º 2, C. Civil.
6. Não prevendo o art. 122º do CPT a restituição das indemnizações e/ou pensões provisórias em caso de sentença absolutória, estamos perante um caso omisso, cuja reparação deverá ser preenchida com recurso à lei processual civil comum, nos termos do art. 1.º, n.º 2, do CPT.
7. O procedimento cautelar que melhor se aplicará à situação das pensões provisórias, por evidenciar uma clara similitude com este, é o de arbitramento de reparação provisória (artigos 403.º a 405.º do CPC), estabelecendo o art. 405º, n.º 2, que na decisão final, quando não arbitrar qualquer reparação ou atribuir reparação inferior à provisoriamente estabelecida, condenará sempre o lesado a restituir o que for devido.
8. Também a atribuição da pensão provisória em sede de acidentes de trabalho, cujo procedimento está previsto nos artigos 121.º e segs. do CPT, tem a natureza de um procedimento cautelar, destinado a restabelecer, provisoriamente, as condições económicas dos sinistrados ou beneficiários, desde que reunidos determinados requisitos.
9. Perante esta similitude das tutelas cautelares em causa e atendendo à aplicação subsidiária do processo civil em processo de trabalho, nada obsta à aplicação ao direito processual infortunístico da norma constante do art. 405.º, n.º 2 do CPC.
6. Não foram apresentadas contra-alegações.
7. A Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que apenas respondeu o recorrente, reiterando as posições sustentadas na alegação de recurso.
8. À presente revista é aplicável o regime processual que no CPC foi introduzido pela Lei 41/2003, de 26 de Junho (com exceção do regime da dupla conforme), nos termos do art. 7.º, n.º 1, deste diploma.[1]
II.
(Delimitação do objeto do recurso)
9. No plano da delimitação objetiva do recurso, há, antes do mais, que atentar que o mesmo abrange tudo o que na parte dispositiva da decisão for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3, do CPC[2]), o que, naturalmente, não se confunde com a argumentação/fundamentação que a antecede (a interposição do recurso é dirigida à decisão, em si mesma, e não aos seus fundamentos).
É certo que o recorrente pode restringir o objeto do recurso. Mas isso apenas se a parte dispositiva da decisão contiver segmentos decisórios distintos (“decisões distintas”), caso em que o recorrente poderá especificar de qual deles recorre (art. 635º, nº 2).
10. O tribunal ad quem deve resolver todas as questões que nas conclusões da alegação do recurso lhe são colocadas como fundamento do mesmo, excetuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, n.º 2, 1.ª parte, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º].[3]
Inversamente, não pode conhecer-se senão das questões suscitadas, salvo se a lei o permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (2.ª parte do n.º 2 do sobredito art. 608.º).
No entanto, como se compreende, o âmbito das questões a decidir abrange todos os pontos (sub-questões) que no caso concreto “condicionam ou são pressupostos da questão-fundamento”, pelo que, “admitido o recurso por um fundamento legalmente previsto, o S.T.[J.], como tribunal de revista, conhecerá da causa até onde o exija a conexão problemática das questões” [4] (embora sem ultrapassar o plano da “questão de direito”).
11. Por outro lado, como é sabido, as questões a resolver não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocados pelas partes[5].
Na verdade: estes últimos não vinculam o tribunal (que não está sujeito à alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito, como dispõe o art. 5.º, n.º 3); e, só por si, são insuscetíveis de produzir caso julgado.[6]
12. Posto isto, in casu, em face das conclusões da petição recursória, a questão a decidir é a seguinte: tendo sido arbitrada pensão ou indemnização provisória no decurso da ação (emergente de acidente de trabalho), em caso de absolvição, deve na sentença determinar-se oficiosamente que o Autor restitua ao FAT o que a esse título lhe tiver sido prestado?
Esta questão compreende dois eixos problemáticos distintos, um de natureza estritamente material (atinente a saber se existe, ou não, neste tipo de casos, “obrigação de restituir”), outro com uma componente também adjetiva, no âmbito do qual se suscitam aspetos decisivos e, como se verá, com precedência lógica relativamente ao primeiro.
Globalmente, as sub-questões em que se desdobra o enunciado thema decidendum são as seguintes:
a. Não estipulando o art. 122.º do CPT que - em caso de sentença absolutória - o juiz deve condenar na restituição das indemnizações e/ou pensões provisórias, se existirá uma lacuna do sistema jurídico, a preencher através da lei processual civil, nos termos do art. 1.º, n.º 2, daquele diploma (como argumenta o recorrente e rejeita a decisão recorrida).
b. Referindo-se à restituição apenas em caso de condenação e sabendo-se que as sentenças podem ser condenatórias ou absolutórias, se o legislador laboral pretendeu afastar o direito ao reembolso nas situações de sentença absolutória (como argumenta a decisão recorrida e rejeita o recorrente).
c. Se o tribunal de 1.ª instância (independentemente dos argumentos desenvolvidos pelo recorrente e na decisão recorrida quanto às sub-questões anteriores) devia ter-se pronunciado, oficiosamente, sobre a restituição (ou não restituição) ao FAT das mencionadas quantias.
d. Na afirmativa, se – em termos substantivos – existe tal obrigação de restituir (o que exigirá discorrer sobre o fundamento/fonte de tal obrigação).
Decidindo.
III.
13. Entendeu-se na decisão recorrida que in casu não há que determinar o reembolso das quantias adiantadas pelo FAT ao Autor, com base no seguinte:
«Vejamos a fundamentação que adrede foi expendida por este Tribunal da Relação do Porto (…) em caso semelhante [Acórdão de 2006-07-10, proferido no Proc. 0611491, in www.dgsí.pt.]:
“(…) Nos termos do nº1 do art.122º do CPT «quando houver desacordo sobre a existência ou a caracterização do acidente como acidente de trabalho, o juiz, a requerimento da parte interessada ou se assim resultar diretamente da lei aplicável, fixa, com base nos elementos fornecidos pelo processo, pensão ou indemnização provisória»…« se considerar tais prestações necessárias ao sinistrado, ou aos beneficiários, se do acidente tiver resultado a morte ou a incapacidade grave ou se se verificar a situação prevista na 1ªparte do nº1 do art.102».
Assim, um dos requisitos para a atribuição de uma pensão provisória, no caso de falta de acordo sobre a existência ou caracterização do acidente como acidente de trabalho, é ser a pensão necessária ao sinistrado para satisfação das suas necessidades de subsistência.
Por isso, tem sido entendido que as pensões e indemnizações provisórias previstas nos arts.121º e segts. do CPT «mantêm, pela sua natureza jurídica, estreito parentesco com as providências cautelares que o CPC regula nos arts.381º e segs., particularmente com o processo de alimentos provisórios» - A. Leite Ferreira, CPT anotado, 4ªedição, p.560.
E verificados os requisitos previstos no nº1 do art.122º do CPT a pensão provisória é adiantada pelo F.A.T., o qual, em caso de sentença condenatória, será reembolsado pela entidade responsável pelo pagamento da pensão – art.122º nº4 do CPT..
Mas o citado artigo apenas fala em sentença condenatória. Tal significa que só em caso de condenação da entidade responsável pelo pagamento da pensão tem o F.A.T. direito a ser reembolsado por esta (seguradora ou entidade patronal).
Mas a igual conclusão se chega através do disposto no art.13º do DL 142/99 de 30.4.
Com efeito, dispõe o referido art. que «ocorrendo fundado conflito sobre quem recai o dever de indemnizar caberá ao F.A.T. satisfazer as prestações devidas ao sinistrado ou beneficiários legais de pensão, sem prejuízo de vir a ser reembolsado após decisão do tribunal competente».
Em conclusão: quer o art.122º nº4 do CPT quer o art.13º do DL 142/99 pressupõem como requisito de reembolso do F.A.T. o apuramento da entidade responsável e a sua consequente condenação nas indemnizações ou pensões devidas ao sinistrado.
E o legislador laboral não podia desconhecer que as sentenças proferidas em acidente de trabalho não são apenas condenatórias mas também absolutórias e que ao referir-se apenas à situação de condenação estava a afastar o direito ao reembolso no caso de ser proferida sentença absolutória (art. 9º nº3 do CC).
Porém, e a defender-se que o legislador do CPT não regulou a situação em apreço, por não a ter previsto, então há que procurar nos arts. 381º e seguintes do CPC a solução para o caso (art. 1º nº2 al. a) do CPT).
B. A caducidade da pensão provisória por força do art.389º nº1 al. c) do CPC e o direito do F.A.T. exigir ao sinistrado o reembolso do que pagou.
(…)
Como já atrás se referiu, a fixação de indemnização/ou pensão provisória tem algo de muito semelhante com a providência cautelar de alimentos provisórios.
Na verdade, a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho não constitui uma reparação integral do dano, como acontece no caso da responsabilidade civil – arts. 562º e segts. do CC.. Por isso, a reparação ao sinistrado tem predominantemente carácter alimentar, como compensação, ainda que não integral, pela diminuição da sua capacidade de ganho. E tal carácter alimentar ainda é mais evidente quando se trata da pensão atribuída ao ex-cônjuge ou cônjuge judicialmente separado à data do acidente e com direito a alimentos e aos ascendentes por morte do sinistrado (art. 20º nº1 als. b) e d) da Lei 100/97 de 13.9), sendo que quer o direito a alimentos e respectivo crédito, quer os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas na LAT são inalienáveis, irrenunciáveis e impenhoráveis (arts. 2008º do CC e 35º da LAT, respectivamente).
Assim, e tendo em conta o acabado de referir – do carácter alimentar da pensão provisória fixada ao sinistrado -, verifica-se que mesmo no caso de fixação provisória de alimentos o requerente só responde pelos danos causados com a improcedência ou caducidade da providência se tiver actuado de má-fé e sem prejuízo do disposto no art.2007º nº2 do CC (art.402º do CPC).
E precisamente o art.2007º nº2 do CC determina que «não há lugar, em caso algum, à restituição dos alimentos provisórios recebidos».
Ora, e na falta de disposição expressa no CPT, não choca aplicar ao caso a norma do art.2007º nº2 do CC precisamente por as situações reguladas serem idênticas e semelhantes e em causa estar essencialmente prevenir e garantir as necessidades essenciais do sinistrado vítima de acidente de trabalho.
E se assim é, o disposto no art.473º do CC – o enriquecimento sem causa – terá de ceder perante o art.2007º nº2 do CC., conforme determina o art.474 do mesmo diploma legal, não tendo o F.A.T. direito a reclamar do sinistrado o reembolso das pensões provisórias que lhe pagou.
Em conclusão: admitindo que o CPT é omisso no que respeita à questão do reembolso das indemnizações/pensões provisórias pagas pelo F.A.T. ao sinistrado, em caso de sentença absolutória (por o art.122º nº4 do CPT apenas se referir a sentença condenatória), haverá que recorrer ao procedimento cautelar que mais se assemelha com o da fixação da pensão provisória, a saber, a prestação provisória de alimentos, e aplicar ao caso o disposto no art.402º do CPC, com referência ao preceituado no art.2007º nº2 do CC. (…)”.
(…)»
X X X
14. Ao invés [na esteira do Ac. da Rel. Lisboa de 23-01-2013, P. 1001/06.0TTLSB.L1-4], sustentando que a sentença (absolutória) deve determinar a restituição das quantias adiantadas ao Autor, desenvolve o recorrente a seguinte linha argumentativa: i) a lei não regula expressamente esta situação, pelo que nos encontramos perante um caso omisso; ii) a propósito do procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória, o legislador estipulou que na decisão final da ação de indemnização, “quando não arbitrar qualquer reparação ou atribuir reparação inferior à provisoriamente estabelecida, condenará sempre o lesado a restituir o que for devido” (art. 390.º, n.º 2, e, similarmente, art. 405.º, n.º 2, do anterior CPC); iii) as duas situações são similares, pelo que ao caso dos autos deve aplicar-se este regime.
Quid juris?
IV.
15. Quanto às (sub)questões integrantes do objeto do recurso, enunciadas em supra n.º 12, as três primeiras encontram-se indissocialvelmente ligadas.
Passamos, pois, a abordá-las em conjunto e com prejuízo – desde já se adianta - daquela que foi elencada em último lugar.
Assim.
16. É o seguinte o teor do art. 122.º, CPT, ao abrigo do qual foram provisoriamente adiantadas ao Autor as quantias agora reclamadas pelo FAT:
“1 - Quando houver desacordo sobre a existência ou a caracterização do acidente como acidente de trabalho, o juiz, a requerimento da parte interessada ou se assim resultar diretamente da lei aplicável, fixa, com base nos elementos fornecidos pelo processo, pensão ou indemnização provisória nos termos do artigo anterior, se considerar tais prestações necessárias ao sinistrado, ou aos beneficiários, se do acidente tiver resultado a morte ou uma incapacidade grave ou se se verificar a situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 102.º
2 - A pensão ou indemnização provisória e os encargos com o tratamento do sinistrado são adiantados ou garantidos pelo fundo a que se refere o n.º 1 do artigo 39.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, se não forem suportados por outra entidade.
3 - Pode o juiz condenar imediatamente na pensão ou indemnização provisória a entidade que considerar responsável, se os autos fornecerem elementos bastantes para se convencer de que a falta de acordo na tentativa de conciliação teve por fim eximir-se à condenação provisória; se no julgamento se confirmar essa convicção, o juiz condena o réu como litigante de má fé.
4 - Na sentença final, se for condenatória, o juiz transfere para a entidade responsável o pagamento da pensão ou indemnização e demais encargos e condena-a a reembolsar todas as importâncias adiantadas.”
17. Sem grande esforço interpretativo se alcança a ratio subjacente à norma ínsita neste n.º 4, a saber:
- No decurso de ação emergente de acidente de trabalho, verificados determinados requisitos e não estando ainda apuradas responsabilidades definitivas, o FAT antecipa uma pensão ou indemnização provisória, por conta dos quantitativos que venham a ser arbitrados a final.
- A confirmar-se a condenação do(s) réu(s), este(s) assume(m), a partir desse momento, o pagamento da pensão ou indemnização e demais encargos que forem devidos;
- Para além disso, logicamente, têm que reembolsar o FAT das importâncias já pagas, uma vez que este Fundo apenas a título provisório se substituiu ao(s) demandado(s) na ação, adiantando quantias por cujo pagamento são estes os verdadeiros responsáveis.
18. E em caso de absolvição do(s) réu(s)?
Será que o legislador se “esqueceu” de dizer que também neste caso a sentença deve determinar a restituição das importâncias em causa ao FAT, agora por parte daquele que as recebeu (i.e., o autor)? Estaremos perante uma lacuna legal?
A resposta é manifestamente negativa, inexistindo qualquer falha de previsão do “tecido normativo” ou “vazio jurídico”.
Sobre o conceito de lacuna, refere Miguel Teixeira e Sousa:[7]
“A lacuna decorre da inexistência de uma regra para regular um caso jurídico, pelo que (...) pode dizer-se que existe uma lacuna quando há caso mas não há regra. (...) Refira-se (...) que não existe nenhuma lacuna se o caso puder ser resolvido por um princípio implícito ou por uma regra derivada: a lacuna não é falta de uma regulamentação expressa, mas a falta de qualquer regulamentação. Para que exista uma lacuna não basta uma lacuna legis, antes é necessário que se verifique uma lacuna iuris. (...) Só existe uma lacuna quando de nenhuma fonte possa ser inferida uma regra para regular o caso.
(...)
A lacuna só surge quando (...) falta, para um caso com relevância jurídica, a respectiva regulamentação. (...) A lacuna pressupõe uma incompletude no ordenamento jurídico quanto a certos casos, pelo que ela decorre da conjugação de dois factores: um factor negativo, que é a ausência de regulamentação legal, e um factor positivo, que é a exigência dessa regulamentação.”
Na verdade, lacuna” e “silêncio da lei” são realidades nem sempre coincidentes.
O silêncio tanto pode corresponder a uma deficiência legislativa como à “eloquência” do legislador. Já a lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou uma falha da esfera regulativa da lei, aferida em função da “ratio legis” que lhe está subjacente. Existe uma lacuna quando a interpretação da lei não comporta resposta para determinada questão jurídica.[8]
19. Como se sabe, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do C. Civil).
Donde, na ausência de quaisquer elementos ou imperativos de razoabilidade em contrário, há que acolher, à partida, a interpretação mais natural e diretamente condizente com a formulação legal.[9]
Ora, tendo sido arbitrada pensão ou indemnização provisória nas circunstâncias dos autos, nunca o legislador poderia ter consagrado que, em caso de absolvição, o tribunal se pronunciaria, oficiosa e automaticamente, sobre a restituição (ou não restituição) ao FAT das quantias assim adiantadas.
Isso seria incompatível com valores fundamentais do sistema jurídico, enquanto ordem axiológica ou teológica de princípios gerais de Direito, cuja finalidade primária, como se sabe, é a de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica.[10] Tal norma, a existir, seria uma norma “estranha” ao sistema, uma quebra do sistema.[11]
Com efeito:
“Pertencem também aos princípios da justiça [princípios gerais de Direito] as regras supremas do procedimento judicial, como a independência dos juízes e o princípio do contraditório”, como expressamente enfatiza Karl Larenz.[12]
No caso em análise, até à prolação da sentença, o Fundo de Acidentes de Trabalho só interveio no processo no âmbito da fixação provisória de pensão/indemnização.
Nunca deduziu contra o Autor qualquer pedido de reembolso das quantias adiantadas (como se compreende, uma vez que não é possível conhecer antecipadamente o sentido de uma sentença e não teria sentido a dedução de um pedido condicional, para valer apenas em caso de absolvição), nem alguma vez suscitou tal questão nos autos, ainda que em termos apenas implícitos.
O Autor não teve sequer oportunidade, pois, de conhecer (e muito menos de discutir) o fundamento/natureza da pretensa obrigação de restituir, aliás invocada pela primeira vez já em fase de recurso de apelação; tal como não teve o ensejo – a entender-se que essa obrigação existe – de se pronunciar sobre os seus contornos quantitativos.
Por conseguinte, no contexto processual descrito, nunca a sentença proferida na 1ª instância poderia ter-se pronunciado, oficiosamente, sobre a restituição (ou não restituição) ao FAT das aludidas quantias (independentemente da questão substantiva de saber se o FAT a isso tem direito, em situações do tipo daquela que nos autos se discute). E, pelos mesmos motivos - como já se referiu, mas não é demais reafirmar - nunca o legislador poderia ter consagrado tal possibilidade (em situações deste tipo).
Isso seria incompatível com vetores fundamentais/estruturantes do nosso direito processual civil, como é o caso dos princípios da necessidade de pedido e – determinantemente - o do contraditório, dos quais decorre, grosso modo, que o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses sem que isso lhe seja pedido por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (cfr. art. 3.º).
Concomitantemente, representaria uma denegação do princípio da igualdade de armas – que constitui, tal como o do contraditório, manifestação do princípio mais geral da igualdade das partes (cfr. ar. 13º, CRP) -, princípio que “impõe o equilíbrio [igualdade substancial] entre as partes ao longo de todo o processo, na perspetiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respetivas teses”, exigindo, pois, “a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes (…) e um jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo”[13], bem como do princípio do processo equitativo (cfr. art. 20.º, n.º 4, CRP, art. 10º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e art. 6.º, n,º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).[14]
Vale por dizer que do “silêncio legislativo” em análise nenhumas ilações de natureza substantiva é possível extrair: nem as defendidas pelo recorrente; nem as preconizadas na decisão recorrida, ao sustentar que se pretendeu “afastar o direito ao reembolso no caso de ser proferida sentença absolutória”.
20. Todas as razões já expostas (situadas em plano lógico-jurídico diverso daquele em que a questão foi abordada na decisão recorrida) permitiriam desde já concluir que, no caso dos autos, a sentença absolutória proferida na 1.ª instância não podia ter determinado a restituição ao FAT das quantias adiantadas ao Autor; bem como que, merecendo resposta negativa as três primeiras sub-questões acima elencadas, fica prejudicada a apreciação da enunciada em último lugar, como logo inicialmente se referiu.
Todavia, uma última nota se impõe quanto ao específico ponto em que o recorrente - sem razão - argumenta com a pretensa similitude do caso dos autos com o estatuído na lei processual civil em matéria de arbitramento de reparação provisória.
Vejamos.
Em regra, aos interessados cabe solicitar a tutela jurisdicional (princípio da disponibilidade da tutela jurisdicional), formulando um pedido e explicitando a correspondente causa pretendi, sem que o tribunal se lhes possa substituir neste impulso processual.
Não obstante, o legislador estipulou que na decisão final da ação de indemnização, “quando não arbitrar qualquer reparação ou atribuir reparação inferior à provisoriamente estabelecida, condenará sempre o lesado a restituir o que for devido” (art. 390.º, n.º 2, e, identicamente, art. 405.º, n.º 2, do anterior CPC, como já se mencionou).
Compreende-se este regime, uma vez que a ação de indemnização a que se reporta a sobredita disposição legal corre termos entre as mesmas partes que no procedimento de reparação provisória figuram como requerente e requerido, ação no âmbito da qual as partes tiveram oportunidade de cabalmente discutir todas as questões atinentes aos dois procedimentos paralelos. Tal como existe - para além da identidade subjetiva - evidente conexão entre os pedidos deduzidos nos dois procedimentos, bem como entre as correspondentes causas pretendi.
Diferentemente se passam as coisas no caso sub judice, desde logo porque o FAT é alheio à relação jurídica discutida na ação.
Acresce que entre o pedido formulado pelo A. e a pretensão que o Fundo se arroga inexiste qualquer conexão suscetível de justificar que – à margem de qualquer mecanismo processual de modificação subjetiva ou objetiva da instância – o Autor emergisse da demanda, a final, como condenado...
Nenhum paralelismo, deste modo, entre as duas situações.
Sem necessidade de mais desenvolvimentos, improcede, pois, a revista.
V.
21. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar a decisão recorrida, embora com diversos fundamentos.
Custas pelo recorrente.
Anexa-se sumário do acórdão.
Lisboa, 10 de Abril de 2014
Mário Belo Morgado (Relator)
Pinto Hespanhol
Fernandes da Silva
_______________________
[1] Os autos tiveram início em 16.05.2006 e o Acórdão recorrido foi proferido em 04.11.2013.
[2] Tosas as disposições legais citadas sem menção em contrário respeitam ao CPC, na versão aplicável.
[3] Para além disso, no caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeria na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação (art. 636.º, n.º 1, CPC), sendo certo que quando esta disposição legal faz referência aos “fundamentos da ação” está a reportar-se às diferentes causas de pedir inerentes a determinado pedido (Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de processo Civil, p. 91, e Ac. da Rel. de Lisboa de 19/10/06, P. 2755/2006-2, citado pelo mesmo - disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais arestos que se citarem sem indicação diversa).
[4] António Castanheira Neves, Questão de Facto – Questão de Direito, ou o Problema Metodológico da Juridicidade, Almedina, 1967, pp. 35 – 37.
[5] Neste sentido, por exemplo:
- Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 480 – 481: “Não pode a Relação, nem o Supremo, tomar conhecimento de questões não compreendidas no objeto do recurso; mas pode, e deve, julgar procedente essas questões com base em razões jurídicas diversas das invocadas pelas partes, se entender que o provimento do recurso se justifica, não pelos fundamentos jurídicos alegados pelo recorrente, mas por outros”.
- Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora, 4.ª edição, p. 56, também enfatizando a diferença entre questões e argumentos: “O juiz não é obrigado a esgotar a análise de argumentos mas, apenas, a explicar e considerar todas as questões que devam ser conhecidas (…), ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (…)”.
[6] Cfr. Acs. deste Supremo Tribunal de 08.09.2011, P. 407/04.4TBCDR.P2.S1/7ª Secção (Lopes do Rego) e de 20.10.2011, P. 994/2003.4TMBRG.S1.l1/1ª Secção (Gabriel Catarino).
[7] Introdução ao Direito, Almedina, 2013, p. 385.
[8] Cfr., sobre esta problemática, Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 447 e ss., e Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 194 e ss.
[9] Cfr. Baptista Machado, ob. cit., p. 190.
[10] Cfr. Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Fundação Gulbenkian, 1989, pp. 23 e 76 e ss.
[11] Ibidem, pp. 235 – 237.
[12] Ob. cit., p. 215.
[13] Cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípio gerais à luz do novo código, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 136 – 137.
[14] Princípios que o legislador cabalmente salvaguardou, por exemplo, nas situações de pedido de reembolso de montantes pagos em consequência de determinados eventos lesivos, por parte de instituições de segurança social ou do Centro Nacional de Pensões, ao abrigo do disposto no DL n.º 59/89, de 22/2.