I - Os tribunais portugueses são competentes internacionalmente para conhecerem das ações intentadas pelo Estado oficiosamente nos termos dos arts. 1865.º, n.º 5 e 1873.º do CC tendo em vista determinar a paternidade das crianças cuja inscrição de nascimento se efetivou nos registos civis ou nos serviços consulares portugueses.
II - O direito do Estado acionar jure proprio tendo em vista assegurar o direito constitucional das crianças com menos de dois anos à sua identidade pessoal não pode tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em tribunal português.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. O Digno Magistrado do Ministério Público propôs no dia 27-10-2012 ação de investigação de paternidade contra AA, de nacionalidade portuguesa, residente no bairro de …, Rua …, …, …, Luanda pedindo que se reconheça como sua filha a menor ..., nascida no dia … de outubro de … em …, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, ordenando-se o averbamento de tal paternidade e da avoenga paterna no assento de nascimento daquela.
2. Consta do assento de nascimento registado no Consulado Geral de Portugal em Manchester, Reino Unido sob o n.º … do ano … que a referida BB é filha de CC, residente em ……, …, Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte.
3. Foi proferido despacho convidando o Ministério Público a esclarecer onde ocorreu o relacionamento entre o réu e a mãe do menor e, caso este não tenha ocorrido em Portugal, para se pronunciar, querendo, sobre a exceção de incompetência absoluta, esclarecendo o Ministério Público que, lavrado no Consulado Geral de Portugal, no Reino Unido, o assento de nascimento da menor, a respetiva documentação foi remetida à Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa e, perante a omissão de paternidade da mesma, iniciou-se em Lisboa a presente ação com vista à investigação de paternidade, sendo este tribunal o competente atento o critério de necessidade previsto na alínea d) do n.º1 do artigo 65.º do C.P.C.
4. Foi proferida decisão julgando procedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses visto que " convidado o Ministério Público a esclarecer onde ocorreu o dito relacionamento e, caso este não haja ocorrido em Portugal , para se pronunciar sobre a exceção, o Ministério Público pronunciou-se sobre a exceção o que significa que reconhece que o relacionamento não ocorreu em Portugal".
5. Interposto recurso para o Tribunal da Relação, foi proferido acórdão em 19-11-2013, julgando a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
6. Concluiu o Ministério Público a sua minuta de recurso referindo o seguinte:
- Compete aos tribunais portugueses a preparação e julgamento de ações em que, sendo o menor filho de uma portuguesa, o respetivo assento de nascimento foi lavrado no competente Consulado-Geral de Portugal no Reino Unido.
- Na verdade, as normas de competência internacional servem-se de alguns elementos de conexão com a ordem jurídica nacional para atribuir competência aos tribunais do foro para o conhecimento de uma certa questão.
- A função dos vários critérios enunciados no artigo 62.º do atual Código de Processo Civil (a competência internacional dos tribunais portugueses) depende da verificação de certas circunstâncias.
- No caso em apreço não pode o direito invocado tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão pessoa ou real.
- Quando a ação apresente uma conexão objetiva, relativa ao objeto do processo, ou subjetiva, referida às partes em causa, com uma ou várias ordens jurídicas estrangeiras, pode ser necessário determinar a competência internacional dos tribunais portugueses.
- A alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil tem em vista evitar que o direito fique sem garantia judiciária , atribuindo então competência aos tribunais portugueses por uma razão de necessidade, isto é, quando não seja internacionalmente competente para a ação nenhuma das jurisdições com as quais ela se acha em contacto.
7. Considera-se adquirido que a menor BB nasceu no dia … de outubro de … em … - Reino Unido, foi registada no Consulado Geral em Manchester apenas como filha de CC pois, como refere o recorrente, " a mãe da menor é cidadã portuguesa e daí que tenha procedido ao registo da mesma no indicado Consulado", tendo o demandado a nacionalidade portuguesa.
8. Mais se considera adquirido que a presente ação foi instaurada na sequência de averiguação oficiosa de paternidade que correu termos na Procuradoria da República da comarca de Lisboa, considerando o Procurador da República que, face aos elementos recolhidos, é viável a propositura da ação de investigação de paternidade, tendo sido determinado, por decisão judicial, a remessa dos autos ao Ministério Público junto das Varas Cíveis de Lisboa no sentido de instaurar a competente ação de investigação oficiosa de paternidade por existirem provas seguras da paternidade do menor.
Apreciando
9. A questão a decidir nestes autos consiste em saber se os tribunais portugueses são competentes em razão da nacionalidade para conhecerem de ação de investigação de paternidade proposta pelo Estado português representado pelo Ministério Público, na sequência de averiguação oficiosa de paternidade de criança nascida no Reino Unido, filha de portuguesa residente no Reino Unido, sendo demandado cidadão português residente em Angola.
10. O preceito que está em causa é o artigo 65.º/1, alínea d) do C.P.C. de 1961 com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, em vigor à data em que a ação foi proposta que diz:
1- Sem prejuízo do que se acha estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias […]
d) Não poder o direito invocado tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, ou constituir para o autor dificuldade apreciável a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
11. A redação anterior do preceito, que vinha da revisão de 1995/1996, era esta:
1- A competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias[…]
d) Não poder o direito invocado tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
12. O texto atual da lei reproduz o anteprojeto elaborado pelo Prof. Lebre de Freitas que justificou a alteração nestes termos:
" Substitui-se, na alínea d), a expressão ' não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro" que postula a prévia definição da causa de inexigibilidade. A alteração proposta é conforme com o sentido da modificação proposta por Ferrer Correia/Correia Pinto que a boa interpretação do texto de 1995 levará a perfilhar" ("A Revisão do Código de Processo Civil e o Processo Executivo" , O Direito, Ano 131.º, 1999, I-II, pág. 15-90 e, em particular, pág. 31).
13. Este preceito consagra o princípio da necessidade (forum necessitatis). O primordial objetivo visado por esta disposição é " evitar que, em caso de conflito negativo de jurisdições, um direito fique sem garantia judiciária - obstar em suma, à denegação de justiça. Trata-se de uma emanação do dever geral que incumbe ao Estado de garantir o acesso à justiça para tutela dos direitos (cf. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e que, por essa razão, sempre seria de admitir mesmo na ausência de expressa previsão legal" ("Breve apreciação das disposições do anteprojeto do código de processo civil que regulam a competência internacional dos tribunais portugueses e o reconhecimento de sentenças estrangeiras" por A. Ferrer Correia e F.A. Ferreira Pinto, Revista de Direito e Economia, Ano XII, 1987, pág. 25-64).
14. A segunda parte da alínea d) do mencionado artigo 65.º/1 do C.P.C. tem em vista a solução a dar àqueles casos em que, apesar de não haver impossibilidade jurídica ou sequer prática de aceder aos tribunais de um Estado estrangeiro, a situação se apresente em moldes tais que não seja exigível impor ao interessado que o faça. Pense-se na hipótese de esse Estado se encontrar em guerra ou de o demandante, seu nacional, se ter exilado por razões políticas, correndo a sua liberdade grave risco se a ele retornar. Parece razoável assimilar tais situações às de verdadeira impossibilidade, devendo flexibilizar-se a fórmula legal de modo a abrangê-la no seu âmbito. Tal nos parece ser até exigido por uma compreensão material do próprio dever de tutela judiciária dos direitos por parte do Estado" (Ferrer Correia, loc. cit., pág. 39).
15. A fórmula legal atual, substituindo o conceito de "inexigibilidade" pela expressão, crê-se que mais flexível ainda, de "dificuldade apreciável", permite considerar certas situações que, não sendo assimiláveis à impossibilidade, como as que resultam dos apontados exemplos, evidenciam um grau de dificuldade que permite fundadamente supor que a parte não arrostará com uma ação num Estado cuja ordem jurídica seja norteada por regras e princípios muito diversos da ordem jurídica portuguesa ou que, pela distância e dificuldades de língua, imponha custos desproporcionadamente elevados dificilmente suportáveis por um português de condição média, constituindo tal situação um modo de denegação de justiça. Não se deve, porém, reconduzir à " dificuldade apreciável" o facto de a ação ter de ser proposta no estrangeiro, em país distante, mas situado na Europa e de a língua desse país, no caso a Roménia, ser pouco falada em Portugal, como se decidiu no Ac. da Relação de Guimarães de 18-12-2006, rel. João Proença e Costa, C.J.,5, pág. 294.
16. Não se suscitando dúvida de que, no caso vertente, a mãe e o réu demandado, pretenso progenitor, são de nacionalidade portuguesa - veja-se que o artigo 8.º/1, alínea b) do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, prescreve que " os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no estrangeiro que pretendam que lhes seja atribuída a nacionalidade portuguesa devem manifestar a vontade de serem portugueses por uma das seguintes formas […] b) Inscrever o nascimento no registo civil português mediante declaração prestada pelos próprios, sendo capazes, ou pelos seus legais representantes, sendo incapazes e o artigo 9.º/1 diz que " a inscrição de nascimento nas condições previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior, é efetuada nos serviços consulares portugueses ou na Conservatória dos Registos Centrais - existe efetivamente um elemento ponderoso de conexão pessoal - a nacionalidade - entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa; de igual modo não se suscita dúvida de que a competência internacional dos tribunais portugueses deve ser vista à luz do disposto no artigo 65.º/1, alínea d) do C.P.C./61 a que corresponde, sem alterações significativas, o artigo 62.º, alínea c) do C.P.C. de 2013 visto que o Regulamento (CE)n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial exclui da sua aplicação " o estado e a capacidade das pessoas singulares" (artigo 1.º/2, alínea a).
17. Acresce que o Ministério Público não invocou nenhuma razão que permita considerar que ocorre uma dificuldade apreciável na instauração da presente ação no Reino Unido ou no Estado de Angola sendo evidente que os exemplos dados são de todo inaplicáveis a qualquer dos mencionados Estados; tão pouco foi alegado que, com base no direito material resultante do sistema de conflitos daqueles Estados, ocorresse uma impossibilidade jurídica de tutela de um direito que, no entanto, era reconhecido ordem jurídica portuguesa. Compreende-se, assim, que, nesta perspetiva, a Relação tenha considerado que "não só não foram alegados factos donde decorra uma impossibilidade jurídica, como não se vislumbra qualquer dificuldade apreciável na propositura da ação nos tribunais estrangeiros, tanto mais que vivendo a mãe e o menor no Reino Unido e o pai em Angola, e sendo ambos os progenitores naturais de Angola, é de supor estarem os Tribunais ingleses ou angolanos melhor posicionados para conhecerem do mérito da ação".
18. Afigura-se-nos todavia que o caso em apreço deve subsumir-se ao disposto na primeira parte do artigo 65.º/1, alínea d) que diz " não poder o direito invocado tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português".
19. Com efeito, a presente ação de investigação de paternidade constitui uma ação em que o direito à investigação de paternidade cabe ao Estado Português atuando jure proprio na defesa do interesse do Estado em assegurar a efetivação do direito à identidade pessoal consagrado no artigo 26.º/1 da Constituição da República, pois " existe um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e da maternidade" (Constituição Portuguesa Anotada por Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Tomo I, 2.ª edição, pág. 609).
20. Para esse efeito, a lei portuguesa organizou um processo administrativo de averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade ( artigos 1808.º a 1813.º e 1864.º a 1868.º do Código Civil) tendo em vista viabilizar o exercício fundamentado pelo Estado do direito à investigação de paternidade das crianças registadas sem identificação do progenitor ( ou da progenitora).
21. Ora o direito que está aqui em causa não é o direito da criança menor ou do adulto à sua identidade pessoal realizado por via da ação de investigação de paternidade instaurada pelos próprios, mas o direito do Estado a investigar e propor oficiosamente ação de investigação de maternidade ou de paternidade das crianças registadas sem progenitor identificado; tal direito está limitado, pois a mencionada ação não pode ser intentada se a mãe e o pretenso pai forem parentes ou afins em linha reta ou parentes no segundo grau da linha colateral e já tiverem decorrido dois anos sobre a data do nascimento.
22. Vistas as coisas sob esta perspetiva, o direito em questão, o direito do Estado, prosseguindo e assumindo interesse público de investigar a paternidade ( ou maternidade) das crianças menores de dois anos de idade registadas em Portugal, não pode tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, razão por que os tribunais portugueses são competentes em razão da nacionalidade à luz do disposto no artigo 65.º/1, alínea d) do C.P.C./61 e 62.º,alínea c) do C.P.C. de 2013.
23. Não se conclua daqui que, fora destes casos de ação proposta jure proprio, em situações similares os tribunais portugueses não sejam competentes internacionalmente. Por exemplo, se a ação de investigação de paternidade não puder ser proposta pelo Estado em representação dos menores por assim o não permitir a lei do Estado da residência do progenitor ou do Estado onde decorreu a gestação da criança, não se exclui que tal situação se subsuma à referida 1.ª parte da alínea d) do n.º1 do artigo 65.º do C.P.C.; veja-se, neste sentido, o Ac. da Relação do Porto (rel. Sampaio da Nóvoa) que, no seu sumário, diz: " não sendo, em França, conferida ao Ministério Público a possibilidade de autonomamente intentar ação de investigação de paternidade, o direito de investigar a paternidade do menor só por meio de ação proposta em tribunal português se pode tornar efetiva - alínea d) do n.º1 do artigo 65.º do Código de Processo Civil - sendo certo que entre tal ação e o território português existe o requisito 'elemento ponderoso de conexão pessoal' exigido naquela alínea, visto o autor ser o Estado português e o menor residir em Portugal.
24. Não é este o caso que temos aqui em análise e se a ele nos referimos foi para evidenciar que o entendimento exposto, no que às ações de investigação oficiosa de paternidade respeita, não impõe, quanto a outras situações, raciocínio " a contrario sensu".
Concluindo
I- Os tribunais portugueses são competentes internacionalmente para conhecerem das ações intentadas pelo Estado oficiosamente nos termos dos artigos 1865.º/5 e 1873.º do Código Civil tendo em vista determinar a paternidade das crianças cuja inscrição de nascimento se efetivou nos registos civis ou nos serviços consulares portugueses.
II- O direito do Estado acionar jure proprio tendo em vista assegurar o direito constitucional das crianças com menos de dois anos à sua identidade pessoal não pode tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em tribunal português.
Decisão: concede-se a revista, julgando-se internacionalmente competentes os tribunais portugueses, impondo-se consequentemente o prosseguimento da presente ação de investigação de paternidade.
Sem custas
Lisboa, 15-5-2014
Salazar Casanova (Relator)
Lopes do Rego
Orlando Afonso
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[1] Processo distribuído no Supremo Tribunal de Justiça no dia 22-4-2014 [P. 2014/422 2082/12].