I - Uma congregação religiosa constitui uma pessoa jurídica pública, integrante de um instituto religioso de vida consagrada e, como tal, os seus bens são eclesiásticos e estão sob a gestão da Igreja, regendo-se a sua disposição pelo direito canónico e pelos estatutos da instituição, tendo, em princípio, capacidade para adquirir e alienar bens temporais, a não ser que respectivos documentos constitutivos esta capacidade se exclua ou coarcte.
II - Compete à Conferência Episcopal Portuguesa fixar e actualizar os quantitativos referentes a actos de administração extraordinária em que se inclui, v.g, a alienação de bens imóveis, e dos quais depende o seu licenciamento e a necessidade de intervenção das entidades com poder para o conceder.
III - São requisitos substantivos, e cumulativos, da acessão industrial imobiliária, em caso de obras: a) a incorporação da construção em terreno alheio; b) com materiais pertencentes ao autor; c) de boa fé; d) e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes.
IV - A totalidade do prédio a que alude o normativo do citado art. 1340.º do CC, atentos os fins da acessão, só pode considerar-se como sendo a nova unidade económica formada pelo terreno e pela construção edificada, já que é apenas relativamente a estes que existe o conflito de direitos que a lei quer resolver; a aquisição por acessão tanto pode abranger a totalidade do prédio como a parte em que se incorporaram as obras, sendo essencial que com estas se tenha formado uma unidade económica distinta.
V - Para se considerar preenchido o requisito relativo ao valor acrescentado apenas cumpre encontrar a diferença entre o valor desta nova realidade económica, resultante da incorporação, e o valor que o terreno onde a edificação foi construída tinha antes.
VI - Os destaques podem ser levados a cabo no perímetro urbano sem prévio licenciamento ou autorização desde que as duas parcelas dele resultantes confrontem com arruamentos públicos, o que exclui a relevância de caminhos de natureza privada ou de servidões prediais que permitam o acesso a prédios encravados, e a construção erigida ou a erigir disponha de projecto aprovado pela câmara municipal (cf. art. 6.º do RJUE).
VII - Fora do perímetro urbano, a lei exige, cumulativamente, que na parcela destacada só seja construído edifício destinado exclusivamente a fins habitacionais e não tenha mais de dois fogos e que na parcela restante se respeite a área da unidade de cultura fixada para a região.
VIII - O destaque apenas está dispensado de prévio processo de licenciamento ou de autorização, se nele for dado cumprimento aos requisitos substanciais referidos em VI e VII. Esta verificação constitutiva deve ser objecto de certidão de admissibilidade de destaque e, não o sendo, não pode ser certificada a sua regularidade, devendo ser recusado.
IX - Em concreto, a acessão não deve ser reconhecida, como forma originária de aquisição do direito de propriedade, se os recorrentes não se muniram de uma certidão, nem facultaram qualquer justificação para essa sua omissão, impossibilitando o tribunal de aferir da conformidade do dito destaque com as regras que regulam as operações de fraccionamento para fins urbanísticos.
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I.
AA S.A, com sede no Porto, incorporada por fusão em 2003, na sociedade BB – ... S.A, com sede em ..., ..., instaurou acção declarativa de condenação, com processo ordinário contra CC, DD e EE, pedindo o reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a construção levada a cabo pelos Réus, por via do instituto da acessão industrial imobiliária, nos termos do nº 3, do art. 1340º, do Código Civil, e os Réus obrigados a desocuparem a casa construída que ocupam ou quem esta ocupar, sita na ..., Rua ..., nº …, no Porto, totalmente livre de pessoas e bens, sob pena de serem condenados a ter que indemnizar a demandante em quantia a liquidar em sede de execução de sentença, e, por fim, autorizar a autora a proceder à demolição da área total da obra (cerca de 300 m2) construída pelos Réus.
Alega em resumo que adquiriu, pelo preço de 350.000.000$00/1.745.792,64 €, à FF, o prédio misto de que esta era dona e legítima proprietária dominado «...», no qual, com a autorização da mesma congregação, os RR. edificaram construção destinada a servir de casa de guarda.
E conforme o articulado, uma vez que a referida congregação transferiu toda a sua comunidade para Lamego, não ficando ninguém no convento, à excepção do guarda, ora 1º R. e da sua família os 2º e 3º RR. deixou de existir necessidade de guarda ou de casa destinada à habitação do mesmo, ficando a Autora mandatada para exigir a devolução do local ocupado pelos RR. ou aquisição das obras construídas, o que os demandados recusam, apesar da falta de título e sob pena de causarem à Autora enormes prejuízos por atrasos no desenvolvimento do projecto imobiliário previsto para o prédio com uma área total 18.158 m2 e, apesar do valor insignificante da construção levada a cabo pelos RR. numa área de 300 m2.
Citados os RR. contestaram, arguindo a ilegitimidade da A. e impugnando em parte, a factualidade alegada por esta. Invocam ainda abuso de direito por parte da autora.
Deduziram reconvenção pedindo que Réus/Reconvintes sejam reconhecidos como únicos e legítimos donos e proprietários da parcela de terreno em causa nestes autos, com a área de 300 m2, perfeitamente delimitada e murada, situada na extremidade do terreno da A., com entrada pela Rua ..., nº …, da freguesia de ..., Porto, decorrente do instituto de usucapião. Sem prescindir, e, subsidiariamente, pedem o seu reconhecimento como únicos e legítimos donos e proprietários da parcela de terreno identificada e em causa nesta acção, igualmente decorrente do instituto de acessão industrial imobiliária, contra o pagamento do correspondente valor do terreno à A., sempre inferior a 3.000.000$00, em qualquer dos casos a A. condenada a reconhecer os RR. como únicos e legítimos donos e proprietários da referida parcela de terreno, abstendo-se de qualquer outro acto turbador da legítima propriedade e posse dos RR. relativamente à mencionada parcela.
Houve réplica e tréplica.
Teve lugar, por falecimento da co-ré DD, a habilitação dos respectivos herdeiros.
Decorridos demais trâmites, teve lugar a audiência de julgamento e proferida a sentença, após apelação, foi ordenada sua repetição para produção, nomeadamente, de prova pericial.
Finda nova audiência, e, decidida a matéria de facto foi proferida sentença que julgou “a presente acção procedente, condenando, consequentemente, os RR. a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a construção levada a cabo pelos RR. por via do instituto da acessão industrial imobiliária, nos termos do nº 3, do art. 1340º, do Código Civil, e os RR. obrigados a desocupar a casa construída que ocupam, por si ou outrem, sita na ..., Rua ..., nº …, no Porto, totalmente livre de pessoas e bens, sob pena de serem condenados a ter que indemnizar a A. em quantia a liquidar em sede de execução de sentença, e, por fim, autorizar a A. a proceder à demolição da área total da obra (cerca de 300 m2) construída pelos RR com obrigação de indemnizarem os RR no valor dessas obras ao tempo da incorporação , no montante de € 35.511,00 a actualizar, por referência ao ano de 1984, segundo os índices de preços no consumidor publicadas pelo Instituto Nacional de Estatísticas, até a data da presente sentença, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente sentença até efectivo e integral pagamento, mais julgando improcedente, por não provada, a reconvenção deduzida, absolvendo, em consequência a reconvinda dos pedidos a esse título formulados”.
Inconformados, dela recorreram os RR. CC e Outro mas viram sucumbir a apelação que foi julgada improcedente, confirmando a Relação do Porto a sentença recorrida.
É deste acórdão que vem interposta pelos mesmos RR., a presente revista cuja alegação é finalizada pelas seguintes conclusões:
QUANTO À PRIMEIRA QUESTÃO
1 -Tendo em consideração a matéria das alíneas v), x) e z) dos factos assentes, o incumprido despacho de 0…., o disposto no CIC (Código da Igreja Católica) ou CDC (Código de Direito Canónico) – promulgado em 25/01/1983 e entrado em vigor em …, o Regime Concordatário estabelecido entre a República Portuguesa e a Santa Sé (de 1940), o referido no cân. 634 do CIC, o disposto no art° XIV dos decretos da Conferência Episcopal Portuguesa para a aplicação do novo CIC,
2 - E sendo certo que os institutos religiosos gozam de personalidade canónica autónoma, decorrendo daí a sua capacidade económica, assistindo-lhes a faculdade, nomeadamente, de alienação dos seus bens temporais,
3-O facto é que, para as alienações de valores superiores a Esc. 100.000.000$00 (à data da alienação dos imóveis em causa nos autos da assistente para a autora), actualmente de 300.000.000$00 (1.500.000,00 euros), sempre era (e é) necessária licença da Santa Sé, dada por escrito, especificando o acto concreto a que se destina, incluindo parecer dno respectivo Conselho e precedida de avaliação pericial e escrita (cfr., cân. 1291-1295 do CIC) – o que tudo era (à data da alienação) aplicável à assistente "Comunidade ...".
4 - Em consequência, a credencial exibida aquando da escritura (acto alienante) é, portanto, insuficiente para os necessários poderes de representação e validade da emissão da respectiva declaração negocial.
5 - No caso concreto, o notário público responsável pela outorga daquela escritura, teria sempre e em primeira linha de aferir da legitimidade do interveniente de direito canónico para o acto, devendo, nomeadamente, averiguar do respeito pelos controles canónicos e da validade da emissão da declaração negociai.
6 - O que não foi feito, pelo que o negócio jurídico celebrado é ineficaz na ordem jurídica interna portuguesa, e portanto incapaz para a produção de efeitos civis, por nulidade absoluta
7 - Tanto mais que o documento de fls. 189 não substitui tal licença nem foi feita prova de que tal documento tenha sido exibido ou arquivado no cartório notarial em causa.
8 - O artigo 406° n° 2 do Código Civil nem se aplica aos casos de nulidade, nem se aplica à situação "sub judice" de ineficácia do negócio de compra e venda (cfr., ainda, o art° 286 do mesmo diploma).
9 - Nos termos dos cânones 330 e sgs, especialmente os do 333° do CDC, do estipulado pela própria Conferência Episcopal Portuguesa (antes referido), do valor do negócio, e da falta de licenciamento pela Santa Sé, decorre que o negócio em causa é nulo, quer face à lei canónica quer face à lei civil.
10 - É nos estatutos e na própria lei canónica que se estabelece não só quais os órgãos que representam a entidade assistente mas também o modo como se forma a sua vontade.
11 - A vontade ou a declaração são, assim, imputáveis à pessoa colectiva, quando e só quando respeitem a lei e os Estatutos.
12 - Faltando a aludida licença da Santa Sé, a assistente Comunidade não formou a sua vontade para validamente dispor do seu património.
13 - Nos termos do art° 268° n°1, 245° e 246° do C. Civil, a declaração não produz qualquer efeito, pelo menos, em caso de falta de vontade.
14 - Se a declaração negocial não é pronunciada por quem tem o poder de a emitir, a declaração negocial não pode ser imputada ao declarante.
15 - Não tendo sido emitida a declaração negociai, com a referida licença, o negócio efectuado pela Assistente com a Autora não pode existir como sendo um negócio da Igreja.
16 - E como tal é inexistente; e, sendo inexistente, não produz qualquer efeito; não existindo como negócio dela (inexistência, nulidade essencial, e não ineficácia, nulidade relativa).
Acresce que,
17 - Por força do art° 65°-A do CPC e do disposto no art° 8° n° 2 da Constituição, se o tratado internacional, a que o Estado Português se vinculou, determina e regula determinados pressupostos para que sejam válidos contratos relativos a imóveis, tal significa que a lei interna ordinária deve respeitar tal compromisso internacional, e ser consequentemente interpretada de harmonia com as implicações que dele resultam.
18 - De acordo com a "Concordata" (designação do tratado internacional celebrado entre a Santa Sé e o Estado Português), este está obrigado a ter em conta o direito canónico às situações nele contempladas, ainda que, como no presente caso, através da jurisdição ou órgãos jurisdicionais estaduais (por força do citado art° 65º.A do CPC).
19 - Nomeadamente, as disposições do CIC 1 CDC antes referidas.
20 - Ao ter considerado válida e eficaz (designadamente quanto às partes dos presentes autos) a transmissão operada entre a comunidade das "...s" e a sociedade "AA" da denominada "...", violou a douta sentença recorrida o disposto no nos art°s 245, 246, 268 n° 1 e 286 do C. Civil, os cânones 330 e sgs (especialmente o 333), os cânones 638, 1291, 1295 e 1296 do CIC / CDC, o artigo 3° da Concordata, e o artigo 8° da Constituição da República Portuguesa.
QUANTO À 2a QUESTÃO:
21 - O direito de acessão imobiliária pertence, não à Autora, como ficou decidido, mas aos réus reconvintes (como se pretende seja decidido).
22 - O prédio (parcela de terreno) de que os réus-reconvintes se referem no pedido subsidiário apresentado nestes autos, é constituído pela área de aproximadamente 300 m2 onde edificaram as suas habitações, e não a totalidade do imóvel de que a autora se arroga proprietária nestes autos.
23 - Em tal prédio, a autorização da construção implicou a desanexação da parcela e, após tal desanexação e construção (devidamente licenciada pela C. M. P. ), a mesma passou a constituir um prédio distinto e uma nova unidade daquele de que fazia parte.
24 - A isso leva a matéria de facto relevante, dada como provada a tal respeito e constante dos pontos 1, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 26, 29, 33, 36, 37, 40, 41, 42, 43, e 44 que aqui se dá como integrada e reproduzida.
25 - Em consequência, estamos perante: (1) uma construção levada a cabo pelos réus, de boa fé, de forma pacífica, pública e autorizada (designadamente, pela então proprietária da ...); (2) construção essa no valor de 35.511,00 euros, reportada a 1984 (sujeita à actualização decretada na sentença sub judice); (3) edificada num terreno perfeitamente autonomizado, delimitado e separado da parte restante dessa quinta, confrontando com via pública e entrada completamente autonomizada; (4) terreno esse com o valor actual de: 300 m2 x 100 euro = 30.000 euros; (5) ou seja, de valor muito inferior ao da construção; (6) construção essa devidamente legalizada e licenciada pela C. M. Porto; (7) constituindo uma unidade económica autónoma.
26 - Assim, só se pode concluir que: (1) não se verificam os pressupostos para que o direito de acessão imobiliária possa ser exercido pela sociedade autora; pelo contrário, (2) não só se verificam os requisitos para o direito da acessão imobiliária poder ser exercido pelos recorrentes; (3) como, também, esse desiderato não implica uma situação violadora das regras relativas ao fraccionamento de prédio ou às operações de loteamento urbano — cfr art° 1377º al. c/ do C. Civil e artº2º alínea a) do DL 448/91 de 29/11.
27- A situação dos autos enquadra-se, na excepção ao licenciamento dos loteamentos prevista no art° 5° daquele diploma.
28 - Pois que o destaque pode ser levado a cabo no perímetro urbano sem prévio licenciamento ou autorização desde que as duas parcelas dele resultantes confrontem com arruamentos públicos – como é o caso - e a construção erigida disponha de projecto aprovado pela câmara municipal – o que também acontece.
29 - Do todo o exposto resulta, portanto, e ao invés da decisão sob recurso (que violou por erro de interpretação, o disposto nos citados preceitos e diplomas legais), a verificação dos requisitos para a aquisição por acessão por parte dos réus, já que da mesma não resulta a divisão ilegal do prédio dos autores, mormente, por violação de normas de carácter imperativo relativas ao loteamento ou destaques.
Termos em que deve ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que julgue no sentido defendido nos dois itens antecedentes.
Corridos os vistos, cumpre apreciar.
As questões da revista centram-se na nulidade do contrato de compra e venda da “...”, celebrado entre a A. e a interveniente, FF e no reconhecimento da aquisição do direito de propriedade, por acessão imobiliária que os RR reclamam.
II.
A - É a seguinte a matéria de facto dada como provada nas instâncias:
1 - Com data de 21 de Dezembro de 1999, mediante contrato que denominaram de promessa de compra e venda, tendo como 1.ª outorgante a FF, em nome desta foi prometido vender, o prédio misto, de que se intitulou dona e legitima proprietária, denominado de “...” também conhecido por “…”, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho do Porto, descrito sob o nº …, e inscrito com o nº …, aí descrito como:
a)casa de dois pavimentos, quintal dependências, sita na Rua ..., inscrita na respectiva matriz urbana sob o artº … e com o valor patrimonial de 5.247$00;
b)casa de dois pavimentos, sita na Rua ..., inscrita na respectiva matriz urbana sob o artº … e com o valor patrimonial de 5.247$00;
c)Casa de dois pavimentos e quintal, sita na Rua ..., inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artº … e com o valor patrimonial de 897.660$00;
d)Aidos, galinheiros, terras de vinha, lavradio, horta, pomar, jardim, bouças com pinheiros e outras árvores, com águas de regras e mais pertenças, sita na Rua ..., inscrita na matriz predial rústica sob o artº … e com o valor patrimonial de 268.884$00 – doc. de fls. 17 a 21, aqui dado por integralmente reproduzido – al. A), da matéria de facto assente.
2 - Com data de 21/7/2000, consta a fls. 23, cópia de missiva dirigida pela GG, Lda a referida congregação ao cuidado da Irmã HH, a indicar e nomear, nos termos da cl. 2.ª do contrato aludido em A), a A. como sociedade a outorgar na escritura definitiva do contrato prometido – doc. de fls. 23 e 24, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – al. B), da matéria de facto assente.
3 - Por sua vez, a fls. 22, datada de 19/7/2000, consta cópia de aceitação de nomeação para outorga da escritura do contrato, dirigida pela A. à identificada congregação – doc. esse que igualmente aqui se dá por reproduzido – al. C), da matéria de facto assente.
4 - Com data de 27 de Julho de 2000, foi celebrada entre a referida congregação religiosa, representada pela Irmã HH, e a A., escritura pública, no 1º Cartório Notarial de ..., em que aquela declara vender a esta o prédio mencionado em A), pelo preço de 350.000.000$00 – doc. de fls. 26 a 30, aqui dado por reproduzido – al. D), da matéria de facto assente.
5 - Em 28 de Junho de 1982, a comunidade das Irmãs FF apresentou na Câmara Municipal do Porto, na qualidade de proprietária da “...” um projecto para a construção de uma habitação destinada ao guarda – doc. de fls. 31 e 32, aqui dado por reproduzido – al. E), da matéria de facto assente.
6 - O projecto veio a ser deferido e deu origem à emissão pela Câmara Municipal do Porto, do Alvará de Licença de Obras n.º … – al. F), da matéria de facto assente.
7 - Em 31 de Agosto de 1984, as representantes da congregação das FF em Portugal assinaram a declaração de compromisso de fls. 19/20 com os Réus, mediante a qual, estes, comprometeram-se e declarar que são os únicos responsáveis pela construção de um prédio destinado à casa do guarda da comunidade da dita congregação a levar a efeito nos termos do Alvará de Licença de obras referido em E) – al. G), da matéria de facto assente.
8 - Nos termos da cláusula 2ª da declaração de compromisso referida em F), os Réus comprometeram-se, a expensas suas, a realizar a dita construção mas apenas e exclusivamente na pequena parte do terreno destinada a esse efeito – al. H), da matéria de facto assente.
9 - Ainda segundo a cláusula 10ª da mesma declaração, os pisos só poderiam ser ocupados pelos Réus ou seus directos familiares e nunca por estranhos, comprometendo-se ainda a não darem outro destino ao prédio – al. I), da matéria de facto assente.
10 - A construção da casa referida em D) ficou sob a inteira responsabilidade dos Réus – al. J), da matéria de facto assente.
11 - A obra foi embargada pelos serviços da Câmara Municipal do Porto segundo informação de 21/05/1985 – doc. de fls. 34 e 35, aqui dado por reproduzido – al. L), da matéria de facto assente.
12 - Tendo a referida Congregação religiosa apresentado na Câmara Municipal do Porto projecto de legalização – doc. de fls. 36 e 37, aqui dado por reproduzido – al. M), da matéria de facto assente.
13 - Bem como a alteração ao projecto referido em E), requerendo que o prédio passasse a ser composto por dois corpos, sendo que o 1º teria dois pisos, destinados à casa de guarda do Mosteiro e o 2º corpo, igualmente com dois pisos, para fins de ocupação de tempos livres, providos de sanitários e logradouro para recreio descoberto – doc. de fls. 38 e 39, aqui dado por reproduzido – al. N), da matéria de facto assente.
14 - Os técnicos deram a sua conformidade ao projecto e assinaram o termo de responsabilidade de acordo com essas alterações que apresentaram na C. M. do Porto em 18/03/1987 – doc. de fls. 41/42, aqui dado por reproduzido – al. O), da matéria de facto assente.
15 - Em 14/09/1987, a Comunidade das Irmãs FF solicitou a prorrogação da licença de construção por mais 365 dias – doc. de fls. 47, aqui dado por reproduzido – al. P), da matéria de facto assente.
16 - Dá-se aqui por reproduzido o teor dos docs. juntos de fls. 43 a 46 – al. Q), da matéria de facto assente.
17 - Pedido que foi deferido em 28/10/1987 e autorizada a construção até à data de 19/09/1988 – doc. de fls. 48, aqui dado por reproduzido – al. R), da matéria de facto assente.
18 - Na cl. 5.ª, ponto 2, do contrato aludido em A), consignou-se que “as primeiras outorgantes a segunda outorgante para negociar com os referidos CC, mulher e filho a devolução do local que ocupam ou a sua aquisição” – al. S), da matéria de facto assente.
19 - A construção referida em D), levada a cabo pelos Réus ocupa uma área de 300 m2, num prédio de 18.158 m2, tendo entrada pela Rua ..., …, freguesia de ..., concelho do Porto – al. T), da matéria de facto assente.
20 – A A. pretende urbanizar o prédio referido em A)– al. U), da matéria de facto assente.
21 - Da credencial, cuja cópia se encontra junta a fls. 150, fez saber o seu subscritor que a comunidade das FF é representada pela Irmã HH, com poderes, entre o mais, para celebrar o contrato promessa de compra e venda e respectiva escritura atinente ao imóvel id. em A) – doc. esse que aqui se dá por integralmente reproduzido – al. V), da matéria de facto assente.
22 - Por sua vez, a fls. 190, consta cópia de uma comunicação, tendo como subscritor o Sr. Arcebispo-Bispo do Porto, de não oposição à supressão da ... e inexistência de objecção à alienação do Mosteiro – al. X), da matéria de facto assente.
23 - Por último, resulta dos docs. de fls. 271/272, que a congregação II e JJ, ouvido o parecer do Ordinário do Lugar, autoriza a trasladação do Mosteiro e respectiva alienação conforme pedido formulado – al. Z), da matéria de facto assente.
24 - O consentimento dado pelas Irmãs FF para a construção da casa referida em D) foi para que a mesma se destinasse exclusivamente a casa do guarda da Quinta – resposta à matéria do art. 1.º, da base instrutória.
25 - As quais só negociaram a autorização da construção nessa condição e com esse fim determinado de habitação do guarda da congregação religiosa – resposta à matéria do art. 2.º, da base instrutória.
26 - Em consequência do embargo referido em L), da matéria de facto assente, as obras ficaram suspensas, tendo sido apresentado projecto de legalização, que veio a ser deferido – resposta à matéria do art. 3.º, da base instrutória.
27 - Quando FF em Portugal venderam a “...” e transferiram toda a sua congregação para a cidade de Lamego, não ficou ninguém no convento nem no prédio, à excepção do guarda ( 1º Réu ) e da sua família ( 2º e 3º Réus ) – resposta à matéria do art. 4.º, da base instrutória.
28 - Tendo assim deixado de existir necessidade de um guarda ou de uma casa destinada à habitação do mesmo – resposta à matéria do art. 5.º, da base instrutória.
29 – Nunca chegou a existir casa social para ocupação de tempos livres – resposta à matéria do art. 6.º, da base instrutória.
30 – À data de 18.01.08, os Réus habitavam o prédio em questão há mais de 18 anos – resposta à matéria do art. 7.º, da base instrutória.
31 - Os Réus, já antes mesmo de 1982, prestavam serviços à comunidade religiosa “FF em Portugal”, concretamente de reparação dos muros que delimitavam a Quinta, de pichelaria e outros arranjos ligados à construção civil – resposta à matéria dos arts. 8.º e 9.º, da base instrutória.
32 - Tais serviços eram realizados sem a real contrapartida económica – resposta à matéria do art. 10.º, da base instrutória.
33 - A dita parcela ocupada pelos RR. foi e ficou totalmente delimitada, na parte em que tal não ocorria, com a construção, aí, do referido edifício – resposta à matéria dos arts. 14.º e 15.º, da base instrutória.
34 - Os Réus continuaram a prestar serviços de construção civil e pichelaria, compensando-os a Comunidade com produtos da Quinta - – resposta à matéria do art. 17.º, da base instrutória.
35 – Os RR. procederam a reparações/arranjos do muro que delimita a Quinta – resposta à matéria do art. 18.º, da base instrutória.
36 - Tendo por referência o ano de 1984, o valor do custo de construção estimado como gasto pelos RR. é de €35.511,00 – resposta à matéria do art. 20.º, da base instrutória.
37 – A parcela referida na al. G), da matéria de facto assente, desde a ocupação pelos Réus, encontra-se totalmente delimitada, em parte, através de muros altos – resposta à matéria dos arts. 21.º/31.º, da base instrutória.
38 - Os Réus foram usando e fruindo a parcela em questão aí instalando as respectivas habitações – resposta à matéria do art. 22.º, da base instrutória.
39 – Com os RR. passaram a viver os seus familiares mais próximos (filhos) – resposta à matéria do art. 23.º, da base instrutória.
40 – A ocupação da referida parcela pelos RR. foi feita à vista de todos, sem interrupção, inclusive da Comunidade Religiosa com quem mantinham um relacionamento estreito, ocupando e fruindo o prédio, colhendo os seus frutos, habitando-o e utilizando-o – resposta à matéria dos arts. 24.º e 25.º, da base instrutória.
41 - No ano de 1982, foi apresentado, para efeitos de construção da edificação pretendida, o respectivo pedido na Câmara – resposta à matéria do art. 26.º, da base instrutória.
42 – A Comunidade formalizava junto da edilidade do Porto os requerimentos necessários à realização da obra – resposta à matéria do art. 28.º, da base instrutória.
43 – O valor do terreno é de €100,00/m2 - – resposta à matéria do art. 32.º, da base instrutória.
44 - Relativamente ao referido na al. U), da matéria de facto assente, o projecto é susceptível de ser reformulado, caso a parcela de terreno em causa tenha de ser dele excluída – resposta à matéria do art. 33.º, da base instrutória.
45 - Na área ocupada pelo armazém está previsto a implantação de parte do lote 3 e na parte ocupada pelas habitações está previsto um arranjo urbanístico – resposta à matéria do art. 34.º, da base instrutória.
46 - Os Réus, em 1992, propuseram à Comunidade deixar livre e devoluto o prédio recebendo o dinheiro das obras, calculadas ao tempo da incorporação ou, os RR. comprariam à Comunidade o terreno onde tal construção se encontrava implantada – resposta à matéria do art. 35.º, da base instrutória (cfr. Fls. 1085).
B - As conclusões dos recursos delimitam o âmbito da sua apreciação - conforme decorre do disposto nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1 do Código de Processo Civil - pelo que, exceptuando as questões de conhecimento oficioso, apenas cabe conhecer das questões contidas nessas mesmas conclusões, e que devem ser apreciados pela ordem da sua interposição.
B1 - Insurgem-se os RR. recorrentes contra a sentença que julgou improcedente a reconvenção, insistindo, desde logo, na invalidade do contrato de compra e venda do prédio denominado “...” que a A. celebrou com a FF, através de escritura pública de 27 de Julho de 2000. Como fundamento, alegam em resumo que a aludida transmissão, atento o valor pecuniário envolvido, carecia de licença da Santa Sé, e sem ela, não se chegando a formar a vontade da instituição vendedora, o contrato é nulo, devendo ser dado sem efeito.
Vejamos:
B1 - Na Igreja, além de pessoas físicas, há também pessoas jurídicas que são “sujeitos em direito canónico de obrigações ou de direitos consentâneos com a sua índole”- Cân. 113, §2 do Código de Direito Canónico(1983).
A Congregação acima identificada constitui uma pessoa jurídica pública, integrante de um instituto religioso de vida consagrada e como tal os seus bens são eclesiásticos e estão sob a gestão da Igreja, regendo-se a sua disposição pelo direito canónico e pelos estatutos da instituição – cfr Can. 607, §2 e 1257, §1 do citado Código. E, em princípio, tem capacidade para adquirir e alienar bens temporais, a não ser que nas constituições esta capacidade se exclua ou coarcte.
Ora, para a validade de uma alienação e de qualquer negócio em que a condição patrimonial da pessoa jurídica se possa tornar pior, requer-se licença dada por escrito pelo Superior competente com o consentimento de seu conselho. Se contudo se tratar de um negócio que exceda a soma determinada pela Santa Sé para cada região…requer-se também licença da mesma Santa Sé – cfr Can.634, §1 e 638, §3 daquele diploma.
Compete à Conferência Episcopal Portuguesa fixar e actualizar os quantitativos referentes a actos de administração extraordinária em que se inclui, vg, a alienação de bens imóveis e dos quais depende o seu licenciamento e a necessidade de intervenção das entidades com poder para o conceder.
À data da escritura pública – 27.07.2000 – a alienação de “bens de património estável” de valor igual ou superior a 300.000.000$00 estava sujeita a licença da Santa Sé, como decorria do Decreto daquela Conferência de 3.09.1990, actualizado hoje para 1.500.000€ pelo Decreto de 7.05.2002 (cfr Lúmen, nº3, 2002).
O valor da transmissão do imóvel aqui em questão é bem superior àquele limite fixado pela CEP pelo que, não há dúvida, se tornava necessária a licença de Roma, como insistem os Recorrentes.
Ora, sendo necessária tal licença, é evidente que, na sua falta, não havia senão que concordar com os Recorrentes quanto à sua consequência jurídica: a alienante do imóvel não tinha capacidade para dele dispor, dependendo a validade da formação de sua declaração negocial da concessão dessa mesma licença.
Sucede, porém que, ao contrário do que os Recorrentes insistem em propalar ela consta dos autos, como resulta do ponto nº 23 da matéria de facto acima enunciada, onde se lê: “Por último, resulta dos docs. de fls. 271/272, que a Congregação IIe JJ, ouvido o parecer do Ordinário do Lugar, autoriza a trasladação do Mosteiro e respectiva alienação, conforme pedido formulado” que constituiu a al. Z), da matéria de facto assente.
Como se pode ler na respectiva página, na internet, o Sumo Pontífice vale-se dos dicastérios da Cúria Romana para exercer seu poder supremo, pleno e imediato sobre a igreja universal pelo que estes organismos que a integram é, em nome e com a autoridade dele, que exercem seu ofício. Assim sucede com as Congregações, em especial no que, ora, interessa, com a que se ocupa dos Institutos da Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, isto é, de tudo o que pertence às Ordens e Congregações Religiosas, masculinas ou femininas, institutos seculares e sociedades de vida apostólica quanto aos regimes, disciplina, estudos, bens, direitos e privilégios.
Não restam, pois, dúvidas quanto à autorização da alienação pela Cúria Romana, contida nos documentos a que se faz referência pelo que não tem fundamento a pretensa ineficácia da venda da ..., alegada pelos Recorrentes.
B2 – Resta tratar da verificação dos requisitos para a aquisição, por acessão imobiliária, do direito de propriedade invocado pelos Recorrentes e do eventual fraccionamento ilegal do prédio que dela pode advir, por violação de normas de carácter imperativo relativas ao loteamentos urbano, como se entendeu nas instâncias.
Do disposto no artigo 1340º do CC resulta que são requisitos substantivos da acessão industrial imobiliária, no caso que nos ocupa:
a) a incorporação da construção em terreno alheio,
b) com materiais pertencentes ao seu autor;
c) de boa fé;
d) e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes.
Estes requisitos são cumulativos.
A incorporação é “uma ligação permanente que provoca a perda da individualidade das coisas unidas ao solo, pela formação de uma coisa única, um corpo único, não desmembrável sem alteração da substância do todo” - cfr Quirino Soares, "Acessão e Benfeitorias", CJSTJ, ano IV, Tomo I, 1996, págs. 11 e segs..
Sendo manifesta a existência de incorporação, dos autos decorre ainda que o terreno em que a casa dos RR foi implantada era propriedade da Congregação Religiosa que vem sendo referenciada, portanto, terreno alheio, sendo o conjunto imobiliário final fruído pelos mesmos RR.
Quanto à boa fé: de acordo com o estabelecido no artigo 1340, n.º 4, do CC, existe boa fé quando o autor da obra:
a) desconhecia que o terreno era alheio;
b) ou, conhecendo que o terreno era alheio, foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.
Assim determinados de forma taxativa os casos de boa fé para o efeito da acessão (cfr Pires de Lima e A. Varela, Código Civil, III, p. 149), no caso em apreço, sendo manifesto que os RR. sabiam que o terreno em que edificavam a sua casa era alheio, não restam dúvidas, em face do apurado consentimento da aludida Congregação que essa incorporação foi por esta autorizada.
Vejamos, por fim, se o valor trazido pela obra à totalidade do prédio é ou não maior do que o valor do prédio antes da incorporação, isto é, qual o valor acrescentado. Pela análise do citado artigo 1340º a importância da determinação do valor acrescentado decorre do facto de ser por este item que se estabelece a quem pertence o direito de adquirir, por acessão.
A totalidade do prédio a que alude o normativo do citado artº1340º, atentos os fins da acessão, só pode, efectivamente, considerar-se como sendo a nova unidade económica formada pelo terreno e pela construção edificada, já que é apenas relativamente a estes que existe o conflito de direitos que a lei quer resolver. Tal como vem sendo orientação do STJ a aquisição por acessão tanto pode abranger a totalidade do prédio como a parte em que se incorporaram as obras, essencial é que com estas se tenha formado uma unidade económica distinta (Acs. de 10.02.2000, revista n.º 1208/99 e de 14.02.2002, revista n.º 4402/01 in www.dgsi.pt).
Assim sendo, para se considerar preenchido o requisito relativo ao valor acrescentado apenas cumpre encontrar a diferença entre o valor desta nova realidade económica resultante da incorporação e o valor que o “lote de terreno”onde a edificação foi construída tinha antes.
Ora, considerando que o valor da construção efectuada pelos RR. é manifestamente superior ao valor do terreno onde foi construída, como se veio a provar, é evidente que o valor da nova unidade económica resultante da incorporação é muito superior ao valor que o prédio tinha antes, pois, em termos de valores de mercado de habitação, o valor final da obra incorporada será, pelo menos, igual ao valor da construção acrescido do valor do terreno onde foi implantada.
Estarão, pois, verificados, ao menos, aparentemente, os requisitos apontados, e se bem que a questão não tenha sido colocada (e só por isso se não vai aprofundar), partindo da interpretação restritiva que se defende para o nº1 do artº1340º do CC- cfr P. Lima e A. Varela, com a colaboração de H. Mesquita, CC Anotado, III, ed.1972, p.147/148) - como benfeitoria teria de ser tratada a obra que os RR. ergueram no terreno da então proprietária, a mencionada Congregação, dada a relação contratual anterior (insuficientemente caracterizada, talvez, mas inegável), existente, entre ambos e aquela obra se destinar a servir de habitação ao guarda da instituição, fosse ele quem fosse, portanto, subordinada, funcionalmente, ao todo organizacional que aquela instituição constituía.
Todavia, a acessão acabou por ser recusada pelas instâncias não por falta daqueles requisitos mas, porque na peugada de certa jurisprudência, foi seu entendimento que os tribunais não podem “declarar a aquisição por acessão do direito de propriedade sob uma parcela de prédio alheio sem que dos autos conste a prova, a produzir pelos RR, por se tratar de elemento constitutivo do direito que estes se arrogam, de a Câmara Municipal competente ter emitido o respectivo alvará de loteamento ou por outra forma autorizado o destaque, como resulta do disposto nos arts. 1º, do D.L nº 289/73, de 6/6, 1º e 2º, do Dec. Lei nº 400/84, de 31/2, de 29/11 e 2º-d) e 6º, do Dec. Lei nº 555/99”.
Ora, partindo do princípio de que o licenciamento da obra pela autoridade municipal justificou a sua desanexação e o conjunto final corresponde a nova unidade económica, concluem os Recorrentes pela formação de um novo prédio que não afronta as normas que proíbem o fraccionamento predial, antes pelo contrário, se enquadra na excepção ao licenciamento dos loteamentos previsto no artº5º do RJUE.
B3 – Cabe assim apreciar, se, mesmo admitindo que se mostram verificados os requisitos do direito exercido pelos RR, a final esse desiderato não é possível, por implicar a consolidação pelo julgador de uma situação violadora das regras relativas ao fraccionamento de prédio ou às operações de loteamento urbano.
O Senhor Conselheiro Quirino Soares no estudo acima referenciado acentuou tendência jurisprudencial que já então despontava (e hoje, se julga dominante – cfr., vg, os Acs. de 6/7/06, p.05A4270, de 3/4/03, p.03A663, 3.12.2009, p.1102/03 e 19.04.2012, pº34/09), segundo a qual, nas suas palavras, “…antes de se decidir pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar por efeito de acessão industrial imobiliária, deve o julgador certificar-se de que não irá consolidar uma situação desconforme com as regras que condicionam o fraccionamento dos prédios rústicos e as operações de loteamento urbano, pois o direito que rege uma comunidade e que constitui a respectiva ordem jurídica, deve ser aplicado com o pensamento na harmonia do sistema, de maneira a que os vários institutos, de direito privado e direito público que tenham contacto com o caso a decidir, se harmonizem ou se hierarquizem de acordo com a importância relativa que o legislador lhes atribuiu” E conclui: “nesse sentido, deverá o juiz exigir a prova dos licenciamentos ou dos pareceres favoráveis dos órgãos administrativos competentes que sejam impostos pelos referidos regimes jurídicos do loteamento urbano…” – idem, p.24.
No mesmo sentido, escreve Dulce Lopes, em estudo publicado na revista o Direito, nº10, 2010, p. 22: “as entidades competentes, antes de se decidirem pelo reconhecimento de uma aquisição parcelar por efeito de acessão industrial imobiliária ou de usucapião, devem certificar-se de que não irá consolidar-se uma situação desconforme com as regras que limitam o fraccionamento de prédios rústicos, bem como com as que regulam as operações de fraccionamento para fins urbanísticos”
Como, facilmente, se reconhece, não se configura nos autos hipótese de fraccionamento de terrenos aptos para a cultura (artº1376º e 1377º do CC), desde logo face à natureza do prédio em litígio.
E, quanto ao loteamento, é mais que evidente a sua inexistência, pois não é feita qualquer alusão a essa operação ou ao alvará que a autentica, como seria cúrial, acrescendo, ainda que, mercê da sua definição legal, essa operação implicaria a criação de, pelo menos, dois ou mais lotes (parcelas) de terreno - cfr, – artº2º, al a) do DL 448/91 de 29,11 – o que tão pouco é suposto.
Esta (operação) enquadrar-se-ia, todavia, segundo os Recorrentes na excepção ao licenciamento dos loteamentos prevista no art.º 5º daquele diploma (artº 6º do actual RJUE) – a operação urbanística do destaque, tida como verdadeira operação de loteamento (em sentido estrito) por consistir na divisão de um prédio se bem que na sua expressão mais simples – dois lotes (cfr Fernanda Oliveira e Dulce Lopes, Implicações Notariais e Registais das Normas Urbanísticas, pág 65).
Prevê o referido normativo a possibilidade do destaque de uma única parcela de prédio inscrito na matriz, desde que, cumulativamente, se cumpram os requisitos ai previstos, variáveis consoante ocorra no perímetro urbano ou fora dele.
Os destaques podem ser levados a cabo no perímetro urbano sem prévio licenciamento ou autorização desde que as duas parcelas dele resultantes confrontem com arruamentos públicos, “o que exclui a relevância de caminhos de natureza privada ou de servidões prediais que permitam o acesso a prédios encravados” ( cfr o estudo de Dulce Costa já referenciado, p.24 ) e a construção erigida ou a erigir disponha de projecto aprovado pela câmara municipal. Fora do perímetro urbano, e cumulativamente, a lei exige que na parcela destacada só seja construído edifício destinado exclusivamente a fins habitacionais e não tenha mais de dois fogos e que na parcela restante se respeite a área da unidade de cultura fixada para a região (citado artº5º, nº 1, a) e b) e nº2, a) e b)).
Conforme resulta da matéria de facto supra descrita e dos documentos juntos aos autos, não impugnados, entendendo-se por perímetro urbano os solos urbanizados ou urbanizáveis (segundo João Pereira Reis e outros, in Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, 3ª ed, pág 44), o prédio envolvido na alegada operação está inscrito na respectiva matriz predial, situando-se na freguesia de ..., na cidade do Porto e a construção erigida na parcela destacada obedeceu a projecto aprovado pela entidade competente.
Deve anotar-se, desde logo que, segundo os variados elementos colhidos pela prova, a construção que a esse projecto obedecia, estava subordinada a uma finalidade específica que era a de servir de casa do guarda da comunidade religiosa (mosteiro). Tal condicionalismo afasta por certo qualquer veleidade de, à data em que teve lugar a incorporação em apreço – e é aí que devem verificar-se tanto os pressupostos da acessão como a legitimidade para proceder ao fraccionamento predial - fosse propósito daquela comunidade, legítima proprietária da parcela de terreno nela envolvida, vir a destacá-la ou consentir nesse destaque, pelo que seria de todo absurdo que os Recorrentes pudessem levar a cabo verdadeira acto “expropriativo”, à sua revelia ou contra a sua vontade ou contra a vontade de sua sucessora nessa propriedade.
Acresce que sempre faltaria a verificação de um dos requisitos do destaque pois não está demonstrado que a parcela e a construção nela erigida cuja unidade se pretende autonomizar, confrontem com arruamento público (Rua ...). Na verdade o que resultou comprovado foi:
“33 - A dita parcela ocupada pelos RR. foi e ficou totalmente delimitada, na parte em que tal não ocorria, com a construção, aí, do referido edifício”, e
“37 - A parcela referida na al. G), da matéria de facto assente, desde a ocupação pelos Réus, encontra-se totalmente delimitada, em parte, através de muros altos”.
Ou seja: tendo a construção ocupado inteiramente a parcela de terreno a ela destinada ( os tais 300 m2) e sendo, por sua vez, cercado o conjunto por muros que sempre delimitaram a ... dessa artéria, a confrontação com este arruamento é assegurada pelo terreno em que assentam esses muros, não reclamado pelos Recorrentes por via da acessão e cujo destaque tão pouco por eles foi pretendido.
Ora, o destaque apenas está dispensado do preventivo processo de licenciamento ou de autorização, se nele for dado cumprimento aos requisitos substanciais que foram apontados. Esta verificação constitutiva (cfr a autora e o estudo citados, p.17) deve ser objecto de certidão de admissibilidade de destaque e não o sendo, não pode ser certificada a sua regularidade, devendo ser recusado “… o registo respectivo” (cfr. Fernanda Oliveira e Dulce Lopes, ob cit, 67 e 68).
Parece, porém, antepor-se uma dificuldade para quem como os Recorrentes que, não sendo (ainda) titulares de qualquer direito sobre o objecto do destaque e não detendo, por isso, legitimidade para a sua promoção, não gozem, em consequência, de igual legitimidade para obter essa mesma certidão da entidade competente (artº9º do RJUE).
Dessa dificuldade dá nota a autora do estudo já citado (cfr págs. 22 e 23) que para a contornar admite que tal certidão “que ateste a edificabilidade do prédio seja emitida a pedido de quem não seja proprietário ou titular de um direito sobre o mesmo, por analogia com o regime jurídico aplicável à informação prévia, segundo o qual um interessado pode solicitar a emissão de um acto sobre uma pretensão urbanística relativa a um prédio titulado por terceiro, desde que com as cautelas que este artigo prevê, isto é, se dê a estes o conhecimento daquela pretensão (cfr arts.14º e ss. do RJUE)”. E continua a mesma autora: “esta certidão emitida pela câmara municipal apenas atesta objectivamente, a edificabilidade no prédio que se pretende destacar, ficando o efectivo destaque dependente de um acto, contrato ou decisão judicial, já que são apenas estes que munem o interessado de legitimidade para concretização do destaque”.
Ora, os Recorrentes nem se muniram de uma certidão deste tipo, nem tão pouco dessa sua omissão facultaram qualquer justificação, impossibilitando o tribunal de aferir da conformidade do dito destaque, com as regras que “regulam as operações de fraccionamento para fins urbanísticos”. E, assim, não tendo eles comprovado como lhes competia a certificação pela entidade administrativa competente do alegado destaque da parcela onde aquela edificação foi incorporada, sem ela, como se deixou referido, a acessão não deve ser reconhecida como forma originária de aquisição do direito de propriedade.
Não há, pois, razão para censurar o acórdão recorrido.
III.
Neste termos e pelos fundamentos apontados, nega-se a revista.
Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 20 de Maio de 2014
MARTINS DE SOUSA (Relator)
GABRIEL CATARINO
MARIA CLARA SOTTOMAYOR (Declaração de voto)
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