COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
PROCESSO PENAL
Sumário


I - A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor (art. 847.º do CC).

II - A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário.

III - Para que a extinção da dívida por compensação possa ser oposta ao credor, exigem-se a verificação dos seguintes requisitos: a) a existência de dois créditos recíprocos; b) a exigibilidade (forte) do crédito do autor da compensação; c) a fungibilidade e a homogeneidade das prestações; d) a não exclusão da compensação pela lei; e, e) a declaração de vontade de compensar.

IV - A referida exigibilidade pressupõe que se configure um direito de crédito, decorrente de uma obrigação civil, vencida, incumprida e ainda não extinta.

V - Isso não ocorre quando, como no caso vertente, o crédito invocado depende de uma condenação, a proferir em processo penal, de pessoas singulares e decorrente atribuição de uma indemnização à ré, a pagar solidariamente pelos seus autores materiais, pela autora e outra pessoa colectiva, pelo deve o mesmo ser tido como incerto, hipotético, não dando direito ainda a acção de cumprimento ou à execução do património do devedor, nem habilitando, quem o invoca, a obter a respectiva compensação.

Texto Integral


Processo n.º 11148/12.9YIPRT-A.L1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Em oposição a requerimento de injunção que contra ela moveu AA, Lda., BB – Produtos Farmacêuticos, S.A. invocou, além do mais, a excepção peremptória da compensação, requerendo, ainda, a suspensão dos autos, por questão prejudicial.

Caracterizando a dita excepção, disse, em suma, ter demandado civilmente a aqui autora, em acção penal onde se discute a elaboração pelos aí arguidos, de facturas falsas, pedindo a condenação daquela e de outros a pagarem-lhe indemnização cível; pelo que, sendo titular de direito de crédito sobre a exequente, pretende que, ao abrigo do disposto no art. 847.º do C. Civil, se opere a compensação entre esse seu direito e o crédito invocado na execução; mais alegou que deve ser decretada a suspensão da instância para que, primeiro, seja judicialmente reconhecido o seu direito de crédito.

Em resposta, a autora disse, em resumo, não aceitar a compensação, por nada dever à executada; que se não encontra pendente nenhum pedido cível que a executada tenha deduzido contra ela, além de que, para que pudesse proceder qualquer compensação, a executada teria de ter alegado nestes autos os factos em que funda o seu alegado direito de crédito, o que não fez.

Foi proferido despacho saneador, onde se considerou, com apelo ao disposto no art. 853.º do Código Civil, estar excluída a pretendida compensação, já que o crédito invocado pela executada provirá de facto ilícito doloso.

Julgou-se tal excepção improcedente e indeferiu-se a requerida suspensão da instância por causa prejudicial.

Apelou a Ré, sem sucesso, porquanto a Relação, embora com fundamentação diversa, manteve a decisão

Continuando inconformada, veio a Ré interpor recurso de revista excepcional, a qual foi admitida.

São as seguintes as conclusões formuladas pela Ré no seu recurso:

1.Da Admissibilidade do Recurso de Revista Excepcional

 

São três os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso de revista excepcional, nomeadamente (i) que se encontrem reunidos os requisitos previstos para o recurso de revista "normal", (ii) que o Tribunal da Relação tenha confirmado, sem voto de vencido, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.a Instância ("dupla conforme"), e (iii) que se verifique, pelo menos, uma das condições elencadas no n.º 1 do artigo 721.º-A do Código de Processo Civil.

2. Encontram-se preenchidos, no caso em apreço, os requisitos gerais de que depende a admissibilidade da revista – considerada como revista "normal" –, quer quanto ao valor da causa e do montante da sucumbência da parte (tal como previstos no artigo 678.°, n.º 1 do CPC) quer quanto ao de ser o presente recurso interposto de acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 1 do artigo 691.º do CPC (cfr. artigo 721.º do CPC).

3. Encontra-se também preenchido o requisito da "dupla conforme", na medida em que o Acórdão ora recorrido confirmou na íntegra (e ainda com que diferente fundamento) a sentença proferida pela 1.ª Instância, negando provimento à apelação interposta pelo Recorrente.

4. Por fim, encontram-se igualmente verificadas as condições elencadas nas alíneas a) e c) n.º 1 do artigo 721.º-A do CPC, ambas sendo, portanto, fundamento do presente recurso. Vejamos:

5. Está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, (cfr. alínea a), nº 1, artigo 721.º-A do CPC), na medida em que tem vindo a mesma a ser tratada, pela doutrina, de forma não consensual, verificando-se a existência de duas correntes jurisprudenciais sobre o thema decidendum (cfr. o douto Acórdão recorrido, por um lado, e os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 19.01.2010 e o Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.05.2011, por outro).

6. Com efeito, entendeu o douto Acórdão recorrido que o crédito da Recorrente, compensante, não seria judicialmente exigível, porquanto o mesmo não havia sido previamente reconhecido em juízo. Consequentemente, não poderia a Recorrente pretender operar, através dele, a compensação de créditos.

7. Não obstante, nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e do Tribunal da Relação do Porto, acima referidos, entendeu-se que a lei não faz depender a compensação do facto do crédito do compensante estar já judicialmente reconhecido. Pelo que, mesmo nesses casos, pode o compensante fazer operar a compensação de créditos.

8. Está, portanto, em causa nos presentes autos uma questão jurídica controversa, por debatida, e importante para propiciar uma melhor aplicação do direito, por estar em causa um segmento jurídico relevante (note-se que está em causa definir concretamente, com rigor e precisão, os requisitos de um instituto tão elementar (e recorrente), como seja o da compensação de créditos).

9. Trata-se, por outro lado, de uma questão de especial relevo jurídico, que requer um estudo aprofundado e um especial esforço interpretativo, na medida em que a mesma implica não só a reconstituição do pensamento do legislador, como também o ponderar da melhor solução jurídica, face à unidade do sistema jurídico como um todo.

10. Por fim, não se pode negar que esta é uma questão que se impõe a um número indeterminado de sujeitos de direito, porquanto a existência de créditos e contra-créditos é uma decorrência inevitável da vida em sociedade, tal como a conhecemos, sendo o recurso à respectiva compensação uma situação por demais recorrente. A compensação apresenta-‑se, assim, como um instituto transversal a todos os ramos do direito.

11. Encontra-se, portanto, verificado o requisito a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do artigo 721º-A do CPC, devendo o presente recurso de revista excepcional ser admitido, desde logo, com base neste pressuposto.

12. A presente revista excepcional é também admissível com base na alínea c) do nº 1 do artigo 721º-A do CPC, porquanto o Acórdão recorrido se encontra em clara e inegável contradição com outros dois Acórdãos, já transitados em julgado e proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito: o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.01.2010, proferido no âmbito do Proc. n.º 139152/08.8YIPRT.P1 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.05.2011, proferido no âmbito do Processo n.º 268/04.3TCSNT.L1-2, não tendo, até ao momento sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão em apreço.

13. A questão fundamental que se coloca nos presentes autos é precisamente a de saber se por "crédito judicialmente exigível", tal como previsto no artigo 847.º do CC, se deve entender apenas o crédito que haja sido previamente reconhecido em tribunal, ou se, ao invés, tal conceito se basta com o crédito susceptível de ser reclamado em tribunal (independentemente de o mesmo ter sido previamente reconhecido em juízo ou não).

14. Entendeu o Tribunal recorrido, por um lado, que "o crédito invocado pela ré, compensante, não estando reconhecido, não é judicialmente exigível nos termos expostos, pelo que não pode pretender-se operar, através dele, a compensação de créditos."

15. Tal entendimento, porém, é frontalmente contraditório com aquele que se encontra plasmado no primeiro "acórdão fundamento" – o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.01.2010 – onde se decidiu que o crédito da ré era judicialmente exigível, ainda que não houvesse sido previamente reconhecido em juízo, podendo a ré, nessa sequência fazer operar a compensação de créditos.

16. Por outro lado, o entendimento do Tribunal a quo é também frontalmente contraditório com o entendimento sustentado no segundo "acórdão fundamento" – o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 19.05.2011 – no qual também se decidiu que a lei não faz depender a compensação do facto do crédito do compensante estar já judicialmente reconhecido, ou seja, estar previamente reconhecido em Tribunal, entendendo-se poder a ré proceder à compensação do seu crédito sobre a autor com aquele que esta detinha sobre ela.

17. Os dois Acórdãos supra referidos e apontados como encontrando-se em contradição com o Acórdão recorrido, já transitaram em julgado, foram proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito, não tendo sido proferido Acórdão de Uniformização da Jurisprudência, pelo que se encontram também verificados os requisitos previstos na alínea c), do n.º 1, do artigo 721.º-A do CPC, razão pela qual se considera verificado, também, este pressuposto de admissibilidade do presente recurso de revista excepcional.

18. Em face do exposto, deverão considerar-se verificados os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso de revista excepcional invocados pela Recorrente, e, consequentemente, deverá o presente recurso ser admitido.

19.Do Mérito do Recurso

20. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23.04.2013, o qual, negando provimento à apelação interposta pela ora Recorrente, decidiu julgar improcedente a excepção de compensação invocada pela Recorrente, porquanto entendeu faltar um dos requisitos exigidos pelo n.º 1 do artigo 847.º do CC: ser o crédito judicialmente exigível.

21. A Lei não faz depender a compensação do facto do compensando estar judicialmente reconhecido, ou seja, previamente reconhecido em Tribunal.

22. O "crédito judicialmente exigível", para efeitos de compensação, será o crédito susceptível de ser reconhecido em acção de cumprimento, independentemente de o mesmo ter sido previamente reconhecido em juízo ou não. Isto é, será todo o crédito que possa ser reclamado em tribunal, seja em acção declarativa, seja em acção executiva.

23. Para efeitos do funcionamento do mecanismo da compensação, a exigibilidade judicial do crédito activo (tal como imposta pelo n.º 1 do artigo 847.º do CC) e o reconhecimento judicial do mesmo, são realidades distintas: a primeira é requisito da declaração de compensação; a segunda é condição da sua eficácia.

24. Nada indica que o legislador tenha pretendido que o crédito declarado para compensação já deva ter sido declarado judicialmente. Isso seria fazer equivaler a noção de "crédito exigível judicialmente" à noção de crédito apto a servir de título executivo, o que seria de todo inaceitável.

25. Outra interpretação, que não esta, constituiria uma abusiva e errada interpretação da função primordial dos tribunais e do princípio de economia processual: se o direito de crédito que o réu declara para compensação estivesse já reconhecido judicialmente, então tê-lo-ia executado judicialmente, não fazendo sentido que estivesse a aguardar a propositura da acção pelo autor para contrapor o seu crédito por compensação.

26. Constituiria verdadeiro paradoxo aceitar-se o exercício, pelo credor passivo, do seu direito de crédito, através da competente acção de cumprimento, e exigir-se ao declarante da compensação na mesma acção (réu) que a invocação em juízo do seu crédito carecesse de reconhecimento judicial prévio».

27. Deve atender-se ao crédito que a Recorrente detém sobre a Recorrida para efeitos de compensação, ainda que o mesmo esteja dependente de decisão judicial a proferir num futuro próximo, porquanto o mesmo não (sic)

28. O crédito alegado pela Recorrente funda-se, em bom rigor, no instituto do enriquecimento sem causa, tal como previsto nos artigos 473.º e seguintes do CC.

29. A obrigação da Recorrida não pressupõe a apreciação de quaisquer factos que constituam seu pressuposto e que tenham de ser analisados e apreciados pelo julgador, porquanto, enquanto fundada na figura do enriquecimento sem causa, é um facto que existe por si só e que, nessa medida, é susceptível de prova directa.

30. Nestes termos, o crédito alegado pela Recorrente (e a respectiva obrigação da Recorrida) existe independentemente de qualquer decisão que o declare – porquanto tem a sua fonte em acto pré-existente –, sendo que a decisão a proferir (no que concerne a este aspecto) limitar-se-á a reconhecer a existência desse crédito.

31. A obrigação da Recorrida de restituir à Recorrente a quantia com que injustamente se locupletou é independente da responsabilidade penal e/ou civil que venha a ser apurada, quanto aos Arguidos, no âmbito do processo-crime n.º 7132/08.5TDLSB.

32. É forçoso concluir que, contrariamente ao decidido no Acórdão recorrido, o crédito alegado pela ora Recorrente é judicialmente exigível, podendo (e devendo) a Recorrente fazer operar a compensação, pelo que o douto Acórdão recorrido violou de forma flagrante o disposto nos artigos 847.º do CC e nos artigos 493.º. n.º 3 e 496.º, ambos do CPC.

33. Ainda que assim não se entendesse – o que de forma alguma se concede e por mera cautela se pondera – sempre seria de atender à decisão judicial a proferir no âmbito do processo-crime acima mencionado no que toca ao pedido de indemnização civil intentado pela ora Recorrente contra a Recorrida, deferindo-se o pedido de suspensão da instância por causa prejudicial formulado pela Recorrente.

34. Uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira possa influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser à mesma.

35. A condenação da Recorrida no pagamento de uma indemnização à Recorrente por danos patrimoniais no valor de € 525.210,52, ou, pelo menos, € 180.000,00 – ainda assim, sempre superior ao crédito ora peticionado no montante de € 118.627,14 – revela-se de somais (sic) relevância para a determinação da eventual aplicação do instituto da compensação.

36. Para que a decisão da presente instância compreenda a totalidade dos factos e conduza a uma solução justa e adequada, deverá a mesma ser adoptada após a decisão sobre a questão prejudicial da definição do montante líquido em dívida pela Recorrida à Recorrente.

37. Face ao exposto, mal andou o Tribunal a quo ao indeferir a suspensão da instância requerida pela Recorrente, tendo violado, nessa medida, o disposto no artigo 279.º, n.º 1 do CPC.

Conclui no sentido da admissão e provimento do recurso, revogando-se a decisão recorrida.

A A-recorrida apresentou a seguinte resposta:

1. Não se encontram preenchidos os fundamentos contidos nas alíneas a) e c) do artigo 721.º-A do CPC, devendo o recurso de revista excepcional interposto pela Recorrente ser rejeitado.

2.O presente recurso vem interposto do Douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.04.2013, o qual seguindo o entendimento do Tribunal a quo – embora com fundamento diverso – concluiu pela (i) improcedência da excepção de compensação de créditos invocada pela Recorrente em sede de oposição à injunção, por o contracrédito não ser exigível judicialmente e, bem assim, (ii) indeferiu a suspensão da instância por causa prejudicial aí requerida;

3. Quanto à improcedência da excepção de compensação de créditos, o Douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa procedeu bem ao entender que o crédito da Recorrente não é judicialmente exigível, porquanto, a Recorrente, (ora credora) não está em condições de obter a sua realização coactiva, instaurando a respectiva execução, sendo este o entendimento maioritário e correcto que tem sido defendido pela doutrina e jurisprudência sobre a interpretação do requisito “crédito judicialmente exigível";

4. Quanto à alegada prejudicialidade do processo crime com a questão dos presentes autos, é evidente que a questão a ser discutida no processo-crime não tem qualquer prejudicialidade com estes autos.

5. Entre a presente acção e o processo crime aludido pela Recorrente não só não existe um concurso de causas (uma capaz de ser prejudicial da outra), como também não existe aquela coincidência parcial de objectos, típica e própria da prejudicialidade e, por isso, não é susceptível a situação dos autos de enquadramento na moldura do artigo 279º, n.º 1, do CPC, com a decorrente suspensão da instância.

6. Por último, refira-se, que não faz qualquer sentido pretender que esta acção aguarde pela decisão judicial de reconhecimento ou não desse crédito por responsabilidade civil extracontratual, uma vez que a exigibilidade do contra crédito da Recorrente tem de verificar-se no momento em que a mesma (como compensante) declara a compensação, o que não se verifica in casu.

7.Por todo o exposto, deverá o douto acórdão sindicado ser mantido, por não merecer qualquer reparo.

Conclui pela não admissão do recurso e, a assim se não entender, pela sua improcedência.

A Formação admitiu a revista extraordinária.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) De Facto

Os factos a considerar são os referidos em sede de relatório.

B) De Direito

1. O objecto do recurso é, de acordo com a jurisprudência uniforme, balizado pelas conclusões do recorrente, como decorre, de resto, do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Por outro lado, os recursos destinam-se a modificar decisões e não a discutir questões novas, pelo que apenas se considerarão as questões abordadas no acórdão da Relação e ora impugnadas.

2. A única questão objecto do recurso é a de compensabilidade do contra-‑crédito da recorrente.

Fora de apreciação a questão da admissibilidade do recurso excepcional, dada a força vinculativa da decisão da Formação que o admitiu (n.º 1 do artigo 721-A do CPC).

Sobre a compensação dir-se-á previamente o seguinte.

A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-‑se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito liberando-se do seu débito, por uma espécie de acção directa (PIRES DE LIMA e A. VARELA, Código Civil Anotado, II Volume, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, p.130).

Para que a extinção da dívida por compensação possa ser oposta ao credor, exige-se a verificação dos requisitos enunciados nos artigos 837.°e ss. do C. Civil e assim identificados por MENEZES CORDEIRO (Direito das Obrigações, vol. 2.º, AAFDL, p. 219).

a) a existência de dois créditos recíprocos;

b) a exigibilidade (forte) do crédito do autor da compensação;

c) a fungibilidade e a homogeneidade das prestações;

d) a não exclusão da compensação pela lei;

e) a declaração de vontade de compensar.

Nos termos do n.º 1 do art. 848.° do Código Civil, a compensação torna-se efectiva, mediante declaração de uma das partes à outra.

Pode assim afirmar-se, como o faz o PROF. ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, 11.ª edição revista e actualizada, Almedina, Coimbra, p. 1100), que a compensação não opera "ipso jure", isto é, automaticamente; é necessária a manifestação de vontade de um dos credores/devedores no sentido da extinção dos dois créditos recíprocos

A compensação reveste a configuração de um direito potestativo que se exercita por meio de um negócio unilateral; e a importância desta declaração é decisiva, porquanto prescreve o art. 854.º do C. Civil que "feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis".

Quer isto dizer que, verificando-se os demais requisitos da compensação, é a partir do momento da ocorrência da declaração de compensação que se opera a mútua extinção dos créditos.

A importância desta proposição é posta em evidência por ANTUNES VARELA (Direito das Obrigações, II, 7.ª ed, p. 223): é que...a extinção recíproca dos créditos depende da declaração de compensação, embora esta possa ser emitida, na generalidade dos casos por um ou outro dos interessados. Isto significa, além do mais, que, enquanto não houver a declaração compensatória, cada um dos créditos continua a poder ser validamente satisfeito ou extinto por qualquer dos outros modos de extinção das obrigações (cumprimento, dação em cumprimento, consignação em depósito, execução forçada, etc.”

E, a declaração compensatória é, pelo próprio teor e espírito do n.º 1 do referido art. 848.º, uma declaração receptícia, ou seja, uma declaração que carece de ser dada a conhecer ao destinatário (art. 224.º do C. Civil), que tanto pode ser feita por via judicial, como extrajudicialmente (cfr. RUI ALARCÃO, A Confirmação dos Negócios Anuláveis, Atlântida Editora, Coimbra, p. 180).

No primeiro caso, pode ser efectuado por meio de notificação judicial avulsa (art. 261.° do C. P. Civil), exclusivamente destinada a levar ao conhecimento da outra parte a intenção do compensante, ou por via de acção judicial, seja através da petição inicial, seja através da contestação. Quando a compensação é invocada na acção judicial pelo réu, ela pode ser aposta por via de excepção ou como reconvenção.

A iliquidez de qualquer das obrigações não impede a compensação (artigo 847.º, n.º 3, do Código Civil).

A posição do acórdão recorrido, no ponto que aqui importa, é a seguinte:

«Falta…um dos requisitos exigidos no citado n.º 1 do art. 847.º, sem o qual não pode a ré impor à autora a compensação pretendida.

Segundo a alínea a) deste preceito, para que o devedor possa livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, necessário é que o seu crédito – o chamado contra crédito –, no momento em que a compensação é declarada, seja exigível judicialmente e que não proceda contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material.

Importa saber o que é, para este efeito, um crédito exigível judicialmente.

Segundo Antunes Varela () "Para que o devedor se possa livrar da obrigação por compensação, é preciso que ele possa impor nesse momento ao notificado a realização coativa do crédito (contra crédito) que se arroga contra este", ideia que o dito preceito legal concretiza, "explicitando os corolários que dela decorrem: o crédito do compensante tem de ser exigível judicialmente e não estar sujeito a nenhuma exceção, perentória ou dilatória, de direito material, dizendo-se "judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento e à execução do património do devedor (art. 817º)."

A obrigação de indemnização por ilícito extracontratual, a que a autora estará sujeita perante a ré, não está ainda reconhecida, pelo que não pode falar-se na sua existência, nem na sua realização coativa ao abrigo do art. 817º do CC, em caso de não satisfação voluntária.

"A necessidade de a dívida compensatória ser exigível no momento em que a compensação é invocada afasta, por sua vez, a possibilidade de, em ação de condenação pendente, o demandado alegar como compensação o crédito de indemnização que se arrogue contra o demandante, com base em facto ilícito extracontratual a este imputado, enquanto não houver decisão ou declaração que reconheça a responsabilidade civil do arguido. Embora a dívida retroaja neste caso os seus efeitos ao momento da prática do facto, ela não é obviamente exigível enquanto não estiver reconhecida a sua existência" ().

Na mesma linha se pronunciam Menezes Cordeiro () e Menezes Leitão (), entendendo que o crédito é judicialmente exigível, quando, no momento em que pretende operar a compensação, o compensante esteja em condições de opor ao devedor a realização coativa do seu crédito.

Este entendimento tem vindo igualmente a ser adotado na nossa jurisprudência, dizendo-se lapidarmente no acórdão da Relação do Porto de 19.01.2006 () que o "legislador ao usar a expressão "exigível" se quis referir a um crédito certo, seguro, e não meramente hipotético ou eventual. Enquanto não estiver reconhecido o crédito, não pode o mesmo servir de sustento a uma compensação de "créditos". E parece claro que não é nesta demanda que tal reconhecimento do crédito pode ter lugar, (...), pois o contra crédito já tem de estar definido – para poder ser exigível – no momento em que se alega a compensação...de créditos." ()

Pese embora, havendo jurisprudência diversa – designadamente os arestos citados pela apelante –, porque entendemos ser esta a posição correta, concluímos que o crédito invocado pela ré, compensante, não estando reconhecido, não é judicialmente exigível nos termos expostos, pelo que não pode pretender-se operar, através dele, a compensação de créditos.»

No acórdão-fundamento defende-se posição oposta, embora substancialmente, com base na mesma doutrina:

«…para que a compensação se possa verificar é, ainda, necessário que o crédito do declarante seja judicialmente exigível e que o devedor não lhe possa opor qualquer excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; assim, só poderão ser compensados os créditos em relação aos quais o declarante esteja em condições de obter a realização coactiva da prestação, não podendo ser compensados créditos de obrigação natural, nem efectuada a compensação se o crédito ainda não estiver vencido, ou a outra parte puder recusar o cumprimento através da excepção do não cumprimento do contrato ou da prescrição ().

Ensinava Antunes Varela () que se diz «judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à acção de cumprimento e à execução do património do devedor», requisito que não se verifica nas obrigações naturais, por uma razão, nem nas obrigações sob condição ou a termo, quando a condição ainda se não tenha verificado ou o prazo ainda se não tenha vencido, por outra.

Menezes Cordeiro () menciona que a exigibilidade como requisito da compensação traduz a necessidade de que os créditos em presença possam ser cumpridos e que quanto ao crédito activo isso implica:

« – que seja válido e eficaz;

– que não seja produto de obrigação natural;

– que não esteja pendente de prazo ou de condição;

– que não seja detido por nenhuma excepção;

– que possa ser judicialmente actuado;

– que se possa extinguir por vontade do próprio».

Saliente-se que a lei não faz depender a compensação do facto do crédito do compensante estar já judicialmente reconhecido, ou seja, estar previamente reconhecido em Tribunal ().

Não se perspectiva, pois, no caso dos autos, a falta do requisito a que nos reportamos, pelo que se entende poder a R. proceder à compensação do seu crédito sobre a A. com aquele que esta detinha sobre ela.

Tenhamos em consideração que a iliquidez da dívida não impede a compensação – n.º 3 do art. 847 do CC; a compensação opera, podendo o exacto montante compensado ser relegado para momento posterior, nos termos do n.º 2 do art. 661 do CPC»

Em recente acórdão deste tribunal, proferido também em recurso de revista excepcional (proferido em 14.03.2013, no processo 4867/08.6TBOER-A.L1.S1) decidiu-se que “[n]a fase executiva, um crédito dado em execução só pode ser compensado por outro que também já tenha força executiva.

Donde, a compensação não pode ocorrer se um dos créditos já foi dado à execução e o outro ainda se encontra na fase declarativa”().

Com efeito, “a compensação formulada pelo executado na oposição do crédito exequendo com um seu alegado contra-crédito sobre a exequente, não reconhecido previamente e cuja existência pretende ver declarada na instância de oposição, não é legalmente admissível ()”.

Pois, “só podem ser compensados créditos em relação aos quais o declarante esteja em condições de obter a realização coactiva da prestação”, pelo que “estando o crédito que a ré apresentou na contestação como sendo compensante a ser discutido numa acção declarativa pendente, deve o mesmo ser tido como incerto, hipotético, não dando direito ainda a acção de cumprimento ou à execução do património do devedor.

Tal crédito não é, pois, exigível judicialmente, pelo que não pode ser apresentado a compensação”().

Como se constata, neste acórdão, aborda-se a questão da compensação em processo executivo e nele se conclui não haver lugar à reconvenção nem à compensação, se não previamente reconhecido o contra-crédito e nunca na oposição à execução.

Nele são referenciados, como exemplos da jurisprudência que sujeita a possibilidade da compensação ao prévio apuramento do crédito a compensar, os acórdãos deste Tribunal de 26.04.2012, Revista n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1, de 18 de Janeiro de 2007, Revista 4519/06 – 2ª Secção, de 22.06.2006, Revista n.º 610/06 – 2ª Secção, de 14.12.2006, Revista n.º 3861/06 – 6ª Secção, de 29.03.2007, Revista n.º 558/07 e de 28/06/2007, Revista 2607/06 – 7ª Secção).

No acórdão atrás referido de 14.12.06 são ainda citados, no mesmo sentido, os acs. de 21.11.02, proc. 8682/01, de 27.11.2003, proc. 7520/03 e de 11.07.06, proc. 06B2342), enumeração a que podemos aditar o de 12.09.13, no processo n.º 5478/06.6TVLSB.L1.S1.

Parte da jurisprudência citada refere-se à possibilidade de compensação no processo executivo, como é o caso dos acórdãos de 21.11.02, 27.11.2003, 11.07.06, 21.02.2006, 22.06.2006 e 14.12.2006. Também no acórdão de 9.10.2003, proc. 2091/03, se considerou obstáculo à compensação em processo executivo, a falta de liquidação do crédito a compensar.

Embora a situação que se apresenta nestes autos não se integre no quadro do processo executivo, a aludida jurisprudência não entra em contradição, antes apoia, o entendimento sobre a exigibilidade do contra-crédito que passaremos a expender.

No acórdão deste Tribunal de 11.1.2011, proferido no processo n.º 2226/07.7TJVNF.P1.S1. afirma-se:

           

“Dos requisitos do n.º 1 do artigo 847.º densifica-se, por só aqui relevar, (irrelevando o da homogeneidade) o primeiro, consistente na validade e exigibilidade do contra crédito.

O crédito passivo não pode ser obrigação natural, por ter de ser exigível judicialmente, o que só acontece nas obrigações civis (artigo 402.º do Código Civil) e não pode ser vincendo por ter de ser “exigível”, o que significa a possibilidade da sua realização coactiva (cfr., também, “Das Obrigações em Geral”, 7.ª ed., II, 204, do Prof. Antunes Varela), “situação em que se encontra a prestação já vencida”, como refere o Prof. Pessoa Jorge, in “Lições de Direito das Obrigações”, 1966-284, e que o Prof. Menezes Cordeiro apoda de “exigibilidade em sentido forte” (ob. vol. cit. 222).

Sempre, porém, a existência do crédito compensável não pode ser só apurada (podendo, apenas, ser liquidada) no âmbito do juízo de compensação (sublinhado da nossa responsabilidade).

Aí terá de surgir, não como mera expectativa, mas com autêntica exigibilidade, sob pena de se ir enxertar numa acção pendente (a pretexto de reconvenção), outra que com ela não tenha conexão (cfr. o Prof. Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, I, 172, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 1998 – P.º 643/98, seguido pelo Acórdão de 21 de Novembro de 2002 – 02B2634 – também acolhido pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2006 – 06 A3861).”

Parece, assim, ser claro que a exigibilidade do crédito, não se confundindo com o seu reconhecimento (não se conhecem decisões do STJ no sentido da necessidade de reconhecimento do contra-crédito, fora do âmbito do processo executivo), também não implica a mera possibilidade de vir a ser declarado um contra-direito de crédito.

Ou seja, para se poder invocar um direito de crédito do devedor relativamente ao seu credor, é necessário que se configure um direito de crédito, decorrente de uma obrigação civil, vencida, incumprida e ainda não extinta.

No mesmo sentido, vide os Ac. de 12.11.2004, proc. 3045/04, de 29.03.2007, proc. 558/07-2.ª, de 14.02.2008, proc. 07B4401.de 30.09.2008, proc. 2001/08-1.ª, de 02.03.2010, proc 160/2001.S3-1.ª.

No caso vertente, isso não ocorre, tanto mais que o crédito invocado depende de uma condenação em processo penal de pessoas singulares e da decorrente atribuição de uma indemnização à ré, a pagar solidariamente pelos seus autores materiais e pela A. e outra pessoa colectiva.

Não existe configurada uma obrigação civil, pelo nem se pode falar em vencimento ou incumprimento, havendo apenas uma mera expectativa, um crédito hipotético que não confere o direito de intentar a correspondente acção ou executar o património do devedor.

Em conclusão:

I. A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor (artigo 847.º do CC).

II. A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário.

III. Para que a extinção da dívida por compensação possa ser oposta ao credor, exigem-se a verificação dos seguintes requisitos:

a) a existência de dois créditos recíprocos;

b) a exigibilidade (forte) do crédito do autor da compensação;

c) a fungibilidade e a homogeneidade das prestações;

d) a não exclusão da compensação pela lei;

e) a declaração de vontade de compensar.

IV. A referida exigibilidade pressupõe que se configure um direito de crédito, decorrente de uma obrigação civil, vencida, incumprida e ainda não extinta.

V. Isso não ocorre quando, como no caso vertente, o crédito invocado depende de uma condenação, a proferir em processo penal, de pessoas singulares e decorrente atribuição de uma indemnização à Ré, a pagar solidariamente pelos seus autores materiais, pela A. e outra pessoa colectiva, pelo deve o mesmo ser tido como incerto, hipotético, não dando direito ainda a acção de cumprimento ou à execução do património do devedor, nem habilitando, quem o invoca, a obter a respectiva compensação.

III – Pelo exposto, acordam em negar a revista, mantendo-se o acórdão recorrido, embora com diversa fundamentação.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 1 de Julho 2014


Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque

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[1] N.º 652
  Relator:    Paulo Sá
  Adjuntos: Garcia Calejo e
                     Hélder Roque