I - O sistema de revisão de sentenças estrangeiras é enformado pelo princípio da revisão formal, preconizando-se, na restrição da al. f) do art. 1096.º do CPC que o “exequator” não deve ser concedido a uma decisão que conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, i.e. com aqueles princípios que decorrem de um complexo de normas, inspiradas por razões políticas, morais e económicas que são aceites por um determinado número de nações como expressão de uma civilização e cultura idênticas e que são, por isso, plasmados na ordem jurídica de um certo número de Estados com os quais Portugal tem afinidades jurídicas, estando, ademais, em consonância com a CRP.
II - O direito sucessório funda-se, por um lado, na necessidade de assegurar que a substituição na titularidade do acervo patrimonial (bens, créditos e débitos) do falecido (pois, se assim não fosse, gerar-se-ia uma disrupção injustificada da vida jurídica, com perturbação da ordem e das legítimas expectativas) e, por outro, na protecção da família, enquanto realidade que se projecta no tempo e no espaço, o que justifica que, pelo menos no silêncio daquele e por via da sucessão legítima, os bens sejam atribuídos ao cônjuge, parentes directos e colaterais.
III - A sucessão legítima funda-se no vínculo de solidariedade familiar e este, embora afrouxe à medida que o parentesco se distancia, ainda conserva suficiente vigor em relação aos colaterais, sobretudo no caso de não haver familiares próximos na linha directa.
IV - A união de facto constitui uma nova realidade na convivência social básica, não lhe reconhecendo, contudo, o art. 3.º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, efeitos sucessórios.
V - Sendo a sucessão regulada pela lei pessoal do autor da sucessão (art. 62.º do CC) e sendo este de nacionalidade portuguesa, há a constatar que o membro sobrevivo da união de facto não consta dos elencos taxativos – e, por isso, insusceptíveis de interpretação analógica ou extensiva – dos sucessíveis legitimários e legítimos, constantes, respectivamente, dos artigos 2157.º e 2145.º, ambos do CC.
VI - A união de facto registada – instituto existente no ordenamento jurídico brasileiro mas não no ordenamento jurídico português – deve ser considerada como um menos em relação ao casamento na ordem jurídica portuguesa, não sendo sequer pacífica, no Brasil, a sua equiparação, mormente para efeitos sucessórios.
VII - Os herdeiros do membro falecido da união de facto apenas podem ser excluídos da sucessão nos casos previstos na lei, não podendo o tribunal optar por uns ou atribuir-lhes direitos de sucessão em detrimento de outros, pelo que, não tendo aquele testado a favor da recorrente e lhe atribuído a totalidade dos seus bens, ficou aberta a porta para a sucessão legítima.
VIII - O reconhecimento de uma decisão de um Tribunal brasileiro em que se considera a recorrente – membro sobrevivo de união de facto registada que foi mantida com cidadão português residente no Brasil – como herdeira universal, conduz a um resultado manifestamente incompatível com a protecção dos laços familiares, o qual se conta entre os princípios referidos em I.
IX - O princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) impõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais geradas pela diversidade de circunstâncias e pela natureza das coisas (e não mantidas artificialmente pelo legislador) e tem que ver com a distribuição de direitos e deveres, de vantagens e de encargos, de benefícios e de custos inerentes à pertença à mesma comunidade ou à vivência da mesma situação.
X - Na medida em que o reconhecimento da decisão referida em VIII afastaria os herdeiros legítimos do falecido (o que não sucederia se aquela relação familiar tivesse sido vivida em Portugal) e que esse afastamento é intransponível para as uniões de facto existentes no nosso ordenamento jurídico, verificar-se-ia um tratamento desigual de situações idênticas assim se violando o princípio da igualdade (pois não se respeitaria a justiça inerente à vivência das mesmas situações).
XI - Sendo o princípio da igualdade um corolário da princípio da justiça e sendo este um dos princípios referidos em I, tal reconhecimento, de igual modo, conduziria a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português.
A) - Relatório:
Pelo 4º juízo cível do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, corre processo de revisão de sentença estrangeira em que é requerente AA, identificada nos autos e requeridos BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL (estas duas últimas habilitadas para prosseguirem na causa no lugar da falecida requerida CC), todos identificados nos autos.
AA, de nacionalidade brasileira, veio requerer contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ, nos termos dos artigos 1094.° e seguintes do CPC, a revisão e confirmação do Acórdão proferido em 01.04.2009, no processo de Agravo n.° 617.125-4/9, do Tribunal de Justiça do Estado de S. Paulo (Brasil), que, revogando a sentença proferida no processo n.° 0606953-78.2007.8.26.0100, da 5.a Vara da Família e Sucessões do Foro Central da Comarca de S. Paulo (Brasil), reconheceu a requerente como única herdeira de MM, de nacionalidade portuguesa, falecido em 08.12.2006, em S. Paulo (Brasil), tendo junto certidões (fls.10 a 17).
Tendo-se verificado que a requerida CC havia falecido em 10.09.2010 (fls.97), teve lugar o competente incidente de habilitação, findo o qual, e por decisão de 10.11.2012, foram julgadas habilitadas KK e LL, filhas da falecida, para prosseguirem na causa no lugar da falecida requerida (fls. 147).
Citados os requeridos, nos termos e para os efeitos do art.° 1098.° do CC, apenas a requerida JJ veio deduzir oposição, pugnando pela improcedência da requerida confirmação de sentença estrangeira (fls.71 a 78).
A requerente AA respondeu, tendo reiterado o anteriormente requerido, e pedindo, agora, também, a condenação da requerida JJ, como litigante de má-fé, em multa e indemnização a fixar em sede de liquidação de sentença, (fls. 169 a 197).
Deu-se cumprimento ao disposto no art.° 1099.°, n.° 1, do CPC, tendo o M°P°, nas suas alegações, pugnado pela procedência do requerido (fls. 596).
Já a requerida JJ, nas suas alegações, reiterou o pedido de improcedência (fls.597 a 602),
A requerente AA respondeu, tendo reiterado o anteriormente requerido, e pedindo, agora, também, a condenação da requerida JJ, como litigante de má-fé, em multa e indemnização a fixar em sede de liquidação de sentença, (fls. 169 a 197).
Deu-se cumprimento ao disposto no art.° 1099.°, n.° 1, do CPC, tendo o M°P°, nas suas alegações, pugnado pela procedência do requerido (fls. 596).
Já a requerida JJ, nas suas alegações, reiterou o pedido de improcedência (fls.597 a 602).
O Tribunal da Relação acordou em julgar improcedente quer a requerida confirmação da sentença estrangeira, quer a requerida condenação por litigância de má-fé.
Deste acórdão recorreu a requerente AA alegando, em conclusão, o seguinte:
A. Vem o presente recurso interposto do acórdão de fls. , que em sede de Acção Especial de Revisão e Confirmação de Sentença Estrangeira negou a revisão e confirmação da sentença estrangeira revidenda e consequentemente, a condenação da Recorrida como litigante de má-fé.
B. São fundamentos do presente recurso de revista a errada interpretação e aplicação levada a cabo pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, do artigo 1096.° alínea f) do CPC e artigos 22.° n.° 1, 25.°, 31.° n.° 1, 62.° e 2133.° n.° 1 alínea c), todos do Código Civil (doravante denominado CC) e a nulidade do acórdão ora em crise, nos termos dos artigos 668.° n.° 1 alíneas b) e 716.° n.° 1 ex vi artigo 722.° n.° 1 alínea c), todos do CPC, por manifesta falta de fundamentação do acórdão objecto do presente recurso, no que à decisão de não condenação da Recorrida como litigante de má-fé diz respeito.
C. No acórdão objecto do presente recurso de revista, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa analisou a aplicabilidade ao caso concreto dos requisitos legais constantes das 6 (seis) alíneas do artigo 1096.° do Código do Processo Civil, para efeitos de revisão e confirmação em Portugal de sentenças estrangeiras, tendo concluído pelo não preenchimento do requisito previsto na sua alínea f), no que diz respeito ao reconhecimento do Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu à Recorrente o direito a herdar a totalidade dos bens do falecido MM.
D. Efectivamente, o sistema de revisão de sentenças estrangeiras vigente em Portugal inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o Tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa.
E. De facto, em Portugal está consagrado o princípio, segundo o qual as sentenças estrangeiras são admitidas a desenvolver na ordem jurídica do foro os efeitos que lhe são atribuídos no sistema jurídico de origem, estando a verificação desses efeitos condicionada, salvo tratado ou lei especial em contrário, à verificação dos requisitos previstos nas 6 (seis) alíneas do artigo 1096.° do CPC, os quais têm carácter extrínseco ou formal.
F. Ora, se no acórdão ora em crise andou bem o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa quando decidiu estarem preenchidos os requisitos previstos nas alíneas a) a e) do artigo 1096.° do CPC, já o mesmo não se poderá dizer quando o mesmo concluiu que, neste caso em concreto, não se encontrava preenchido o requisito previsto na alínea f) do artigo 1096.° do CPC, referindo para o efeito que o reconhecimento deste último na ordem jurídica Portuguesa levaria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
G. Enquanto a alínea f) do artigo 1096.° do CPC vigorou com a redacção que referia "que não contenha decisões contrárias aos princípios da ordem pública Portuguesa" a doutrina dominante entendia que a recusa de revisão e confirmação de uma sentença estrangeira por violação da ordem pública internacional do Estado Português podia basear-se, não só tendo em conta o seu resultado uma vez reconhecida, como também mediante análise do conteúdo da sua decisão, isto é, dos seus fundamentos.
H. Contudo, com a nova redacção do preceito aqui em questão, resultou absolutamente claro e inequívoco que o legislador quis colocar o assento da decisão de violação, ou não, da ordem pública internacional do Estado Português, na análise do resultado que essa mesma revisão e confirmação teriam quando confrontadas com os princípios acima referidos.
I. O que importa quando o aplicador da Lei verifica se está preenchido o requisito previsto na alínea f) do artigo 1096.° do CPC com a actual redacção, é o resultado que a sentença, ou acórdão, irão produzir no ordenamento jurídico Português, nomeadamente se o mesmo é manifestamente incompatível com os princípios inerentes à ordem pública internacional do Estado Português.
J. Só esta interpretação compatibiliza a alínea f) do artigo 1096.° do CPC, com o sistema de simples revisão formal de sentenças estrangeiras, tanto mais que é o próprio acórdão objecto do presente recurso quem o reconhece, na parte inicial da sua página 28 e 29.
K. Mais, o legislador ao acrescentar à redacção da alínea f) do artigo 1096.° do CPC o advérbio "manifestamente", para caracterizar o grau de incompatibilidade do resultado do reconhecimento da sentença, ou acórdão revidendos, relativamente aos princípios inerentes à reserva de ordem pública internacional do Estado Português, teve como intuito, apenas e só, limitar a intervenção desta reserva, aos casos que assumam um grau particularmente grave de desconformidade do resultado concreto a que se chega, com os valores fundamentais da ordem jurídica do foro.
L. Posto isto basta apenas uma leitura ainda que superficial do acórdão ora em crise, para facilmente se perceber que a fundamentação ai utilizada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa para concluir pelo não preenchimento da alínea f) do artigo 1096.° do CPC, não pode de todo colher, na medida em que a mesma ultrapassa, em muito, os limites previstos no normativo aqui em questão,
M. julgando apenas e só a compatibilidade dos fundamentos do acórdão revidendo com a ordem pública internacional do Estado Português, em detrimento do resultado do reconhecimento do acórdão aqui em questão com esta última, como era de direito.
N. Salvo o devido respeito que sempre nos merecerá o acórdão ora em crise, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, é notório que o mesmo falha em toda a linha quando chamado a decidir da verificação, ou não, neste caso em concreto, do requisito previsto na alínea f) do artigo 1096.° do CPC, na medida em que foi incapaz de sair dos fundamentos que tiveram na base do acórdão revidendo, nomeadamente a origem dos direitos sucessórios da Recorrente, não resistindo à tentação de aferir da sua compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português.
O. Só assim se explica que o acórdão objecto do presente recurso tenha fundamentado a sua decisão com base na comparação da figura da união estável registada prevista no ordenamento jurídico Brasileiro, com o casamento e a união de facto previstas no ordenamento jurídico Português, o que para o caso era completamente irrelevante, tendo por essa razão realizado uma revisão de mérito do acórdão revidendo.
P. Mais, preocupante ainda é o facto de ser notório ao longo do acórdão objecto do presente recurso, que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa tinha perfeita consciência que estava a levar a cabo, neste caso em concreto, uma revisão de mérito que lhe era vedada por Lei, sem que tal o tenha feito arrepiar caminho.
Q. Efectivamente, face à clareza da letra da alínea f) do artigo 1096.° do CPC, dúvidas não subsistem de que o ponto-chave, ou se quisermos, a questão a que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa deveria ter respondido no acórdão que proferiu, tendo em vista aferir do preenchimento do requisito ai previsto, era apenas e só a de saber se é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, o reconhecimento de um acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que deixa de atribuir direitos sucessórios a herdeiros legítimos portugueses, que integram a 3a classe de sucessíveis, prevista na alínea c) do Código Civil, em detrimento da Recorrente, em virtude da mesma ter vivido com o falecido MM, em união estável registada.
R. Isto porque é por demais óbvio que o resultado da revisão e confirmação do acórdão revidendo no ordenamento jurídico português é o facto da Recorrida e restantes Requeridos nos presentes autos, na qualidade de sucessíveis previstos na 3ª classe do artigo 2133.° n° 1 alínea c) do CC, deixarem de ser herdeiros do falecido MM, em detrimento da Recorrente, que viveu com este último em união estável registada no Brasil, durante 7 (sete) anos, desde dia 01/12/1999, até 08/12/2006.
S. Mas em que consiste a reserva de ordem pública internacional do Estado Português, prevista não só no normativo acima referido, como também no artigo 22.° n.° 1 do CC?
T. A reserva de ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna na medida em que esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, enquanto a ordem pública '.internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado Português.
U. Só quando os nossos interesses superiores são postos manifestamente em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado na esfera jurídica Portuguesa, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro.
V. Efectivamente estamos a falar de leis e preceitos rigorosa e absolutamente imperativos, que de tão decisivos que são não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas, na medida em que consagram interesses superiores da comunidade Portuguesa e princípios ético jurídicos fundamentais que regem a vida social do Estado Português.
W. Posto isto e salvo o devido respeito que sempre nos merecerá qualquer decisão contrária, entende a Recorrente que não é manifestamente incompatível com a reserva de ordem pública internacional do Estado Português, o acórdão estrangeiro que deixa de atribuir direitos sucessórios a herdeiros legítimos portugueses, que integram a 3ª classe de sucessíveis, prevista na alínea c) do Código Civil, em detrimento da Recorrente, em virtude da mesma ter vivido com o falecido MM, em união estável registada, que durava a cerca de 7 (sete) anos.
X. A Recorrida e os restantes Requeridos nos presentes autos são considerados, no ordenamento jurídico português, herdeiros legítimos do falecido MM, em virtude do artigo 2133.° n.° 1 alínea c) do CC, razão pela qual só são chamados à sua sucessão se o mesmo não tiver disposto válida e eficazmente, no todo ou em parte, dos bens de que podia dispor para depois da sua morte.
Y. O ordenamento jurídico não atribui de forma imperativa e automática, qualquer expectativa sucessória aos irmãos do falecido e seus descendentes, na medida em que os mesmos só poderiam herdar o que quer que seja se o falecido não tiver deixado quaisquer ascendentes, descendentes ou cônjuge sobrevivo e se o falecido não tiver disposto válida e eficazmente em vida, de todos os seus bens, mediante testamento por exemplo.
Z. O ordenamento jurídico português não achou que merecesse especial tutela a posição sucessória dos irmãos e respectivos descendentes do falecido, tendo deixado ao critério deste último a decisão de , não tendo o mesmo cônjuge sobrevivo, ascendentes e descendentes, nada fazer e consequentemente, constituir, ou não, seus herdeiros os seus irmãos e seus descendentes, nos termos dos artigos 2131.°, 2133.° n.° 1 alínea c) e 2134.°.
AA. Se o legislador tivesse entendido existirem razões para tutelar de forma especial e imperativa a posição sucessória dos irmãos do falecido e seus descendente, com toda a certeza que o teria feito, equiparando-os por exemplo ao cônjuge, ascendentes e descendentes do falecido, os quais, nos termos do artigo 2157.° do CC, são considerados herdeiros legitimários, tendo por isso direito a uma porção dos bens do falecido, denominada de legitima, relativamente à qual este último não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários.
AB. Desta forma, dúvidas não subsistem de que as normas jurídicas que atribuem direitos sucessórios aos irmãos e respectivos descendentes de um falecido, atribuindo-lhes a qualidade de herdeiros legítimos em terceiro grau, a saber, os artigos 2131.°, 2133.° n°1 alínea b) e 2134.°, todos do CC, não são normas susceptíveis de serem enquadradas e consequentemente de poderem ser inseridas, no conceito de reserva de ordem pública internacional do Estado Português, quanto mais não seja por as mesmas não serem imperativas.
AC. Bem pelo contrário, a sua aplicação e a produção dos seus efeitos jurídicos está dependente e pode ser livremente decidida pelo autor da sucessão.
AD. Normas com esta amplitude não podem ser consideradas leis e preceitos rigorosa e absolutamente imperativos, que de tão decisivos que são não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas, consagrando interesses superiores da comunidade Portuguesa e princípios ético jurídicos fundamentais que regem a vida social do Estado Português.
AE. Por essa razão não podem ser consideradas normas enquadráveis no conceito de ordem pública internacional do Estado Português.
AF. De facto, será caso para dizer que, quem não pode o menos, também não pode o mais, como é óbvio!
AG. Mais, também não poderia levar o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa a decidir no sentido em que o fez na sentença objecto do presente recurso, o facto de neste caso em concreto o afastamento das normas que atribuem direitos sucessórios a herdeiros legítimos portugueses, que integram a 3a classe de sucessíveis, prevista na alínea c) do artigo 2133°n°1 alínea c) do Código Civil, ter origem num acórdão estrangeiro que baseou a sua decisão de considerar única herdeira do falecido a Recorrente, por a mesma ter vivido consigo em união estável registada durante cerca de 7 (sete) anos.
AH. De facto, como se referiu basta um acto de disposição válido e eficaz do falecido em sentido contrário, nomeadamente um testamento, para que deixem de ser atribuídos aos herdeiros legítimos portugueses, que integram a 3a classe de sucessíveis, prevista na alínea c) do n.° 1 do artigo 2133.° do CC (irmãos do falecido e seus descendentes), quaisquer direitos sucessíveis.
AI. É caso para perguntar, então se o ordenamento jurídico Português permite que na ausência de herdeiros legitimários do falecido e ainda que tendo este último irmãos, possa o mesmo afastá-los como seus herdeiros, mediante a outorga por exemplo de um testamento, a favor da sua unida de facto, como pode julgar como manifestamente contrária à ordem pública internacional do Estado Português, o resultado da aplicação de um acórdão proferido por um Tribunal Brasileiro que também o faz, não com base em qualquer testamento, mas com base na existência no caso em concreto de uma união estável registada, de acordo com o direito brasileiro?
AJ. A resposta é pura e simplesmente NÃO PODE
AK. Isto porque, a união estável registada apesar de não ser um testamento, constitui uma manifestação inequívoca e explicita de vontade do falecido aqui em questão, de atribuir direitos sucessórios à sua companheira, ora Recorrente, manifestação essa feita perante uma entidade dotada de fé púbica e sob requisitos bem mais apertados do que aqueles que se verificam para alguns tipos de testamentos previstos no ordenamento jurídico Português.
AL. Assim sendo, o resultado da verificação e confirmação do acórdão revidendo em questão nos presentes autos no ordenamento jurídico Português, não pode nunca ser julgado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português, nos termos do artigo 1096.° alínea f) do CPC,
AM. na medida em que o resultado aqui em questão é ele próprio admitido no ordenamento jurídico Português, ainda que com outros fundamentos, sendo que como acima ficou provado, não estão em causa para apreciação do preenchimento, ou não, da alínea f) do artigo 1096.° do CPA, os fundamentos da sentença revidenda, mas sim o seu resultado, quando aplicável no ordenamento jurídico Português.
AN. Precisamente por isso. é completamente irrelevante se existe em Portugal o instituto jurídico da união estável registada e em caso de resposta negativa, se o mesmo se aproxima mais do casamento ou da união de facto,
AO. Se não fosse triste, chegava a dar vontade de rir, o facto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa ter conseguido a proeza de julgar como manifestamente incompatível com ordem pública internacional do Estado Português, o reconhecimento na ordem jurídica Portuguesa do acórdão revidendo, quando o mesmo consegue não ser sequer contrário a qualquer norma que possa ser inserida no conceito de ordem pública interna Portuguesa!
AP. É obra o que se acaba de referir, para não dizer uma impossibilidade técnico-jurídica, se atendermos ao facto de nenhum princípio ou norma que possa ser enquadrado no conceito de ordem pública internacional do Estado Português, poder deixar também de ser considerado um princípio estruturante da ordem jurídica interna.
AQ. Ainda assim, mesmo que o reconhecimento e aplicação do acórdão revidendo no ordenamento jurídico Português gerasse de alguma forma um resultado contrário à ordem pública internacional do Estado Português, o que apenas por mera hipótese se coloca e sempre sem conceder, a verdade é que face a tudo o que se acaba de referir, nunca tal contrariedade poderia ser considerada manifesta, nos termos e para os efeitos do preceituado na alínea f) do artigo 1096.° do CPC.
AR. Assim, pode-se com toda a certeza concluir no sentido de que não é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, o reconhecimento do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São que originou os presentes autos.
AS. De facto espanta à Recorrente a obsessão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa com o instituto jurídico da união estável registada, previsto no ordenamento jurídico Brasileiro, nomeadamente com os seus pressupostos e consequências legais.
AT. Desta forma, embora como acima ficou também referido, não estejam aqui em causa os pressupostos ou o reconhecimento deste instituto jurídico no ordenamento jurídico Português, de forma a atenuar a diabolização do mesmo, levada a cabo pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, evitando desta forma que sejam nesta sede cometidos, os mesmos erros e lapsos, verificados no acórdão recorrido, cumpre tecer-lhe agora algumas considerações.
AU. Este instituto jurídico tem por base uma longa e assente tradição social, legal, doutrinária e jurisprudencial, que consiste na total comunhão de vida, tendencialmente duradoura e estável, de duas pessoas com a intenção de constituir família numa visão mímica do matrimónio.
AV. Este passo representou uma frontal, completa e necessária rotura com a tradição legal em vigor à data da Constituição de 1988,- a qual admitia somente o casamento como forma única de entidade familiar, recusando a existência de demais figuras.
AW. No sentido de concretizar este revolucionário entendimento Constitucional Brasileiro, foram criadas diversas disposições normativas, contidas nas Leis n. 8.971/94 e 9.278/96, as quais visaram proteger os direitos sucessórios do companheiro sobrevivo na união estável registada.
AX. Com o advento do Código Civil brasileiro de 2002, a regulamentação da união estável registada sofreu, sem que nada o fizesse prever, um retrocesso legal incompreensível e em verdadeira dissintonia com a prática jurídica e social verificada, que se manifestou na desprotecção conferida ao companheiro, sendo visível a injustiça praticada por parte do legislador originário em comparação com o tratamento do direito sucessório dispensado aos conjugues.
AZ. A estranheza causada pela redacção do supra referido dispositivo legal, levou a que se tenha despoletado um enorme e vigoroso movimento de resistência, com especial enfoque na doutrina civilística brasileira apoiado no sentimento social de retrocesso dos direitos à data adquiridos,
BA. A qual defende veementemente, na sua maioria, que o companheiro na união estável registada deve gozar de direitos sucessórios plenos, devendo imperativamente participar na herança do de cujus.
BB. De facto, entende a Recorrente que é patente a constante equiparação que é feita a nível doutrinário no Brasil, entre o casamento e a união estável registada, estando efectivamente enraizado que estamos perante figuras socialmente próximas, caso contrário não seria sequer de equiparar o que não é susceptível de equiparação!
BC. Por sua vez a jurisprudência brasileira tem vindo a reconhecer, atendendo às normas constantes do artigo 1790.° do CCiv.br 2002, a injustiça de que são vítimas os companheiros dos unidos estáveis registados, tendo chegado inclusive, a declarar a inconstitucionalidade deste dispositivo legal e, consequentemente, desaplicando o seu texto e declarando que, na falta de ascendentes e descendentes do falecido, tem direito a herdar a totalidade dos bens deste último, a companheira que com o mesmo viveu em união estável registada.
BD. No Direito da família português, ao contrário do que acontece no ordenamento jurídico brasileiro apenas existe uma fonte de relações jurídicas matrimoniais, que é o casamento, cuja noção encontra-se contida no artigo 1577.° do Código Civil.
BE. Ainda assim, o casamento à semelhança da figura jurídica brasileira da união estável registada, trata-se de uma manifestação expressa de vontade que tem por base um acto formal de registo e uma finalidade comum, que se prende com razões sérias, dignas e fundamentais, que visam a constituição de família entre duas pessoas.
BF. Posto isto e sem prejuízo de não ser necessário para efeitos de verificação do requisito previsto na alínea f) do artigo 1096.° do CPC, a equipação da união estável registada, prevista no ordenamento jurídico Brasileiro, com o casamento previsto no ordenamento jurídico Português, sempre se dirá que não será também por aí que o acórdão revidendo não deverá ser revisto e reconhecido em Portugal.
BG. Isto porque, a união estável registada prevista no ordenamento jurídico Brasileiro, tem de facto muitas semelhanças com o casamento, tal como o mesmo é configurado no ordenamento jurídico Português, o que faz com que aos princípios que envolvem as regras de direito português que regulam este último instituto jurídico, não repugne de todo a motivação das normas estrangeiras que permitem a existência da união estável registada, atribuindo-lhe entre outros, efeitos sucessórios.
BH. Não faz também qualquer sentido referir nesta sede que é fundamento da não revisão e confirmação do acórdão revidendo na ordem jurídica Portuguesa, o facto de no direito português as normas de conflito previstas nos artigos 62.°, 31.° n.° 1 e 25.°, todos do CC, remeterem para a lei portuguesa a competência para regular a sucessão do falecido MM.
BI. Não só porque tal requisito não consta do elenco previsto no artigo 1096.° do CPC, como também porque não se pretende de todo nesta fase, aferir qual é o direito material aplicável a esta situação transnacional, mas sim verificar se estão preenchidos os requisitos necessários para que se possa reconhecer e confirmar em Portugal o acórdão revidendo, proferido por um Tribunal estrangeiro, que aplicou e bem, o seu direito de conflitos e consequentemente o direito substantivo Brasileiro, para o qual as suas normas de conflitos remeteram.
BJ. Muito menos faz qualquer sentido referir, que é susceptível de influenciar a decisão de reconhecimento do acórdão revidendo, o facto de não ser unânime, quer na jurisprudência, quer na doutrina Brasileira, a atribuição de direitos sucessórios, ao companheiro sobrevivo de uma união estável registada, na medida em que mais uma vez tal realidade não consta como requisito para a revisão e confirmação de sentenças estrangeiras em Portugal, no âmbito do artigo 1096.° do CPC.
BK. Ainda por cima quando no que a esta questão em concreto diz respeito, a Recorrente demonstrou acima que tem sido entendimento maioritário da doutrina e jurisprudência Brasileira, que ao companheiro no âmbito de uma união estável registada, devem ser atribuídos direitos sucessórios.
BL. Por fim, deverá sempre ter-se em conta na análise que será feita ao presente recurso, que a exigência de reconhecimento de sentenças estrangeiras no ordenamento jurídico Português, não tem por fim proteger os cidadãos portugueses de decisões estrangeiras que não lhes reconheçam direitos, em detrimento de cidadãos de nacionalidade estrangeira.
BM. Urge apelar nesta sede para que se tenha a coragem de resistir à tentação de decidir em favor dos cidadãos portugueses e se perceba e reconheça, que o reconhecimento, ou não, de uma sentença estrangeira em Portugal, obedece a requisitos objectivos e bem claros, enunciados nas alíneas do artigo 1096° do CPC, devendo os Tribunais competentes para analisar este tipo de pedidos, cingirem-se única e exclusivamente aos mesmos, sem se debruçarem, ou deixarem influenciar, por questões absolutamente colaterais e irrelevantes para o efeito,
BN. Como sejam o facto de cidadãos portugueses verem os seus direitos limitados em virtude da admissibilidade do reconhecimento de uma sentença estrangeira em Portugal.
BO. De facto se fosse requisito do reconhecimento da uma sentença estrangeira em Portugal, o facto da mesma não retirar a cidadãos nacionais direitos, não teria o Ministério Público, órgão encarregue de proceder à defesa dos interesses do Estado português, pugnado como o fez nas alegações que levou a cabo nos presentes autos, pela procedência do pedido da Recorrente, levado a cabo na sua petição inicial.
BP. Assim sendo e face aos motivos supra aduzidos, deverá ser revogado o acórdão de que ora se recorre e decidir no sentido de julgar preenchidos todos os requisitos de que depende a revisão e confirmação do acórdão revidendo na ordem jurídica Portuguesa, previstos no artigo 1096.° do CPC, nomeadamente o previsto na sua alínea f) e consequentemente, seja revisto e confirmado no ordenamento Português o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou como única herdeira do falecido MM a ora Recorrente, o que desde já se requer.
BQ. Na resposta que apresentou à oposição apresentada peia Recorrida, a Recorrente requereu que a conduta processual adoptada por esta última fosse julgada como litigância de má-fé com as inerentes consequências legais, tendo para o efeito avançado diversos argumento para o efeito.
BR. Ora, qual não foi o espanto da Recorrente quando percebeu que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, na posse da prova documental junta aos autos e da oposição apresentada oportunamente pela ora Recorrida, optou no acórdão ora em crise, por referir no que a esta questão diz respeito, apenas que "Não se detecta qualquer fundamento para a condenação da requerida como litigante de má fé à luz dos critérios postos no artigo 456° do CPC".
BR. Ora é manifesto que, no que a este ponto diz respeito, padece o acórdão objecto do presente recurso de revista de evidente nulidade, por manifesta falta de fundamentação, no que à decisão de não condenação da Recorrida como litigante de má -fé diz respeito.
BS. Efectivamente, no que a essa parte diz respeito, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, omite pura e simplesmente quais os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão.
BT. Efectivamente, não estamos neste caso em concreto, perante um caso por exemplo de deficiente fundamentação, na medida em que falta por completo a exposição das razões de direito e de facto, que justificaram a decisão levada a cabo pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
BU. Posto isto deverá nesta sede e nos termos do artigo 718.° ns.1 e 2 do CPC, ser o acórdão aqui em questão reformado, passando a julgar a conduta processual da Recorrida como litigância de má fé, com as inerentes consequências jurídicas.
BV. Isto por que a Recorrida na sua oposição referiu que no processo de inventário que correu termos nos Tribunais Brasileiros não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, pois o acórdão objecto da presente acção, terá estado perdido nas gavetas do Tribunal de Justiça de São Paulo e a página oficial muito estranhamente nada publicou sobre este processo durante largos meses, deixando na ignorância os Advogados dos herdeiros portugueses que só comunicaram com os seus constituintes em Portugal passados cerca de seis meses após o facto, pelo que já nada mais puderam fazer.
BW. Para além do que até aqui se acabou de referir, a Recorrida afirma ainda que, não só ficaram sem notícias do processo, como foram posteriormente abandonados pelos seus Advogados Brasileiros que sem qualquer justificação ou explicação, renunciaram ao mandato no dia 9 de Junho de 2010.
BX. Ora, mediante a junção pela Recorrente aos presentes autos, de uma cópia integral do processo de inventário do falecido MM que correu termos nos Tribunais Brasileiros, a mesma logrou provar que toda esta construção levada a cabo pela Recorrida era falsa.
BY. Tanto mais assim foi que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa veio, no acórdão ora em crise, considerar assentes e com relevância para a decisão da presente causa, que o acórdão revidendo "foi publicado no DJE no dia 26.06.2009, tendo transitado em julgado no dia 13.07.2009",
BZ. Que "no dia 09.06.2010, foram remetidas aos ora requeridos 9 notificações extrajudiciais, pelos seus Advogados, NN e OO, onde estes informaram aqueles que iriam renunciar, com carácter irrevogável, ao mandato que estes lhe haviam outorgado no processo de inventário em causa, devendo os mesmos ficarem cientes de que, nos próximos 10 dias, deveriam constituir no Advogado",
CA. E que "No dia 11.06.2010, os Advogados dos ora Requeridos comunicaram ao processo a renúncia ao mandato que lhes havia sido outorgado pelos ora Requeridos".
CB. Desta forma atento o disposto no artigo 456.° n.° 2 alíneas a) e b) do CPC, à prova documental junta aos autos pela Recorrente e ao teor da oposição apresentada nos presentes autos pela Recorrida, é manifesto que resultou provado nos presentes autos que a Recorrida não só deturpou a verdade dos factos, sabendo que os mesmos não correspondiam à verdade, como ainda assim, utilizou essas mesmas deturpações para fazer imputações graves à Recorrente e colocar em causa a reputação dos Tribunais Brasileiros.
CC. Assim sendo e face aos motivos supra aduzidos, deverá nesta sede o acórdão ora em crise ser reformado, altura em que deverá passar a julgar a conduta processual da Recorrida, como litigância de má fé e em consequência, condenar a mesma no pagamento de uma multa e, bem assim, a pagar à Requerente uma indemnização a fixar em sede de liquidação de sentença, a qual deverá acautelar os montantes despendidos por esta última a título de despesas com o processo e honorários com mandatário, tudo nos termos dos artigos 456.° n.° 1 e 2 alínea a) e b) e 457.° n.° 1 alínea a), ambos do Código de Processo Civil, o que desde já se requer.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverão V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, assegurar o cumprimento das normas do nosso ordenamento jurídico, e nessa medida, deverá o recurso obter provimento e, consequentemente, ser revogado e reformado o acórdão objecto do presente recurso e julgado no sentido de deferir o requerido pela Recorrente na petição inicial que originou os presentes autos, nomeadamente e a saber, julgar preenchidos todos os requisitos de que depende a revisão e confirmação do acórdão revidendo na ordem jurídica Portuguesa, previstos no artigo 1096.° do CPC, nomeadamente o previsto na sua alínea f) e consequentemente, seja revisto e confirmado no ordenamento jurídico Português o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou como única herdeira do falecido MM a ora Recorrente e ainda seja julgada a conduta processual da Recorrida, como litigância de má fé e em consequência, a mesma condenada no pagamento de uma multa e, bem assim, a pagar à Requerente uma indemnização a fixar em sede de liquidação de sentença, iluminando o caminho para a realização da JUSTIÇA, como é de Direito!
Cumpre decidir:
A) - Os Factos:
O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes factos:
1. Em 08.12.2006, em S. Paulo (Brasil), faleceu MM, cidadão de nacionalidade portuguesa, e residente no Brasil com carácter permanente, constando, como data de entrada, 11.06.1957. (fls. 8 a 11).
2. O de cujus faleceu no estado de solteiro (fls. 10, 140, 141, 211 e 214). 3.0 de cujus não deixou ascendentes ou descendentes (fls. 217).
4. No dia 21.11.2007, foi distribuído na 5ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central da Comarca de São Paulo, no Brasil, o processo de Inventário Judicial n.° …, respeitante ao acervo hereditário do falecido, e intentado pela ora requerente (fls. 12 a 17 e 205 e seguintes).
5. Em 23.11.2007, a ora requerente foi nomeada inventariante, tendo requerido a habilitação, como partes no mesmo, os ora requeridos, irmãos do falecido (fls.12 a 17, 222 e 272 a 341).
6. Em 28.07.2008, foi proferido despacho, no qual se decidiu "...delimitar a participação da companheira [a ora requerente] na sucessão do falecido, vedada a adjudicação sobre a totalidade do espólio...", tendo a ora requerente, posteriormente, interposto recurso de agravo de instrumento da mesma, e os ora requeridos intimados para responder, em 10 dias (fls. 377, e 411 a 427).
7. Em 01.04.2009, em sede de recurso e nos autos de Agravo de Instrumento n.° 617.125-4/9, foi proferido Acórdão pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Brasil), que, revogando a decisão referida em 6., decidiu "...indeferir a habilitação dos agravados no inventário [os ora requeridos], determinando a expedição de carta de adjudicação em favor da agravante [a ora requerente], após o cumprimento das formalidades legais e o pagamento dos impostos e taxas eventualmente devidos..", (fls, 12 a 17 e 441 a 447).
8. Esse Acórdão foi publicado no DJE no dia 26.06.2009, tendo transitado em julgado no dia 13.07.2009, e é objecto da presente acção de confirmação e revisão (fls. 446 e 447).
9. Em 09.12.2009, foi distribuído no 4º Juízo Cível de Lisboa, sob o n° 2770/09.1 TJLSB, um processo de Inventário Judicial, interposto pela requerida FF, sendo cabeça-de-casal HH, e igualmente respeitante ao acervo hereditário do falecido MM (fls. 5 e 647).
10. No dia 09.06.2010, foram remetidas aos ora requeridos 9 notificações extrajudiciais pelos seus Advogados, NN e OO, onde estes informaram aqueles que iriam renunciar, com carácter irrevogável, ao mandato que estes lhe haviam outorgado no processo de inventário em causa, devendo os mesmos ficarem cientes de que, nos próximos 10 dias, deveriam constituir novo Advogado (Fls. 319 a 341 e 536 a 545).
11. No dia 10.06.2010, os Advogados dos ora requeridos comunicaram ao processo a renúncia ao mandato que lhes havia sido outorgado pelos ora requeridos (fls. 535 a 545).
12. Em 15.10.2010, foi lavrado Auto de Adjudicação, constando do mesmo que foram adjudicados os bens descritos nas declarações prestadas nos autos, à ora requerente, na qualidade de única herdeira do de cujus (fls. 552).
13. Em 19.11.2010, foi proferida sentença, na qual se homologou o Auto de Adjudicação, atribuindo os bens do de cujus nele descritos à ora requerente, tendo a mesma transitado em 09.12.2010 (fls. 12 a 17, 204, e 580).
14. O de cujus deixou bens móveis e imóveis no Brasil, e móveis em Portugal (fls. 230 a 235, 506 a 512 e 552 a 557).
15. Em 27.10.2006, a requerente e o falecido MM, compareceram perante o 2o Tabelião de Notas de São Paulo, que, lavrando Escritura de Declaração, fez constar, que ambos "...convivem em União Estável, desde o dia primeiro do mês de Dezembro do ano de mil novecentos e noventa e nove (10/12/1999), convivência esta pública, contínua, e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família, nos termos do Artigo 1.723 da Lei n.° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002-CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO..:' (fls. 216).
A) - O Direito:
Delimitando o “thema decidendum” em causa está a questão de se saber se a decisão do Tribunal Superior do Estado de São Paulo (Brasil) é susceptível ou não de ser confirmada pelos Tribunais portugueses e a questão da má-fé dos recorridos.
De acordo com o art.1096º do Código do Processo Civil (CPC) (2007) aplicável ao caso vertente para que uma sentença estrangeira possa ser confirmada em Portugal é necessário que se verifiquem os requisitos naquele artigo previstos.
O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras está enformado pelo princípio da revisão formal. A restrição da alínea f) do art.1096º do CPC relaciona-se também com um requisito de ordem formal que é o da decisão constante da sentença em revisão não ser contrária aos princípios da ordem pública internacional do Estado português.
No domínio da legislação anterior ao CPC já a jurisprudência maioritária entendia que os princípios de ordem pública se referem à ordem pública internacional e não à ordem pública interna sendo que tais princípios decorriam de um complexo de normas, inspiradas por razões políticas, morais e económicas que são aceites por um determinado número de nações como expressão de uma civilização e cultura idênticas. O CPC de 2007 clarificou a alínea f) do art.1096º ao dizer que o “exequator” não deve ser concedido a uma decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Assim, por um lado os princípios de ordem pública internacional do Estado português hão-de estar plasmados a nível internacional na ordem jurídica de um certo número de Estados com os quais Portugal tem afinidades jurídicas e por outro hão-de estar em consonância com a Constituição da República Portuguesa não podendo ser contrários aos defendidos na nossa Lei Fundamental.
No caso em apreço temos um cidadão português, MM, residente no Brasil, onde falece, intestado, em 8 de Dezembro de 2006, o qual vivia em união de facto com a aqui recorrente AA.
O “de cujus” era solteiro e não deixou descendentes nem ascendentes, ou seja herdeiros legitimários.
O fundamento do direito sucessório continua ainda hoje a estar ligado, por um lado, à propriedade individual e por outro à família.
Uma vez que os indivíduos podem ser proprietários, isto é, podem ter um património maior ou menor, podem ter bens e dívidas, podem ser titulares de direitos sobre coisas, créditos, de débitos, é forçoso que alguém se lhes substitua nessas posições quando falecem, que tenham um ou mais sucessores. De contrário dar-se-ia uma ruptura injustificada da vida jurídica, com perturbação da ordem e frustração de legítimas expectativas.
A segunda razão de ser do instituto sucessório reside na família.
A família, no dizer do Prof. Galvão Telles (in Direito das Sucessões pag.235) “cria vínculos estreitos entre os seus membros. Existem afectos e deveres, há um vinculo de solidariedade. A família não é uma realidade transitória mas permanente, não tem existência efémera: superando o tempo (e o espaço) perpetua-se através das gerações, constitui uma transcendente unidade que liga o passado ao futuro”.
Isto justifica que, pelo menos no silêncio do proprietário, os bens sejam atribuídos por morte dele à família – cônjuge, parentes directos ou colaterais-.
A ausência de herdeiros legitimários, de testamento ou disposição de última vontade dá lugar à sucessão legítima. Esta funda-se num vínculo de solidariedade familiar e este, embora afrouxe à medida que o parentesco se distancia, ainda conserva suficiente vigor em relação aos colaterais, sobretudo no caso, que é aquele que interessa de não haver familiares próximos na linha directa.
A família como comunidade que se projecta no tempo não é constituída apenas pelos que vivem sob o mesmo tecto.
Actualmente, novas realidades se colocam na convivência social básica. A par da família constituída pelo casamento e por laços de consanguinidade ou de adopção começa a ser comum um novo tipo de convivência assente na união de facto à qual o nosso sistema jurídico atribuiu determinadas medidas de protecção previstas na Lei nº7/2001 de 11 de Maio.
De entre os efeitos previstos no art.3º da referida lei, dele não fazem parte quaisquer efeitos de índole sucessória para além da atribuição da casa de morada de família; da protecção pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei; da prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional ou pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país. A nossa lei não consagrou para as uniões de facto qualquer direito sucessório sobre o património do “de cujus”.
A lei reguladora da sucessão por morte é, nos termos do art.62º do Código Civil (CC), a lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste. Tal significa que “in casu” a lei portuguesa é a competente para regular a sucessão por morte de MM.
O Código Civil português não consagra no art.2157º o ou a unido (a) de facto como herdeiro legitimário uma vez que apenas são herdeiros legitimários: o cônjuge, os descendentes ou os ascendentes sem quaisquer outras equiparações. A enumeração dos herdeiros é, pois, taxativa. O mesmo acontece com os herdeiros legítimos, na ausência de cônjuge, descendentes ou ascendentes. Nos termos do art.2145º do CC “Na falta de cônjuge, descendentes ou ascendentes, são chamados à sucessão os irmãos e, representativamente, os descendentes destes” e de acordo com o art.2147º do CC “Na falta de herdeiros das classes anteriores, são chamados à sucessão os restantes colaterais até ao 4º grau, preferindo sempre os mais próximos”.
A indicação dos herdeiros é taxativa não havendo lugar a qualquer interpretação extensiva ou analógica para os que vivem em união de facto.
A ordem jurídica brasileira comporta um instituto específico inexistente em Portugal que consiste na união de facto registada.
Pretende a recorrente, na esteira do defendido pelo Tribunal Superior do Estado de São Paulo, que a união de facto registada é equiparável para todos os efeitos à união de facto e ao casamento na ordem jurídica portuguesa. Com o devido respeito tal não corresponde a uma correcta hermenêutica do instituto: se a união de facto registada é um mais em relação à união de facto portuguesa, é, contudo, um menos em relação ao casamento.
Mas também a equiparação da união de facto registada ao casamento no ordenamento jurídico brasileiro não é pacífica conforme resulta do confronto das decisões proferidas pelos Tribunais do Brasil e a própria recorrente o reconhece.
Na verdade, e partindo das alegações do presente recurso, o instituto jurídico da união de facto (registada) que consiste na total comunhão de vida, tendencialmente duradoura e estável, de duas pessoas com a intenção de constituir família tem por base uma longa tradição social, legal, doutrinária e jurisprudencial no Brasil.
Tal representou uma completa ruptura com a tradição legal em vigor à data da Constituição brasileira de 1988,- a qual admitia somente o casamento como forma única de entidade familiar, recusando a existência de demais figuras.
No sentido de concretizar este entendimento Constitucional Brasileiro, foram criadas diversas disposições normativas, contidas nas Leis n. 8.971/94 e 9.278/96, as quais visaram proteger os direitos sucessórios do companheiro sobrevivo na união estável registada.
Com o Código Civil brasileiro de 2002, a regulamentação da união estável registada sofreu um retrocesso legal e em oposição com a prática jurídica e social existente até então. No entanto a doutrina civilística brasileira continuou a defender que o companheiro na união estável registada deve gozar de direitos sucessórios plenos, devendo imperativamente participar na herança do “de cujus”.
Por sua vez uma boa parte da jurisprudência brasileira tem vindo a reconhecer, atendendo às normas constantes do artigo 1790° do Código Civil brasileiro de 2002, a equiparação ao casamento da união de facto estável registada chegando, inclusive, a declarar a inconstitucionalidade deste dispositivo legal e, consequentemente, a defender que, na falta de ascendentes e descendentes do falecido, tem direito a herdar a totalidade dos bens deste último, a companheira que com o mesmo viveu em união estável registada.
A questão não é pacífica no Brasil e muito menos o é quando postos em equação os institutos em apreço no sistema jurídico português.
Diz também a recorrente que os herdeiros legítimos (não legitimários) a que se referem os arts.2145º a 2147º do CC português podem ser preteridos por qualquer acto dispositivo de última vontade do “de cujus” em favor de terceiro não sucessível e se assim é porque não, interroga-se a recorrente, por decisão de um Tribunal?
É que em matéria sucessória o afastamento dos herdeiros opera-se tão-somente nos casos previstos na lei não podendo o Tribunal substituir “ope judicis” uns por outros ou atribuir direitos de sucessão a uns em detrimento de outros alterando as linhas dos sucessíveis.
É possível ao “de cujus”, na ausência de herdeiros legitimários, atribuir o acervo de bens que constituem a sua herança a terceiros, e tal possibilidade é também aplicável em relação ao companheiro da união de facto sobrevivo. Nada impedia que o falecido tivesse deixado em testamento à ora recorrente a totalidade dos seus bens. Não o tendo feito deixou a porta aberta à sucessão legítima. E aqui volta-se a colocar a questão: pode a recorrente ser considerada a herdeira universal dos bens do falecido MM? E tendo como tal sido declarada pelo Tribunal Superior de São Paulo pode a decisão daquele colendo Tribunal ser confirmada pelos Tribunais portugueses sem ofensa do disposto na alínea f) do art.1096º do CPC?
Sobre o mérito da decisão proferida pelo Tribunal brasileiro não tem este Supremo Tribunal de Justiça que se pronunciar.
Quanto ao requisito previsto na citada alínea f) do art.1096º não podemos concordar com as extensas mas doutas alegações da recorrente.
Na verdade o reconhecimento do acórdão do Tribunal Superior de São Paulo conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado português. Esses princípios plasmam-se por um conjunto de normas de cariz político, moral ou económico aceites na comunidade europeia e internacional. E entre esses princípios de ordem superior de qualquer Estado com o qual Portugal tem afinidades jurídicas e culturais estão os de ordem moral. A protecção dos laços familiares (em sentido amplo) constitui um dado adquirido na cultura jurídica da maior parte dos Estados.
Mas para além disso os princípios de ordem pública internacional do Estado português hão-de ser consentâneos com aqueles que estão inscritos na Constituição da República Portuguesa (CRP) não a podendo violar.
O princípio da igualdade consagrado no art.13º da CRP impede que por esta via se proceda a descriminações.
Pensar em igualdade é pensar em justiça na linha da análise aristotélica, retomada pela Escolástica e por todas as correntes posteriores de Hobbes, Rousseau ou Rawls; é redefinir as relações entre as pessoas e entre as normas jurídicas; é indagar da lei e da generalidade da lei
A análise do sentido da igualdade, no dizer do Prof. Jorge Miranda (in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, pags.198 e segs.) tem de assentar em três pontos firmes acolhidos quase unanimemente pela doutrina e pela jurisprudência:
Que a igualdade não é identidade e igualdade jurídica não é igualdade natural ou naturalística;
Que a igualdade significa intenção de racionalidade e, em último termo, intenção de justiça;
Que a igualdade se encontra conexa com outros princípios, tem de ser entendida no plano global dos valores, critérios e opções da Constituição material.
O sentido primário do princípio é negativo consistindo na vedação de privilégios e de discriminações: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever…”.
Mas para além deste sentido existe um sentido positivo:
Tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) e;
Tratamento desigual de situações desiguais – impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas – e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador.
A igualdade tem que ver com a distribuição de direitos e deveres, de vantagens e de encargos, de benefícios e de custos inerentes à pertença à mesma comunidade ou à vivência da mesma situação.
Ofende o princípio da igualdade afastar os herdeiros legítimos do falecido MM do seu direito à herança, por força da existência de uma união de facto, quando em situação idêntica ocorrida em Portugal tal não aconteceria.
Mas o princípio da igualdade é também violado face às uniões de facto existentes no nosso ordenamento jurídico. Nestas o companheiro ou companheira sobrevivos não gozam de quaisquer direitos sucessórios já que estes apenas cabem aos herdeiros legítimos.
Assim, a vingar a decisão do Tribunal Superior de São Paulo, para situações iguais dar-se-ia tratamento desigual. A requerente vivendo em união de facto com o “de cujus”, de nacionalidade portuguesa, seria sua herdeira universal preterindo-se os herdeiros legítimos; em Portugal a morte de um dos membros da união de facto transferiria o direito sucessório para os seus herdeiros legítimos preterindo-se o (a) companheiro (a) sobrevivo.
O princípio da igualdade é um corolário da justiça e esta é em si um princípio de ordem pública internacional do Estado português. Não respeitar a justiça inerente à vivência das mesmas situações viola manifestamente o princípio da ordem pública internacional consagrado na alínea f) do art.1096º do CPC.
No que diz respeito à litigância de má-fé o STJ apenas conhece de matéria de direito aplicando aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (art.729º, nº1 do CPC).
Da matéria de facto dada como provada nada consta que possa ser objecto de análise nesta revista não havendo lugar a censura, quanto a esta matéria, do acórdão sub judice.
O presente recurso não pode deixar de naufragar.
Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em negar revista confirmando o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 15 de janeiro de 2015
Orlando Afonso (Relator)
Távora Victor
Granja da Fonseca