EXPROPRIAÇÃO DE FACTO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
PRINCIPIO DA INTANGIBILIDADE
OBRA PÚBLICA
Sumário


1. Declarada a utilidade pública de uma parcela de um prédio a favor de uma determinada entidade expropriante, a ocupação da parte restante por outra entidade - o Município -sem qualquer título, confere ao proprietário da parcela o direito de pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade e a sua entrega (art. 1311º do CC).
2. A invocação ou aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos em que a apropriação de prédios por uma entidade pública, correspondente a expropriações de facto, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado.
3. Nessa eventualidade, em lugar da condenação na restituição do bem, admite-se que a entidade ocupante possa ser condenada no pagamento de uma indemnização ao proprietário.
4. A invocação ou aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública constitui um mecanismo de defesa no interesse da entidade pública que se apropriou do bem, não podendo ser invocado pelo proprietário para, em lugar da restituição do prédio, pedir a condenação da entidade ocupante no pagamento de uma indemnização correspondente ao seu valor.

Texto Integral


I - AA e BB propuseram contra o MUNICÍPIO do BARREIRO, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, acção administrativa comum de responsabilidade civil extracontratual.

Alegaram ser proprietários de um prédio urbano relativamente ao qual foi declarada a utilidade pública de uma parcela de 629,00 m2 destinada à construção de um Terminal Rodo-Ferro-Fluvial do Barreiro. Mas, em 1995, o R. ocupou a parcela sobrante daquele prédio, com a área de 3.240,28 m2, onde construiu diversas infra-estruturas de apoio ao referido Terminal, designadamente vias rodoviárias, zonas verdes e estacionamentos, sem que os AA. dela tenham sido informados, sem ter sido desencadeado qualquer processo de expropriação e sem ter sido paga indemnização.

Não obstante o R. continuar a ocupar ilicitamente o prédio dos AA., não pretendem reivindicá-lo nem obter a demolição das construções nele edificadas, que consideram de indiscutível interesse público, dados os danos mais avultados que tal situação causaria ao R. Mas, uma vez que foram privados dos poderes inerentes ao seu direito de propriedade, consideram que têm o direito a ser indemnizados, de acordo com os pressupostos utilizados para o cálculo da indemnização da parcela expropriada.

Concluíram ser-lhes devida uma indemnização no montante de € 130.680,506 (3.240,28 m2 x € 40,33), a actualizar desde 1995 até à data da decisão final, nos termos do art. 24°, n° 1, do Cód. Exp.

O R. contestou e invocou a incompetência material dos tribunais administrativos e a prescrição do direito de indemnização invocado.

Em sede de impugnação, alegou que o prédio ocupado não tinha qualquer valor edificativo, nem sequer os AA., ao longo de 36 anos, alguma vez apresentaram qualquer projecto de ocupação urbanística, pelo que a indemnização a atribuir nunca poderia ultrapassar € 40.000,00.

Além disso, considera que o que se ajustaria ao caso seria a interposição de uma acção de reivindicação que permitisse ao R. formular o pedido reconvencional de indemnização por benfeitorias, chamando ainda à acção a entidade em cujo benefício foi realizado o parque de estacionamento.

Na réplica, os AA., mantendo a causa de pedir, alteraram o pedido, que passou a ser o seguinte:

i) Deve o R. ser condenado a adquirir aos AA. o terreno em causa, pagando a indemnização legalmente devida;

ii) Esta indemnização deve ser fixada nos termos adjectivos e materiais do Cód. das Expropriações;

iii) Uma vez transitada em julgado a decisão que fixar a indemnização, deve o R. ser intimado a indicar uma data para a outorga da escritura pública de constituição do mesmo como proprietário do terreno, nessa altura sendo paga a indemnização fixada.

Por não estar em causa uma relação jurídica administrativa, antes uma “expropriação de facto”, o Tribunal Administrativo declarou a sua incompetência material, sendo os autos remetidos ao Tribunal Judicial do Barreiro, onde foi determinada a notificação das partes relativamente ao eventual aproveitamento dos articulados que haviam apresentado.

Depois de o R. ter apresentado nova contestação, já sem a excepção de incompetência material, os AA. responderam com nova réplica em que, num capítulo intitulado “Da ampliação da causa de pedir e do pedido”, declararam pretender “alterar a causa de pedir e os pedidos da presente acção, que passam, pois, a ser os seguintes:

- Deve o R. ser condenado a adquirir este terreno aos AA., pagando a indemnização legalmente devida, para o efeito, em concreto;

- Esta indemnização deverá ser fixada nos termos adjectivos e materiais do Cód. de Expropriações;

- ou se assim não se entender. Ao abrigo do regime jurídico do enriquecimento sem causa, nos termos dos arts. 473º e segs. do CC;

- Uma vez transitada em julgado a decisão que fixar esta indemnização, deverá a propriedade do prédio em causa ser adjudicada ao R-. ou, se assim não se entender, ser o R. intimado a indicar uma data para a outorga da escritura pública de constituição do mesmo como proprietário deste terreno, onde será paga a indemnização fixada”.

No despacho saneador foi proferida decisão que considerou inadmissível a nova alteração da causa de pedir e do pedido exarada através da segunda réplica que os AA. apresentaram, com fundamento de que, “não obstante os factos que consubstanciam tais pedidos e causa de pedir não divergirem, no essencial, da matéria alegada na petição inicial, o facto é que, a ser admitida a alteração pretendida pelos AA., a relação jurídica configurada por estes seria substancialmente diversa da apresentada na petição inicial, fundando-se a primeira na responsabilidade extracontratual do R. e tendo a segunda como fundamento uma pretensa expropriação de facto, cujas consequências seriam, na tese dos AA., substancialmente diferentes”.

Debruçando-se, acto seguido, sobre o mérito da causa, considerou o tribunal de 1ª instância que não se verificavam os pressupostos da responsabilidade civil, por falta de ilicitude. Mas, depois de considerar improcedente a excepção de prescrição e de integrar a matéria de facto que julgou provada nas regras do enriquecimento sem causa, condenou o R. Município do Barreiro no pagamento do montante de € 130.680,50, a actualizar de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor. Mais se determinou que, uma vez paga a quantia fixada, o prédio ocupado reverteria a favor do mesmo R.

O R. interpôs recurso de apelação em que suscitou, além de outras, as seguintes questões:

- Acolhimento ilegal da alteração do pedido e da causa de pedir que havia sido anteriormente indeferida;

- Prescrição do direito de indemnização sustentado na responsabilidade civil extracontratual;

- Inverificação dos requisitos do enriquecimento sem causa, uma vez que o imóvel pode ser restituído facilmente e que o mesmo continua inscrito em nome dos AA;

- O facto de a substituição da restituição por indemnização dever ser o resultado de circunstâncias contempladas na lei e não um direito dos AA., podendo estes obter a restituição do imóvel.

Os AA. contra-alegaram e, além da invocação de diversas nulidades do saneador-sentença, ampliaram o objecto do recurso por forma a que fosse revogada a decisão interlocutória que indeferira a pretendida alteração do pedido e da causa de pedir, ponderando-se a procedência da sua pretensão ao abrigo do regime jurídico que for mais adequado ao caso, seja o enriquecimento sem causa, seja a responsabilidade civil extracontratual decorrente de uma situação de expropriação de facto.

A Relação anulou o saneador-sentença com fundamento em excesso de pronúncia, na medida em que a pretensão dos AA. foi integrada no enriquecimento sem causa.

Todavia, considerando que os AA. não ampliaram o objecto da apelação, por forma a que a Relação se pudesse pronunciar sobre a pretensão dos AA. no quadro da responsabilidade civil, absolveu o R. do pedido.

Interposto recurso de revista este Supremo proferiu acórdão a revogar o acórdão da Relação, recorrido na parte em que considerou existir nulidade da sentença por excesso de pronúncia e em que concluiu que a decisão da 1ª instância sobre a alteração do pedido e da causa de pedir transitou em julgado, determinando a baixa do processo para que fosse apreciado o mérito da causa.

A Relação, na sequência do anterior aresto deste Supremo Tribunal, revogou a decisão que não admitiu a alteração do pedido e a causa de pedir e revogou também a sentença recorrida, absolvendo o R. dos pedidos.

Deste segundo acórdão da Relação interpuseram os AA. novo recurso de revista suscitando essencialmente as seguintes questões:

a) - A restituição do imóvel de que o R. se apropriou de facto não assegura uma adequada tutela do interesse público, justificando-se que seja atribuída aos proprietários uma indemnização de natureza expropriativa correspondente ao valor do prédio;

b) - O acórdão recorrido nega aos AA. o direito de ser indemnizado numa situação em que o seu prédio foi cometido a um fim de utilidade pública, violando o art. 62º, nº 2, da CRP;

c) - Viola também o princípio da igualdade relativamente aos proprietários de prédios expropriados de acordo com as normas legais a que a lei reconhece o direito de indemnização;

d) - Verifica-se ainda uma contradição, na medida em que se reconhece aos proprietários o direito de indemnização nos casos em que a expropriação irregular assenta numa ilegalidade leve e já não quando, como ocorreu no caso, se sustenta numa ilegalidade de maior gravidade;

e) - A indemnização em dinheiro, em lugar da reconstituição natural, não se justifica apenas nos casos de impossibilidade da reconstituição, mas também na tendencial impossibilidade e na excessiva onerosidade dessa reconstituição, na perspectiva do plano financeiro e dos interesses públicos afectados, sendo que no caso concreto seria tendencialmente impossível ou excessivamente onerosa a reconstituição através da restituição da posse de uma parcela destinada efectivamente a espaço verde e a circulação e parqueamento de veículos;

f) - Verifica-se até uma impossibilidade jurídica, na medida em que uma parte da parcela está afecta a rodovias que integram o domínio público municipal;

g) - Também nas expropriações de facto os proprietários têm direito a uma indemnização pecuniária, designadamente quando a devolução do terreno constitua uma grave lesão do interesse público e da comunidade;

h) - Os recorrentes não pretendem que a parcela lhes seja devolvida; conformando-se com essa situação, pretendem tão só que seja assegurada a indemnização pela perda da mesma, conjugando os diversos interesses em confronto;

i) - A norma criada pelo acórdão recorrido que nega o direito de indemnização pela perda definitiva do bem que continuará afecto a fins de utilidade pública é violadora dos princípios do Estado de Direito, da igualdade, da proporcionalidade, da prossecução do interesse público e do direito fundamental de propriedade privada e a uma justa indemnização.

O recorrido apresentou contra-alegações.


II - Factos provados:

1 - Por despacho do SET (Despacho n.° 49-XI/95, de 28-6) foi determinada, a requerimento da CP, a expropriação de uma parcela, com a área de 629 m2, do prédio urbano sito no Barreiro, descrito na CRP sob o n° 3059, a fls. 28 do livro B-10, de que os AA. são donos.

2 - Por Ac. da Relação de Lisboa foi fixada a indemnização devida pela referida expropriação no valor de PTE 5.085.465$00.

3 - Em toda a área sobrante do prédio, o R. iniciou trabalhos de intervenção que designou como "Arranjos exteriores à Rua da Recosta", construindo aí diversas infra-estruturas de apoio ao Terminal Rodo-Ferro-Fluvial do Barreiro, designadamente vias rodoviárias, zonas verdes e de estacionamento, sem que para tanto tivesse ocorrido qualquer procedimento expropriativo ou tivesse sido paga qualquer indemnização.

4 - Os AA. nunca foram informados pelo R. sobre a referida ocupação da parte sobrante do prédio.

5 - Em 16-11-98, o mandatário dos AA. enviou uma carta à Câmara Municipal do Barreiro, em que, além do mais, dizia o seguinte:

"O que nos traz a Vª Exª e se pode constatar de mera observação do local onde se situa o prédio em causa, é a ocupação de toda a parte restante do prédio por obras da responsabilidade desta Câmara Municipal, designadamente os denominados "Arranjos exteriores da Rua da Recosta (...). Tal ocupação não foi por qualquer modo comunicada ou autorizada pelos proprietários dos terrenos e carece de qualquer título que a legitime.

Em 20-5-98, o Dr. BB (anterior colaborador da Sociedade) teve uma reunião nessa Câmara Municipal, tendo sido informado de que a entidade responsável pela realização de todo o projecto do Terminal Rodo-Ferro-Fluvial do Barreiro e respectivas infra-estruturas de apoio seria a CP, pelo que seria esta a entidade responsável pela ocupação ilegítima dos terrenos em causa.

Todavia, segundo informações posteriormente fornecidas pela CP, esta empresa foi apenas responsável pela construção dos acessos rodoviários ao Terminal Fluvial, esgotando-se ai a sua intervenção formal (em termos de expropriação) e material (relativamente às obras efectuadas). Na verdade, na sequência da expropriação de parte do prédio em causa a favor da CP - Caminhos de Ferro Portugueses, EP, a parte sobrante do prédio foi ocupada por essa Câmara Municipal, tendo ai efectuado diversos trabalhos ...sem que os proprietários fossem contactados para uma possível transmissão dos seus direitos ou sem que qualquer outro processo expropriativo fosse iniciado.

(...)".

6 - Uma vez que não foi possível chegar a acordo relativamente à fixação e pagamento de uma indemnização pela ocupação da parte sobrante do prédio, os AA. requereram contra a CP e contra o R. a promoção, constituição e funcionamento da arbitragem que correu termos no 1º Juízo Cível da Comarca do Barreiro, sob o n° 2095/04.9TBBRR.

7 - No âmbito deste processo foi decidido, em 17-11-05, por Ac. da Relação de Lisboa, além do mais, que:

" (...) O que não parece adequado é lançar mão do processo especial de expropriação quando se verifique uma actividade material que atente contra o direito de propriedade de um particular sem haver declaração de utilidade pública...

Deve, em tais casos, em que se verifica uma actividade não coberta pela expropriação e em que a Administração surge, como se disse, em pé de igualdade com os cidadãos, recorrer-se ao processo comum, sem o que se verificará erro na forma do processo (...).

Ao lançar mão do procedimento em apreço incorreram os requerentes em erro na forma de processo, sendo que in casu, conforme se ponderou na decisão recorrida, não há possibilidade de aproveitamento da petição para a forma comum, o que inquina o processo com nulidade, com absolvição da instância ...".


III - Decidindo:

1. A principal questão que cumpre apreciar pode sintetizar-se do seguinte modo:

Ocupada por uma entidade pública uma parcela sobrante de um prédio que foi parcialmente expropriado a favor de outra entidade pública e afectada aquela parcela a fins de interesse público, pode o proprietário a quem é conferido o direito de reivindicação optar pela dedução de um pedido de condenação no pagamento de uma quantia correspondente ao valor expropriativo da parcela?

No acórdão recorrido que, por determinação do anterior acórdão deste Supremo, procedeu à apreciação do mérito da questão defendeu-se uma resposta negativa. Considerou-se que, sendo os AA. os legítimos proprietários da parcela ocupada pelo R., apenas lhe é reconhecido o direito de exigirem a sua restituição.

2. É, na realidade, a resposta que se extrai do ordenamento jurídico, não encontrando sustentação a pretendida equiparação da situação que decorre da matéria de facto aos casos de expropriação por utilidade pública.

A expropriação por utilidade pública constitui um modo de aquisição originária (e da correspondente extinção na esfera do expropriado) do direito de propriedade determinada pela prática de um acto administrativo, impondo-se ao expropriado a quem, em contrapartida, é reconhecido direito a obter a justa indemnização, de acordo com as regras que constam do Cód. de Expropriações (art. 1310º do CC).

Na composição dos interesses a que, de forma abstracta, pretende responder o ordenamento jurídico não se descortina a concessão ao proprietário de um “direito” a ser expropriado. Ao invés, o mesmo é colocado simplesmente numa posição de sujeição perante o acto administrativo que eventualmente venha a declarar a utilidade pública da expropriação.

Perante actos de que resulte a violação ilegítima do direito de propriedade - ilegitimidade que ocorre designadamente nos casos em que alguma entidade se apropria de um prédio fora do quadro do processo expropriativo ou excedendo materialmente os limites desse acto – o proprietário pode obter o reconhecimento do seu direito e a reconstituição da situação anterior, mediante a restituição do bem e, eventualmente, a atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da ocupação ilegal.

Esta é a solução que, em regra, também deve ser adoptada sempre que se verifique uma situação que se reconduza ao que soe apelidar-se de expropriação de facto, em resultado da apropriação ou ocupação de um prédio que não seja legitimada pelas regras que regulam o instituto da expropriação por utilidade pública.

3. Porém, a diversidade de motivações ou de circunstâncias que envolvem as situações de apropriação ilegítima de um prédio alheio é susceptível de convocar a aplicação de outras regras ou de outros princípios que permitem moderar o resultado que se obteria a partir das da aplicação irrestrita das regras a que obedece a acção de reivindicação.

A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objectiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou na ausência de culpa, ou é traduzida em situações que se manifestam através da violação dos limites objectivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do acto expropriativo. Enfim, casos existem em que a violação objectiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respectivos contornos legais.

Em tais circunstâncias, a aplicação dos efeitos típicos da acção de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos. O reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava, pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.

Para situações como estas tem sido desenvolvida uma tese, intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos, que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC.

Posto que tal princípio não esteja expressamente consagrado na lei, encontra sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, na medida em que se permite afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público. Ou ainda no art. 173º, nº 3, do CPTA, nos termos do qual a situação jurídica fundada em actos consequentes praticados há mais de um ano é susceptível de obter uma garantia que impede a sua modificação quando os danos sejam de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença anulatória. E também no art. 134º, nº 3, do CPA, nos termos do qual o efeito da nulidade do acto administrativo “não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito”. Outrossim com o art. 162º, nº 3, do novo Cód. de Proc. Administrativo, aprovado pela Lei nº 4/15, de 7-1, segundo o qual o disposto quanto à nulidade dos actos administrativos “não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da protecção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.

Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.

Ainda que não esteja expressamente consagrado tal princípio (e embora também não seja pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico, negada, por exemplo, no Ac. do STA, de 6-2-01, in www.dgsi.pt), o certo é que a sua intervenção é limitada a casos que verdadeiramente o justifiquem e que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve.

É neste sentido que a aplicabilidade de tal princípio tem sido admitida neste Supremo pelos Acs. de 9-1-03 (Rel. Alves Correia), de 29-4-10 (Rel. Alves Velho) e de 18-2-14 (Rel. Pinto de Almeida) e, no campo do direito administrativo, pelo Ac. do STA, de 16-1-08 (recusando a sua aplicação num caso em que a apropriação resultou de uma conduta pautada pela má fé).

Naturalmente que tal solução de raiz jurisprudencial e doutrinal apenas é defensável na medida em que corresponda aos interesses da entidade pública, não se compreendendo a sua invocação por parte do proprietário afectado pela actuação daquela.

Admitindo-se que os interesses públicos e da comunidade sejam susceptíveis de se sobreporem aos meros interesses particulares, especialmente nos casos em que no prédio já tenha sido edificada ou implantada alguma obra pública, tais interesses apenas serão atendíveis se e na medida em que deles resulte um benefício para a entidade pública, em comparação com os efeitos que decorreriam da aplicação das regras gerais.

4. No caso concreto, não se verifica nenhum dos pressupostos de tal solução.

Nos termos do art. 1311º do CC, o proprietário que veja afectado o seu direito de propriedade pode exigir o reconhecimento do seu direito e a restituição do bem, a qual apenas será recusada nos casos previstos na lei.

Estando em causa a tutela de um direito real, sem embargo do pedido de indemnização que cubra os prejuízos decorrentes da ocupação ilegítima de um bem, a sua reivindicação é o meio de tutela conferido ao proprietário afectado em situações como a dos autos. Correspondentemente, é ilegítima a invocação pelos proprietários da parcela do mecanismo de substituição previsto no art. 566º, nº 1, do CC.

Para além de este preceito regular o direito de indemnização decorrente da responsabilidade civil contratual e extracontratual, o qual se não confunde com a reivindicação do direito de propriedade, nada permite concluir pela inviabilidade da reconstituição natural da situação, a qual é susceptível de se alcançar mediante a prolação de uma sentença de condenação do R. Município na entrega, livre e desocupada, da parcela ocupada, restabelecendo-se, assim, a situação que existia antes da referida ocupação.

Por outro lado, nem sequer se mostraria viável a invocação do princípio da intangibilidade da obra pública para evitar ou substituir o efeito restitutivo decorrente do exercício do direito de reivindicação da parcela. A situação em que o R. Município se colocou com a apropriação da parcela em causa (expropriação de facto) não integra qualquer das situações que na doutrina e na jurisprudência têm servido de lastro para a invocação do princípio da intangibilidade da obra pública.

Com efeito, a declaração de utilidade pública ocorreu no interesse de uma entidade pública diversa do Município que na acção surge como demandado, tendo a posição de terceiro relativamente a tal expropriação. Ainda que efectivamente o R. Município se tenha apropriado da parcela sobrante do prédio expropriado para fins que podem ser considerados de utilidade pública, em benefício da comunidade e dos interesse que prossegue, tal actuação não teve subjacente qualquer situação de aparente legalidade, sendo o R. Município equiparado a qualquer outro indivíduo que, sem título, tivesse violado o direito de propriedade alheio.

O segundo argumento que pode ser utilizado contra a tese defendida pelos AA. é ainda mais relevante. A invocação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas pode funcionar eventualmente como meio de impedir os efeitos de uma pretensão reivindicatória formulada contra o R., não se concebendo a sua invocação por parte dos proprietários, ainda que a pretexto de, assim, defenderem os interesses públicos e da comunidade pretensamente afectados pela restituição da parcela de que o R. se apropriou. Tais interesses devem ser primacialmente defendidos pela entidade pública.

Ora, como decorre dos autos, o Município em causa não revelou em ponto algum da sua intervenção processual a vontade de que a parcela em causa continue afecta aos fins a que agora de facto se destina, o que demandaria a assunção da qualidade de proprietária da parcela, contra o pagamento do seu valor aos legítimos proprietários “expropriados de facto”.

Mesmo sem recurso ao princípio da intangibilidade da obra pública, tal efeito poderia ter sido projectado na presente acção através da invocação da figura da acessão industrial imobiliária, com base nas obras que foram realizadas na parcela ocupada (art. 1340º do CC), e o certo é que a R., podendo fazê-lo, não deduziu o correspondente pedido reconvencional.

Enfim, como se já disse no acórdão anterior deste Supremo, a parcela de prédio que aos AA. pertence continua a existir em termos físicos e jurídicos, sendo possível obter por outras vias, que não a utilizada pelos AA., a tutela do seu direito de propriedade.

5. Contra o alegado pelos recorrentes nada permite asseverar que uma tal solução implique a violação de qualquer direito de natureza constitucional, sendo a defesa do direito de propriedade através de uma via alternativa à que foi empregue pelos AA. o meio típico legalmente previsto para a tutela do direito de propriedade.

Ademais, também é manifestamente infundada a alegada violação do princípio da igualdade ou dos demais princípios invocados pelos recorrentes, já que nenhuma semelhança existe entre a situação a que subjaz uma expropriação por utilidade pública e a apropriação ilegítima de uma parcela de terreno por uma entidade pública emergente de uma actuação manifestamente infundada do Município.


IV - Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.


Lisboa, 5-2-15


Abrantes Geraldes (Relator)


Tomé Gomes


Bettencourt de Faria