CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CLÁUSULA RESOLUTIVA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA
VALIDADE
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
Sumário


I - O Tribunal, no caso de cláusula resolutiva expressa, quando chamado a intervir, exerce um controlo de legalidade.
II - Nesse controlo de legalidade insere-se a interpretação dessa cláusula à luz dos critérios interpretativos que promanam dos arts. 236.º a 238.º do CC.
III - Constitui cláusula resolutiva expressa, que tem por escopo evitar que uma situação de mora tenha de ser convertida em definitiva nos termos do art. 808.º do CC, a cláusula segundo a qual a não comparência do promitente-comprador à escritura de compra e venda no dia e hora estipulados equivale a incumprimento definitivo, atribuindo ao promitente-vendedor o poder potestativo de resolver o contrato-promessa.
IV - A interpretação dessa cláusula, designadamente à luz do regime constante do contrato-promessa, conduz a que, para se fazer equivaler a falta de comparência a uma escritura ao incumprimento definitivo, não basta a verificação dessa situação objetiva de falta de comparência, impondo-se que essa falta traduza uma situação de mora.
V - Prescrevendo o contrato-promessa que as partes antes da escritura efetuarão uma vistoria ao imóvel tendo em vista verificar a existência de algum defeito ou vício da construção, impondo-se ao promitente-comprador, não havendo defeitos ou vícios, assinar uma declaração, o promitente-comprador, se não foi previamente interpelado para essa vistoria, não incorre em mora faltando à escritura, pois não foi realizada ou proporcionada uma diligência prévia obrigatória essencial.
VI - Não se reconhecendo a validade da resolução fundada na aludida cláusula resolutiva expressa, subsiste o contrato-promessa; tal declaração resolutiva, efetuada nesse contexto, não equivale sem mais a uma declaração de vontade de não cumprimento definitivo do contrato-promessa subsistente.
VII - No entanto, provando-se que a promitente-vendedora considerou ulteriormente que o contrato-promessa estava definitivamente resolvido e terminado ao ponto de qualquer decisão respeitante ao cumprimento do contrato ter deixado de lhe pertencer para pertencer a uma instituição de crédito, entidade alheia ao contrato-promessa, não pode deixar de se concluir que o promitente vendedor evidenciou a vontade definitiva e terminante de não cumprimento do contrato.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA, Lda. propôs ação declarativa com processo ordinário contra BB, Lda. pedindo a condenação da ré a pagar à A. a quantia de 150.000 euros, acrescida de juros legais, neste caso contados à taxa comercial, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. Alegou que no contrato-promessa outorgado no dia 29-8-2007 entre a ré, enquanto promitente vendedora, e CC, enquanto promitente comprador, adquiriu, por cessão, a posição contratual deste último.

3. O contrato-promessa respeitava a fração habitacional sendo o preço de venda de 200.000 euros, alterado por aditamento de 30-8-2007 para 270.000 euros; foi entregue a título de sinal a quantia de 75.000 euros.

4. No contrato de cessão da posição contratual de 15-7-2010 foi alterada a cláusula quarta.

5. De acordo com essa cláusula, a CC, ora ré, logo que se encontrem reunidas as condições documentais para outorga da escritura de compra e venda, " o que se prevê até dezembro de 2010" deve notificar a autora para a escritura; "se, reunidas as ditas condições até à referida data, a terceira [promitente vendedora] não proceder à prevista notificação, a mesma faculdade poderá ser exercida pela segunda" [promitente-compradora] que pode notificar aquela " desde que com respeito por igual forma e prazo".

6. Estipulava-se ainda o seguinte:

"No caso da segunda [promitente-compradora] não comparecer à escritura de compra e venda, no dia e hora estipulados, de acordo com o acima mencionado, constitui-se em incumprimento definitivo, pelo que a terceira [promitente-vendedora] terá a faculdade de resolver o presente contrato mediante notificação dirigida à outra parte, por correio registado com aviso de receção, sem necessidade de qualquer outra interpelação"

7. A promitente compradora foi avisada no dia 2-8-2010 para comparecer no dia 11-8-2010 no cartório notarial para outorga da escritura.

8. Não compareceu à escritura.

9. Disso avisou a promitente vendedora no dia 3-8-2010 referindo, na carta, para além do mais, que " na data da marcação da escritura" não lhe era possível estar presente "uma vez que o sócio-gerente[…] não se encontrará para dar seguimento ao vosso interesse". E que " a gerência só estará cá em finais de agosto para poder atender V.Exªs, e combinar pessoalmente entre ambas as partes, os vossos interesses, uma vez que no contrato a data prevista é até dezembro de 2010 […].

10. Alegou que a escritura não podia ser celebrada sem que fosse cumprida a cláusula quinta do contrato- promessa onde se estabelecia " que antes da escritura, as partes efetuarão uma vistoria à fração objeto da compra e venda ora prometida, para verificar da existência de algum defeito ou vício de construção […]. Não havendo defeito ou vício, o segundo [promitente-comprador] assinará uma declaração atestando esse facto".

11. No entanto, não obstante não ter sido cumprida essa cláusula, a autora recebeu uma carta da ré, datada de 25-8-2010, notificando-a de que " na sequência da não comparência de V. Exªs à escritura de compra e venda da fração […] consideramos, com efeitos imediatos, o contrato de cessão da posição contratual, entre nós outorgado, aos 15-7-2010, rescindido por incumprimento da vossa parte e que com base no parágrafo terceiro, da cláusula quarta, do contrato prometido, objeto da cessão, considero perdido […] o valor pago a título de sinal".

12. A A., por sua vez, mais tarde, notificou a ré por carta de 18-7-2011 para comparecer no cartório notarial no dia 4-8-2011 para outorga da escritura. A ré respondeu por carta de 21-7-2011 lembrando a autora de que a tinha notificado " da rescisão do contrato, por incumprimento contratual […] com base na não comparência para a outorga da escritura de compra e venda".

13. Alegou a A. que a ré ao declarar que não quer cumprir, " incumpriu em definitivo […] o contrato-promessa em causa". Daí ser-lhe devido o valor do sinal em dobro.

14. A ré, na contestação, sustentou que o contrato-promessa foi resolvido por incumprimento definitivo imputável à autora e a aludida vistoria nunca foi solicitada pela autora, vistoria que também não solicitou quando, por sua vez, interpelou a ré para outorga de escritura no dia 4-8-2011. Considera que a autora incorre, pela sua conduta, em abuso do direito.

15. Finaliza a contestação nestes termos:

"[…] Sem prescindir, e caso assim não se entenda, deve ser julgada procedente por provada a exceção perentória de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium e, consequentemente, ser a ré absolvida do pedido.

Caso assim se não entenda, o que apenas se coloca por mera cautela de patrocínio, deve a presente ação ser julgada improcedente por não provada e, consequentemente, ser a ré absolvida do pedido"

16. A ação foi julgada procedente por sentença de 27-1-2013 que, considerando resolvido o contrato-promessa" condenou a ré no pagamento aos AA da quantia de 150.000 euros acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados da citação até integral pagamento.

17. Interposto recurso pela ré, a apelação foi julgada procedente e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, julgando-se, em sua substituição, a ação não provada e improcedente, absolvendo-se a ré do pedido.

18. A A. recorre, de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça.

19. Conclui a minuta nestes termos:

1- Estamos, em princípio, perante um comum contrato de promessa de compra e venda de fração de imóvel, em que a A., ora recorrente, assumiu a posição de promitente compradora, por via de cessão da posição contratual, por parte do primitivo contratante (CC), e em que é promitente vendedora a ré, ora recorrida.

2 - A ré, sociedade do ramo imobiliário, viu o imóvel em que se integra a fração objeto do contrato de promessa de compra e venda, ficar sob a alçada do Banco …., entidade que financiara a respetiva construção, circunstância que perturbou o normal desenvolvimento da relação contratual estabelecida entre A. e ré

3 - À data do acordo de cessão da posição contratual, a ré, recorrida, impôs como prazo limite para a celebração da escritura de compra e venda - dezembro de 2010 - ultrapassado que estava, de há muito, o limite anteriormente fixado - maio de 2008.

4 - Todavia, quinze dias passados sobre a celebração do acordo de cessão da posição contratual, a ré, nos termos da cláusula 4a do contrato de promessa, notificou a A. para comparecer no Cartório Notarial da Dr.ª. GG, no Funchal, no dia 11 de agosto de 2010, para a celebração da escritura.

5 - Acontece que a ré estava vinculada à cláusula 5ª do mesmo contrato, ou seja, tinha de promover a vistoria do andar, para obter da A. declaração no sentido de que a fração não registava quaisquer defeitos ou vícios, que exigissem reparação ou impedissem a celebração da escritura.

6 - A pressa da ré, em surpreender a A., contrariando a expectativa por ela própria criada de deferir a escritura para dezembro de 2010, levou-a a não cumprir a cláusula 5a, para fugir às dilações que as situações previstas nos vários parágrafos daquela cláusula poderiam ocasionar.

7 - Tal notificação ocorreu, quando estava ausente da Madeira, o gerente da A., Sr. DD, comprovadamente a pessoa que, de facto, geria a sociedade A., e tinha sempre a última palavra em todos os negócios, tendo subscrito o acordo de cessão da posição contratual, no contrato de promessa em causa nos autos em presentação da recorrente.

8 - A A., cordialmente, por carta, informou a ré de que, atenta a ausência do seu gerente, Sr. DD, estava impedida de comparecer na data designada para a escritura, mas que no fim do mês de agosto (período generalizado de férias), regressaria do continente e contactaria a ré para se fixar data para a celebração da escritura.

9 - A ré que, num meio pequeno como o Funchal, e atuando no mesmo ramo, sabia bem da ausência do gerente da A., Sr. DD, não atendeu às razões da A., e ao interesse que esta lhe transmitiu no sentido de manter a vontade e propósito de celebrar a escritura, tendo-lhe respondido por carta, por via da qual considerou resolvido o contrato, nos termos da cláusula 4a.

10 - A A. e o seu advogado, apesar disso, prosseguiram contactos junto da gerência da ré, com vista à celebração da escritura, sendo remetidos por esta, para o Banco ... (Dr.ª EE) que foi adiantando que tudo se resolveria, mas que tal dependia de Lisboa, protelamento que a A. não pôde aceitar por mais tempo, desencadeando a presente ação.

11 - A ré quando tomou a iniciativa de notificar a A. para celebrar a escritura em 11 de agosto de 2010, além de calculista e premeditadamente, pretender gorar a expectativa criada na A., quinze dias antes, ao exigir prazo até dezembro de 2010, para concluir a obra e reunir os documentos e demais condições para a celebração da escritura, não o podia fazer, porquanto não dera cumprimento a todas as suas obrigações contratuais, designadamente, não promovera a vistoria e, subsequente obtenção da declaração da A. a que se refere a cláusula 5ª.

12 - Ora, o contraente que se encontre em situação de incumprimento de obrigações convencionadas, que são prévias da marcação da escritura, não está em condições de desencadear a interpelação para a sua outorga e, muito menos, se encontra em situação de poder resolver o contrato (mesmo que haja cláusula contratual nesse sentido), por se encontrar, ela própria, em incumprimento.

13 - A carta da A. à ré a justificar a sua não comparência no Cartório Notarial dia 11 de agosto de 2010, tem implícita a invocação da "exceptio non adimpleti contractus" (não cumprimento da cláusula 5.ª e não fornecimento de elementos para a liquidação do I.M.T., por parte da ré) o que obstaria sempre, à resolução do contrato por iniciativa da ré, incumpridora.

14 - A par do ventre contra factum proprium (a exigência de prazo até dezembro de 2010 para a celebração da escritura) a ré, por ação e omissão, impossibilitou, na altura, a A, de emitir a declaração a que se refere a cláusula 5a, bem como de proceder à liquidação do I.M.T. e, em consequência, impediu-a de estar em condições de outorgar a escritura em 11 de agosto de 2010, pelo que sempre constitui manifesto abuso de direito da sua parte invocar a não comparência da A. no Cartório Notarial, como fundamento da resolução do contrato.

15 - No acordo de cessão da posição contratual as partes eliminaram o §2° da cláusula 4a, que obrigava a A. promitente compradora, a fornecer em três dias os documentos que lhe diziam respeito para a celebração da escritura, eliminação que só tem sentido, como reforço da cláusula 5a e da obrigação da ré., como promitente vendedora e construtora, habilitar a A. com os elementos necessários à liquidação do I.M.T. .

16 - Face à irrelevância da notificação da A. promovida pela ré, para comparecer no notário em 11 de agosto de 2010, atenta a situação de incumprimento dela promitente vendedora, e ainda por ilegal e violadora do contrato a resolução que a ré., por carta dirigida à A. pretendeu formalizar, é juridicamente irrelevante e ineficaz, configurando, no mínimo, como se demonstrou, manifesto abuso de direito.

17 - Bem andou, pois, a sentença da 1a instância ao considerar procedente a ação e mal decidiu o douto acórdão da Relação, sob recurso, ao revogar tal sentença e ao considerar que a ré tinha o direito de resolver o contrato, por tal estar contratualmente previsto, ignorando que, mesmo nesse caso, os requisitos para tão radical solução (no caso alegado incumprimento definitivo da promitente compradora), não ocorria, como se demonstrou.

18 - Assistia, pois, à A., como promitente compradora, o direito de notificar a ré como promitente vendedora, para comparecer no notário para celebrar a escritura de compra e venda, dado que, atenta a irrelevância da resolução contratual pretendida pela ré, o contrato subsistia inteiramente válido e plenamente vinculativo de ambas as partes.

19 - Ocorrendo violação da lei substantiva, por parte do acórdão recorrido, e por estarem reunidos nos autos todos os elementos documentais (o acordo de cessão da posição contratual, o contrato-promessa, a correspondência entre as partes, etc.) é possível, em sede da presente revista proferir decisão diversa da adotada no acórdão recorrido, procedendo assim à sua reforma, como a lei consente.

20 - Assiste, pois, à A., recorrente, face à assumpção pela ré, por escrito (carta), da recusa definitiva e injustificada de celebrar a escritura (incumprimento definitivo), o direito à devolução do sinal em dobro e respetivos juros como reclama.

21 - O Acórdão recorrido violou, entre outras disposições legais, os artºs 224.°, 230.°, 334.°, 410.°, 428.°, 431.°, 432.°, 436.°, 441.° e 442.°,762.°, todos do Código Civil.

20. A ré contra-alegou sustentando, em síntese, que, obrigando-se a promitente compradora com a assinatura de qualquer um dos seus gerentes, não havia qualquer impossibilidade de se fazer representar por outro sócio- gerente, não tendo, aliás, a ré invocado, quando interpelada para outorgar a escritura, qualquer surpresa pela proximidade da marcação da escritura definitiva nem alegou óbice imputável à ré que impedisse a realização da escritura. Assim a carta de 25-8-2010, por meio da qual a ré considerou o contrato-promessa definitivamente incumprido e por esse fundamento resolvido, insere-se no que fora estipulado pelas partes.

21. Por outro lado, a redação da cláusula quinta não determina quem é que deveria proceder à marcação da vistoria, nem tão pouco se subordinou a realização do contrato prometido à verificação daquela condição, ou seja, da vistoria, bem como à emissão de declaração de que a fração não padece de vícios ou defeitos. Qualquer uma das partes contratantes, se assim o entendesse, poderia ter feito acionar a dita cláusula quinta, mediante interpelação de uma à outra para o citado efeito, ou seja, para que viesse a ser realizada a vistoria, com a consequente emissão de declaração por parte da recorrente.

22. Não foi invocada na carta da autora nenhuma exceptio non adimpleti contractus uma vez que a recorrida nada excecionou, encerrando até a citada afirmação um sentido ininteligível, porquanto se desconhece como é que se invoca, implicitamente, essa exceção.

23. Não constitui abuso do direito a falta de comparência da ré à escritura de compra e venda, visto que o contrato já se encontrava validamente resolvido.

24. Factos provados:

1. Por documento particular, datado do dia vinte e nove do mês de agosto do ano de dois mil e sete, a ré prometeu vender ao senhor CC, c.f. 213 203 804, natural da freguesia e concelho de Câmara de Lobos, casado com FF, residente à Estrada José Avelino Pinto, Edifício Ocean View, fração A E, freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, a seguinte fração:

“- A fração habitacional, provisoriamente referenciada pela letra “ CV” do tipo t3, situada no piso 3, do Bloco 3, na construção que foi erigida sobre o prédio rústico, ao sítio da Nazaré, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n° ..., freguesia de São Martinho, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 12/26, 12/27, 12/28 e 12/31, todos da secção “ P” e outro, também rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n° ..., inscrito na matriz cadastral sob o artigo 135, da secção “ P”, ( doc. n° 1) (A)).

2. O preço combinado, foi no montante global de 200.000, 00, (duzentos mil euros) (B)).

3. A título de sinal, a Ré recebeu do senhor CC, a quantia de 75.000,00, (setenta e cinco mil euros) (C)).

4. A restante parte do preço, no montante de 125.000, 00€, seria paga no ato da escritura definitiva (D)).

5. Relativamente, à celebração da escritura definitiva, as partes acordaram no seguinte:

“Quarta:

A escritura que definitivamente titulará a prometida transação, deverá ter lugar logo que se encontrem reunidas as condições documentais para tal, simultaneamente à de constituição da propriedade horizontal e a solicitação da primeira, que ao segundo deverá notificar, por carta registada com aviso de receção, emitida com a antecedência mínima de 5 (cinco) dias e enviada para o endereço constante do presente contrato.

Primeiro: se, reunidas as ditas condições, o que se prevê até maio de 2008, a primeira não proceder à prevista notificação, a mesma faculdade poderá ser exercida pelo segundo, que àquela poderá notificar, desde que com respeito por igual forma e prazo.

Segundo: o segundo obriga-se a, no prazo de 3 (três) dias, a contar da comunicação referida no número anterior, a entregar à primeira todos os elementos e documentos da sua responsabilidade, necessários à outorga da escritura prometida, nomeadamente o comprovativo da cobrança de IMT, se a ele houver lugar.

Terceiro: No caso do segundo não comparecer à escritura de compra e venda, no dia e hora estipulados, de acordo com o acima mencionado, constitui-se em incumprimento definitivo, pelo que a primeira terá a faculdade de resolver o presente contrato mediante notificação dirigida à outra parte, por correio registado com aviso de receção, sem necessidade de qualquer outra interpelação.

Quinta:

Pelo presente é acordado que antes da escritura, as partes efetuarão uma vistoria à fração objeto da compra e venda ora prometida, para verificar da existência de algum defeito ou vício de construção.

Primeiro - Não havendo defeitos ou vícios, o segundo assinará uma declaração atestando esse facto” (E)).

6. A primeira outorgante é a Ré BB, Lda., enquanto que o segundo é o promitente comprador - CC (F)).

7. No dia trinta de agosto de dois mil e sete, as partes fizeram um aditamento do aludido contrato promessa, onde o preço foi alterado para 270.000 (duzentos e setenta mil euros), devido a obras introduzidas na fração, mantendo-se o sinal de 75.000€, 00 (G)).

8. Todas as restantes cláusulas do contrato promessa inicial, foram mantidas (H)).

9. No dia quinze de julho do ano de dois mil e dez, o Sr. CC fez uma cessão da sua posição contratual à ora autora (I)).

10. A ré interveio e concordou com essa cessão de posição contratual (J)).

11. Nessa cessão de posição contratual, foi alterada a cláusula Quarta do primitivo contrato promessa, que passou a ter a seguinte redação:

“Quarta: A escritura que definitivamente titulará a prometida transação, deverá ter lugar logo que se encontrem reunidas as condições documentais para tal, a solicitação da Terceira, que à Segunda deverá notificar, por carta registada com aviso de receção, emitida com a antecedência mínima de 5 (cinco dias) e enviada para o endereço constante do presente contrato.

Primeiro: se, reunidas as ditas condições, o que se prevê até dezembro de 2010, a Terceira não proceder à prevista notificação, a mesma faculdade poderá ser exercida pela Segunda, que àquela poderá notificar, desde que com respeito por igual forma e prazo.

Segundo: no caso da Segunda não comparecer à escritura de compra e venda, no dia e hora estipulados, de acordo com o acima mencionado, constitui-se em incumprimento definitivo, pelo que a Terceira terá a faculdade de resolver o presente contrato mediante notificação dirigida à outra parte, por correio registado com aviso de receção, sem necessidade de qualquer outra interpelação” (K)).

12. A terceira outorgante é a ré e a segunda é a autora (L)).

13. Por carta registada, com aviso de receção, datada de 30 de julho de 2010, recebida no dia 02/08/2010, a ré comunicou à autora o seguinte:

“Vimos por este meio comunicar a V. Exas., conforme cláusula no contrato de cessão de posição contratual, que a vossa escritura da fração provisoriamente referenciada pela letra “ CV” e atualmente pela letra “ CQ”, localizada ao sítio da Nazaré, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, na edificação urbana denominada “ Barreiros Residence”, está marcada para o dia 11 de agosto de 2010, pelas 11 h no Cartório Notarial da Dr.ª GG, localizado à Rua da …, n° …, Funchal.

Chamamos à atenção de entregar toda a documentação referente à parte compradora no supra mencionado Cartório, para a elaboração da escritura e levar cheque visado para o pagamento do restante preço.

Sem outro assunto, subscrevemo-nos.” (M)).

14. Recebida aquela carta, uma das sócias da autora, em 5 de agosto de 2010, mandou uma carta, registada e com aviso de receção à ré, onde declarou o seguinte.

“Exmos. Srs.

Serve a presente para dar resposta da vossa carta enviada em 30/07/2010 e por nós recebida em 02/08/2010.

Desta forma vimos informar a V. Exas., de que na data de marcação da escritura não nos é possível estar presente uma vez que o sócio-gerente da empresa AA, Lda., não se encontrará para poder dar seguimento ao vosso interesse.

Mais informámos de que a gerência só estará cá em finais de agosto para poder atender V. Exas., e combinar pessoalmente entre ambas as partes, os vossos interesses, uma vez que no contrato a data prevista é até dezembro de 2010.

É claro que a AA, Lda., tem todo o interesse em fazer esta escritura como existe também outro contrato do Edifício “ Piornais Residence” em que a escritura estava prevista ser feita em janeiro de 2010 e até a presente data nada nos informaram e que nós temos todo o interesse em escriturar ambas pois temos capital nosso empatado. Sendo que como foi o Sr. DD sócio gerente a representar a AA, Lda., terá que ser o mesmo a marcar com V. Exas., e conversar pessoalmente entre as duas partes para efetuar tais escrituras. Desta forma informámos que a empresa não se pode apresentar na data marcada por V. Exas., para a escritura uma vez que o Sr. DD não pode estar presente.

Certos da vossa compreensão, subscrevemo-nos com elevada estima e consideração.” (N)).

15. O sócio gerente da autora não compareceu à escritura (O)).

16. A cláusula QUINTA do contrato-promessa primitivo, estabelecia “que antes da escritura, as partes efetuarão uma vistoria à fração objeto da compra e venda ora prometida, para verificar da existência de algum defeito ou vício de construção.

Primeiro - Não havendo defeitos ou vícios, o segundo assinará uma declaração atestando esse facto” (P)).

17. No dia 25 de agosto de 2010, a autora recebeu uma carta da ré, onde esta declarava:

“Na sequência da não comparência de V.Exas à escritura de compra e venda da fração antes referenciada pela letra “ CV”, atual “ CQ”, do empreendimento denominado “Barreiros Residence”, devidamente convocada para o dia 11 de agosto de 2010 vimos por este meio notificar V.Exas que consideramos, com efeitos imediatos, o contrato de cessão de posição contratual, entre nós outorgado, aos 15 de julho de 2010, rescindido por incumprimento da vossa parte e que com base no parágrafo terceiro, da cláusula quarta, do contrato prometido, objeto de cessão, considero perdido, a favor da mesma, o valor pago a título de sinal” (Q)).

18. A autora notificou a ré por carta registada, com aviso de receção, datada de 18/07/11, para que no dia 4 de agosto de 2011, comparecesse no cartório da Dr.ª GG para que aí fosse outorgada a escritura definitiva (R)).

19. No dia 21 de julho de 2011, a ré enviou uma carta à autora, que aqui se dá por reproduzida, onde reiterou que não iria cumprir o contrato promessa, não iria comparecer no cartório notarial e que iria fazer seu, o sinal recebido, com o seguinte teor:

"Com efeito, o que a ré refere é o seguinte “ […] Vimos, por este meio,[…] lembrar V.Exas, que, por carta registada com aviso de receção, cuja cópia segue em anexo, notificamos V. Exas., da rescisão do contrato, por incumprimento contratual da vossa parte, com base na não comparência para a outorga da escritura pública de compra e venda, para a qual foram devidamente convocados (S)).

20. A ré não compareceu na data e hora designada para a realização da escritura pública de compra e venda (T)).

21. O sócio gerente da autora não compareceu à escritura, porque teve necessidade de se deslocar ao Continente Português (2°).

22. A autora contava com a compreensão da Ré (3°).

23. A vistoria aludida na cláusula 5.ª do contrato-promessa não foi efetuada (4°).

24. Nunca a autora solicitou a realização da referida vistoria (7°).

25. Após a receção da carta datada de 25/08/2010, nunca mais a ré entrou em contacto com a autora (8°).

26. Apesar de estar admirada com a atitude da ré, a autora tentou junto desta, resolver a situação de forma amigável, durante meses e meses, mas tudo sem qualquer resultado prático (9°).

27. Perante a carta enviada pela ré, no dia 25 de agosto de 2010, a autora contactou com o advogado signatário, para que convencesse a ré, a realizar a escritura definitiva (10°).

28. O advogado signatário, HH, contactou diretamente com o sócio-gerente da ré, Dr. II, para que a escritura definitiva se realizasse e o problema ficasse resolvido (11°).

29. Como resposta, o advogado signatário foi informado pelo Dr. II, que este nada podia fazer, pois agora quem decidia era o Banco ... e que para a ré, o contrato promessa estava definitivamente resolvido e terminado (12°).

30. Mais foi informado aquele advogado, pelo Dr. II, que a funcionária encarregada pelo Banco ..., para resolver o assunto, era a senhora Dona ou Dra. EE, que trabalhava na Rua Câmara Pestana, cidade do Funchal (13°).

31. Pelo menos, duas ou três vezes, o advogado HH, dirigiu-se às instalações do Banco ..., à Rua Câmara Pestana, para falar e falou, com a referida Dona EE (14°).

32. A Dona EE sempre disse que o assunto dependia de Lisboa, ou seja, da direção do Banco ... em Lisboa e inicialmente até sugeriu que se esperasse com calma por uma solução do problema (15°).

33. A Dona ou Dra. EE tinha o contacto do advogado HH, para poder contactá-lo, caso houvesse qualquer novidade por parte do Banco ... (16°).

34. Só que o tempo foi passando, nunca havia e nunca houve uma solução (17°).

35- A sociedade autora obriga-se com a assinatura ou a intervenção de um dos gerentes, sendo seus gerentes os sócios DD, JJ e KK

36- Quem se apresenta no mercado como gerentes são o Sr. DD e a D. JJ e quem predomina na condução da atividade da empresa e em regra tem a palavra final nos negócios é o Sr. DD

Apreciando

25. Suscita-se a questão de saber se a ré promitente vendedora rescindiu ou resolveu fundadamente o contrato-promessa com base na cláusula resolutiva expressa constante da cláusula quarta §segundo (ver supra 11 da matéria de facto) por se verificar o respetivo pressuposto; no caso de se entender que a resolução não foi fundada, suscita-se a questão de saber se a ré deve ser condenada no pagamento do sinal em dobro por incumprimento definitivo do contrato-promessa.

26. A lei admite que seja estipulada cláusula resolutiva expressa (artigo 432.º/1 do Código Civil), também designada cláusula comissória ou de caducidade - ver Resolução do Contrato, Vaz Serra, B.M.J. n.º 68, pág. 249 que nos diz tratar-se de cláusula " pela qual uma das partes reserva para si o direito de resolver o contrato se a outra parte não cumprir ou não cumprir em tempo as obrigações decorrentes do mesmo contrato" (pág. 250).

27. Por via da referida cláusula quarta §segundo, cuja validade não está questionada, as partes equiparam uma situação que se pode traduzir em simples mora - a não comparência à escritura de compra e venda no dia e hora estipulados - ao incumprimento definitivo (" no caso de a segunda [promitente-compradora] não comparecer à escritura no dia e hora estipulados […] constitui-se em incumprimento definitivo"). Afasta-se, assim, o regime legal constante do artigo 808.º do Código Civil para o qual a mora não basta, só por si, para se considerar para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

28. Da leitura da cláusula podia resultar a ideia de que, para tal equiparação, bastava o facto objetivo da não comparência à escritura, mas uma tal interpretação não seria aceitável à luz do disposto no artigo 236.º do Código Civil e conduzir-nos-ia ao instituto do abuso do direito; a autora sustentou que, no caso vertente, houve um exercício abusivo do poder potestativo de resolução ao abrigo da aludida cláusula se tivermos em atenção uma conjugação de factos que não pode deixar de ser feita, a saber: a marcação da escritura para o dia 11-8-2010 quando a autora tinha adquirido por cessão a posição do primitivo promitente comprador apenas no dia 15-7-2010 num momento em que o prazo fixado para a escritura, que era de maio de 2008 para o primitivo promitente comprador, já tinha decorrido quando da cessão que o prolongou até dezembro de 2010; a circunstância de a autora ter informado a promitente vendedora por carta de 3 de agosto de 2010 com aviso de receção de 6-8-2010 (ver doc. de fls. 26) de que o seu sócio-gerente se encontrava ausente naquela data, manifestando todavia expressamente interesse na outorga da escritura antes do termo do prazo fixado que era, como se disse, dezembro de 2010 (ver 14 supra), provando-se que a deslocação foi necessária (ver 20 supra) e constatando-se ainda que a promitente vendedora, apesar de ter sido informada vários dias antes da impossibilidade de comparência do sócio-gerente da autora, nada disse. E que o podia ter feito, comunicando que as razões expostas nessa carta não tinham para si qualquer relevância e, por conseguinte, se não comparecesse a autora à escritura, o contrato seria resolvido ao abrigo da aludida cláusula. Seria, na verdade, de esperar esta conduta considerando que, tanto no cumprimento da obrigação, como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé (artigo 762.º/2 do Código Civil). Refira-se que, na aludida carta, a promitente compradora justifica por que razão pretende ser representada na escritura pelo sócio- gerente ausente da Madeira. Provou-se ainda que a autora contava com a compreensão da ré (22 supra), não se descortinando qualquer razão que obstasse à anuência da ré, compreendendo-se a surpresa da autora quando recebe a carta de 25-8-2010 informando-a da resolução do contrato ( ver 17 supra).

29. É certo, como se salienta no Ac. do S.T.J. de 17-1-2012 (rel. Alves Velho) in 473/06.8TVLSB.L1. S1, que "o critério de avaliação dos pressupostos da extinção da relação contratual, nomeadamente da perda de interesse na manutenção do contrato, gerador do direito à resolução, independentemente de qualquer ato ou interpelação, está predeterminado e prefixado pelas partes, através da manifestação de vontade consubstanciada na cláusula convencionada, de sorte que, verificados os pressupostos do respetivo funcionamento, não há que fazer apelo ao critério legal fundante do direito à resolução acolhido pelo art. 808º Código Civil. Nessa circunstância, para efeitos de valoração da importância do incumprimento (artigo 802º/2 Código Civil), o poder de apreciação e intervenção do tribunal fica, se não, em muitos casos, excluído, pelo menos fortemente limitado, sob pena de negação dos próprios princípios de autonomia de vontade e de liberdade contratual".

30. É certo também que "um devedor que tem interesse na manutenção e continuação da relação contratual agirá de modo a não dar ocasião ao credor de poder exercer mediante declaração unilateral, embora receptícia, o direito potestativo de resolução. É que, por um lado, o devedor sabe que a resolução se seguirá automaticamente, ipso jure, à declaração unilateral do credor, de modo inelutável, dada a situação de sujeição em que a este respeito se encontra; por outro lado, o devedor não pode alimentar a esperança de apreciação benevolente do juiz, pois este, se for chamado a intervir, apenas exerce um controlo de legalidade da resolução, limitando-se a declarar a sua existência e a sua eficácia. Esta certeza e o caráter imediato da resolução conferem à cláusula resolutiva expressa uma função cominatória não despicienda de importância, tanto mais que a resolução é equiparada, na falta de disposição especial, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 433.º)" (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Calvão da Silva, 1987, pág. 325).

31. Mas também não nos podemos olvidar de que "independentemente das razões que estão na génese da resolução convencional, é sabido que entre ela e a resolução legal não há diversidade de escopo final, ou seja, ambas conferem à parte legitimada um poder de desvinculação contratual. E é desde logo, por esta funcionalidade comum, que seria estranho dar cobertura executiva à plena liberdade de fixação de um pressuposto que, para lá da observância das estritas normas imperativas, se afastasse substancialmente dos princípios que regem o exercício do direito legal de resolução. Mesmo sem um desiderato fraudulento, a resolução não deve ganhar espaço através de cláusulas resolutivas cuja aplicação faça tábua rasa de limitações fundamentais. Por outras palavras, o respeito pela vontade das partes ou pela certeza e segurança procuradas não deve aceitar uma liberdade contratual traduzida numa 'cláusula de poder', formalmente acordada e sem violar as regras legais 'paternalistas' ou de ordem pública, mas cujo conteúdo ou eficácia se mostrem em contraste com determinados princípios não disponíveis, com o comportamento das partes, a chamada economia do contrato e com as circunstâncias concretas da sua invocação" “ A Cláusula Resolutiva Expressa como Síntese da Autonomia e de Heteronomia (Considerações a partir da Análise de uma decisão judicial)" por José Carlos Brandão Proença in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Horster, Almedina, 2012, pág. 299-332, designadamente pág. 323/324; a decisão judicial referenciada é o Ac. do S.T.J. de 19-11-2009, rel. Serra Batista, 3561/07.OTVLSB.L1.S1).

32. Retomando o caso dos autos à luz das circunstâncias concretas que dele resultam, e que foram assinaladas, constata-se que não pode relevar, para o controlo da legalidade resolução, a mera objetividade que decorre da falta de comparência da autora à escritura, pois a interpretação dessa cláusula de modo nenhum permite que a promitente vendedora possa, não existindo mora, resolver o contrato.

33. Na economia do contrato não pode estabelecer-se uma equiparação acrítica entre mora e falta de comparência à escritura de compra e venda. É claro que uma falta de comparência injustificada ou com justificação inaceitável preenche a previsão da cláusula, impondo-se o entendimento de que o faltoso incorreu em mora por faltar. Mas uma tal entendimento tem em atenção as razões (ou a falta de razões) que determinaram a ausência ao ato.

34. No caso vertente, importa ponderar se o promitente vendedor agiu abusivamente, aproveitando-se da sujeição do promitente comprador para injustificadamente pôr termo ao contrato. Não há aqui verdadeiramente uma questão de abuso do direito, mas antes e tão somente cumpre verificar se os factos provados permitem considerar que o promitente comprador pelo facto de faltar não incorreu em mora.

35. É que, sem mora, não se preenche, como se disse, a previsão constante da aludida cláusula.

36. Não obstante todas as razões expostas, crê-se que o promitente comprador, a partir do momento em que foi avisado para outorgar a escritura com a antecedência devida e a partir do momento em que aceitou que a escritura pudesse ser realizada em qualquer momento até à data de dezembro de 2010, não podia deixar de se precaver, pois nenhum impedimento existia a que fosse marcada escritura para o mês de agosto, nem se vê que tivesse sido excluída tal possibilidade, evidenciando-se que a sociedade podia intervir na escritura com outros sócios gerentes (35 supra).

37. Por isso, sendo embora censurável o facto de a promitente vendedora não ter respondido à carta da promitente compradora, também é censurável o comportamento desta que, sabendo encontrar-se num estado de sujeição, partiu do princípio de que bastaria declarar a impossibilidade de comparência de um dos seus sócios-gerentes para que a promitente vendedora anuísse à sua pretensão.

38. Não podemos, portanto, afirmar que, não obstante as indicadas razões, não incorreu a promitente compradora em mora quando faltou à escritura, assim como não podemos afirmar que a promitente vendedora, no contexto em causa, agiu com abuso do direito por ter excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé ao declarar resolvido o contrato.

39. A cláusula quarta - facto supra 11 - estipula que a escritura "que definitivamente titulará a prometida transação deverá ter lugar logo que se encontrem reunidas as condições documentais para tal" e da cláusula quinta do contrato-promessa consta que "antes da escritura, as partes efetuarão uma vistoria à fração objeto da compra e venda ora prometida, para verificar da existência de algum defeito ou vício de construção". E mais se estipulou que " não havendo defeitos ou vícios, o segundo [promitente comprador] assinará uma declaração atestando esse facto".

40. Esta cláusula deve considerar-se estipulada no interesse de ambas as partes à luz do artigo 236.º do Código Civil pois o promitente vendedor, se não obtiver a declaração de que a fração não tem defeitos ou vícios, sujeita-se à sua invocação ulterior; e fica privado, de acordo com o estipulado no parágrafo terceiro dessa cláusula quinta - que diz: " se o segundo [promitente comprador] arguir a existência de defeitos ou vícios que não sejam reconhecidos como tais pela primeira [promitente vendedora] esta poderá optar por resolver o contrato, faculdade que deverá exercer no prazo de 15 dias, a contar da arguição", faculdade que a obriga a devolver, em singelo, a quantia ou quantias que tiver recebido por conta do preço (§4º da cláusula quinta) -, da possibilidade de resolver o contrato, se não houver acordo quanto à existência de defeitos, ou de os reparar, subsistindo então o contrato, havendo acordo (§2º da cláusula quinta).

41. Por sua vez o promitente comprador tem todo o interesse, antes da escritura, de verificar se o imóvel prometido vender tem ou não tem defeitos, pois, verificados estes, a construtora, reconhecendo-os, obriga-se a proceder à sua reparação; e, não os reconhecendo, o promitente comprador pode, se a promitente vendedora não quiser resolver o contrato, exercer os poderes legais que lhe advêm de a promitente vendedora querer celebrar o contrato definitivo vendendo coisa defeituosa.

42. O facto de a promitente compradora não ter invocado, na carta que dirigiu à promitente vendedora, a falta de vistoria, não significa que lhe fique precludido o direito de obter reconhecimento de que não se verificavam os pressupostos justificativos da resolução do contrato e muito menos significa que o Tribunal já não possa exercer controlo de legalidade da cláusula.

43. Saliente-se que, no caso em apreço, o promitente comprador estava convencido de que a escritura iria ser outorgada mais tarde, pois contava que a ré anuiria ao adiamento da escritura e não resolveria o contrato-promessa, não se justificando, neste contexto, a necessidade de invocar a falta de vistoria para justificar o adiamento.

44. Se é admissível considerar que a marcação da escritura por parte da promitente vendedora sem prévia vistoria implica renúncia à vistoria prévia, já obviamente tal entendimento não vale no que respeita à promitente compradora; e, ao invés, a marcação da escritura por parte desta, não traduz, de igual modo, renúncia à realização da vistoria por parte daquela.

45. Não estavam, portanto, reunidas, nem no momento em que foi marcada a escritura nem no próprio dia em que esta se iria efetuar, as condições documentais - a existência de declaração quanto à inexistência de vícios ou defeitos no imóvel - necessária à realização da escritura, não existindo nenhuma declaração prévia de renúncia a essa declaração ou à vistoria, impondo-se considerar, na economia do contrato, que a realização da vistoria constituía ato essencial para a outorga da escritura.

46. Por isso, a promitente vendedora não podia deixar, previamente à outorga da escritura, de interpelar a promitente compradora para proceder à vistoria do imóvel. E só então, se a promitente compradora não comparecesse por culpa sua à vistoria é que a mencionada cláusula resolutiva expressa podia ser acionada por injustificada falta de comparência da promitente compradora.

47. Não podia, por conseguinte, face ao exposto, a promitente vendedora resolver fundadamente o contrato ao abrigo da mencionada cláusula resolutiva expressa constante do contrato-promessa.

48. Não pode, de igual modo, considerar-se que a promitente vendedora, recusando-se a comparecer à escritura marcada já em 2011 pela promitente compradora, incorreu em incumprimento definitivo, pois era obviamente do seu interesse que a vistoria se realizasse de modo a saber qual a atitude da promitente compradora quanto à existência de defeitos ou vícios no imóvel. Cumpria desta feita à promitente compradora interpelar a promitente vendedora para proceder à vistoria, não se vendo que tal se tenha verificado.

49. A promitente vendedora considerou resolvido o contrato no pressuposto de que relevava, no caso vertente, a estipulada cláusula resolutiva expressa.

50. Ora, não se considerando resolvido o contrato-promessa com base nessa cláusula, não se pode considerar, por tal motivo, insubsistente o contrato-promessa. Foi, aliás, este o entendimento da promitente compradora.

51. Não existindo nenhuma outra manifestação de vontade por parte da promitente vendedora no sentido de que não pretende cumprir o contrato-promessa, a sua não comparência à escritura de compra e venda marcada para 4-8-2011 não pode equivaler a incumprimento definitivo nos termos do artigo 808.º do Código Civil por falta de interesse na realização do contrato prometido; nem tão pouco pode equiparar-se aquela declaração resolutiva a uma declaração de não cumprimento do subsistente contrato-promessa. Foi seguramente este o entendimento da promitente compradora, pois se tal declaração resolutiva pudesse valer como declaração de vontade de não cumprir definitivamente o contrato-promessa apesar de não valer como declaração resolutiva válida do contrato-promessa, então a promitente compradora não teria de marcar escritura de compra e venda; bastar-lhe-ia, face a tal declaração resolutiva assim interpretada, considerá-la expressa manifestação de vontade no sentido do não cumprimento do contrato-promessa, exigindo então a condenação da ré no pagamento do sinal dobrado com base no disposto nos artigos 442.º e 808.º do Código Civil.

52. Importa, no entanto, ponderar se dos factos provados resulta que a promitente vendedora, independentemente da validade da declaração resolutiva, deixou de estar definitivamente interessada na celebração do contrato-promessa. Quer isto dizer que, apesar da declaração não relevar juridicamente nos termos pretendidos pela promitente vendedora, ela pode relevar como declaração de facto evidenciando uma intenção efetiva de não cumprimento do contrato conjugada que seja com factualidade demonstrativa de que a ré manifesta e definitivamente deixara de querer outorgar a escritura de compra e venda.

53. Para este desiderato relevam os factos 25 a 34 supra. Por eles se constata que a ré considerou o contrato definitivamente resolvido e terminado, remetendo uma solução diferente para terceira entidade, o Banco …. Ora uma tal declaração não pode deixar de significar que a ré não apenas considerou o contrato resolvido ao abrigo da aludida cláusula resolutiva expressa, como considerou que deixava de estar na sua mão a possibilidade de outorga da escritura de compra e venda. Ora isto constitui um acréscimo muito relevante no sentido de que a ré, independentemente das circunstâncias, assumiu a intenção definitiva de não celebrar a escritura de compra e venda do aludido imóvel.

Concluindo:

I - O Tribunal, no caso de cláusula resolutiva expressa, quando chamado a intervir, exerce um controlo de legalidade.

II - Nesse controlo de legalidade insere-se a interpretação dessa cláusula à luz dos critérios interpretativos que promanam dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil.

III - Constitui cláusula resolutiva expressa, que tem por escopo evitar que uma situação de mora tenha de ser convertida em definitiva nos termos do artigo 808.º do Código Civil, a cláusula segundo a qual a não comparência do promitente comprador à escritura de compra e venda no dia e hora estipulados equivale a incumprimento definitivo, atribuindo ao promitente vendedor o poder potestativo de resolver o contrato-promessa.

IV - A interpretação dessa cláusula, designadamente à luz do regime constante do contrato-promessa, conduz a que, para se fazer equivaler a falta de comparência a uma escritura ao incumprimento definitivo, não basta a verificação dessa situação objetiva de falta de comparência, impondo-se que essa falta traduza uma situação de mora.

V- Prescrevendo o contrato-promessa que as partes antes da escritura efetuarão uma vistoria ao imóvel tendo em vista verificar a existência de algum defeito ou vício da construção, impondo-se ao promitente comprador, não havendo defeitos ou vícios, assinar uma declaração, o promitente comprador, se não foi previamente interpelado para essa vistoria, não incorre em mora faltando à escritura, pois não foi realizada ou proporcionada uma diligência prévia obrigatória essencial.

VI - Não se reconhecendo a validade da resolução fundada na aludida cláusula resolutiva expressa, subsiste o contrato-promessa; tal declaração resolutiva, efetuada nesse contexto, não equivale sem mais a uma declaração de vontade de não cumprimento definitivo do contrato-promessa subsistente.

VII - No entanto, provando-se que a promitente vendedora considerou ulteriormente que o contrato-promessa estava definitivamente resolvido e terminado ao ponto de qualquer decisão respeitante ao cumprimento do contrato ter deixado de lhe pertencer para pertencer a uma instituição de crédito, entidade alheia ao contrato-promessa, não pode deixar de se concluir que o promitente vendedor evidenciou a vontade definitiva e terminante de não cumprimento do contrato.

Decisão: concede-se a revista, revogando-se o acórdão, subsistindo em vez dele a decisão de 1.ª instância

Custas pela recorrida em todas as instâncias

Lisboa, 5-2-2014

Salazar Casanova (relator)

Lopes do Rego

Orlando Afonso