I - A procedência da acção de reivindicação encontra-se sujeita à demonstração cumulativa de três condições: (i) ser o autor titular do direito real de gozo invocado; (ii) o réu ter a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor; e (iii) não provar o réu ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo.
II - O direito de propriedade, consagrado constitucionalmente, bem como na DUDH (art. 17.º), não é garantido em termos absolutos, mas sim, atendendo à sua função social, dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da CRP.
III - A expropriação é um instituto de direito público, sujeito, não obstante, a vários limites que funcionam como seus pressupostos, de tal forma que só dentro desses limites é que aquele poder expropriativo se pode entender como jurídico.
IV - A figura da «via de facto» – oriunda da teoria geral do direito administrativo – caracteriza-se pelo ataque grosseiro à propriedade de um particular, por meio de factos, à margem de qualquer processo legal; por seu turno, a «apropriação irregular e/ou expropriação indirecta» caracteriza-se pela tomada de posse, por parte da administração, de um bem imóvel de um particular, com base num título que enferma de uma ilegalidade, não de uma ilegalidade grave e grosseira, mas de uma ilegalidade simples e leve.
V - Foi da consideração do interesse público, ponderado e valorado na expropriação indirecta, que a jurisprudência francesa criou o «princípio da intangibilidade da obra pública» – princípio geral do direito das expropriações –, e que traduz a ideia de manutenção da posse por parte da administração, apesar desta assentar num título ilegal, e desde que não represente um atentado grosseiro ao direito de propriedade, por forma a não resultarem danos graves para o interesse público.
VI - Uma coisa é o Município ocupar uma parcela de terreno com vista à execução no mesmo de obras públicas, por si previstas para o local, em satisfação do interesse público e actuando de boa fé; outra, completamente distinta, é o Município proceder à ocupação do solo, sem o proprietário ser «tido ou achado», em actuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade.
VII - Nos casos, como o dos autos, em que haja uma usurpação grosseira, um atentado à propriedade imbuído de ilegalidade flagrante, não tem sentido convocar o denominado «princípio da intangibilidade da obra pública», justificando-se o reconhecimento do direito de propriedade e a manutenção e/ou restituição da posse da parcela de terreno ocupada.
VIII - Quando a administração actue pela «via de facto», pela política do facto consumado, sem se fazer revestir da sua autoridade – traduzida na legalidade dos procedimentos utilizados com vista aos seus intuitos –, não se justifica colocá-la numa situação de superioridade ou supremacia, mas antes numa posição idêntica à de qualquer particular, visto ter sido ela própria a despojar-se desses seus poderes e prerrogativas que lhe permitiriam impor-se a este.
1.
A “MASSA INSOLVENTE DE AA & CA., SA” propôs acção declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICÍPIO DE ... , pedindo que (i) a Autora seja reconhecida como única dona e legítima proprietária do prédio rústico acima identificado e que (ii) o Réu seja condenado a desocupar e a restituir à Autora a parcela com cerca de 403 m2 do imóvel referido, livre de pessoas e bens, e a repô-la no estado em que se encontrava anteriormente, destruindo para tal, a suas expensas, a rua e tudo o mais que nele ilicitamente abriu, mandou abrir, construiu ou mandou construir e ainda a pagar à Autora uma sanção pecuniária compulsória de € 5.000 (cinco mil euros) por cada mês ou fração de atraso no cumprimento da ordem de restituição e reposição acima referida.
Pede, ainda, subsidiariamente, que o Réu seja condenado a pagar à Autora, a título de justa compensação pela ablação da sua propriedade, o valor correspondente ao valor venal da parcela sub judice, acrescido do valor devido a título de juros de mora, contados a partir do momento em que teve início a ocupação, a relegar para incidente de liquidação.
Em todo o caso, e sempre sem prescindir, deverá o Réu ser condenado a pagar à Autora o valor da parcela de terreno sub judice, a título de enriquecimento sem causa, montante a relegar para incidente de liquidação”.
Fundamentando a sua pretensão, alega, em síntese, que a Autora é dona e legítima proprietária do prédio rústico sito no Bairro da Saúde, à Rua do …, nos limites de Escarigo e das Fontainhas da freguesia de S. João da Madeira, inscrito na matriz predial de S. João da Madeira sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …. João da Madeira, no qual, em finais de 1994, o Réu, sem ter informado a AA, abriu uma nova rua, perpendicular à Rua …, em São João da Madeira (designada Rua de …) que atravessou o terreno acima descrito (ocupando cerca de 403 dos cerca de 2.000 metros quadrados desse prédio), o que fez contra a vontade da AA, ocupando tal parcela de terreno, bem sabendo que não é sua, que não tem título que permita a sua ocupação, persistindo em manter a situação de facto abusiva que criou e lhe causou prejuízos.
O réu contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação, invocando, em síntese, que a ocupação da parcela de 403 m2 do prédio da autora pelo réu não só resultou do consentimento daquela, como tal apropriação foi no seu interesse, tendo resultado vantagens económicas da ocupação dessa parcela e da sua integração na Rua de ... para o ante - possuidor do prédio amputado, “AA & Companhia S.A.” que o viu, por força da abertura do novo arruamento, valorizado com uma capacidade construtiva que antes não tinha.
Mais alega que qualquer pedido de indemnização a liquidar, por incidente, em execução de sentença, tal qual a autora ora formula, terá de ter em conta a possibilidade de existência de litispendência, face ao pedido de indemnização a título de responsabilidade civil pré-contratual formulado pela autora contra o réu no processo n.º 1064/08.4BEVIS, sobre a mesma situação jurídica, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
A autora apresentou réplica, reafirmando a posição por si expressa na petição inicial, concluindo que as excepções invocadas pelo réu devem se julgadas improcedentes, devendo este ser condenado nos exactos termos que foram peticionados.
A acção procedeu parcialmente, tendo a sentença reconhecido “a autora como única dona e legítima proprietária do prédio rústico a que se alude nos artigos 1º e 2º da petição inicial” e condenou “o réu a pagar à Autora, a título de justa compensação pela ablação da sua propriedade, uma indemnização, correspondente à perda definitiva da parte do terreno ocupada (403 m2), a calcular à data da ocupação (finais de 1994) e tendo por critérios os artigo 23º e seguintes do Código das Expropriações e a actualizar nos termos do mencionado artigo 23º do Código das Expropriações, quantia essa que se vier a liquidar no respetivo incidente de liquidação, ao abrigo do artigo 661º, nº 2 do Código de Processo Civil” e absolveu o Réu do demais peticionado.
Condenou Autora e Réu nas custas da acção, “na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se, até apuramento final após a mencionada liquidação no respectivo incidente de liquidação, na proporção de 50% para cada parte”.
Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Autora recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 8/05/2014, manteve, por unanimidade e com a mesma fundamentação, a sentença.
A Autora, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por acórdão que condene o Recorrido nos pedidos principais formulados sob as alíneas A) e B) da petição inicial, mas confrontada com “a dupla conforme”, veio, invocando os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º do CPC, interpor recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões:
1ª - No presente recurso aprecia-se o acerto de uma decisão (da primeira instância, confirmada pela Relação) que indeferiu um pedido de reivindicação de um prédio privado, sem qualquer fundamento de direito positivo, invocando unicamente um denominado "princípio da intangibilidade da obra pública".
2ª – A revista excepcional justifica-se, por um lado, por se destinar à apreciação de uma questão de grande relevância jurídica, que importa esclarecer com vista a uma melhor aplicação do direito (devendo ser admitido ao abrigo do artigo 672º, n.º 1, alínea a) do CPC).
3ª – E justifica-se, também, por estar em causa um interesse de particular relevância social e matéria com assento constitucional (verificando-se assim o fundamento de admissibilidade do recurso previsto no artigo 672º, n.º 1, alínea b) do CPC).
4ª – Tendo ficado provado que a Recorrente é dona e possuidora da parcela de terreno reivindicado e que o Recorrido detém tal parcela de forma ilícita e de má - fé, encontram-se totalmente preenchidos os requisitos do regime da reivindicação consagrado no artigo 1311º do Código Civil, pelo que mal andou o acórdão em confirmar a improcedência do pedido de restituição da mesma.
5ª – O acórdão recorrido não podia ter confirmado a condenação do Recorrido a pagar à Recorrente, a título de justa compensação pela ablação da sua propriedade, uma indemnização correspondente à perda definitiva da parte do terreno ocupada (pedido subsidiário), pois estavam reunidos todos os pressupostos para a condenação do réu no pedido principal: proceder à desocupação e à consequente restituição à Recorrida da parcela de terreno que vem ocupando, repondo-a no estado em que se encontrava.
6ª – Negar isto é negar o Estado de Direito e abolir o direito de propriedade, constitucionalmente consagrado no artigo 62º da Lei Fundamental.
7ª – Em obediência ao princípio dispositivo, que implica a liberdade de conformação objectiva da instância, estando provados os factos que integram a causa de pedir em que assenta o pedido principal (a restituição da parcela de terreno ocupada pelo Recorrido), o acórdão recorrido devia ter-se limitado a condenar conforme peticionado.
8ª – O acórdão recorrido não podia ficcionar a transmissão da propriedade para o Recorrido, sem que para tal houvesse fundamento legal e na ausência de qualquer facto que fundamente a aquisição originária ou derivada do direito de propriedade sobre a parcela de terreno.
9ª – Nem podia concluir pela integração dessa parcela no domínio público, sem que tivesse havido qualquer facto translativo dessa mesma propriedade e quando o próprio tribunal de primeira instância e o acórdão, simultaneamente, declaram reconhecer a propriedade da Recorrente.
10ª – Ao contrário do que sucedia nos precedentes invocados no acórdão recorrido e na sentença de primeira instância (Ac. do STJ de 24-06-2008 e Ac. TRP de 29-02-2011), no caso vertente apenas está em causa a abertura de uma rua (à qual não foi atribuída a qualificação de domínio público), que pode ser facilmente destruída, sem grande trabalho nem despesa, assim se repondo o terreno tal e qual estava à data da abusiva ocupação pelo Recorrido, em nada saindo prejudicado o interesses público.
11ª – O acórdão recorrido enferma ainda de falta de fundamentação por ausência de especificação dos «danos graves» que o interesse público sofreria com a restituição e desocupação da parcela de terreno pelo Recorrido.
12ª – A decisão recorrida violou, pois, os artigos 1302º, n.º 2 e 1305º, n.º 2 do Código Civil (direito de propriedade), o artigo 1311º, n.º 2, do Código Civil (acção de reivindicação), o artigo 264º, n.º 2 do Código de Processo Civil e artigo 5º do actual (princípio do dispositivo), ofendeu o artigo 62º da Constituição (direito de propriedade privada) e ainda os artigos 203º, 204º e 205º, n.º 1 da Constituição.
13ª - Independentemente disso, a Relação andou mal ao confirmar a repartição das custas em metade para cada uma das partes, quando o decaimento foi manifestamente diverso.
Não houve contra – alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
2.
Como se referiu, a autora interpôs recurso de revista excepcional, considerando estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja necessariamente necessária para uma melhor aplicação do direito e estarem também em causa interesses de particular relevância social [artigo 672º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC].
Para sustentar a verificação do requisito da relevância jurídica, a Recorrente alegou que “o princípio da intangibilidade da obra pública”, impeditivo do exercício do direito de propriedade e reivindicação da coisa, não encontra fundamento na lei nem tem apoio legal, importando saber se o mesmo existe e se é conforme à lei e à Constituição em ordem à melhor aplicação do direito.
Quanto á relevância social, a Recorrente defende que a negação do exercício da acção reivindicatória, com base num princípio sem assento legal, é uma decisão capaz de gerar perturbação da paz social.
A “Formação” considerou estarem preenchidos os invocados pressupostos de relevância jurídica e social, determinantes da admissibilidade da revista excepcional, com os seguintes fundamentos:
a – No caso, está em causa, como enunciado, a limitação e afastamento da aplicação das normas dos artigos 1308º e 1311º, n.º 2 do Código Civil, segundo as quais “ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei” e, “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”, bem como a interpretação do artigo 62º da CRP que, garantindo o direito à propriedade privada, estatui que “a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”, no confronto com a afectação de facto da coisa (parte) ao domínio público, assim se subtraindo à aplicação do dito n.º 2 do artigo 1311º, a coberto do denominado princípio da “intangibilidade da obra pública”.
A questão apresenta, sem dúvida, contornos pouco definidos, encontrando-se o conteúdo e os limites da aplicabilidade do princípio em causa, desde logo pela sua novidade, pouco “trabalhados” pela jurisprudência, apresentando-se como necessária a sua mais profunda apreciação em ordem a contribuir para o estabelecimento de um critério orientador de solução igualitária em casos análogos, assim se procurando obter uma melhor aplicação do direito.
b – Acresce que, na avaliação da actuação da Ré e das consequências jurídicas da sua actuação, está em causa, do ponto de vista da sociedade, a credibilidade da Administração Pública e a confiança dos cidadãos no respeito pela segurança jurídica dos seus bens perante “vias de facto consumadas” ou “expropriações de facto”, situações que, extravasando o simples reflexo nas partes envolvidas, assumem relevância extra processual e, por isso, importa definir.
3.
Admitido o recurso de revista excepcional e tendo, consequentemente, em devida consideração os fundamentos da sua admissibilidade mas sem esquecer que o objecto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se, não obstante a lei, designadamente a Constituição, reconhecer o direito á propriedade privada e negar a possibilidade de desapropriação arbitrária, a não ser que interesses públicos ou sociais o exijam, mediante prévia expropriação e mediante justa compensação ao expropriado, “o princípio da intangibilidade da obra pública”, ainda assim, obsta que seja restituída ao titular do direito de propriedade do prédio do qual a mesma fazia parte uma parcela de terreno, ilegitimamente ocupada pelo Município para nela abrir uma rua que concluiu e afectou ao domínio público.
Ou se, pelo contrário, não encontrando este princípio da “intangibilidade da obra pública” fundamento legal em qualquer norma conhecida do nosso ordenamento jurídico, havia, ao contrário do decidido, fundamento para condenar o Réu no pedido principal formulado pela Recorrente - desocupação e restituição à Recorrente da parcela de terreno que à mesma pertence e que o Réu vem ocupando, repondo-a no estado em que se encontrava antes dessa ocupação.
4.
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
1º - A Autora é dona e legítima proprietária do prédio rústico sito no Bairro da Saúde, à Rua do …, nos limites de Escarigo e das Fontainhas, da freguesia de S. João da Madeira, inscrito na matriz predial de S. João da Madeira sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … João da Madeira, conforme documentos n.os 1-A e 1-B, juntos e dados por reproduzidos na íntegra, para todos os efeitos legais, pela autora (alínea A).
2º - Tal prédio, inscrito no registo a favor da sociedade “AA & Companhia, Limitada”, transitou para a titularidade de ora Autora por força da declaração da insolvência da sociedade “AA & Companhia, S.A.”, antes, “AA & Companhia, Limitada”, proferida por este mesmo Tribunal, no âmbito do processo judicial n.º 314/09.4TBSJM, em 26/03/2009, (conforme documento n.º 2 junto e dado por reproduzido na íntegra, para todos os efeitos legais, pela autora) (alínea B).
3º - Acontece que parte daquele prédio se encontra ocupado pelo Réu Município (alínea C).
4º - Em 21/07/2008, levando ao conhecimento do tribunal administrativo a relação que entre a sociedade “AA & Companhia, L.da” doravante simplesmente, “AA”) e o Réu se estabelecera durante anos e, consequentemente, reivindicando, entre outros, o seu direito de propriedade, aquela intentou uma acção de condenação junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que se declarou incompetente em razão da matéria, no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 1064/08.4BEVIS1 (alínea D).
5º - Tendo optado por não impugnar, nesta parte, a decisão proferida já depois de decretada a Insolvência, a ora Autora intenta a presente acção de condenação (cfr. documento n.º 3 junto pela autora) (alínea E).
6º - O Réu sabe que o terreno não é seu, sabe que não tem título que permita a sua ocupação, mas persiste em manter a situação de facto que criou e nem depois da acção administrativa acabada de referir, o Réu desocupou a faixa de terreno que ocupa (alínea F).
7º - Desde o ano de 1946 que a AA era dona e legítima proprietária do prédio rústico mencionado no artigo 1º, sendo actualmente a sua dona a Massa Insolvente Autora, por força de declaração de insolvência supra referida, proferida em 26 de Março de 2009 (alínea G).
8º - Naquele ano de 1946, a AA entrou na posse do imóvel (alínea H).
9º - E desde então sempre agiu como sua dona, afirmando-o publicamente e comportando-se como tal (alínea I).
10º - É a AA quem paga o Imposto Municipal sobre Imóveis e quem sempre pagou a Contribuição Autárquica (alínea J).
11º - Em finais de 1994, sem ter informado a AA, o Réu abriu uma nova rua, perpendicular à Rua …, em São João da Madeira (designada Rua de …) que atravessou o terreno acima descrito (ocupando cerca de 403 dos cerca de 2.000 metros quadrados desse prédio) (alínea L).
12º - O Réu reconheceu a propriedade da AA sobre o prédio em causa (alínea L).
13º - O demandado, em execução da empreitada de obras públicas de abertura e pavimentação da rua de acesso à escola das Fontainhas, veio, em finais de 1994, a ocupar e integrar em novo arruamento (designada Rua de …) os 403 m2 dos cerca de 2.000 m2 do prédio da demandante, sem que previamente o tenha adquirido pela via do direito privado ou por expropriação, tal qual esta refere no artigo 11º do petitório (alínea M).
14º - A autora, mais propriamente AA & Companhia S.A formulou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, no processo nº 1064/08.4BEVIS e sobre a mesma situação jurídica, um pedido de indemnização a título de responsabilidade civil pré-contratual (alínea N).
15º - Pedido esse julgado prescrito em 1ª instância de decisão, encontrando-se, no entanto, pendente de recurso para o Tribunal Central Administrativo Norte (alínea O).
16º - Perante a ocupação do seu terreno pelo réu, da forma descrita em 11º e 13º, representantes da AA manifestaram junto dos serviços do réu a sua discordância.
17º - A AA reclamou a sua propriedade sobre o terreno e, em 26 de Setembro de 1996, fez chegar à Câmara Municipal de ..., a pedido desta, na pessoa do Sr. Arq. BB, a caderneta predial e uma certidão do registo de propriedade.
18º - Os técnicos da Câmara Municipal de ... informaram a AA que estava a ser elaborado um Plano de Pormenor, que incidia sobre o terreno desta.
19º - Em Novembro de 1997 encontrava-se elaborado o Plano de Pormenor das Quintelas.
20º - A AA e o réu mantiveram-se em contacto com vista a resolver, de forma amigável, a situação da ocupação da mencionada parcela de terreno da AA por parte do réu, da forma descrita em 11º e 13º.
21º - Foi acordado entre a AA, o réu e os Herdeiros de CC, proprietários de terrenos confinantes com os terrenos daquela, que a regularização da abertura da Rua de … passaria por uma permuta de terrenos entre si.
22º - A AA sempre tentou resolver a situação com o réu de forma amigável, e só por isso a situação se foi arrastando.
23º - Em 17 de Junho de 1998, a AA escreveu uma carta ao Presidente da Câmara Municipal de ..., solicitando a marcação de uma reunião com vista a discutir e deliberar os termos do acordo de permuta, nos termos que constam de fls. 48, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
24º - Em virtude da abertura da Rua de …, a AA encontra-se impossibilitada de dispor da parte do terreno ocupada, nos termos mencionados em 11º e 13º.
25º - Em data não concretamente apurada, foi realizada uma reunião na Câmara Municipal de ..., em que estiveram presentes, pela parte da AA, o administrador delegado Sr. DD e o colaborador Dr. EE e pela parte do réu a Drª FF e o Arq. BB e, ainda, por momentos, o Sr. Presidente da Câmara e o Sr. Vereador GG.
26º - O primeiro estudo do loteamento urbano incluía quatro lotes, nos termos que constam do documento junto fls. 192 a 195, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
27º - A AA continuou a manter contactos com o réu, tentando resolver extrajudicialmente o mencionado assunto.
28º - A AA solicitou, novamente, por carta datada de 16 de Julho de 1999, a intervenção pessoal do Presidente da Câmara Municipal para a resolução do problema.
29º - Foi então agendada nova reunião entre a AA e o Presidente da Câmara para o dia 12/10/1999, confirmada pela AA por carta datada de 27/09/1999 (doc. nº 6).
30º- Pelo menos em 27 de Abril de 2001, a AA e a Câmara haviam acordado que aquela receberia 4 lotes de terreno.
31º - A AA e a Câmara acordaram que o projecto de loteamento urbano, que incluía o terreno da AA, seria submetido a deliberação em reunião camarária.
32º - No ano de 2000, o Sr. Engenheiro HH, dos serviços técnicos do réu, entrou em contacto com a AA, solicitando alguns elementos e informando que o processo teria de ser submetido novamente a reunião camarária.
33º - A AA escreveu nova carta, dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de ..., solicitando a conclusão do processo, datada de 14/04/2000, nos termos que constam a fls. 52, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
34º - Em 2/09/2000, dando continuidade à negociação, o réu remeteu à AA, para apreciação, um projecto de loteamento, denominado “LOTEAMENTO DAS QUINTELAS”.
35º - Este projecto integrava terrenos pertencentes à AA, ao réu e ainda aos Herdeiros de CC.
36º - A AA deu o seu parecer favorável à proposta de viabilização de loteamento mencionado em 34º, em 11/09/2000, nos termos que constam do documento junto a fls. 58, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
37º - Em 12/12/2000, os Herdeiros de CC, representados por II, manifestaram a sua concordância à viabilização do mencionado “LOTEAMENTO DAS QUINTELAS”, condicionada nos termos constantes do documento junto a fls. 59, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
38º - Faltava ainda a desafectação de parte de terreno integrado no domínio público para o domínio privado.
39º - Em Reunião da Câmara Municipal de ..., de 26 de Fevereiro de 2001, esta deliberou, por maioria, concordar com a proposta apresentada respeitante ao “LOTEAMENTO DAS QUINTELAS”, com o voto contra do Sr. Vereador JJ, nos termos que constam do documento junto a fls. 205 a 207, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
40º - Por ofício de 8 de Março de 2001, o réu enviou à AA a planta do loteamento, solicitando, para efeitos da formalização do processo de loteamento, que a AA o informasse da sua concordância e, em caso afirmativo, que apresentasse as certidões dos registos dos terrenos propriedade da AA devidamente actualizados.
41º - Estava previsto atribuir à AA os lotes 2, 3, 5 e 6.
42º - A AA deu o seu assentimento ao Loteamento das Quintelas e enviou à Ré os elementos solicitados em 27/04/2001 (doc. nº 12).
43º - Depois, o Réu pediu à AA que lhe remetesse ainda os seguintes elementos:
i) - Certidão da Conservatória do Registo Predial de S.J. da Madeira; e
ii) - Certidão de teor emitida pela Repartição de Finanças de S. J. da Madeira.
44º - Em 6 de Setembro de 2001, a AA fez dar entrada desses documentos nas instalações do réu.
45º - Não chegou a ser marcada a escritura pública com vista a finalizar o acordo referente ao loteamento.
46º - A AA nunca se conformou com a presente situação, tendo, por várias vezes, entrado em contacto com os serviços da Câmara.
47º - Num dos contactos efetuados pela AA junto do réu, soube aquela que, na Assembleia Municipal de 26 de Fevereiro de 2004, havia sido deliberado que o assunto relativo à “análise e deliberação da desafectação de parcela de terreno do domínio público para o domínio privado do Município, sita nas Fontainhas” baixasse a uma comissão apoiada pela Câmara Municipal e constituída por todos os líderes parlamentares da Assembleia Municipal ou por quem os substitua.
48º - Na proposta que veio a ser elaborada pela comissão de estudo, esta defendeu que a Assembleia Municipal não se encontrava em condições de aprovar a mencionada proposta de desafectação de parcela de terreno do domínio público para o domínio privado do Município, a que se alude em 47º, e que a Câmara Municipal deveria desenvolver um processo negocial com os particulares em causa por forma a definir um adequado equilíbrio entre as prestações de cada uma das partes envolvidas.
49º - Foi aprovada por unanimidade dos presentes reunidos na Assembleia Municipal de 29 de Abril de 2004 com continuação em 3 de Maio de 2004.
50º - Em Julho de 2004, estiveram reunidos o Sr. Presidente, da parte da Câmara Municipal de ..., e o Eng. KK e a Dr.ª LL, da parte da autora, na qual o Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... lhes referiu que o que havia sido acordado não tinha sido aprovado pela Assembleia Municipal, fazendo nova proposta de distribuição de 3 lotes à autora, o que esta não aceitou.
51º - Ainda continuaram a ocorrer contactos entre a AA e os serviços do réu, em que aquela insistia pela resolução do assunto.
52º - A autora teve conhecimento que, entretanto, iniciou-se a elaboração de um novo Plano de Pormenor das Quintelas.
53º - O réu nunca desocupou a parcela de terreno a que se alude em 11º e 13º.
54º - Com a descrita actuação da Câmara Municipal, que ocupou, sem permissão, a parcela de terreno da AA referida em 11º e 13º, nele abrindo a ali referida rua, esta ficou impedida de usar, fruir e dispor da mesma ao longo dos anos.
55º - A mencionada rua é agora pública.
56º - A autora não pode construir na parcela de terreno referida em 11º e 13º.
57º - A autora não pode vender a parcela de terreno, referida em 11º e 13º.
58º - A autora não pode arrendar o espaço respeitante à parcela de terreno, referida em 11º e 13º.
59º - A autora não pode servir-se da parcela de terreno referida em 11º para colocar publicidade.
60º - Existiram vários contactos, ao longo dos anos, entre os representantes da autora e o Presidente de então da Câmara Municipal do réu e seus técnicos, com vista a solucionar a situação da ocupação da parcela de terreno em questão.
61º - No que ao loteamento das Quintelas diz respeito, não resulta da Acta que a aprovação estivesse condicionada à desafectação do domínio público das parcelas em causa.
62º - A autora viu-se envolvida em todo este processo, apenas tendo mantido os mencionados contactos com o réu com vista a ver resolvida a questão em apreço.
5.
O Código Civil não define a propriedade, referindo, tão – só, o seu normal conteúdo: “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com a observância das restrições por ela impostas” (vide artigo 1305º do Código Civil).
Reconhece-se aqui o ius utendi, fruendi e abutendi do Direito Romano numa redacção moderna inspirada no artigo 832º do Código Civil italiano.
Como refere José Alberto Vieira[1], “apesar da limitação desta fórmula de inspiração romana, o direito de propriedade atribui ao titular todos os poderes ou faculdades que à coisa se podem referir. O proprietário pode fazer qualquer aproveitamento da coisa que a lei não proíba, o que leva a considerar para a sua delimitação somente as restrições a esse aproveitamento (conteúdo negativo).
Deste modo, a delimitação positiva do tipo de direito real propriedade não tem de ser feita através da enumeração concreta dos poderes de aproveitamento da coisa, uma vez que tudo o que seja aproveitamento não restringido legalmente cabe ao proprietário”.
Daqui resulta que há violação do direito real quando um terceiro impede ou diminui de alguma forma o aproveitamento da coisa contra a vontade do titular.
“Na medida em que a violação do direito real existe, sempre que o titular do direito real é impedido de aproveitar a coisa nos termos desse direito ou vê diminuído esse aproveitamento por facto de terceiro, devemos dissociar a violação da ilicitude”[2]. “A violação designa a situação objectiva que atinge o aproveitamento da coisa pelo titular do direito real e é independente de qualquer valoração que o Direito faça á conduta de alguém, quer dizer, ao comportamento (acção ou omissão) daquele que violou o direito real”.
A acção real tem, assim, por escopo propiciar ao titular do direito real o aproveitamento da coisa permitido pelo direito, pondo fim à sua violação, seja esta ilícita ou não.
A procedência da acção de reivindicação encontra-se sujeita à demonstração cumulativa de três condições de procedência e que são as seguintes:
O autor seja titular do direito real de gozo invocado;
O réu tenha a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor;
O réu não prove ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo (vide artigo 1311º, n.os 1 e 2 do Código Civil).
No caso em apreço, o autor/recorrente reivindicou uma parcela de terreno que foi cabalmente reconhecida como sua propriedade mas, apesar disso, foi julgado improcedente o pedido de restituição da mesma. Isto porque, em síntese, a decisão da 1ª instância, confirmada pela Relação, se baseia no “princípio da intangibilidade da obra pública”, impedindo o Autor de exercer o seu direito de propriedade por via de uma acção de reivindicação (artigo 1311º Código Civil).
Discorda o recorrente desta decisão, pois “este princípio não encontra fundamento legal em qualquer norma conhecida do nosso ordenamento jurídico. No entanto, serviu de fundamento às instâncias para decidirem não só contra legem mas até mesmo contra a Constituição. Sem qualquer apoio legal, as decisões procedem a uma expropriação (rectius, um confisco), juridicamente inadmissível”.
Com efeito, segundo o acórdão recorrido, “o princípio da intangibilidade da obra pública” obsta que seja restituída uma parcela de terreno ao titular do direito de propriedade do prédio do qual a mesma fazia parte, ilegitimamente ocupada pelo Município para nela abrir uma rua, que concluiu e afectou ao domínio público”.
Está, portanto, em causa nos presentes autos saber se, não obstante o direito de propriedade da autora sobre uma parcela de terreno ocupada pelo Réu Município, sem que a mesma tenha sido objecto de qualquer processo expropriativo ou de qualquer acordo/negócio entre uma e outro, ainda assim não haverá fundamento para a desocupação e restituição dessa parcela ao autor, por força do princípio da intangibilidade da obra pública, uma vez que o réu Município nela abriu uma rua, que concluiu e afectou ao domínio público.
6.
O direito de propriedade – consagrado no artigo 62º da CRP – é um dos direitos fundamentais, inserido no regime dos direitos, liberdades e garantias.
Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
Esta eficácia directa significa que os direitos fundamentais ficam libertos, na sua aplicação, da tutela mediadora do Estado.
Os preceitos constitucionais e legais, nesta matéria, devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, razão pela qual convém ter presente que o artigo 17º dessa mesma Declaração estatui que «1. Todas as pessoas, individual e colectivamente, têm direito à propriedade», acrescentando o n.º 2 que «Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade».
Embora a Declaração Universal dos Direitos do Homem seja de 1948, o certo é que, logo em Março de 1952, o Protocolo Adicional à Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais foi mais longe, estabelecendo no seu artigo 1º que «ninguém pode ser privado da sua propriedade, salvo por causa de utilidade pública e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional».
É semelhante o sentido do artigo 62º da CRP e dos instrumentos internacionais, isto é, ambos proclamam a garantia institucional da propriedade e dos concretos direitos de propriedade, os quais se impõem perante o poder, não ficando dependentes de nenhuma concretização[3].
O direito de propriedade é, assim, um direito fundamental, auto - aplicável, uma realidade social por si mesma e não produto de uma acção constitutiva do Estado.
Não obstante a sua categoria de direito fundamental, tal não impede que em certos casos a propriedade possa e deva ser sacrificada.
A nossa Constituição, embora não a mencione expressamente, não deixa de reconhecer implicitamente a função social como limite imanente ao direito da propriedade privada em várias regras e princípios constitucionais[4]. Também o Código Civil de 1966 reconhece à propriedade uma função social que observamos na figura do abuso de direito e nas diversas restrições ou limitações que representam obrigações de non facere e de facere do proprietário[5].
O direito de propriedade é, pois, garantido «nos termos da Constituição», o que significa que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição possa para ela remeter ou quando se trate de revelar de revelar limitações constitucionalmente implícitas)[6].
A trave mestra desse sacrifício encontra-se, pois, prevista no artigo 62º, n.º 2, da CRP, ao esclarecer que a expropriação por utilidade pública representa um limite à garantia do direito de propriedade, que só pode ser efectuada com base na lei e que implica, fora dos casos estabelecidos na Constituição, o pagamento de justa indemnização.
Como referem os citados Mestres[7], “esta norma consagradora da expropriação é, simultaneamente, uma norma de autorização e uma norma de garantia. Por um lado, confere aos poderes públicos o poder expropriatório, autorizando-os a procederem à privação da propriedade e, por outro lado, reconhece ao cidadão um sistema de garantias que inclui designadamente os princípios da legalidade, da utilidade pública e da indemnização”.
Esta limitação ao direito de propriedade é uma realidade fenomenológica em qualquer sociedade, entendida na base da cooperação voluntária dos homens para um fim comum, que postula que cada indivíduo se prive de um quid – que pode ser considerado como seu – para a cooperação e realização daquele fim comum.
Esta ideia é referida e vincada por John Lock[8], ao afirmar que os homens, ao entrarem para a sociedade, para poderem gozar as suas propriedades em paz e sossego, cedem a liberdade, a igualdade e o poder executivo que tinham no estado natural.
Nesta contraposição propriedade privada / expropriação podemos antever a expressa tensão entre indivíduo e sociedade, característica da sociedade de massas e a dialética interesse privado / interesse público.
A expropriação é assim um instituto de direito público, em que, de um modo geral, é atribuída a uma autoridade administrativa competência para emitir o acto de declaração de utilidade pública – elemento chave do procedimento expropriatório – e impulsionar o processo que lhe permita a transferência da propriedade e a posse[9].
No entanto, como se salientou, o poder de expropriação está sujeito, por força de lei, a vários limites que funcionam como seus pressupostos, de tal forma que só dentro desses limites, e apenas dentro desses limites, é que aquele poder expropriativo se pode entender como poder jurídico.
Podemos por isso afirmar que a expropriação, através da declaração de utilidade pública, é o único acto dotado de dignidade suficiente para lesar os direitos ou interesses legítimos do particular.
Todos os actos preparatórios (elaboração de projectos, anteprojectos, planos etc.) como posteriores (acordo quanto ao montante da indemnização, constituição e funcionamento da arbitragem etc) não possuem, de per se, qualquer automonia funcional relativamente ao acto de declaração de utilidade pública.
6.1.
E qual o efeito da declaração pública?
O efeito da declaração de utilidade pública é a constituição da relação jurídica de expropriação.
Donde, o efeito da declaração de utilidade pública não é a aquisição do bem pelo beneficiário da expropriação; o efeito da declaração de utilidade pública é a sujeição à expropriação do bem privado abrangido pela mesma, os quais ficam onerados em termos reais, sendo o titular impotente para evitar a actuação potestativa por parte dos órgãos públicos.
A garantia substancial da expropriação significa que, no caso de intervenções de tipo expropriatório dos poderes públicos, é reconhecido ao particular um direito de indemnização.
Face aos factos provados, a primeira evidência que ressalta é a de que não ocorreu, no caso dos autos, qualquer processo expropriativo que legitimasse a ocupação levada a cabo pelo Município.
Está adquirido nos autos que a autora é dona e legítima proprietária do prédio rústico sito no Bairro da Saúde, conforme referido (vide alínea A), encontrando-se parte daquele prédio ocupado pelo Município (vide alínea C).
O réu sabe que o terreno não é seu, sabe que não tem título que permita a sua ocupação, mas persiste em manter a situação de facto que criou e nem depois da acção administrativa acabada de referir o réu desocupou a faixa de terreno que ocupa (alínea F).
Com efeito, em finais de 1994, sem ter informado a AA, o Réu abriu uma nova rua, perpendicular à Rua …, em S. João da Madeira (designada Rua de …) que atravessou o terreno acima descrito, ocupando cerca de 4º3 metros dos cerca de 2000 metros quadrados desse prédio (alínea L).
Em execução de empreitada de obras públicas de abertura e pavimentação da rua de acesso à Escola das Fontainhas veio o réu, em finais de 1994, a ocupar e integrar em novo arruamento os 403 m2 dos cerca de 2000 m2 do prédio da autora, sem que previamente o tenha adquirido pela via do direito privado ou por expropriação (alínea M).
Perante a ocupação do terreno pelo réu, representantes da AA manifestaram junto dos serviços do réu a sua discordância.
A AA reclamou a sua propriedade sobre o terreno e, em 26 de Setembro de 1996, fez chegar à Câmara Municipal de ..., a pedido desta, na pessoa do Sr. Arq. BB, a caderneta predial e uma certidão do registo da propriedade.
A AA sempre tentou resolver a situação com o réu de forma amigável e só por isso é que a situação se foi arrastando.
Em virtude da abertura da Rua de …, a AA encontra-se impossibilitada de dispor da parte do terreno que foi ocupada.
O réu nunca desocupou a parcela de terreno a que se alude nos pontos 11º e 13º.
Com a descrita actuação da Câmara Municipal, que ocupou, sem permissão, a parcela de terreno da AA, nela abrindo a referida rua, esta ficou impedida de usar, fruir e dispor da mesma, ao longo dos anos.
A mencionada rua é agora pública.
A autora não pode construir na parcela de terreno em causa, não a pode vender, não pode arrendar o espaço respeitante à parcela de terreno que foi referida, nem pode servir-se da parcela de terreno para colocar publicidade.
A autora viu-se envolvida em todo este processo, apenas tendo mantido os mencionados contactos com o réu com vista a ver resolvida a questão em apreço.
7.
Estes factos dados por assentes nos autos convocam-nos para duas figuras e para um princípio jurídico, considerado como princípio geral, tratados quer pela doutrina quer pela jurisprudência.
São eles: - a chamada «via de facto»; a «apropriação irregular ou expropriação indirecta» e o «princípio da intangibilidade de obra pública».
7.1.
A figura da «via de facto»:
A figura da via de facto – oriunda da teoria geral do direito administrativo - começou por ser tratada pela jurisprudência e doutrina francesas. Entre nós, Fernando Alves Correia[10] caracteriza-a pelo ataque grosseiro à propriedade do particular por meio de factos através dos quais nada se encontra que corresponda ao conceito de expropriação, distinguindo por isso esta figura da prática de um acto expropriatório a que faltam alguns requisitos legais de validade.
Na doutrina francesa – secundada pela jurisprudência – André de Laubadère[11] indica os seguintes requisitos essenciais da via de facto (também seguidos de perto pelo Ac. STJ de 09-01-2003, Revista 3575/02, Relator Cons. Dionísio Correia):
a) - Existência de uma actividade material de execução por parte da Administração: não basta a existência de uma intenção da administração, sendo indispensável que aquela tenha passado à execução material;
b) - Que daquela actividade resulte um grave atentado a um direito de propriedade imobiliária ou mobiliária do particular;
c) - Que a actuação da administração enferme de uma ilegalidade de tal modo flagrante, grave e indiscutível que, nos termos da jurisprudência do Conseil d’Etat, seja «manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à administração».
Conforme refere Fernando Alves Correia, podem ser referidos vários exemplos de actuações da administração que se integram nesta figura da via de facto: protótipo será aquele caso em que a Administração se apodera dos direitos patrimoniais privados de um modo fáctico, isto é, sem que se verifique previamente qualquer decisão que lhe sirva de fundamento, no caso um acto de declaração de utilidade pública e qualquer procedimento próprio da expropriação.
Para além deste caso, deve estender-se o conceito da via de facto àqueles casos em que o acto de declaração de utilidade pública enferme de vícios de tal modo graves que seja manifesta a sua nulidade.
São ainda constitutivos da via de facto aqueles casos em que embora existindo declaração de utilidade pública, e sendo esta perfeitamente regular, a actividade material de execução excede quantitativamente ou qualitativamente o âmbito coberto pelo acto de declaração de utilidade pública[12].
7.2.
Apropriação irregular e expropriação indirecta:
Diferente da situação de «via de facto» é aquela outra que a jurisprudência e doutrina francesas apontam como sendo de apropriação (emprise) irregular e expropriação indirecta.
A figura da apropriação irregular, para Fernando Alves Correia, pode caracterizar-se como aquela em que existe uma tomada de posse por parte da Administração de um bem imóvel do particular com base num título que enferma de uma ilegalidade, não de uma ilegalidade grave e grosseira – como no caso de via de facto –, mas de uma ilegalidade simples e leve.
Nestes casos pode acontecer que à tomada de posse por parte da administração de um imóvel do particular se segue uma actividade administrativa legal. Foi para resolver estas situações, em que tudo aconselhava a manutenção – sob pena de resultarem graves danos para o interesse público – que a jurisprudência francesa criou a figura jurídica da expropriação indirecta.
Nas palavras de André de Laubadére[13], «L’expropriation indirect est un mode três particulier – et du reste très exceptionel – d’acquisition forcée de la propriété imobilière par l’administration. Pour en saisir la signification, il faut preciser qu’il s’agit d’un veritable expédien imagine par la jurisprudence pour résoudre una certaine situation. Cette situation apparaît lorsque ládministration, au cours de une operation administrative reguliére (par exemple une operation de travaux publics) a été amenée à prendre possession irregulierement d’un immeuble privé et que par aillleurs cette prise de possession etant nécessaire au service public…».
7.3.
O princípio da intangibilidade da obra pública:
E é da consideração deste interesse público, ponderado e valorado na expropriação indirecta, que a jurisprudência francesa criou o princípio tradicional da intangibilidade da obra pública.
O princípio da intangibilidade da obra pública – princípio geral do direito das expropriações – traduz-se na manutenção da posse por parte da administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público[14].
Segundo este princípio, devido à importância que apresenta a obra pública para o interesse geral, nem o juiz do tribunal comum, nem o juiz do tribunal administrativo podem ordenar a destruição da obra pública, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização.
O particular fica, assim, impedido de intentar uma acção de restituição da posse do seu bem, tendo de contentar-se com uma indemnização a arbitrar pelo tribunal comum.
E assim, através deste princípio, se convolam autênticos atentados ao direito de propriedade em verdadeiras expropriações, ainda que ilegais.
Antes de mais, e ainda no campo da conceptualização, urge referir que o princípio da intangibilidade das obras públicas é um princípio não escrito.
Daí que, na esteira do Ac. do STA n.º 0853/07, de 16-01-2008, se afirme que, «Num Estado de Direito, assente na soberania popular e no primado da lei (artigo 2º da CRP), os princípios jurídicos não escritos se tenham de inferir a partir das soluções legais e não ao arrepio delas».
Saliente-se que estas figuras da apropriação irregular e da expropriação indirecta são em si mesmas um atentado ao direito fundamental da propriedade privada e, por isso, as mesmas têm sido colocadas em causa pelo TEDH.
Exemplo disso é o Acórdão proferido em 08-03-2006, no caso Guiso-Gallisay vs Italy, onde se refere «The Court futher notes that the constructive expropriation mechanism generally enables the authorities to bypass the rules governing expropriation, with the risk of an unforerseable or arbitrary result for the owners concerned, irrespective of whether the unlawful nature of the situation existed from the outset or subsequently emerges. In any event, constructive expropriation is intended to confirm a de facto situation arising from unlawfulacts committed by the authorities…» -cf. outros Acs. Do TEDH caso Belvedere Alberghiera S.R.L. vs. Ita´lia, de 30-05-2000, caso Rossi and Variale vs. Itália, 03-06-2014.
7.4.
De notar que a jurisprudência e a doutrina francesas criaram este princípio para as situações de apropriação irregular, e não para as situações de via de facto.
Conforme refere Fernando Alves Correia[15], as situações de via de facto e de apropriação irregular distinguem-se pelos seguintes elementos:
a) - Âmbito de aplicação: a apropriação irregular tem uma aplicação restrita ao caso de desapossamento de um imóvel, ao passo que a via de facto engloba não só os atentados à propriedade imobiliária e mobiliária, mas também a qualquer liberdade fundamental;
b) - Fundamentos: a via de facto verifica-se apenas nos casos de ilegalidade grave e patente, ao passo de a apropriação irregular abrange os casos de ilegalidade simples e leve;
c) - Garantias do particular: na apropriação irregular o juiz tem apenas competência para condenar a administração no pagamento de uma indemnização pelos danos directos e indirectos de que foi vítima; na via de facto é possível tomarem-se medidas necessárias para fazer cessar a actuação ilegal da Administração.
A jurisprudência italiana veio entendendo, ao abrigo do instituto da ocupação apropriativa, que a expropriação de facto realizava a extinção do direito privado. Conforme já referido supra, em França, e também no Brasil, foi-se desenvolvendo o conceito de expropriação indirecta, como forma de atingir os mesmos objectivos.
Não obstante, e como refere Oliveira Ascensão[16], as conclusões alcançadas nesses países, são dificilmente importáveis para Portugal, à luz dos princípios constitucionais e legais da expropriação.
Igual afirmação é feita por Fernando Alves Correia[17], ao referir que «as figuras jurídicas da «apropriação irregular», «expropriação indirecta» bem como da «ocupação apropriativa» não podem (…) ser admitidas no nosso direito, pelo que as questões da manutenção da obra pública irregularmente implantada ou da demolição da mesma e da restituição do terreno ao seu proprietário não devem ser decididas com base na aplicação acrítica daquelas teorias ou doutrinas, mas com base na ponderação feita pelo juiz dos interesses coenvolvidos nos casos concretos».
À luz do nosso ordenamento jurídico uma mera situação de facto não pode ser considerada como equivalente a um processo de expropriação.
Perante as hipóteses de via de facto, a protecção do particular é mais enérgica, podendo este recorrer aos meios de defesa da propriedade e da posse previstos no Código Civil, onde se integram a acção directa e a acção de restituição.
Aliás, e como bem refere Oliveira Ascensão (in obra supra citada), em matéria de reforma agrária, a jurisprudência tem acentuado o nenhum valor das ocupações, como actos ilícitos, admitindo sempre a reivindicação pelos titulares esbulhados, não obstante os prédios reunirem as condições objectivas para serem expropriados para fins de reforma agrária.
Neste sentido pode ver-se o importante Acórdão de 16 de Dezembro de 1987, em que o Supremo Tribunal de Justiça, considerando que não existe preceito algum a impor a extinção sistemática do direito de propriedade e que a expropriação não fora realizada, e considerando ainda que as ocupações selvagens são simples situações de facto, julgou procedente a reivindicação.
8.
Enquadrados assim os factos e os conceitos que a situação em apreço convoca, importa reanalisar o pedido de reivindicação formulado pela autora nos presentes autos, e que foi negado pelas instâncias, ao abrigo do referido princípio da intangibilidade da obra pública.
Pretende a autora que lhe seja reconhecida a propriedade do prédio e o réu condenado a desocupar e restituir a parcela que ocupa, destruindo para tal, a suas expensas, a rua e tudo o mais que nele ilicitamente abriu, mandou abrir, construiu ou mandou construir.
Como acima se salientou, o artigo 1311º do Código Civil estatui, no seu n.º 1, que «o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence».
Constitui ónus de alegação e de prova por parte do reivindicante a demonstração de ser o proprietário da coisa reivindicada e que o réu a possui ou detém.
Estes factos – ser a autora titular do direito de propriedade do prédio que identifica e ter o réu ocupado, com a construção de uma rua, uma parcela desse prédio – não são contrariados pelo réu, que antes os admite.
Conforme se refere no acórdão recorrido, a lei reconhece e tutela o direito à propriedade privada. Mas, não obstante reconhecer que o réu «de forma clamorosamente abusiva se apoderou de uma parcela de terreno da autora», e de concluir por uma «inegável violação do direito de propriedade da autora pelo réu», acaba, o acórdão recorrido, por referir que esse reconhecimento «não tem carácter absoluto, permitindo-se o seu sacrifício quando interesses de natureza social ou pública ou exijam».
É exactamente neste ponto, e concordando com todas as referências feitas, que o nosso raciocínio realiza uma inflexão relativamente à fundamentação do acórdão recorrido: é que o sacrifício do direito de propriedade por interesses de natureza social ou pública tem de ser feito, não pela política do facto consumado, ou da via de facto, mas sim pela expropriação!
Com efeito, uma coisa é a Câmara em representação do Município ocupar uma parcela de terreno com vista à execução no mesmo de obras públicas, por si previstas para o local, em satisfação do interesse público, actuando de boa - fé na prossecução desses fins; outra coisa, bem diferente, é o Município proceder à ocupação do solo, sem o proprietário ser «tido ou achado», em actuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade a que está sujeita a Administração. Aqui a ilicitude é manifesta.
A expropriação é o sacrifício imposto ao direito de propriedade pelos interesses de ordem pública ou social. Ou, dito de outro modo: só pela expropriação se pode sacrificar o direito de propriedade em termos de se alterar a titularidade do mesmo, de uma forma impositiva, autoritária, e sempre mediante o pagamento de uma indemnização.
É por se reconhecer um fim social à propriedade que a expropriação está constitucional e legalmente prevista. Aliás, como acima se referiu, o direito de propriedade «não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição possa para ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional[18]».
Não se põe em causa tal entendimento. E, tal como Alves Correia[19], admite-se que «de uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros), das liberdades de uso, fruição e disposição».
Mas, sendo esse mesmo direito de propriedade tutelado como direito fundamental, essas mesmas restrições supra referidas hão-de encontrar apoio na previsão legal e na legalidade do seu procedimento, não se compadecendo com «vias de facto», semelhantes a ocupações a que, outrora, assistimos no nosso país. Ultrapassados os limites do poder jurídico da potestas expropriandi, não mais podemos falar de um poder jurídico, mas sim de um despojo ilegal.
A via de facto – como forma de expropriar «de facto» sem processo de expropriação – não é um dos casos fixados na lei e que permitem, de acordo com o artigo 1308º do Código Civil, que alguém seja privado, no todo ou em parte, da sua propriedade.
É um facto que a propriedade privada pode ser limitada pela função social que a propriedade reveste. Mas essa limitação há-de ser levada a cabo quer por medidas legislativas e administrativas, quer por actos do poder público que ferem o núcleo essencial do direito de propriedade, os chamados actos expropriativos[20].
Num caso em muito semelhante com o dos autos, o Supremo Tribunal Administrativo[21] entendeu que, «numa situação deste tipo, em que a situação ilícita se consubstancia na apropriação por uma entidade pública de bem pertencente a um particular, sem o seu consentimento e sem processo expropriativo, não pode deixar de entender-se que os autores têm direito à restituição do terreno». E baseia o Supremo Tribunal Administrativo tal conclusão na circunstância de o preceituado no artigo 62º, nº 2, da CRP não ser compaginável com expropriações à margem da lei - antes obrigando a que as mesmas, a ser efectuadas, o sejam com base na lei –, bem como a circunstância de a protecção de situações de usurpação da propriedade (designadamente com o conhecimento de se estar a lesar o direito de outrem) reconduzir-se-ia à permissão de privação arbitrária da propriedade, em manifesto conflito com a garantia mínima a que se pode reduzir o direito de propriedade privada.
Sendo certo que o direito de propriedade só pode ser adquirido por «contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação (apenas para as coisas móveis), acessão e demais modos previstos na lei», e não resultando dos autos qualquer facto que tenha como efeito a perda pela autora do seu direito de propriedade, tem de se concluir que não existe qualquer suporte jurídico para afastar a obrigação de restituição do terreno à autora.
E a protecção do interesse público – a que se alude no acórdão recorrido –, e que presumivelmente estaria subjacente à manutenção da parcela de terreno sob o domínio do município, sempre teria de ser obtida através dos meios legalmente admissíveis (expropriação ou contrato) e nunca à margem da lei.
No presente caso, o Município incumpriu todo o conjunto de actos e formalidades previstos do Código das Expropriações e sem os quais não se transfere a propriedade e a posse dos bens para o beneficiário da expropriação. Não há, nem nunca houve, uma expropriação, válida ou inválida. A expropriação é inexistente.
E não só não está demonstrada a verificação dos pressupostos da validade, existência, transferência da posse e da propriedade, bem como nos factos articulados e provados não se encontram factos de onde se possa concluir que o Município ignorava, quando ocupou o terreno, que este tinha dono e que dele só podia tomar posse mediante investidura na posse administrativa ou após adjudicação ou aquisição da propriedade.
De tudo quanto foi dito, poder-nos-íamos, nos autos, deparar com uma de duas situações:
a) - Com uma via de facto ou expropriação de facto;
b) - Ou com uma apropriação irregular, podendo neste caso chamar-se à colação o princípio da intangibilidade da obra pública.
Só que no caso em apreço não podemos falar de apropriação / expropriação irregular, uma vez que não existe qualquer princípio legalidade da expropriação em que nos possamos apoiar, para legitimar a ocupação da parcela da autora. Não existe sequer o acto de declaração de utilidade pública. E, ainda que fosse insuficiente em si mesmo, não existe sequer início de conversações antes do apossamento da propriedade por parte do Município. Antes pelo contrário: o Município apossou-se do terreno sem qualquer título que o legitimasse, sem qualquer iter procedimental de declaração de utilidade pública e apenas quando confrontado pelo proprietário com a ocupação da sua parcela de terreno é que desenvolve diligências que nunca atingiram qualquer patamar de «legalização» da situação de facto criada.
Estamos de facto, e conforme se referiu no acórdão recorrido, perante um apossamento clamorosamente abusivo de uma parcela de terreno por parte do Município.
A ilicitude é manifesta e de boa - fé não podemos falar. Tal como se refere no citado Ac. do STJ de 29-04-2010 (proc. n.º 1857/05.4TBMAI.S1)[22], o Município age na satisfação do objectivo a que se propôs, sem querer saber dos interesses e direito do dono da parcela, não podendo ignorar que os viola.
Mais, carece o Município de título, isto é, de uma causa que constitua modo legítimo de aquisição do direito, o que é evidente face à ausência de processo expropriativo ou de outro acto ou negócio translativo, presumindo-se assim a sua posse de má - fé (presunção essa que não foi ilidida e para cuja elisão não foi trazido aos autos qualquer argumento ou contributo).
E, se assim é, não vemos como negar ao proprietário, no caso à autora, todos os meios à sua disposição para obter a reivindicação da sua propriedade e, como dispõe o artigo 1311º, nº 2 do Código Civil, “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
Aliás a restauração natural está expressamente prevista no artigo 1341º do Código Civil precisamente para situações deste tipo – má - fé – pelo que, na perspectiva legislativa é solução adequada, equilibrada e justa, que toma em linha de conta a acentuada reprovação que merece a conduta de quem, com desrespeito pelos direitos de outrem, se aventura a levar a cabo obras em terrenos alheios.
Só teria sentido falar-se no princípio da intangibilidade da obra pública, a admitir-se que tal princípio seria acolhido na ordem jurídica portuguesa, se se estivesse perante um caso de expropriação irregular, nos termos em que a delineamos supra. Não é esse o caso: mais do que estarmos perante uma expropriação ilegal, estamos perante uma expropriação inexistente, em que não se verifica qualquer início de «legalidade», daí que possamos falar de apropriação grosseira.
Na esteira do que tem vindo a ser dito, o Supremo Tribunal de Justiça[23] refere que este princípio da intangibilidade da obra pública só poderá operar quando tenha havido um princípio de actuação legal expropriativa, e não nos casos de atentado grosseiro ao direito de propriedade.
Naqueles casos – em que existe um princípio de actuação legal expropriativa – o julgador não deverá colocar a Administração numa posição idêntica à de um qualquer particular, mas sim, atendendo ao interesse geral que a obra pública representa, abster-se de ordenar a restituição e limitar-se a conceder ao proprietário uma indemnização pela provação do gozo da coisa, enquanto ela se verificar.
Nos casos em que haja uma usurpação grosseira, um atentado à propriedade imobiliária imbuído de ilegalidade flagrante – como é o caso em que não haja uma declaração de utilidade pública que confira um «início» de cobertura de legalidade – não tem sentido convocar o denominado princípio da intangibilidade da obra pública, justificando-se o reconhecimento do direito de propriedade, a restituição do direito e a manutenção e/ou restituição da posse[24].
É, por isso, natural que a Administração fique colocada numa situação idêntica à do simples particular, privada da posição de supremacia em que se encontraria se estivesse vestida dos seus poderes de autoridade – tal como acontece no acto expropriatório –, reduzindo-se ao estatuto de um sujeito de direito privado[25].
E a justificação para o afastamento de tal princípio é clarividente!
Seguindo de perto os ensinamentos de Marcelo Caetano[26], acto de gestão pública é aquele que é praticado pelos órgãos ou agentes da administração no exercício de um poder público, investido pelo jus imperii, ou seja, no exercício de uma função pública e por causa desse exercício, acto esse regulado por uma lei que confira poderes de autoridade para a prossecução do interesse publico, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito e não subordinados à lei aplicável a qualquer actividade análoga dos particulares; ao passo que acto de gestão privada será igualmente o praticado pelos órgãos ou agentes da administração quando esta, porém, apareça despida do poder público e, portanto, numa posição de paridade com os particulares, sujeita às mesmas regras que vigoram para a hipótese de esse acto ser praticado por eles no desenvolvimento de uma actividade exclusivamente sob a égide do direito privado.
Ou seja: o acto é de gestão pública se praticado no exercício de um poder público; é de gestão privada se praticado no quadro de uma actuação nos termos do direito privado.
Daí que, quando a Administração actue pela via de facto, pela política do facto consumado, sem se fazer revestir da sua autoridade, traduzida na legalidade dos procedimentos utilizados com vista aos seus intuitos, se entenda que deva ficar colocada em posição idêntica à dos particulares, posto ter sido ela própria a despojar-se dos seus poderes de autoridade, que lhe permitiriam impor ao particular, numa posição de superioridade e supremacia, os seus intentos.
9.
Sumariando:
I - A procedência da acção de reivindicação encontra-se sujeita à demonstração cumulativa de três condições: (i) ser o autor titular do direito real de gozo invocado; (ii) o réu ter a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor; e (iii) não provar o réu ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo.
II - O direito de propriedade, consagrado constitucionalmente, bem como na DUDH (artigo 17º), não é garantido em termos absolutos, mas sim, atendendo à sua função social, dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da CRP.
III - A expropriação é um instituto de direito público, sujeito, não obstante, a vários limites que funcionam como seus pressupostos, de tal forma que só dentro desses limites é que aquele poder expropriativo se pode entender como jurídico.
IV - A figura da «via de facto» – oriunda da teoria geral do direito administrativo – caracteriza-se pelo ataque grosseiro à propriedade de um particular, por meio de factos, à margem de qualquer processo legal; por seu turno, a «apropriação irregular e / ou expropriação indirecta» caracteriza-se pela tomada de posse, por parte da administração, de um bem imóvel de um particular, com base num título que enferma de uma ilegalidade, não de uma ilegalidade grave e grosseira, mas de uma ilegalidade simples e leve.
V - Foi da consideração do interesse público, ponderado e valorado na expropriação indirecta, que a jurisprudência francesa criou o «princípio da intangibilidade da obra pública» – princípio geral do direito das expropriações –, e que traduz a ideia de manutenção da posse por parte da administração, apesar de esta assentar num título ilegal, e desde que não represente um atentado grosseiro ao direito de propriedade, por forma a não resultarem danos graves para o interesse público.
VI - Uma coisa é o Município ocupar uma parcela de terreno com vista à execução no mesmo de obras públicas, por si previstas para o local, em satisfação do interesse público e actuando de boa - fé; outra, completamente distinta, é o Município proceder à ocupação do solo, sem o proprietário ser «tido ou achado», em actuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade.
VII - Nos casos, como o dos autos, em que haja uma usurpação grosseira, um atentado à propriedade imbuído de ilegalidade flagrante, não tem sentido convocar o denominado «princípio da intangibilidade da obra pública», justificando-se o reconhecimento do direito de propriedade e a manutenção e/ou restituição da posse da parcela de terreno ocupada.
VIII - Quando a administração actue pela «via de facto», pela política do facto consumado, sem se fazer revestir da sua autoridade – traduzida na legalidade dos procedimentos utilizados com vista aos seus intuitos –, não se justifica colocá-la numa situação de superioridade ou supremacia, mas antes numa posição idêntica à de qualquer particular, visto ter sido ela própria a despojar-se desses seus poderes e prerrogativas que lhe permitiriam impor-se a este.
10.
Pelo que se deixa exposto, concedendo a revista, revoga-se o acórdão recorrido e, consequentemente, julgando-se a acção provada e procedente, reconhece-se a Autora como única dona e legítima proprietária do prédio rústico acima identificado, condenando-se o Réu a proceder à desocupação e consequente restituição à Autora / Recorrente da parcela de terreno que vem ocupando, repondo-a no estado em que se encontrava à data da ocupação.
Custas em todas as instâncias pelo Réu.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2015
Manuel F. Granja da Fonseca
António Silva Gonçalves
Fernanda Isabel Pereira
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[1] Direitos Reais, página 669.
[2] Autor e obra citada, página 483. Ver, também, Oliveira Ascensão, Reais, página 418 e seguintes.
[3] Neste sentido ver «Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações», José Oliveira Ascensão, INCM, página 206-207.
[4] Vide A. Santos Justo, citando Oliveira Ascensão e Fernando Alves Correia, Direitos Reais, 4ª Edição, página 235.
[5] Vide A. Santos Justo, citando Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro e Fernando Alves Correia, Direitos Reais, 4ª Edição, página 235.
[6] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada; Volume I, 4ª Edição, página 801.
[7] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada; Volume I, 4ª Edição, página 807.
[8]The Second Treatise of Government, capítulo IX.
[9] Neste sentido, «As garantias do particular na expropriação por utilidade pública», Fernando Alves Correia, Coimbra, 1982, página 171.
[10]Obra citada, página 172.
[11]Traité de Droit Administratif, Volume I, 7ª edição, Paris 1976, páginas 473 a 479.
[12] Neste sentido, Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, volume II, página 353.
[13] Traité de Droit Administratif, página 271.
[14] Neste sentido ver Ac. STJ de 29-04-2010, Processo n.º 1857/05.4TBMAI.S1, Relator Cons. Alves Velho.
[15] Obra Citada, página 175.
[16] Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, INCM, páginas 47 e seguintes.
[17] Manual do Direito do Urbanismo, volume II, página 363.
[18] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição, Coimbra, 2007, página 801)
[19] Manual do Direito do Urbanismo», volume II, 4ª edição, Coimbra 2008, páginas 807-808.
[20] Neste sentido ver Raquel Filipa da Silva Ferreira, in «A justa indemnização no contexto da expropriação de terrenos» - Universidade Lusófona do Porto – Faculdade de Direito, Porto, 2012, páginas 268 e seguintes.
[21] Acórdão de 16-01-2008, Processo n.º 0853/07, Relator Jorge Manuel Lopes de Sousa.
[22] Relator Conselheiro Alves Velho.
[23] Ac. do STJ de 29-04-2010, Proc. nº 1857/05.4TBMAI.S1, Relator Conselheiro Alves Velho.
[24] Ver, neste sentido, Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, volume II, página 357.
[25] Neste sentido Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, Volume II, página 357, em que cita A. de Laubadère, C. Venezia e Y. Gaudemet, «Traité de Droit Administratif», Tome I, 14ª edição, 1996, páginas 410-416).
[26] Manual de Direito Administrativo II, Edição Brasileira, páginas 1131 e seguintes.