COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
DETENÇÃO
EXTRADIÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
HABEAS CORPUS
IRREGULARIDADE
NULIDADE
PRAZO
Sumário

I - O requerente do pedido de habeas corpus foi detido por uma autoridade de polícia criminal a partir da informação da Interpol de que era procurado por autoridade judiciária estrangeira para efeito de procedimento criminal.
II - Como esta situação está prevista nos arts. 39.º e 64.º da Lei 144/99, de 31-08, a detenção pode durar até 40 dias, se a autoridade estrangeira informar que irá formular o pedido de extradição, nos termos dos n.ºs 2 e 3 deste último preceito.
III -Nestes casos, o Estado que pretende a extradição não conhece a localização da pessoa procurada, só vindo a tomar conhecimento desse facto quando lhe é comunicada a detenção, nos termos do n.º 2 do art. 64.º da Lei 144/99, de 31-08. Por isso, porque ainda não estabeleceu comunicação com o Estado da detenção, a aplicação do prazo de 40 dias depende apenas da informação de que vai formular o pedido de extradição.
IV -O despacho que decidiu o prolongamento da detenção não sofre de falta de fundamentação quando remete expressamente para os fundamentos constantes da promoção do MP.
V - Aliás, a eventual falta de fundamentação desse despacho não integra qualquer dos fundamentos de habeas corpus, já que o vício, a existir, constituiria uma irregularidade, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 118.º do CPP, que teria de ser arguida perante a Relação, nos termos e no prazo previsto pelo n.º 1 do art. 123.º do mesmo código, sob pena de sanação.

Texto Integral






Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, representado por advogado, requereu a providência de habeas corpus, nos termos que se transcrevem:
«1. O cidadão em causa foi detido no pretérito dia 18 de Fevereiro, em virtude da existência e pendência de um Mandado de Detenção Internacional emitido pelas Autoridades Judiciais da República do Brasil.
2. O processo judicial que se encontra na base da emissão do Mandado de Detenção reporta-se ao ano de 2008 e tem o N° 2010/30764-1 a tramitar no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, 1ª Vara Federal e Juizado Especial Federal Criminal (Brasil).
3. Tramitam ou tramitaram tais autos, com fatos que o arguido desconhece em absoluto, até porque não foi dado cumprimento, até ao momento, não obstante a pretensão exposta de que se pretende a extradição, ao preceituado no artigo 44° da Lei n° 144/99 de 31 de Agosto.
4. Da mesma forma, e não obstante aquela já referida pretensão também não foi dado cumprimento ao artigo 38° n° 3 do mesmo diploma legal, pois o requerente encontra-se na ignorância completa dos fatos, sabendo apenas que o ilícito será de tráfico de estupefacientes.
5. Na verdade o requerente encontra-se sujeito à medida de coação mais gravosa, a prisão preventiva, estando decorridos mais de 18 dias, prazo fixado no n° 5 do artigo 38° do citado diploma, sendo sua única certeza de que a extradição é pretendida e que o Estado requerente solicitou prolongamento do prazo para 40 dias, no sentido de fundamentar a sua pretensão.
6. Contudo, tal pedido, e consequente deferimento, não evidenciam as melhores certezas jurídicas.
7. O despacho é, no entender do requente, manifestamente ilegal, por assim o ser o pedido de prolongamento do prazo, totalmente insustentável.
Vejamos,
8. O processo-crime que existirá no Brasil remonta ao ano de 2008.
9. O arguido esteve já detido provisoriamente na Suíça, em Dezembro pretérito, ao abrigo do mesmo mandado de detenção internacional.
10. Foi concedido o prazo de 12 dias para que o Estado requerente da extradição fundamentasse o pedido convenientemente.
11. A República do Brasil nada remeteu às autoridades judicias na Suíça,
12. e findo o prazo referido em 10° foi o requerente restituído à liberdade.
13. Note que desde 2008 até Dezembro pretérito não conseguiram as autoridades reunir elementos necessários à instrução do pedido… o que será, no mínimo, de pasmar!
14. Volta agora o arguido a ser detido provisoriamente e, pasme-se, novamente, voltam as autoridades judiciais brasileiras a não ter preparado qualquer elemento que possa fundamentar o seu pedido de extradição.
15. Decorreram 6 anos e as autoridades brasileiras não diligenciaram no sentido de ter o pedido de extradição devidamente fundamentado, como exige o Diploma legal já referido.
16. Antes, requerem a concessão de prolongamento até ao 40° dia de detenção provisória.
17. Com o devido e maior respeito não se pode acolher e aceitar esta morosidade que, aliás, terá que ser qualificada como injustificável.
18. Acresce que determina o n° 5 do citado artigo 38° que: “A detenção provisória cessa se o pedido de extradição não for recebido no prazo de 18 dias a contar da mesma, podendo, no entanto, prolongar-se até 40 dias se razões atendíveis, invocadas pelo Estado, requerente, o justificarem“.
19. Note-se que o prolongamento do pedido de extradição apenas poderá ocorrer, atento o texto da lei, se foram apresentadas razões atendíveis.
20. Na presente situação, não foram apresentadas quaisquer razões atendíveis, e diga-se, justificadas, para que no prazo de 18 dias, não fosse apresentado qualquer fundamento válido para um pedido de extradição do requerente.
21. Não se compreende, assim, qualquer pedido de prolongamento elaborado pelo Estado Brasileiro, tão pouco o mesmo é justificado ou justificável atento o ano do processo ao abrigo do qual é emitido o MDI e bem assim à circunstância do requerente da presente providência ter já sido detido, ao abrigo do mesmo Mandado, e nunca ter sido apresentada, nem em tempo útil, nem noutro, quaisquer fundamentos legais.
22. Na verdade, o despacho que defere o pedido de prolongamento realizado, não se encontra devidamente fundamentado, pelo que o mesmo será ilegal, e em consequência ilegal será a situação de reclusão do Requerente.
23. Por razões atendíveis, como parece exigir o preceito legal supra transcrito, não pode ser entendido qualquer fundamento, muito menos o apresentado.
24. Estamos em crer que a comunicação a que alude o artigo 64° n° 2 conteve a informação concreta dos prazos a que alude o n° 3 do artigo 38° pelo que, qualquer delonga espectável deveria ser arrazoada por motivos atendíveis, e tais motivos comunicados ao nosso Estado.
25. Não se podem bastar os nossos Tribunais com o simples pedido de prorrogação e com a informação da pretensão de apresentar um pedido de extradição.
26. Note-se que o requerente já passou pelo mesmo processo na Suíça, em Dezembro pretérito.
27. A imediata comunicação da sua detenção em Portugal, e o tempo decorrido dos autos que tramitaram no Brasil (desde 2008) se compadece com qualquer delonga na fundamentação de um pedido de extradição.
28. E como já se disse nem tal delonga tem qualquer justificação.
29. Por duas vezes, em Portugal com presente processo, e na Suíça, ao abrigo do mesmo MDI, o Estado Brasileiro nunca cumpriu com os prazos legais de apresentação dos pedido de extradição.
30. De forma analógica, encontra-se a ser violado o Princípio Non bis in Idem, pois o mesmo cidadão, pelo mesmo MDI, foi detido provisoriamente, e nunca as autoridades Brasileiras, no prazo de 18 dias, elaboraram convenientemente, e de forma fundamentada, qualquer pedido de extradição, não obstante terem manifestado o firme propósito de o fazer.
31. O despacho que defere o prolongamento da apresentação encontra-se, assim e no nosso modesto entender, ferido de ilegalidade, porque não fundamenta os reais motivos do prolongamento do prazo para apresentação do pedido de extradição e bem assim, tal pedido de igual forma não contem quaisquer motivos atendíveis que justifiquem o prolongamento desse mesmo prazo de 18 dias.
32. Assim, afigura-se ser a prisão do requerente ilegal, nos termos do artigo 222° n° 2 al. b) do C.P.P.
33. Renova-se aqui, e em síntese, que a prisão do arguido encontra-se a decorrer por motivos que a lei não permite, uma vez que o prolongamento concedido apenas deveria ter lugar, mediante a apresentação de motivos atendíveis que, a existir (o que não se concede), não foram dados a conhecer.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vs. Exas., egrégios Conselheiros, douta e sabiam ente suprirão, deve a presente providência de Habeas Corpus ser deferida e, em consequência, ser o requerente restituído à liberdade, nos termos do artigo 223° n° 4 al. d) do C.P.P.».



O desembargador relator do processo, ao abrigo do artº 223º do CPP, informou que
-o requerente foi detido em 18/02/2015 e sujeito a interrogatório judicial em 20/02/2015;
-foi prorrogado o prazo de detenção por despacho de 09/03/2015.


Realizada a audiência, cumpre decidir.


Fundamentação:
De facto:
1. Havendo informação veiculada pela Interpol de que o requerente era procurado por autoridade judiciária do Brasil, para efeito de procedimento criminal pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, um agente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras procedeu à sua detenção em 18/02/2015.
2. Em 20/02/2015, na Relação de Lisboa, o relator do processo procedeu à audição do requerente e determinou que este aguardasse na situação de detenção os ulteriores termos do processo.
3. Através da Procuradoria-Geral da República foi trazida ao processo informação no sentido de que as autoridades brasileiras vão apresentar pedido de extradição.
4. No seguimento dessa informação, o MP junto da Relação promoveu e o desembargador relator decidiu que o prazo máximo de detenção passa a ser de 40 dias.

De direito:
Nos termos do nº 2 do artº 222º do Código de Processo Penal, o pedido de habeas corpus, relativamente a pessoa presa ou em situação equiparada, tem de fundar-se em ilegalidade da privação da liberdade proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».
O requerente invoca o fundamento da alínea b).
Nesse sentido alega que, nos termos do nº 5 do artº 38º da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, a sua detenção não pode prolongar-se para além de 18 dias, que já decorreram, não sendo de aplicar o prazo alargado de 40 dias aí previsto, na medida em que o Estado requerente não invocou razões atendíveis que o justifiquem.
Afirma também que o despacho onde se decidiu que o prazo máximo de detenção é de 40 dias, não indicando os motivos do prolongamento, padece de falta de fundamentação, sendo ilegal e gerando, em consequência, a ilegalidade da detenção.
Diz ainda que, por ordem emanada do mesmo processo que contra ele corre termos no Brasil, esteve detido provisoriamente na Suíça durante 12 dias, findos os quais foi restituído à liberdade, em virtude de aquele país não haver nesse período fundamentado convenientemente o pedido, pelo que, “de forma analógica” estaria “violado o princípio non bis in idem”.
Mas, em primeiro lugar, a situação em análise não é a de detenção provisória regulada no artº 38º da Lei nº 144/99. Essa detenção é ordenada pelo juiz relator do Tribunal da Relação competente a pedido do Estado que pretende a extradição, como logo se vê dos artºs 38º e 62º, nº 1.
E não é esse o caso, pois o requerente foi detido por uma autoridade de polícia criminal a partir de informação da Interpol de que era procurado por autoridade judiciária brasileira para efeito de procedimento criminal. A situação que se verifica é, assim, a prevista nos artºs 39º e 64º do mesmo diploma. Ora, nos termos dos nºs 2 e 3 deste último preceito a detenção pode durar até 40 dias, se a autoridade estrangeira informar que irá formular o pedido de extradição. E, como se viu, existe no processo informação nesse sentido. Não era, pois, exigível à autoridade brasileira outro procedimento para o prazo máximo de detenção passar a ser de 40 dias.
A diferença de regimes parece justificada. No primeiro caso, o Estado requerente tem dados sobre o país onde se encontra o extraditando, pois pede-lhe a sua detenção como acto prévio do pedido formal de extradição. Estando o Estado requerente de posse desses dados e tendo já estabelecido comunicação com o Estado onde se encontra o extraditando, ser-lhe-á exigível que formule o pedido de extradição no prazo curto de 18 dias, a menos que apresente razões atendíveis que tornem necessário para o efeito um prazo mais longo. No segundo caso, o Estado que pretende a extradição não conhece a localização da pessoa procurada, só vindo a tomar conhecimento desse facto quando lhe é comunicada a detenção, nos termos do nº 2 daquele artº 64º. Por isso e porque ainda não estabeleceu comunicação com o Estado da detenção, a aplicação do prazo de 40 dias depende apenas da informação de que vai formular o pedido de extradição.
Em segundo lugar, o despacho que decidiu o prolongamento da detenção não sofre de falta de fundamentação, visto remeter expressamente para os fundamentos constantes da promoção nesse sentido do MP, a qual se baseia no facto de a autoridade brasileira “confirmar que vai apresentar o pedido de extradição no prazo de 40 dias”, mencionando o citado artº 64º.
De qualquer modo, a eventual falta de fundamentação desse despacho não integraria qualquer dos apontados fundamentos de habeas corpus. O vício, a existir, não estando previsto na lei como nulidade, constituiria, nos termos do artº 118º, nºs 1 e 2, do CPP, uma irregularidade, que teria de ser arguida perante a Relação, nos termos e prazo previstos no artº 123º, nº 1, do mesmo código, sob pena de sanação.
Em terceiro lugar, a alegação de anterior detenção provisória na Suíça por ordem provinda do mesmo processo que corre termos no Brasil não encontra suporte em qualquer elemento constante destes autos, o que prejudica a possibilidade de tirar daí quaisquer consequências.
Ainda que assim não fosse, não violaria qualquer norma ou princípio esta nova detenção. Uma medida de coacção a que se pôs termo pode ser «de novo aplicada, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação», como resulta do artº 212º, nº 2, do CPP.
Ainda que disso não tire consequências, o requerente critica o facto de não haver ainda sido dado cumprimento ao disposto no artº 44º da Lei nº 144/99. Mas sem fundamento, visto que esse preceito se refere aos elementos que devem constar do pedido de extradição, e no caso ainda se aguarda a apresentação desse documento.
Não é, assim, fundado o pedido de habeas corpus.


Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a petição de habeas corpus, por falta de fundamento bastante.
Condena-se o requerente a pagar as custas, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 19/03/2015

Manuel Braz (Relator)
Isabel São Marcos
Santos Carvalho