CAUÇÃO CARCERÁRIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Sumário

É contraditório optar por uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução e considerar que se mantêm os pressupostos que justificam a imposição de uma caução carcerária.

Texto Integral

Proc. nº 1/00.9TELSB-CD.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B…… vem interpor recurso do douto despacho do Juiz 1 do Juízo de Instância Criminal de Ovar (Comarca do Baixo Vouga) que indeferiu o seu requerimento de levantamento da caução carcerária por si prestada.
Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«a) O artigo 214° nº4 foi inserido no C.P.P. na revisão de 1998;
b) Fazer uma aplicação do nº4 a uma situação de suspensão de pena é ir ainda mais longe do que o legislador foi e quis ir;
c) Ademais, a suspensão da execução de uma pena tem regime próprio estabelecido no artigo 56°, nº1, do Código de Penal:
d) Em causa está a interpretação normativa da disposição consagrada no nº4 do art°214° do CPP, com o seguinte teor: «Se a medida de coação for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena»;
e) Em nosso entendimento a previsão da citada norma apenas é aplicável às penas de prisão efectivas e não é extensível à suspensão da execução da pena de prisão;
f) Como é sabido, a caução, prevista no art°197° do Código de Processo Penal, é uma medida de coação que consiste na garantia patrimonial imposta ao arguido para prevenir o cumprimento dos seus deveres processuais, em termos que do incumprimento desses deveres resulta a quebra da caução, revertendo o seu valor para o Estado;
g) Inclusivamente o nº3 do Art°197° do CPP refere que: «3- Na fixação do montante da caução tomam-se em conta os fins de natureza cautelar a que se destina .... e a condição sócio-económica do arguido.»;
h) A caução, como mediada de coação foi aplicada ao arguido no início do processo e não com as finalidade prevista no Art° 227° do CPP e nem sequer teve lugar a qualquer reforço nos termos do Art° 207°, por não existirem circunstâncias que a tornassem insuficiente;
i) O nº4 do citado art°227° do CPP refere que a caução económica se mantém distinta e autónoma relativamente á caução referida no Art°197° do CPP;
j) Com a revisão do Código de Processo Penal, operada pela Lei nº 59/98, e 25-05, foi aditado ao artigo 214° um novo número (4), com a redacção já acima citada, o qual não sofre alteração com a reforma da Lei 48/2007,29-08;
k) Segundo o Prof. Maia Gonçalves in Código Processo Penal, Anotado 1999-11ª edição, pág. 445, «Ficou agora bem esclarecido que a condenação condicional, ou seja em pena cuja execução ficou suspensa, logo que transitada, dá lugar à extinção das medidas de coação
I) Referindo-se ainda à suspensão da execução da prisão no nosso ordenamento jurídico-penal, na vigência da versão original do Código Penal de 1982, acentua Figueiredo Dias que a suspensão da execução da pena «não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena autónoma e portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição.»;
m) Sendo a suspensão da execução da pena uma pena autónoma, não deixaria o legislador, se a pretendesse contemplar, nos termos e para os efeitos em debate, de se lhe referir no nº4 do artigo 214° do CPP;
n) ln casu , poder-se-á interpretar que, o legislador ao se referir: « ... o arguido vier a ser condenado em prisão» se referia a prisão efectiva e nesse caso, a caução, extingue-se com o início da execução da pena;
o) O que já não acontece, se tratando de pena suspensa na sua execução, a que o legislador não alude, uma vez que se trata de uma pena autónoma, em que o inicio da sua execução fica suspenso e neste caso a caução por exclusão de partes, terá de se interpretar que, se extingue de imediato, precisamente no início da suspensão;
p) Porque a pena in casu que prevalece, decorrente da condenação, é a suspensão da execução da pena de prisão, e não pena de prisão (efectiva), não subsiste impedimento legal, mormente o invocado no despacho recorrido, que obste à entrega ao condenado B….. da caução por este prestada no Âmbito dos presentes autos.
q) Face a tudo o atrás exposto encontra-se então já extinta a medida de coacção, devendo o valor caucionado ser restituído.»
Da resposta a tal motivação apresentada pelo Ministério Público constam as seguintes conclusões:
«1.º No caso “sub judice”, a única questão que importa decidir é a de saber se deve ser julgada extinta a caução carcerária de € 149.639,37 que o recorrente prestou nos autos através de garantia bancária, em 27/09/2001, e julgada validamente prestada por despacho judicial de 02/10/2011, transitado em julgado.
2.º O recorrente B…… foi condenado por Acórdão das Relação do Porto de 13 de Julho de 2005, transitado em julgado, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art.º 23.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Dec-Lei 20-A/90, de 15/01, com as alterações introduzidas pelo Dec- Lei n.º 394/93, de 24/11, e ainda não iniciou o cumprimento dessa pena.
3.º Entretanto requereu a reabertura da audiência ao abrigo do disposto no art.º 371.º -A), do CPP, e na sequência dessa reabertura, em 25 de Novembro de 2011 foi proferido douto Acórdão que suspendeu a execução da referida pena de prisão pelo período de 3 anos e 6 meses, com Regime de Prova, mediante Plano a elaborar pela DGRS, e condicionada ao pagamento à Fazenda Nacional e ao Centro de Acção Social S. Vicente Pereira, da quantia de € 3.000,00, na proporção de 80% para a primeira, e de 20% para este.
4.º Sucede que este Acórdão (de 25/11/2011) não transitou em julgado – em virtude de ter sido objecto de Recurso do Ministério Público, interposto em 15/12/2011 para o Tribunal da Relação do Porto, e em que se pugna pela revogação da referida decisão de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao ora recorrente.
5.º Por isso, em bom rigor – e contrariamente à tese do recorrente - não se pode considerar que a condenação que prevalece é a da suspensão da execução da referida pena de prisão – mas antes a primeira, que o condenou em prisão efectiva, com trânsito em julgado.
6.º Por isso, e salvo o devido respeito, não tem aqui aplicação a jurisprudência do Acórdão da Relação de Coimbra de 27/10/2010 (in www.dgsi.pt), invocada pelo recorrente, pois aquele versou sobre um caso diverso – em que a arguida tinha sido condenada por decisão já transitada em julgado numa pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.
7.º Segundo o art.º 214.º, n.º1, al. e), e n.º 4 do C.P.P., as medidas de coacção extinguem-se de imediato «com o trânsito em julgado da sentença condenatória» mas, tratando-se de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão «aquela só se extingue com o início da execução da pena».
8.º No caso “sub judice” é manifesto que a única decisão que transitou em julgado foi a proferida em 13 de Julho de 2005 – citado Acórdão da Relação do Porto, que condenou o ora recorrente na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva - e o arguido B…… ainda não iniciou o cumprimento dessa pena.
9.º Por isso, e salvo o devido respeito, não há fundamento legal para julgar extinta a caução prestada pelo recorrente – e muito menos para ordenar a «restituição do valor caucionado», pois a caução de € 149,639,37 foi prestada através de garantia bancária.
10.º O douto despacho recorrrido fez correcta interpretação e aplicação do disposto no art.º 214.º, n.º1, al. e), e n.º 4, do C.P.P., e não violou qualquer preceito legal.»
O Meritíssimo Juiz a quo sustentou o douto despacho recorrido.
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, reiterando a posição assumida pelo Ministério Público junto do tribunal de primeira instância.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deve ser levantada a caução carcerária prestada pelo arguido e recorrente, por o mesmo ter sido condenado em pena de prisão cuja execução foi suspensa na sua execução.

III - É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:
«Ao arguido B….. foi imposta medida de coacção de caução no montante de 30 000,00€.
Por requerimento de 27/09/2001 veio o Arguido apresentar garantia bancária para aquele efeito.
Tal garantia foi julgada idónea.
Após várias vicissitudes processuais o Arguido foi condenado em pena de prisão de três anos e seis meses, suspensa na sua execução com regime de prova e condicionada ao pagamento à Fazenda Nacional e ao Centro de Acção Social de S. Vicente de Pereira da quantia de 3 000,00€, na proporção de 80% para a primeira e 20% para o segundo.
A 12/12/2011 o Arguido veio requerer o levantamento de tal caução, tendo por base a prolação da apontada decisão condenatória.
O Ministério Público opôs-se invocando para o efeito o disposto no artigo 214º, nº4, do CPP.
Nos termos do referido preceito legal: «se a medida de coacção for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena».
Como bem salienta Albuquerque, Paulo Pinto, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da república e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª Ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 3ª Ed., pág. 592: «a Lei nº 59/98, de 25/8, consagrou uma anomalia: a caução subsiste mesmo depois do trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, até ao início da execução da pena. O propósito é o de permitir a declaração de quebra da caução se o arguido se furtar ao cumprimento da pena, tendo-se entendido em 1998 que a declaração de contumácia do arguido era insuficiente».
Assim, no caso vertente, caso a pena inicialmente imposta por via da decisão condenatória do Venerando Tribunal da Relação do Porto tivesse sido executada este Tribunal decretaria o levantamento da dita caução.
Contudo, atenta a decisão proferida na sequência da reabertura da audiência o Requerente foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução e condicionada a pagamentos e a regime de prova.
Vale por dizer que o que está em apreço é a interpretação normativa do artigo 214º, nº4, do CPP, visto que ao Arguido foi aplicada pena de prisão suspensa na sua execução e sendo certo que o referido Acórdão condenatório, neste momento, encontra-se sindicado por recurso interposto pelo Ministério Público.
Em tese, e sem considerar o facto de o Acórdão proferido nos autos ainda não ter transitado em julgado, a favor da pretensão do Arguido milita a tese enunciada no Acórdão da Rel. de Coimbra de 27/10/2010, Des. Alberto Mira, no Proc. 568/03.0TAACB-A.C1, em que: «sendo a suspensão da execução da pena uma pena autónoma, não deixaria o legislador, se a pretendesse contemplar, nos termos e para os efeitos em debate, de se lhe referir no nº4 do artigo 214º, do Código de Processo Penal; por que a pena que in casu prevalece, decorrente da condenação, é a suspensão da execução da pena de prisão, e não pena de prisão (efectiva), não subsiste impedimento legal, mormente o invocado no despacho recorrido, que obste à entrega à condenada M… da caução por esta prestada no âmbito dos presentes autos».
Já contra a pretensão do Arguido esgrime-se a tese elencada no Acórdão da Rel. de Évora de 18/11/2010, Des. João de Sousa, no Proc. 583/03.3JAFAR.E1, em que: «a intenção do nº4 do artigo 214º do Código Penal é clara, a de permitir a quebra de caução se o arguido não iniciar o cumprimento da pena, na prática a afirmação no campo penal da regra geral do instituto da caução, a de garantia para o cumprimento de uma obrigação. E como se pode afirmar a regra do “cumprimento da pena de prisão determinada na sentença como consequência do incumprimento da pena de substituição” só o incumprimento da pena de substituição leva ao início do cumprimento da pena principal imposta na sentença, assim como o cumprimento da pena de substituição leva à extinção da pena principal (artigo 57º do Código Penal).» Daí que haverá que acautelar a possibilidade de cumprimento da pena imposta e substituída, no caso de o Tribunal ter que operar o disposto no artigo 56º, nº2, do Código Penal.
Pelo exposto, e dando especial enfoque na possibilidade prevista no artigo 56º, nº2, do Código Penal, em conjugação com o facto de o Acórdão proferido nos autos ainda não ter transitado em julgado (e não se colocando em questão o trânsito em julgado do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto. Pois que o mesmo aplicou pena de prisão efectiva, embora, obviamente, não iniciada ante o mecanismo de reabertura da audiência, que culminou na pena de prisão suspensa aplicada ao Arguido Recorrente. Isto porque a considerar o trânsito em julgado da decisão do Tribunal da Relação do Porto, também o Arguido não poderia ver o vencimento da sua pretensão, atento o exposto no artigo 214º, nº4, do CPP), indefere-se a pretensão do Arguido.
Sem taxa de justiça excepcional.
Notifique.»

IV – Cumpre decidir.
Há que considerar o seguinte.
O arguido e recorrente prestou, em 27 de setembro 2001, a caução carcerária de € 149.639,37, por garantia bancária.
Foi condenado por acórdão da Relação do Porto de 13 de Julho de 2005, transitado em julgado, na pena de três anos e seis meses de prisão efectiva, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art.º 23.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto - Lei n.º 394/93, de 24 de novembro, e não chegou a iniciar o cumprimento dessa pena.
Entretanto, requereu a reabertura da audiência ao abrigo do disposto no artigo 371.º -A), do Código de Processo Penal e na sequência dessa reabertura, em 25 de novembro de 2011, foi proferido acórdão que suspendeu a execução da referida pena de prisão pelo período de três anos e seis meses, com regime de prova, mediante plano a elaborar pela D.G.R.S., e condicionada ao pagamento à Fazenda Nacional e ao Centro de Acção Social S. Vicente Pereira, da quantia de € 3.000,00, na proporção de 80% para a primeira, e de 20% para este.
Este último acórdão não transitou em julgado, por ter sido objeto de recurso do Ministério Público, em que se pugna pela revogação da referida decisão de suspensão da execução de pena de prisão.
Vem o recorrente alegar que deve ser levantada a referida caução carcerária por ter sido condenado em pena de prisão cuja execução foi suspensa. Invoca o disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 214º do Código de Processo Penal («As medidas de coação extinguem-se de imediato com o trânsito em julgado da condenação») e alega que não tem aplicação ao caso de suspensão de execução da pena de prisão (mas apenas ao caso de condenação em prisão efetiva) o disposto no nº 4 mesmo artigo («Se a medida de coação for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena »).
E invoca, neste sentido, a tese seguida no douto acórdão da Relação de Coimbra de 27 de outubro de 2010, Proc. nº 568/03.0TAACB-A.C1, relatado por Alberto Mira, in www.dgsi.pt. Neste se afirma, em síntese: «O espírito do legislador, evidenciado pela estrutura gramatical do nº 4 do artº 214º do CPP, sistematização e teleologia das penas (principais e de substituição) previstas no nosso sistema jurídico-penal (cfr. artigos 41.º e ss.), aponta inequivocamente no sentido de a condenação em prisão se reportar a pena de prisão efectiva aplicada por sentença transitada em julgado»; «Sendo a suspensão da execução da pena uma pena autónoma, não deixaria o legislador, se a pretendesse contemplar, de se lhe referir no n.º 4 do artigo 214.º do Código de Processo Penal».
Em sentido contrário, pronuncia-se o douto acórdão da Relação de Évora de 18 de novembro de 2011, Proc. nº 583/03.3JAFAR.E1, relatado por João de Sousa, in www.dgsi.pt. Neste se afirma, em síntese: «A intenção do nº 4 do artigo 214º do Código Penal é clara, a de permitir a quebra de caução se o arguido não iniciar o cumprimento da pena, na prática a afirmação no campo penal da regra geral do instituto da caução, a de garantia para o cumprimento de uma obrigação. E como se pode afirmar a regra do “cumprimento da pena de prisão determinada na sentença como consequência do incumprimento da pena de substituição”, só o incumprimento da pena de substituição leva ao início do cumprimento da pena principal imposta na sentença, assim como o cumprimento da pena de substituição leva à extinção da pena principal (artigo 57º Código Penal).»; «E haverá que acautelar a possibilidade de cumprimento da pena imposta e substituída, no caso de o tribunal ter que operar o disposto no artigo 56º, nº 2 do Código Penal.».
O douto despacho recorrido e a contra-motivação do Ministério Público entendem que, de qualquer modo, ainda que se perfilhe a primeira destas teses, nunca a pretensão do recorrente poderia proceder, à luz do que dispõe a citada alínea e) do nº 1 do artigo 214º do Código de Processo Penal, antes do trânsito em julgado (que no caso não se verifica) da decisão de condenação do arguido em pena de prisão suspensa na sua execução.
Vejamos.
Afigura-se-nos de perfilhar a tese seguida no douto acórdão da Relação de Coimbra e acima mencionado, pelas razões seguintes.
Como aí se salienta, a pena de prisão suspensa na sua execução tem a sua autonomia e especificidade em relação à pena de prisão efetiva e nada indica que tenha sido intenção do legislador equiparar ambas quanto ao regime em apreço.
As medidas de coação destinam-se a assegurar exigências cautelares relativas ao cumprimento de deveres processuais, não a execução de penas, e não subsistem, por isso, em regra, para além do trânsito em julgado da condenação. Excecionalmente (Paulo Pinto de Albuquerque, como acima se refere, fala. a este respeito, em “anomalia”), a caução subsiste para além do trânsito em julgado da condenação em pena de prisão efetiva e garante o cumprimento desta pena até ao início da sua execução (que, normalmente, se seguirá de imediato ao trânsito em julgado da condenação), Mas pretender que essa garantia se estenda a todo o período da suspensão de uma pena de prisão (que pode ser de vários anos) para garantir o cumprimento da prisão efetiva que resulte da revogação desse suspensão (uma simples eventualidade) é substancialmente diferente, é alargar significativamente um regime excecional que desvirtua a função das medidas de coação, sendo que nada indica que tenha sido essa a intenção do legislador.
A pena de prisão suspensa, o seu cumprimento, as garantias de cumprimento de deveres que lhe estejam associados, e a sua revogação, têm o seu regime próprio, que decorre dos artigos 50º a 57º do Código Penal e 492º a 495º do Código de Processo Penal. Desse regime não consta (nem a ele se adequa) a eventualidade de imposição de caução carcerária como garantia de efetivo cumprimento de deveres que condicionem a suspensão de execução da prisão, ou da pena de prisão efetiva resultante da eventual revogação dessa suspensão.
E a razão da inadequação entre o regime da suspensão da execução da pena e a imposição de caução carcerária durante o período dessa suspensão decorre dos próprios pressupostos dessa pena e dessa medida de coação. A suspensão de execução da pena supõe um juízo de prognose favorável a respeito do comportamento futuro do arguido, supõe um voto de confiança a respeito desse comportamento (ver artigo 50º, nº 1, do Código Penal). As medidas de coação pressupõem a verificação de alguma das situações descritas no artigo 204º do Código de Processo Penal (fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação, perigo de continuação da atividade criminosa e perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas). No caso da caução carcerária, está fundamentalmente em causa o perigo de fuga. É contraditório formular um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do condenado e considerar, por outro lado, que uma caução carcerária é necessária para evitar o perigo da sua fuga. Se assim fosse, não se justificaria tal suspensão.
A questão em apreço não reside, pois, apenas na interpretação dos citados nºs 1, e), e 4 do artigo 214º do Código de Processo Penal. Reside na incompatibilidade dos pressupostos da suspensão de execução da pena de prisão e da imposição de caução carcerária. É contraditório optar por uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução e considerar que se mantêm os pressupostos que justificam a imposição de uma caução carcerária. Não pode, por isso, considerar-se que se mantêm os pressupostos de aplicação de uma medida de coação, designadamente de uma caução carcerária, quando se opta por uma pena de prisão suspensa na sua execução,
Assim sendo, não é relevante, ao contrário do que se sustenta no douto despacho recorrido e na contra-motivação do Ministério Público, que a decisão de condenação em pena de prisão suspensa na sua execução não tenha transitado em julgado. A extinção da caução carcerária não decorre automaticamente do trânsito em julgado da condenação em pena de prisão suspensa na sua execução (ex vi do citado artigo 214º, nº 1, e), do Código de Processo Penal, que, na verdade, alude ao trânsito em julgado da condenação), decorre da incompatibilidade entre os pressupostos de uma e outra. Assim, como consequência de tal condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, e independentemente do trânsito em julgado da mesma, deixam de subsistir os pressupostos que determinaram a imposição de caução carcerária. Do mesmo modo, a condenação em pena de prisão suspensa levaria à insubsistência de uma eventual prisão preventiva mesmo que tal condenação não transite em julgado devido à interposição de recurso do Ministério Público em que se pugne pela condenação em pena de prisão efetiva.
Impõe-se, pois, conceder provimento ao recurso.

Não há lugar a tributação (artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V - Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, determinando o levantamento da caução carcerária prestada pelo arguido e recorrente no âmbito deste processo.

Notifique.

Porto, 09/05/2012
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo