ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DOS CÔNJUGES
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Sumário

1- O ex-cônjuge que administra bens próprios do outro, ou bens comuns, está obrigado a prestar contas dessa sua administração.
2- Convencionando os cônjuges, aquando do respetivo divórcio, apenas que um deles fica a utilizar a casa de morada de família, não pode daí retirar-se que o outro prescindiu de ser compensado por essa utilização.

Texto Integral

Procº 3146/13.1TBGMR-A.G1

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Sumário:
1- O ex-cônjuge que administra bens próprios do outro, ou bens comuns, está obrigado a prestar contas dessa sua administração.
2- Convencionando os cônjuges, aquando do respetivo divórcio, apenas que um deles fica a utilizar a casa de morada de família, não pode daí retirar-se que o outro prescindiu de ser compensado por essa utilização.
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório
1- F, intentou a presente ação com processo especial para prestação de contas, contra, M, alegando, em breve resumo, que, na sequência do divórcio entre ambos, decretado no dia 03/05/2012, o direito à utilização do prédio urbano que identifica, que ainda é propriedade comum, ficou, por acordo, a pertencer à Ré, sem que esta, no entanto, lhe pague qualquer contrapartida por essa utilização, apesar de ser ele a suportar, em exclusivo, a amortização do empréstimo contraído para a aquisição de tal prédio.
Por isso pretende, para além do mais, que a Ré seja condenada a pagar-lhe metade do valor locativo de tal imóvel, desde a dissolução do casamento até efetiva venda daquele.
2- Contestou a Ré refutando esta pretensão, porquanto não reconhece ao A. este direito, até porque, na sequência do acordado entre ambos, já paga, por dedução na prestação de alimentos acordada para os filhos, a sua quota-parte no valor necessário para amortizar o crédito contraído para aquisição do dito imóvel.
3- Terminados os articulados e saneada a instância, foi proferida sentença que julgou improcedente a pretensão do A.. Isto porque, em suma, “no caso em concreto, tendo em conta que o bem comum utilizado pela R., cabeça-de-casal e como tal administradora do património do extinto casal, é a casa de morada de família cujo direito de habitação lhe foi atribuído por acordo em sede de divórcio por mútuo consentimento, não lhe é exigível que preste contas pela utilização do mesmo”.
4- Inconformado com esta decisão, dela recorre o A., terminando a suas alegações recursivas concluindo o seguinte:
“I. Vem o presente recurso interposto do despacho que julgou improcedente a pretensão do A., ora recorrente, de que a R. preste contas pela administração que faz dos bens do ex-casal.
II. Ora, não pode o A., ora recorrente, conformar-se com tal posição.
III. De facto, por não ter sido acordada, em sede de divórcio nenhuma compensação a pagar ao A., pelo uso exclusivo da casa de morada de família pela recorrida, não se pode considerar- como fez o tribunal a quo -, que não é exigível à recorrida que preste contas e consequentemente pague ao recorrente um justo valor pelo beneficio que retira do uso do imóvel, bem comum. Senão vejamos,
IV. Tendo cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges, pelo divórcio, até à partilha mantém-se a chamada mão comum ou propriedade coletiva, com aplicação à mesma das regras da compropriedade (art.º 1404.º do CPC) - cf Acórdão do STJ de 26-04-2012, no âmbito do processo n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
V. Assim, as vantagens que resultam da actuação isolada de um dos contitulares no uso da coisa terão de ser repartidas pelo outro contitular na proporção das respectivas quotas.
VI. Nessa medida, aquele que da sua “quota-parte” não usufrui, tem também direito a um gozo indireto, que consistirá, tal como se locação houvesse, numa compensação pelo valor do uso de tal “quota-parte”. – neste sentido, Acórdão do STJ de 26-04-2012, no âmbito do processo n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.O
VII. Porém, é de ressalvar que o A. não veio peticionar uma renda, pelo que não se deve confundir com o regime de arrendamento da casa de morada de família do art.º 1793.º do cc.
VIII. No caso dos autos, trata-se de um pedido de prestar contas ao ex-cônjuge, onde se deve incluir o uso que faz do imóvel, que constitui “uma utilidade económica traduzível em valores financeiros”, como bem referiu o Tribunal a quo, na esteira do que o recorrente havia invocado na PI, anunciando o Acórdão do STJ de 02-07-2003, no âmbito do processo 04A364.
IX. Assim, o valor peticionado pelo ora recorrente traduz-se numa contrapartida, como pelo uso e fruição exclusiva por parte da ex-cônjuge.
X. Uso que, desde já se diga, é claramente excessivo e abusivo, na medida em que a recorrida tem protelado durante anos (desde o divórcio, em 2012) a venda do imóvel, que havia sido acordada entre os ex-cônjuges, com atitudes que obstam a que possíveis compradores possam fazer uma visita ao imóvel.
XI. A que acresce ainda o facto de a recorrida receber mensalmente a quanta total de € 448 a título de pensão de alimentos das filhas menores, onde se consideram abrangidas também as despesas com a habitação.
XII. Por este motivo, deve a ré prestar contas da administração do imóvel comum desde a data do divórcio, o qual sempre usou, sem prestar contas, nem pagar qualquer renda ao A.
XIII. Neste sentido, vai o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-03-2012, relativo ao processo 5372/04.5TBGMR-A.G1, disponível em dgsi.pt, referindo que “Tendo as partes divorciando-se, como é o caso, e ficado um dos ex-cônjuges a deter a posse de bens comuns (...), deles retirando os frutos e utilidades, deve prestar ao outro contas desde a data da propositura da acção de divórcio (nº 1 do arte 1789º do CC) ou da data em que foi declarada cessada a coabitação, no caso previsto no nº 2 do artº 1789º do CC”.
XIV. Importa ainda acrescentar que, solução diversa da que preconizamos, traduzir-se-ia num enriquecimento sem causa da R.- com esse entendimento ver Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-10-2014, no âmbito do processo n.º 3835/11.5TJVNF-C.Pl, e Acórdão do STJ de 02-07-2003, no âmbito do processo 04A364.
xv. Pelos motivos supra expostos, deve a R., ora recorrida, prestar contas da administração do imóvel comum desde a data do divórcio, devendo ser condenada no pagamento do saldo verificado entre as receitas pelo valor da utilização do imóvel comum, in casu, no pagamento da quantia igual a metade do valor locativo do imóvel, multiplicado por todos os meses desde a dissolução do casamento até efetiva venda do imóvel, dando provimento ao pedido do A”.
5- Não consta que tivesse sido apresentada resposta.
6- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Mérito do recurso:
A- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente recurso, sendo delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil), restringe-se apenas à questão de saber se a Ré tem o dever de prestar contas ao A.
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B- Fundamentação de facto
Vêm julgados como demonstrados os seguintes factos:
1- A. e Ré foram casados entre si tendo tal casamento sido dissolvido a 3 de Maio de 2012.
2- A. e Ré são proprietários de um prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua…, inscrito na matriz sob o artigo…, descrito na conservatória do registo predial de Guimarães, sob o n.º 726, com o valor patrimonial de 121.968,50€.
3- Por decisão datada e transitada em julgado a 03/05/2012, proferida no procedimento administrativo de divórcio, foi homologado o acordo celebrado entre A. e Ré no sentido da utilização/direito de habitação do imóvel referido em 2., a casa de morada de família, ser atribuído à Ré.
4- Encontra-se pendente o processo de inventário subsequente ao divórcio de A. e Ré, o qual constitui os autos principais, no qual esta é cabeça-de-casal.
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C- Fundamentação jurídica
Nada mais se discute neste recurso, como vimos, que não seja a questão de saber se a Ré tem o dever de prestar contas ao A. pela utilização que a mesma faz daquela que foi a casa de morada de família de ambos.
Na sentença recorrida respondeu-se negativamente a esta questão. Aí se argumentou, no essencial, que, embora os ex-cônjuges, após o divórcio, estejam obrigados a prestar contas um ao outro pelo uso que deem aos respetivos bens comuns, já o não está a Ré neste caso concreto, porquanto, a utilização que a mesma faz da casa de morada de família foi-lhe conferida, por acordo, no âmbito do procedimento amigável de divórcio, o que revela, de modo inequívoco, que o A. anuiu, expressamente, a que a R. ocupasse a referida casa “sem que para tal tivesse ficado adstrita a qualquer contra prestação”.
Mas o A. não se conforma com esta interpretação e contrapõe que “por não ter sido acordada, em sede de divórcio nenhuma compensação a pagar ao A., pelo uso exclusivo da casa de morada de família pela recorrida, não se pode considerar- como fez o tribunal a quo -, que não é exigível à recorrida que preste contas e consequentemente pague ao recorrente um justo valor pelo beneficio que retira do uso do imóvel, bem comum”.
Esta, portanto, a problemática a dilucidar. Ou seja, não está em causa a obrigação genérica dos ex-cônjuges de, após o divórcio, prestarem contas um ao outro pelo uso que façam dos respetivos bens comuns – o que a sentença recorrida aceita como certo-, mas apenas a interpretação a dar ao acordo celebrado por A. e Ré, no âmbito do respetivo procedimento de divórcio, a respeito do uso daquela que foi a casa de morada de família de ambos. Isto porque aí nada se convencionou no sentido de saber se alguma contrapartida é, ou não, devida por esse uso.
Pois bem, sendo certa a ausência dessa estipulação, já não cremos que seja correta a interpretação seguida na sentença recorrida.
E não a temos por correta porque partilhando igualmente do entendimento de que qualquer um dos ex-cônjuges tem o direito de exigir ao outro a prestação de contas pelo uso que o mesmo faça dos bens comuns, competia à Ré, no caso presente, enquanto utilizadora de um desses bens – mais concretamente, a ex-casa de morada de família -, o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), e não o fez.
Expliquemo-nos melhor:
Na pendência do casamento, havendo comunhão de bens, os mesmos estão afetos aos encargos da sociedade conjugal, de acordo com um regime jurídico específico. Por isso se diz que esses bens são objeto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade coletiva ou propriedade comum, pensada em função dos objetivos próprios daquela sociedade Neste sentido, entre outros, Antunes Varela, Direito da Família, 1982, Livraria Petrony, págs. 373 a 376. . É nesse quadro, aliás, que deve ser entendida a isenção dos cônjuges de prestar contas, prevista no artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil.
Mas, dissolvido o casamento por divórcio, deixa de fazer sentido aquela isenção. As relações patrimoniais entre os cônjuges terminam e os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, retroagindo à data da propositura da ação quanto àquelas relações, podendo, inclusive, se a separação de facto estiver provada no processo e tal for requerido, ser fixados a partir do início dessa separação – artigo 1789.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Vol IV, 2ª ed. Revista, Coimbra Editora, pág. 561., a intenção da lei, ao estabelecer a primeira retroação indicada “é a de evitar que um dos cônjuges seja prejudicado pelos atos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum”.
Neste contexto, não admira que o ex-cônjuge que administra bens próprios do outro, ou bens comuns, esteja obrigado a prestar contas dessa sua administração. Tal como, de resto, o está o cabeça de casal, subsequente ao divórcio (artigo 2093.º, n.º 1, do Código Civil). O que tem sido pacificamente entendido como certo Neste sentido, Ac. STJ de 25/03/2004, Proc. 04A364; Ac. STJ de 26/04/2012, Proc. 33/08.9TMBRG.G1.S1; Ac. 26/04/2007, Proc. 1944/2007-2; Ac. RG de 08/03/2012, Proc. 5372/04.5TBGMR-A.G1; e, Ac. RG de 25/09/2014, Proc. 238/06.7TCGMR-C.G1, todos consultáveis em www.dgsi.pt. e nestes autos, como vimos, não vem sequer questionado, em virtude de igual entendimento ter sido sufragado pela instância recorrida.
Pois bem, tendo por assente este pressuposto, a Ré, para se eximir da referida obrigação, não podia deixar de demonstrar, como já dissemos, os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do correspondente direito. E, repetimos, não o fez.
É que, ao contrário do defendido na sentença recorrida, não pode, a nosso ver, retirar-se do acordo celebrado entre as partes aquando do respetivo divórcio, que o A. prescindiu de qualquer contrapartida pela utilização daquela que foi a casa de morada de família de ambos. Tratando-se, como se trata, de um negócio formal, as declarações nele expressas não podem valer com um sentido “que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” – artigo 238.º, n.º 1, do Código Civil. Ora, em parte alguma do citado convénio se alude à aludida contrapartida. Portanto, deve seguir-se a regra geral; ou seja, tratando-se, como se trata, de um bem comum, o A. tem o direito a ser compensado pelo benefício que a Ré dele retirou. E para obter essa compensação, esta última não pode deixar de ser obrigada a prestar-lhe contas da administração que fez daquele bem.
Por conseguinte, a sentença recorrida deve ser revogada, com o que procede na íntegra o presente recurso.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, concede-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que a Ré preste ao A., no presente processo, contas da sua administração daquela que foi a casa de morada de família de ambos.
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- As custas do presente recurso, uma vez que nele não houve oposição, serão pagas pela parte vencida a final.